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ISSN: 1980-5071

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Page 1: Da ideia a criação de Vinicius de Moraes: uma análise da música original da peça "Orfeu da Conceição" (1956).Artigo de Fabiana Quintana Dias e Ney Carrasco-Revista Científica

LucianaBaroneEditora

Page 2: Da ideia a criação de Vinicius de Moraes: uma análise da música original da peça "Orfeu da Conceição" (1956).Artigo de Fabiana Quintana Dias e Ney Carrasco-Revista Científica

GOVERNODOESTADODOPARANÁSECRETARIADACIÊNCIA,TECNOLOGIAEENSINOSUPERIOR

IMPRENSAOFICIALDOESTADODOPARANÁFACULDADEDEARTESDOPARANÁ

Copywright@2011

RevistaCientífica/FAP

periodicidadesemestralPEDE‐SEPERMUTA

WEASKFOREXCHANGE

ONPRIEL’EXCHANGE

ARevistaCientífica/FAPéumapublicaçãodeartesdaFaculdadedeArtesdoParaná.Asopiniõesexpressasnosartigosassinadossãodeinteiraresponsabilidadedosautores.Osartigosedocumentosdestevolumeforampublicadoscomaautorizaçãodeseusautoreserepresentantes.

RevistaCientífica/FAP–FaculdadedeArtesdoParaná;

LucianaBarone(organizadora).v.07,(jan./jun.,2011).Curitiba:FAP,2011334p.:il.Col.;21,1x28,1cm.

SemestralISSN1679‐49151. Arte – Periódicos. I Faculdade de Artes do Paraná. II.Barone,Luciana.

CDD705CDU7(05)

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RevistaCientífica/FAP

BRASIL

2011

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faculdadedeartesdoparaná–fap

RosaneSchlögelDiretora

EulideJazarWeibel

Vice‐Diretora

Dra.ZeloíAparecidaMartinsdosSantosCoordenadoradePesquisa

Dra.SolangeStraubeStecz

CoordenadoradePós‐Graduação

MarizaPintoFleurydaSilveiraBibliotecária

revistacientífica/fap

editora

Dra.LucianaBarone

conselhoeditorialDr. Armindo Bião (UFBA); Dr. Cássio da Silva Fernandes (UFJF); Drª. Cristina Capparelli Gerling(UFRGS);DrªCristinaGrossi(UnB);Dr.DanielWolff(UFRGS);Drª.DulceBarrosdeAlmeida(UFG);Drª. Fabiana Dultra Britto (UFBA); Drª Helena Katz (PUC‐SP); Dr. José Manuel Tedim(Portucalense‐Pt);Dr.KeyImaguireJr.(UFPR);Dr.LuizFernandoRamos(USP);Dr.MarcoAntonioCarvalho Santos (UFF); Dr. Marcos Napolitano (USP); Drª. Margarida Gandara Rauen(UNICENTRO); Dr. Paulo Humberto Porto Borges (UNIOESTE); Drª. Regina Melim (UDESC);Drª.Selma Baptista (UFPR); Drª Rosemyriam Ribeiro dos Santos Cunha (FAP); Drª. Sheila DiabMaluf(UFAL);Dr.WalterLimaTorres(UFPR);Drª.ZéliaChueke(UFPR).

capa

SamuelGionedis

Page 5: Da ideia a criação de Vinicius de Moraes: uma análise da música original da peça "Orfeu da Conceição" (1956).Artigo de Fabiana Quintana Dias e Ney Carrasco-Revista Científica

apresentação

A Revista Científica / FAP, periódico semestral da Faculdade de Artes do Paraná, chega a seu

sétimonúmero,consolidandooobjetivodecontribuircomadisseminaçãodapesquisaemartes

desenvolvida em Instituições de Ensino Superior. Para tanto, tem sido fundamental a preciosa

colaboração,tantodosarticulistasquevêmatendendoanossaschamadas,quantodosmembros

doConselhoEditorialedospareceristasad‐hoc, cujoatencioso trabalho só tem feito crescera

publicação.Adiversidadedasabordagensreunidanestevolumeimprimetraçosdoamplodiálogo

entre o fazer artístico e seu refletir nas variadas áreas do conhecimento, bem como das

confluênciasetangenciamentosentreasdiferenteslinguagensexpressivas.

Na seçãoprocessosde criação encontram‐seosartigosqueenfocampoéticaseprocedimentos

técnicos e artísticos. Gustavo Côrtes, Inaicyra Falcão dos Santos e Mariana Baruco Machado

AndrausdiscutemaspossibilidadesdeapropriaçãodométodoCorpoeAncestralidade,apartirde

experiências que aliaram práticas performativas à teoria. Marina Elias enfoca o Movimento

Improvisado como recurso de composição nas artes cênicas, discutindo suas especificidades e

problematizando‐ocomolinguagemtécnico‐poética.Ana Cristina Fabrício parte de sua

experiênciacomoMicrodramaeacriaçãodemetáforasnaformaçãodeatores,apontandopara

relações com a Mímica Corporal Dramática, de Étienne Decroux. Manuel Guerrero analisa os

procedimentos empregados pelo dramaturgo Sergio Arrau em Sin otro delito que ser su hijo,

identificandoa críticadoautor comrelaçãoatraçosficcionaisdanarrativadeumaHistóriaque

visaperpetuardeterminadosvalores.GeraldoFranciscodosSantosvoltaosolhossobreoSonho

deumanoitedeverãomontadopeloBandodeTeatroOlodum,refletindosobreoquechamade

baianidadenegro‐soteropolitana,apartirdosprincípiosutilizadospelainterpretaçãoeencenação

comoconstituintesdaexpressãode “traços identitários”.FabianaQuintanaDiaseNeyCarrasco

analisam a música original da peça “Orfeu da Conceição”‐ que marca o primeiro encontro da

poesiadeViniciusdeMoraes comamúsicadeAntônio Carlos Jobim–apartirdoprocessode

criaçãodapeça,bemcomodosaspectosdramático‐musicaisqueelaapresentaemsuanarrativa.

AlexyViegasapresentaumestudodapeçaRagtimeparaonze instrumentos,de IgorStravinsky,

investigandonela,indíciosdaexistênciadoelementopopular.

Teoria e história da arte engloba os artigos que enfocam abordagens críticas, estéticas e

históricas.GustavoGuenzburgerdiscuteaoperacionalidadedoconceitopós‐dramático frenteà

produçãocontemporânea,apartirdeummapeamentodagenealogiado termo,bem comodo

desdobramentodeseuimpactosobreacríticabrasileiraatual.CarolinaCamargoDeNadaifoca‐se

sobreodesignnadança,apartirdosmodosorganizativossingularesdoscorposqueaconstroem.

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AlanRafaeldeMedeiroseÁlvaroCarlini investigamotrabalhodaSociedadedeCulturaArtística

Brasílio Itiberê (1944‐1976)pela consolidaçãodeespaços de sociabilidadevoltadosà formação

deplateiaemmúsicaerudita,naCuritibadeentão.LunaCristinaCastroNery,propondoocinema

comodevir, refletesobreabuscada identidadedoqueéproduzidoforadoscentroseuropeue

norteamericano,propondoumadescolonizaçãodaimagemparaoschamados“cinemasdosul”.

Apontando para possíveis relações entre literatura, cinema e outras áreas expressivas, Salete

PaulinaMachadoSirinoeRitadasGraçasFelixFortesaliamsualeituradatemáticadainfânciaem

ConversadeBoise CampoGeral/Miguilim deJoãoGuimarãesRosa,àsteoriasda recepçãode

Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Neurivaldo Campos Pedroso Junior remonta à Antiguidade

clássicaparaidentificarproposiçõesderelações,aproximativasounão,entreasartes,para,num

traçadohistórico,chegaràinstitucionalizaçãodosestudosinterarteseàinfluênciaquesofremda

intermedialidade,discutindoainstabilidadedoslimiaresentreaslinguagens,naatualidade.

Emeducação do sensível, tantoNeli Klix Freitas e RosannyMoraes deMorais Teixeira, quanto

LorenaBaroloFernandeseAnitaSchlesenerenfocamoensinodaartenoprocessoinclusivo,seja

na ênfase do reconhecimento das diferenças e potencialidades individuais para o processo de

criação e para o convívio social e cultural de todos, seja na ênfase à comunicação alternativa

possibilitada pela vivência da arte no caso de indivíduos com Transtorno do Espectro Autista,

respectivamente. Larissa Minuesa Pontes Marega apresenta suas reflexões sobre teatro e

educação a partir de sua experiência artística e docente, enfatizando a importância do caráter

lúdicodestaarte,da retomadaque traçado teatro grego antigoàspráticasquepropõeparaa

saladeaula. Tambémno campo teatral, RenataFerreiradaSilvapropõeumdiálogo entredois

sujeitos,umdramáticoeumpós‐dramático, para enfocaras reverberaçõesdo rompimentoda

ideiadoteatrocomorepresentaçãodeumcosmosfictícionoensinodestaarte.

Na seção dedicada à musicoterapia, Rosemyriam Cunha e Maria Carolina dos Santos Cruz

Pachecofazemumaanálisecomparativadapresençadamúsicanarotinadiáriadepessoasjovens

e idosas, identificando‐a como elemento capaz de ampliar as capacidades comunicativas,

enquantoeventopsicossocialeterapêutico.

Manifestandosincerosagradecimentosatodosaquelesquediretaouindiretamentecontribuíram

paraarealizaçãodestenúmero,bemcomoaoapoioeconfiançadaDireçãodaFAPedoSetorde

Pesquisa,desejamosatodosumaboaleitura!

LucianaBarone

Editora

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Rev.Cient./FAP,Curitiba,v.7,p.99‐118,jan./jun.2011.

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DaideiaàcriaçãodeViniciusdeMoraes:umaanálisedamúsica

originaldapeça“OrfeudaConceição”(1956)

FabianaQuintanaDias1

NeyCarrasco2

Resumo:Poucosespetáculos foramtãoimportantesparaaculturabrasileiraquanto

a peça “Orfeu da Conceição” (1956). A adaptação de Vinicius de Moraes para os

morroscariocasdomitogregorepresentouoprimeiroencontrodasuapoesiacoma

música de Tom Jobim: o novo samba, precursor da bossa nova, e a bossa nova

propriamente dita. Opresente artigodescreveoprocessode criaçãodapeçaeum

estudodosaspectosdramáticosedramático‐musicaisnaestruturanarrativadaobra.

Palavra‐chave: Orfeu da Conceição; trilha musical; teatro brasileiro; dramaturgia

musical.

Abstract:FewspectaclesweresoimportanttoBraziliancultureastheplay“Orfeuda

Conceição” (1956).TheadaptationofViniciusdeMoraesto thehillsof Rio fromthe

Greekmytherepresented the firstmeetingof hispoetrywithmusic by TomJobim:

new samba,precursorof bossanova, bossanovaandproper.Thisarticledescribes

theprocessofcreatingthepieceandastudyofthedramaticaspectsanddramatic‐

musicalworkofnarrativestructure.

Keywords:OrfeudaConceição;soundtrack;BrazilianTheater;musicaldramaturgy.

“ParamatarOrfeunãobastaamorte.Tudomorrequenasceequeviveu,sónãomorreavozdeOrfeu.”

(ViniciusdeMoraes)

Uma batucada no morro e algumas palavras pronunciadas pelo escritor americano

Waldo Frank foi tudo que Vinicius de Moraes precisou para criar a tragédia carioca

“Orfeu da Conceição”. Em uma visita ao Brasil no ano de 1942, frequentando favelas,

clubesefestejosnegrosnaBahia(espetáculosdecandombléecapoeira)acompanhado

do poeta, Frank se encanta com a sensualidade e o ritmo de alguns negros

principalmente da Favela do Pinto no Rio de Janeiro e os compara aos gregos da

Antiguidade. O comentário fez Vinicius idealizar que algummito helênico poderia ser

recriadoentreosfaveladoscariocas.

1Jornalista,produtoraemestrandaemMultimeios‐UNICAMPcombolsaFAPESP‐SP.

2 Professor Doutor do Instituto de Artes‐ UNICAMP. É compositor e pesquisador especializado em trilhasmusicais.Temdiversosartigospublicadosnaárea,alémdolivroSygkhronos:aformaçãodapoéticamusicaldocinema(ViaLettera‐SãoPaulo).

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Conversavai,criou‐sesubitamenteentrenós,atravésdeumprocessodeassociaçãocaótica, o sentimento de que todas aquelas celebrações e festividades a quevínhamos assistindo tinham alguma coisa a ver com a Grécia, como se o negro, onegro carioca no caso, fosse um grego em ganga, um grego ainda despojado decultura e do culto apolíneo à beleza, mas não menos marcado pelo sentimentodionisíacodavida.(MORAES,1956,Textooriginalnoprogramadapeça)

AproveitouentãoseurefúgionacasadopintorCarlosLeão,nocarnavalde1942,aopé

domorrodoCavalãoemNiterói,paracolocarsuasleiturasemdiaeteveaoportunidade

de lermais sobreomito grego. Embaladopela batucadaque vinhadomorro ao lado,

escreveuo primeiro ato da peçaque teria omito deOrfeu ambientado emummorro

cariocaegrandeimportânciahistóricaparaaculturabrasileira.

Era perto do Carnaval e tava uma batucada ao lado, erameia noite e de repente,como se eu tivesse tido um radar de um momento especial, as duas ideias sefundiram,degraça...[...]Eusentinomorronegroumasériedaqueleselementosqueeu estava lendo. As paixões, amúsica, o negócio da poesia, a gratuidade de tudoaquilo...Melembroquenessanoitemesmo,escrevioprimeiroatointeiro.(MORAES,1968.EntrevistaaoMIS‐RJ)

Umapeça em trêsatoscriadaemquatro etapas:o embriãonascenoanode 1942 em

Niterói,passa,em1948,porLosAngeles,em1953,peloRiodeJaneiroeseencerrano

dia19deoutubrode1955,emParis.Encenadaapenascomatoresnegros3;Vinicius,ao

criar “Orfeu da Conceição” concedeu total importância à cultura brasileira,

principalmente aos negros pobres e acabou gerandodiferentes interpretações sobre a

sociedadebrasileiradaquelaépoca.

Essapeçaé uma homenagemao negrobrasileiro, a quem, de resto, a devo; e nãoapenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste país, melhor, pelo seuapaixonanteestilodeviverquemepermitiu,semesforço,numsimplesrelampejardopensamento,sentirnodivinomúsicodaTráciaanaturezadeumdosdivinosmúsicosdomorrocarioca(MORAES,1956).

No programa original, destaca que o negro possuía uma cultura própria e um

comportamento “sui generis” que embora integrado no complexo racial brasileiro,

sempre manifestou a necessidade de seguir a trilha de sua própria cultura, prestando

assimumacontribuiçãoverdadeiramentepessoalàculturabrasileiraemgeral.

3 Em nota no texto da peça, Vinicius fala que todosos personagens da tragédia devem ser normalmenterepresentadosporatoresdaraçanegra.Vinicius,noprefáciodeseu livro“OrfeudaConceição”, falasobresuamaioralegriaemescreverapeçaedizqueérealmenteumahomenagemaonegrobrasileiro.

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Opoetatransportaentão,omitogregoparaomorrocariocaeodramagiraemtornoda

paixão de Orfeu por Eurídice, tendo como cenário a vida da população local, seus

costumes, sua fala e sua cultura, principalmente destacada por duas das mais

reconhecidasformasdeexpressãopopularnacionaldaépoca:ocarnavaleosamba.

ParaHermanoVianna, estasposturasacercadaculturapopular sãomuito importantes

no entendimentodo samba enquanto gêneromusical representantemáximodenossa

cultura.Osambaenquantoestilomusicalsetornou,comopassardotempo,aexpressão

máxima da música popular. “Nunca existiu um samba pronto, 'autêntico', depois

transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado

concomitantemente à sua nacionalização” (VIANNA, 2002, p. 151). A música popular

brasileira tornou‐se, como disse o crítico cultural Antônio Cândido, o “pão nosso

cotidianodaculturanacional”.Sobreaimportânciadosambanaculturabrasileira,Diniz

afirma:

Osambafoiorecheio,porvezesinspiração,dequasetodososmovimentosmusicaisdestaterracarnavalesca.Apesardeserumgêneroresultantedasestruturasmusicaiseuropeiaseafricanas,foicomossímbolosdaculturanegraqueosambasealastroupelo território nacional. No passado, os viajantes denominavam batuque qualquermanifestaçãoquereunissedançacantoeusode instrumentosdosnegros.Esse eraentãoumtermogenéricoparadesignarfestejos.(DINIZ,2006,p.13)

O curioso é que “Orfeu da Conceição” antes mesmo de ser encenado já tinha

conquistadoo primeiro lugar em1953no concursode teatro do IV Centenário de São

Paulo4equandoaindanãotinhanemmúsica,jáerapredestinadoavirarfilme.Emuma

carta de Vinicius para sua filha Susana Moraes (20 de junho de 1955‐Paris), comenta

sobreo interessedoprodutordecinemafrancês,SashaGordine,pelahistóriadeOrfeu

queresultaria,em1959,nofilme“OrfeuNegro”deMarcelCamus.

Após Vinicius saber desse interesse dos franceses em “filmar” Orfeu, surgiu a

necessidade de procurar algummúsico para compor os temas da peça. Depois de um

tempo,devoltaaoBrasil comumalicença‐prêmiodoItamarati, foiàCasaVilarino(um

bar onde se reuniam jornalistas, escritores, radialistas e pessoas ligadas ao meio

artístico) com seu amigo Lúcio Rangel e o compositor Haroldo Barbosa. Conversando

sobremúsicapopular,regadosamuitouísque,Viniciusfaloudoproblema,contandoque

o escolhido tinha sido Vadico (antigo parceiro de Noel Rosa e pianista de Carmem

MirandaemLosAngeles),masquehaviadesistidopormotivodesaúde.Lúcionahora

4O poeta JoãoCabral deMeloNeto foi quemo incentivou a se inscrever e também foi quem sugeriuonomeparaapeça.

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indicouTomJobim,queestavanamesaaoladoefoiaquioprimeiropassodaparceria

degrandesucessoparaamúsicapopularbrasileira.

Reunidos no apartamento de Tom, concluíram todas as árias da peça em apenas um

mês.Aprimeiracomposiçãooficialdosdoisfoi“Setodosfossemiguaisavocê”.Depois

surgiramasoutrascançõeseparasejuntaràtrilha,ViniciusmostraparaTomaValsinha

quecompôsparasuafilhaSuzanaemdecorrênciadesuaformatura.Depoisdeouvi‐la,

Tomafirmaserestaavalsaqueestavafaltandopara representaroamorentreOrfeue

Eurídice.AValsadeSuzanapassouentãoasera“ValsadeEurídice”,principaltemade

“OrfeudaConceição”.

Aesplêndidarepercussãodaprimeiranoitepodeseravaliadapelonúmerodevezesque

a cortina subiu, sob os aplausos da plateia, ao final de cada ato (quatro vezes no

primeiro, cinco no segundo e oito no terceiro), e também pela rapidez com que se

esgotaram os mil exemplares do programa desenhado por Scliar, distribuídos no local

(CASTRO,2001,p.41).

OcenárioficouacargodeOscarNiemeyereadireçãofoideLeoJusi.Segundoodiretor,

a maior necessidade damise‐en‐scène de “Orfeu da Conceição” era a de evidenciar

cenicamenteatransplantaçãodomitogregoparaoambientedeummorrocarioca.

Foi apresentada nodia 25de setembro

de1956comoTheatroMunicipaldoRio

deJaneiro lotadoefoiconsideradauma

revoluçãoeummarcoparaaépoca.Um

elenco negro naquele local da alta

sociedade e cultura,umespetáculoque

levouamúsicapopularbrasileiraanível

internacional e ainda foi se tornar um

clássico ganhando a Palma de Ouro no

FestivaldeCannes eoOscardemelhor

filme estrangeiro em 1959 com o filme

“OrfeuNegro1”deMarcelCamus.

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ViniciusdeMoraes criouum textoonde vigor e encanto afloramnuma poéticaoradramática, ora lírica e ainda, por vezes no que poderíamos chamar de liricamentedramáticaoudramaticamente lírica. Coube‐me, portanto, procuraruma encenaçãoque evidenciasseo lirismodomito, dandoomáximodestaque àdramaticidadedocontexto, destaque este usado para prescindir de uma platéia obrigatoriamentereferendadaàfontegrega.Poroutrolado,naautenticidadedeseuimpulsoartístico,o autor não se furtou a conceber cenas e personagens que vão desde o mais crurealismo aomaior simbolismomístico. Optei, assim por um tratamento que veio aconjugar uma interpretação sincera – Stanislavskiana – com uma apresentaçãoBrechtiana,assimiladaspelotemperamentobrasileiro”(JUSI,1956.Textooriginalnoprogramadapeça).

Para criar seus personagens, Vinicius não foi tão fiel à tradição. Procurou aproveitar

alguns nomes que já faziam parte do mito e adaptou para a sua realidade: Orfeu da

Conceição:omúsico,Eurídice:suaamada,Clio:mãedeOrfeu(namitologiaquemémãe

deOrfeuéCalíope),Apolo:paideOrfeu,Aristeu:ocriadordeabelhaseapaixonadopor

Eurídice(napeçaeleéamigofraternaldeOrfeuenãoapenasumapicultorapaixonado

por sua amada como no mito), Mira de Tal, umamulher do morro, ex‐ namorada de

Orfeu,aDamaNegra(encarnaçãodamorte),Plutão:presidentedosMaioraisdoInferno,

Proserpina: sua rainha, Cérbero (o cão guarda do Inferno), Coro e Corifeu. Esse era o

elencocomumtotalde45pessoascompostoporatoresetodocorpodebaile.

Como no mito, Orfeu (Haroldo Costa) o tempo todo dialoga com os animais e com a

natureza.Obedienteàscaracterísticasdatragédiaclássica,apeçaseiniciacomoCorifeu,

ochefedocoro,queapresentalogodeinícioodesfechotrágicodahistória:“Sãodemais

osperigosdessavidaparaquemtempaixão [...]Aíépreciso tercuidado,porquedeve

andarpertoumamulher,queéfeitademúsica,luaresentimentoequeavidanãoquer

detãoperfeita,tãolindaquesóespalhasofrimento...”

Comessesonetodeabertura, opoetadeixaclaro queocentroda tramaserásobrea

paixão entre duas pessoas e os problemas que esse amor sem limites pode gerar,

contaminandoinclusivetudoqueestáaoseuredor.Oamorestáaquiacimadavidaeda

morte.

A peça de Vinicius segue a estrutura que Hegel defende sobre um drama: três atos,

sendo que no primeiro nasce o conflito, no segundo o choque acontece, a luta de

interesseseconflitosenoterceirotemodesfechonaturaldetudooqueprovocou.Além

disso,aaçãoéoelementoprimordialnapeçaesegundopalavrasdeAristóteles(1951,

p.280):“Oscaracterespermitemqualificarohomemmasédasuaaçãoquedependea

suafelicidadeouinfelicidade.”

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A história sofreu algumas modificações para se encaixar na adaptação para o morro

cariocaeganharmaiordramaticidade,aexemploda responsabilidadedospersonagens

porsuasações.Porexemplo,namitologia,Eurídice(DaysePaiva)morrepicadaporuma

serpente quando Aristeu a perseguia na mata e na peça ela morre atingida por um

punhal.

Há também algumas semelhanças com o mito. Por exemplo, o pai de Orfeu continua

sendo Apólo, que na mitologia foi o inventor da cítara e quem ensinou e incentivou

Orfeu na arte musical. Clio, sua esposa e mãe do músico, confirma isso no início do

espetáculo: “É mesmo. Foi você que ensinou ele...Ele aprendeu, o meu Orfeu. Agora

ninguémtocacomoele,nemomestre.”

A morte, representada pela Dama Negra, seriam as Fúrias no mito. Com esta

personagemnotamosqueViniciusquisdestacartambémumpoucodaculturadomorro,

principalmenteareligiãorepresentadapelocandomblé5.UmexemploéquandoaDama

Negra aparece para levar Orfeu e fala com a voz de Eurídice, como se estivesse

recebendoo espíritodesuaamadaenas cenas emque ele tocaparaela emritmode

macumba.

Para representar a ida de Orfeu ao Inferno em busca de Eurídice que estava morta,

Vinicius adaptou na peça com a ida do músico aos Maiorais do Inferno: clube onde

predomina a orgia, a bagunça, a bebedeira emplena terça‐feira de carnaval. Segundo

Queiroz(1992,p.182),oconceitodecarnavalsemprefoiambíguo;aquelesmesmosque

oencaramcomofestadocongraçamentoedaconcórdia,tambémorotulamdefestada

desordemedosexcessos.AquiViniciusrepresentouumpoucodessaculturaecomoera

conceituadanaquela época.Muitabatucada,compessoasdançandoe,assim comono

mito,OrfeucomsuamúsicadominaCérberoparaentrar.Nãoencontrandooquequeria,

vaiemboraeemcenaentramalgunsjovensjogandocapoeira,comoserepresentassem

alutaeosofrimentodeOrfeu.DetalheparaarelaçãoaquifeitaporViníciusentreacena

dojogo(capoeira)eamúsica,semprepresente.

Nofinal,MiraeasmulheresdomorroinconformadascomodesejodeOrfeuapenaspor

Eurídice,atiram‐secontraelecomnavalhasefacas.Nomito,essasmulheresseriamas

BacantesquematamtambémOrfeuporcausadodesprezo,despedaçando‐o.

5 É interessante notar a relação de Orfeu, o herói grego, com o candomblé. Os deuses da religião sãoancestrais, porém sua antiguidade remonta a tempos imemoriais. São como os heróis e deuses gregos,grandesreis,guerreirosepersonagensquevirarammitos,forammitificadose,assim,alcançaramacondiçãodedivindades.

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Vinicius nãomostrou em suapeça, comonomito, o erro e a desobediência deOrfeu,

alémdapossibilidadede recuperar Eurídice nãoolhandopara trás. Pelo contrário, ele

nãotemnenhumachancedereencontrá‐la.Aqui,Orfeunãosearrependedeterolhado

para trás e perde‐la para sempre e simdenão termais poderes coma suamúsica de

impediramortedesuaamada.

Orfeucomoseucanto está integradoànatureza,queéaextensãodoquesenteedo

queépressentidoereveladoporelepelosdiferentessonsdeseuviolão,oratristes,ora

enraivecidos,apaixonados,serenos,agoniadosoumesmodebochados.Orfeuéomorro.

Oexemplomaiordessaunidadeestánatransformaçãodafaveladuranteapeça:alegria

e harmonia, simultâneas aos momentos em que o músico está feliz, transformam‐se,

dando lugar a desentendimentos e problemas sociais, quando Orfeu enlouquece por

causa da perda definitiva de Eurídice: “Quando Orfeu tava bom não era assim, esse

morroerafeliz[...]ComOrfeuessemorroeraoutracoisa.Haviapaz.AmúsicadeOrfeu

tinhaumpoderabemdizerdivino...”

Amúsicaoriginalde“OrfeudaConceição”

Juntandotodasascríticasecomentáriossobre“OrfeudaConceição”,nota‐serealmente

queograndeméritodesseespetáculofoiselaraparceriadopoetacomTomJobim.Um

encontroque,atravésdapeça,antecipamusicalmenteosurgimentodabossanovaque

sedariaapósalgunsanoseganhariaomundoatravésdofilmedeCamus“OrfeuNegro”.

Já na peça, eles anunciavam o surgimento do novo gênero musical, com harmonias

equilibradasedissonantes,aarticulaçãoentreamúsicaeapoesiaeaparteinstrumental

reservadaaoviolão.

Além da peça, foi lançado um disco histórico e único responsável pela primeira união

desses dois gigantes, que com sua arte souberam extrairmomentos eternos de nossa

cançãopopular.

FalarsobreamúsicadeOrfeuéembrenhar‐seemumasensibilidadeartísticadelicadae

cheiadedetalhesatésechegaraumentendimentosobreaconsagraçãocompletadesta

obra. A peça não foi registrada em áudio ou vídeo, tendo‐se acesso hoje apenas a

relatos,artigosdejornaisedocumentosqueestãosobaguardadaCasadeRuiBarbosa

noRiodeJaneiro,alémdoúnicoregistrojácitadoparaeternizaressemomentoquefoio

discolançadopelaOdeonem1956.

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Odiscodapeçafoi lançadoumasemanadepoisdaestreia(dia1ºdeoutubro)emLong

Play10polegadaseapresentavaasseguintesfaixas:

SegundoFaour(2006),noencartedaediçãocomemorativade50anosdo1ºálbumde

TomeVinicius,atrilhadapeçanãochegouaserumgrandesucessonaépocaemquefoi

lançada, nãopor ter um conteúdo ruim, pelo contrário,mas porque era originalmente

umLPdedezpolegadas‐nempequenocomoocompacto,nemgrandecomcapacidade

para12 faixas.Eraumvinilde tamanhomédio,que comportavaquatro faixasdecada

lado.TalformatofoiimplementadotimidamentenoBrasilem1951e,cincoanosdepois,

muito pouca gente tinha aparelhagempara tocá‐lo. Até então, por aqui, o que vendia

mesmoeramasfrágeis“bolachas”de78rotações,comapenasumafaixadecadaladoe

nenhumacançãode“OrfeudaConceição”saiusimultaneamenteem78rpm,conformea

maioriadosLPsqueeramlançadospelaindústriafonográficadadécadade50.

Para se ter uma relação das músicas da peça, foi preciso unir todo esse material

comparandocomindicaçõesnaspartiturasdasmúsicaseanotaçõesnotextodapeça.

O primeiro trabalho de Vinicius com Antônio Carlos Jobim lançou músicas que se

tornaram clássicos, destaque para “Se todos fossem iguais a você” que até hoje é

lembradaeassociadaàpeçanoBrasilenoexterior.

Logonoiníciodotexto,Viniciusdeixaclarooquegostariaquefizessemcomamúsicada

peça caso ela fosse reconstruída no futuro. Destaca que as letras dos sambas, assim

comoasmúsicasdeTomeramnecessariamenteasquedeveriamserusadas emcena,

mas que careceriam sempre ser atualizadas de acordo comas condições da época em

LadoA:

1‐Overture(2:15)‐OrquestrasobaregênciadeTomJobim

2‐MonólogodeOrfeu(2:53)‐ditoporViniciusdeMoraes

comLuizBonfáaoviolão.

LadoB:

1‐Umnomedemulher(2:12)–TomJobim/RobertoPaiva

2‐Setodosfossemiguaisavocê(2:48)–

TomJobim/RobertoPaiva

3‐Mulhersempremulher(2:48)–

TomJobim/RobertoPaiva

4‐Euemeuamor(2:12)‐TomJobim/RobertoPaiva

5‐LamentonoMorro(2:14)‐TomJobim/RobertoPaiva

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quesepassasse,assimcomoasfalas.Tudo issoporsetratardeumapeçaondeagíria

popular–queestásempreemmutação‐representavaumpapelmuitoimportante.

A orquestra da peça foi composta por 35 músicos sob a regência do maestro Leo

Peracchi,violãodeLuizBonfácomTomaopiano.SegundoCastro(2003,p.124),nosdias

de apresentação da peça, Tom deveria estar regendo a orquestra,mas tevemedo de

tremerfaceàplateiaepassouabatutaàsmãosdePeracchi.Masnagravaçãododisco

elevoltaaassumiraregência.

Overture: Com aproximadamente sete minutos de duração, a ideia nesta abertura,

segundo Vinicius, era apresentar os temas principais dos personagens de maneira a

colocaroespectador,aoabriropano,noambienteemocionaldapeça.Viniciusentregou

a Tom Jobima “Valsa Eurídice”, composta emEstrasburgo, quedesde entãopassou a

representarparaeleotemaromânticodeEurídicenoespaçomusicaldaimaginaçãode

Orfeu,parafazerpartedestaoverturejuntocomoutrostemas.

Confessoqueaexcelênciadotrabalho,quemefoisendopoucoapoucoapresentadopelo compositor, excedeu todas as minhas expectativas. Usando com grandehabilidadeelementosdosmodosecadênciasplagaisquecriamumaambiênciagregaperceptívelaqualquerpessoa,AntonioCarlosJobimpartiurealmentedaGréciaparao morro carioca num desenvolvimento extremamente homogêneo de temas esituações melódico‐dramáticas, fazendo, no final, quando a cena abre, o sambarompersobreomorroondesedeveprocessaratragédiadeOrfeu.(MORAES,1956.ContracapadoLPdapeça“OrfeudaConceição”)

NacapaoriginaldapartituradeTom

Jobim,aparecemanotaçõessobreos

instrumentos que seriam utilizados,

entre eles: duas flautas, um corne

inglês, uma trompa, dois clarinetes,

quatro trombones, quatro

saxofones, uma guitarra, um piano,

dezesseis violinos, quatro violas,

quatro cellos, dois bassos, uma

bateria, além dos ritmistas e do

coro.

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LogonoiníciodoOverturenotam‐sealgumassugestõesdotemada“ValsadeEurídice”

comacordesdetromboneetrompas,atéentrarnaValsacompletatocadaporLuizBonfá

aoviolão.Aorquestravolta, comumaquebraeumamudançaemocionantes,emuma

linhatotalmenteclássica.EmseguidaéapresentadootemadeMiraeAristeuporcellos

ebaixos,depoisporviolinoseopianolevandoaotemaLamentodomorro,instrumental,

apenas tocada por violinos e flautas. Aqui, segundo rabiscos no texto do poeta,

encerraria‐se a abertura e se daria início à peça coma abertura da cortina e o samba

LamentodoMorro, comumaorquestraçãobastantemoderna,cantado,acompanhado

porumnaipedesaxofonessealternandocomotrombones.

Mulheramada...

Destinomeu...

Émadrugada...ohoh..ohoh..ohoh...

(TrechodeLamentonomorrocantadonesteato)

Mas, analisando o texto de Vinicius sobre o primeiro ato, não chegamos ao certo em

uma conclusão sobre este início da peça, pois descreve que, ao se levantar o pano, a

cenaédesertaedepoisdeprolongadosilêncioéquesecomeçariaaouvirosomdeum

violãoplangendoumavalsa(“ValsadeEurídice”obrigatoriamente)quepoucoapoucose

aproximarianumtocardivinoatéquesurgeoCorifeuproferindo:

Sãodemaisosperigosdessavida

Paraquemtempaixão,principalmente

Quandoumaluasurgederepente

Esedeixanocéu,comoesquecida.

Eseaoluar,queatuadesvairado

Vemunir‐seumamúsicaqualquer

Aíentãoéprecisotercuidado

Porquedeveandarpertoumamulher.

(TrechodoSonetodeOrfeu)

Amúsica foi feita com a intenção de servir ao texto e sublinhar ações que direta ou

indiretamente teriam que estar ligadas à cultura brasileira e às tradições do morro

carioca. Esta era, desde o começo, a ideia de Vinicius que, junto a Tom Jobim, soube

harmonizar todos os elementos que faziam parte do espetáculo. Articulou

dramaturgicamente o texto com a música a fim de provocar sensações no público e

ilustrar as cenas, é claro, unindo vestígios de uma ambientação grega com o novo

cenáriodosambabrasileiro.

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Atravésdamúsica,especificamenteatravésdosambaedabatidadeseuviolão,Vinicius

fazcomqueOrfeuorganizeoespaçosimbólicodafavelaemostraasuarelaçãocomo

localemquevive.Napeça,omorroéOrfeu.Existeumatotalidentidadeentreocantoe

omorro,sejaatravésdosrituaisreligiososrepresentadopelocandomblé6,quetambém

tem como destaque a música (sem ela não existe cerimônia) ou pelas canções

apresentados por ele. Evidencia‐se o poder damúsica capaz de expressar o estadode

espíritodocantorepoeta.Umexemploéquandosuamãetentaconvencê‐loanãose

casarcomEurídicelogonoiníciodapeça:

Enquantosuamãefala,Orfeunãoparaumsó instantedetocar, comosediscutissecomela emsuamúsica,àsvezescomamaiordoçura,àsvezes irritadoaoextremo[...];Seuviolão,comoperdido,respondeaoestadodealmaqueotomaemacordeslancinantemente dissonantes. A frasemusical correspondente aonome deEurídicereponta pungente em seu dedilhado agônico. (Cena descrita no texto da peçaoriginal‐AtoI)

Com o tema criado por Vinicius, notamos que ele usa uma estrutura sonora que

acompanhaodesenvolvimentodatragédia.Sonoridadesseassociamàdramaturgiapara

mostrartambémsempreumarelaçãocontrastanteentreapazeaharmoniacomaorgia

eosproblemasdomorrocarioca.

Não é só através da música e das canções que a peça se desenvolve. Vinicius deixa

explícito no texto da peça, detalhes sobre como destacar determinadas cenas com o

apoio de sons e ruídos que sublinham as ações dos personagens, oferecem o clima

necessárioaoambienteemqueestásepassando.Orfeusempreestáemtotalsintonia

com o ambiente em que mora. Sua música está sempre dialogando com os animais,

assimcomonomitoeViniciusseutilizadosruídosdeventosedanoiteparaanunciaro

seusofrimentofuturo.

Dáumasériedeacordeseglissandosàmedidaqueseaproximadaamurada.Vindas,ninguémsabedeonde,entramvoandopombasbrancasquelogoseperdemnanoite.Próximouivamcães longamente.Umgatoquesurgevemesfregar‐senaspernasdomúsico. Vozes de animais e trepidações de folhas, cimo ao vento, vencem por ummomento a melodia em pianíssimo que brota do violão mágico. Orfeu escuta,extático, depois recomeça a tocar, enquanto, por sua vez, cessam os sons danatureza. Ficam nesse desafio por algum tempo, alternando vozes,até que tudo seestanca,vozes,ruídosemúsica.(Cenadescritanotextodapeçaoriginal‐AtoI)

6 Os três atabaques durante o ritual também são responsáveis pela convocação dos espíritos. Além dosatabaques,usam‐setambémoxequerêeoagogô.Sãováriosritmosdiferentes.Nosterreirososcânticossãorepetidosincansavelmentepelosseuspraticantes.

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Os temas foramdesenvolvidos comum instrumento que tem seudestaque em toda a

peça:oviolão7.Esteacabasendoumelementodefundamentalimportâncianatragédia

eque,aoinvésdomito,queéaharpa,setornaosímbolodiretoligadoaOrfeu.Durante

apeça,atodomomento,Orfeudedilhaoinstrumentoedelesurgemnovascomposições

e sambas, que acabam também passando o estado de espírito do músico, através do

ritmoedesuasharmonias,manifestandotantoaalegriaeoamorvivido,quantoadore

os conflitos por ele enfrentados. Ele simplesmente faz parte deOrfeu e assim comoa

harpaétocadocomtotalsuavidade.

Luiz Bonfá, o solista convidado por Vinicius para assumir esta importante

responsabilidade, fala sobreo instrumento, que segundoele, deve ser tocadodeuma

maneiraqueosomsaiacomoqueporencanto,semesforço,sóassimeleatingiráuma

verdadeirasonoridade,umasomadevaloresedebeleza.

EsseinstrumentoqueseoriginouaípelosfinsdoséculoVIIInoOriente,comoaharpae o alaúde, sendo levado à Espanha pelos árabes, e que para alguns é uminstrumento de pálidos recursos, tem a sua frente, em Orfeu da Conceição, umtrabalho de alta significação e beleza, tendo sido jogado na orquestra por AntonioCarlosJobimcomrarafelicidadeemaestria‐oqueprovaseroviolãouminstrumentosolistapornatureza(Textopublicadonoprogramaoriginalde1956).

Porexemplo,logonaOverture,ViniciuseTomcolocamaValsasoladaporumviolão,que

éo temaromânticodapeça esímbolodoamordeEurídice,nomeiodaorquestração,

ganhando destaque e durante todo desenrolar do espetáculo, o instrumento aparece

tambémsemprenas introduçõesdossambasdeOrfeu.Osomdo violãodeOrfeuestá

sempre em contraste a ruídos ou aos instrumentos de percussão provenientes da

batucadanomorro,associadosnotextoàbagunçadosdiasdecarnaval.

Aindanoprimeiroato,serevezandocomsoloseritmosquebrotamdoviolãodeOrfeu,

eelejásemostrandoapaixonadoporEurídice,éapresentadaaprimeiracançãodapeça,

“Um nome demulher”, acompanhada por violão, piano e percussão, terminando com

um coro que se alterna com trombones, flautas e as cordas. O canto de Orfeu é

expressão consecutiva doque ele vive, terminando a canção com um sorriso no rosto

demonstrandoaalegriadaquelemomento.

7SegundomatériadeMarioCabral,publicadanojornalTribunadaimprensasobreapeça,foiaprimeiravezque se introduziu violão elétrico em um conjunto sinfônico e em um drama para atender as condiçõesacústicasdoteatro.

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Umnomedemulher

Umnomesóenadamais

Eumhomemquesepreza

Emprantossedesfaz

Efazoquenãoquer

Eperdeapaz

Eu,porexemplo,nãosabia,ai,ai

Oqueeraamar

Depoisvocêmeapareceu

Eláfuieu

Eaindavoumais

(Umnomedemulher)

SegundoVinicius,apartemaisagradávelde todo trabalho foia criaçãodossambasda

peça. Esses funcionam de maneira dramática predeterminada, comentando a ação e

acrescentandoelementossemosquaisatragédianãofuncionaria.Todasascançõesque

brotam deOrfeu aparecem e são criadas com a mesma facilidade que Vinicius notou

quandomontouapeçaeobservounafaveladoRio.

Oviolãorespondecomtrêsacordes semelhantes.Aospoucos, umamelodiaparecerepontar,comritmosmaiscaracterísticos,damassainformedemúsicaquebrotadoinstrumento.Orfeuatentoaochamado,dedilhamaiscuidadosamentecertas frases.Aos poucos, o samba começa a adquirir forma, enquanto a letra espontânea, aprincípio soletrada, vai se adaptando a música. (MORAES, 1956‐ Texto original dapeçaOrfeudaConceição)

NacenadoprimeiroencontrodeOrfeucomEurídice,quandoaamadasedespedeevai

embora, novamenteVinicius faz usodos ruídos e sons da natureza para anunciar algo

que irá acontecer oupreparar a plateia para algo. Dá assimumamaior dramaticidade

paraacena.

Eurídice:Aténeguinhovoltologo...

Derepenteoventoeosrumoresestranhosdanoite.Oviolãotocaagitadoporalguns

instantesenquantoEurídiceseafasta...

Orfeu:Eurídice?Medeuderepenteumaagonia,umavontadedetever...

EmseguidatemosomonólogodeOrfeue,comofundomusical,umamelodiadeviolãoe

flauta dando suavidade ao texto declamadopelomúsico. Surge então, após Eurídice ir

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embora e demonstrando todo seu amor, a segunda canção: “Se todos fossem iguais a

você”.Orfeu canta acompanhadopelo piano, violão e percussão e aos poucos entra a

orquestracomcordaseflautaseumcoro.

Vaituavida

Teucarinhoédepazeamor

Atuavida

Éumalindacançãodeamor

Abreteusbraçosecantaaúltimaesperança

Aesperançadivinadeamarempaz

Setodosfossemiguaisavocê

Quemaravilhaviver

Umacançãopeloar

Umamulheracantar

Umacidadeacantar

Asorrir,acantar,apedir

Abelezadeamar

Comoosol,comoaflor,comoaluz

Amarsemmentir,nemsofrer

Existiriaaverdade

Verdadequeninguémvê

(Setodosfossemiguaisavocê)

Depois de uma briga com Mira, uma de suas ex‐namoradas, Orfeu pega o violão e

apresentaaterceiracanção,“Mulher,sempremulher”,acompanhadopeloviolão,piano,

percussão e um coro. Um ritmo de samba cantado em tom de deboche e gozação.

Insistência da mulher em uma relação que não existe mais. Novamente através da

música sabe‐se o estado de espírito de Orfeu: “Pega no violão e põe‐se a tocar

agitadamente.Depoisvaiserenando,emacordesqueaospoucossevãofazendomaise

maisalegres.Osambadespontaeeledáumasonoragargalhada.

Mulher,ai,ai,mulher

Sempremulher

Dênoqueder

Vocêmeabraça,mebeija,mexinga

Mebotamandinga

Depoisfazabriga

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Sópraverquebrar

Mulher,sejaleal

Vocêbotamuitabanca

Infelizmenteeunãosoujornal

Mulher,martíriomeu

Onossoamor

Deunoquedeu

Esendoassim,nãoinsista

Desista,váfazendoapista

Choreumbocadinho

Eseesqueçademim

Eseesqueçademim

(Mulher,sempremulher)

OrfeuseencontracomaDamaNegra,quandoéavisadoquealguémmorreria,nocaso

Eurídice. De acordo com as anotações de Vinicius, omúsico toca o violão em ritmo e

batidas violentos dando uma ambientação demagia negra, de macumba ou bruxaria.

Aquiareferênciadiretaaosrituaisdecandomblé,típicosdafavelaedosnegros.ADama

Negra acaba dançando na progressão da música. De acordo com Tom Jobim (apud

MORAES, 2003, p.13), em seguida entraria o tema Macumba que seria coreografado,

masacabousaindodapeça.

Quando Eurídice é morta por Aristeu por um punhal e cai, termina o primeiro ato e

segundoanotaçõesdeViniciusnotextodapeça,escritasamão,entranovamenteaquia

“Valsa de Eurídice” tocadapela orquestra. Em seguida aDamaNegra cobre seu corpo

comseumantoetudoésilêncio.

O segundo ato se passa no último dia do carnaval no Clube dosMaiorais do Inferno,

ondeaorgiaeabagunçadominam.Nafolia,seenfatizaosinstrumentoscomoobumbo,

tamborim, o pandeiro, a cuíca, o agogô tocados separadamente, emdestaquepara se

unirem e formarem a batucada típica do carnaval e do samba carioca. O som atinge

proporçõesfabulosasporumgrandetempoatéqueé interrompidopelosomcristalino

deumviolão.Obatuquedecresceenquantoascordasaumentamganhandodestaque.

ApareceOrfeuchamandoporEurídice.Segundoorientaçõesdopoeta, “Cadavezquea

vozchama,cria‐seumsilêncioprovisóriodoviolão.Esseschamadosalternam‐secoma

expressão carinhosa da música, da qual participa frequentemente a frase musical

correspondenteaonomedamulheramada.”

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Aqui,comonomito,OrfeuatravésdamúsicadominaCérbero,quequerimpedirqueele

procurepor Eurídice. “Poucoapoucoamúsica deOrfeu dominaoCérbero,queacaba

porvirestirar‐seaseuspés,apaziguado...”

Alémdabatucadacaracterísticadocarnaval,oapitotambémdominaocenáriomusical

enquantoOrfeuprocuraporEurídice tocandoseuviolão.Acompanhadaspeloritmode

marchinhas,mulherescantamtemaspopularescomo“CirandaCirandinha”,“Escravosde

Jó”,“VamosManinha”,entreoutras.

É claro nesta cena novamente, o contraste entre a harmonia do violão de Orfeu com

todasuasuavidadeeamisturadesonsdapercussãoedobatuquecarnavalesconoclube

MaioraisdoInferno.

Requestaasmulheres,masestassedesvencilham.Orfeupegaoviolãoededilha.Porummomentoos sonsdulcíssimosdominam tudoeomovimento cessa totalmente,até que as mulheres fascinadas, começam a seguir Orfeu em passadas lânguidas,medidasenquantoomúsicoseafastadecostas, emdireçãoàportade saída.Masquasenomomentodesair, incutem,entreosacordesdoviolão,osritmospesados,soturnos, da batucada. Os dois sons coincidem por alguns instantes, enquanto asmulheres,indecisas,fluemerefluemaosabordosdoisritmos.

Vinicius aqui quismostrar também, através deste contraste representadopelamúsica,

um pouco do conceito que o carnaval brasileiro tinha naquela época na sociedade.

ConformepalavrasdapesquisadoraMariaIsauradeQueiroz(1992,p.181),ocarnavalno

Brasil foielevadoàposiçãoconcretadequalidadedopovo,massemprecomummisto

de bagunça e de disciplina. Tornou‐se assim uma dessas curiosas representações da

nação,nãocomoumpaísouumestado,mascomoopovoquevisavaexpressarocaráter

nacionalsegundoopontodevistadosprópriosmembrosdanação.Suatransformação

em símbolo mostra que identidade e tradição constituem dois conceitos que se

completam.

Orfeuatravésdamúsica levaapazeaharmoniaparaomorro.Semelenãohávidaea

partir do momento em que ele enlouquece por perder Eurídice, ele não cria mais

canções,amúsicacessaeossonseruídosdanaturezadesaparecemsendosubstituídos

porsirenesdeambulânciasevoltamosproblemassociaisnomorrocomtudoisso.Tudo

isso faz parte do desenvolvimento de toda ação dramática e como Vinicius diz no

monólogodeOrfeu:“OrfeumenosEurídice...coisaincompreensível.”EfalandocomClio

dizqueeleéEurídiceequesuamúsicaeracomoafloreovento:semaflornãohavia

perfumeequeoventosozinhoeramuitotriste.

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Noterceiroeúltimoato,todosprocuramporOrfeuquesumiueestãonovamentediante

deproblemas sociais, umgrupode garotos engraxates domorro, aparece fazendoum

batuque pelas ruas com escovas em suas caixas e latas, pedindo paz. Em seguida,

executa a canção “Eu e meu amor”, ensinada por Orfeu a eles. Segundo Tom Jobim

(1982,p.13apudMORAES,2003),amúsicaéacompanhadasomenteporpercussão,um

naipedesaxofoneseumclaronefazendoosbaixosquenormalmenteseriamfeitospelo

trombone. Aqui Vinicius detalha o cenário sonoro que ele queria para justamente

representaroconflitoentreapazeadesordemnomorroapóssuamorte:“Repetemo

sambacadavezcommaisgosto,aosabordobatuque...Delongechegamgritosbêbados

demulheres,gargalhadasperdidas, ecosmelancólicosde umaorgia a se processar em

algumlugarnomorro”.

Eomeuamor...

Quefoi‐seembora

Medeixandotantador

Tantatristezanomeupobrecoração

Queatéjurou

Nãomedeixar

Efoi‐seembora

Paranuncamaisvoltar...

(Euemeuamor)

Vinicius já inicia aqui o surgimento de um novoOrfeu, afinal, o músico já não existia

mais: não cantava, não tocava, apenas vagava clamandoo nomede sua amada. Tudo

issojáadiantandoofinaldatragédiaqueseencerradandototaldestaqueparaaarteeo

amor vencendoqualquer barreira, como corodizendo: “Tudomorre quenasce e que

viveu,sónãomorrenomundoavozdeOrfeu.”

Antesdacenafinal,éapresentadaaúltimacançãodapeça,quetodoscantamemcoro

naTendinha,apósbrigaremcomMira,quenãoconsegueesquecerOrfeu.

Nãopossoesquecer

Oteuolhar

Longedosolhosmeus

Ai,omeuviver

Édeesperar

Pratedizeradeus

Mulheramada

Destinomeu

Émadrugada

Serenodosmeusolhosjácorreu

(Lamentonomorro)

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OtemadeEurídicevoltaaofinalquandoOrfeupedeparaelalevá‐lo.Depoisdamortede

Orfeu,Mirapegaoviolãodomúsicoearremessa‐olonge.Quandotodospensamqueo

instrumento se quebrou e ninguém mais vai tocá‐lo, ouve‐se uma música trêmula,

misteriosae incerta.ApavoradostodosfogemeaDamaNegracobreocorpodeOrfeu

enquantoamúsicaaofundovaisetransformandoatésetornar límpidaepura,apenas

afirmandoqueOrfeuesuamúsicanuncamorrerão.

Maria Lúcia Candeias (2002) e outros críticos de jornais escreveram muito sobre a

qualidadedapeçadeVinicius.Ela,porexemplo,comenta,emumaanálisecríticaparao

Clubedo Tom,quesepessoasse interessamemmontaradaptaçõesdestapeça fazem

maispelaqualidadedasmúsicas,ondeasmelodiaseletrascompostassãoinesquecíveis,

doquepelaliteraturapropriamentedita.

O jornalista Enio Silveira já elogia a música da peça, dizendo que em “Orfeu da

Conceição”, Jobim eVinicius se entenderamde formaperfeita e que entre os dois foi

logo estabelecida uma tal identidade de pensamento e de expressão, que a música

passouaserviràpalavraassimcomoosbraçosservemaocorpo.

Não fazendo concessão de qualquer espécie, a partitura musical de Orfeu daConceiçãoconstitui,porissomesmo,umdospontosmaisaltosdabelarealizaçãodeViniciusdeMoraes.Não se trata, pois, demúsica incidentalque frequentementeseaprecia e se esquece comamesma facilidade: pelo contrário, tempersonalidadeeestaturapróprias:émúsicaqueseencaixanumtodomasqueresiste,isoladamente,arepetidasaudições.(SILVEIRA,1956)

Mesmo consagrada justamente pela música e pela união de Tom e Vinicius, como foi

citado,elesreceberamcríticaspelotratamentomusicaldadoaosarranjos,dizendoque

não foi apresentado o ritmo e a riqueza das melodias brasileiras e muito menos a

maleabilidadeeoespíritodenegrodomorro.Umadasmais impactantesfoipublicada

peloCorreiodaManhã,porClaudioMuriloem6desetembrode1956:

PedimosdesculpasaosestrangeirosqueforamaoMunicipalesperandoouvirmúsicademorroe foramaquinhoados com um pouco de suas própriasmúsicasou foramagraciados com a batucada do segundo ato, digna dos músicos da ConfeitariaColombo,peloseu sabor insosso, faltademolejoetc...umabatucadaacadêmica, nomau sentido. Finalmente, pedimos desculpas aos próprios sambistas demorro porestausurpaçãodaqualelesnãoterãonotíciaecontinuarãoacomportranquilamenteaquiloquepassaráparaahistóriadonossopopuláriocomomúsicapopularbrasileira.

JáocríticoMiécioTátidestacaapoesialíricadeViniciusedizquedepoisdeouvirmuitos

comentários,amelhordefiniçãoquetemsobreoqueachoudapeçaseria“gosteienão

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gostei”, querendodizer que a peça teve seus pontos fortes,mas também tevemuitos

deslizes.DestaqueparaacríticareferenteàvozdeHaroldoCosta,quesegundoeleera

ruimequepelaessênciadahistóriaesendoamúsicaseuprincipalelemento,deveriam

todos cantarmuito bem. Segundo ele, nem a música que é boa, é de morro, nem as

letrasdossambascantados,quesãointeressantes,sãodemorro.

Mesmoassim,éimportantedestacaraimportânciadosambaedocarnaval,jáquefoio

‘cenário’parahistóriadeamorentreOrfeueEurídicenapeça. Independentedaépoca,

das críticas e, passadosmais de quarenta anos de sua estreia, amúsica de “Orfeu da

Conceição” ainda é sempre lembrada com entusiasmo no Brasil e no exterior e ficará

sempre marcada na história da música popular brasileira, tanto pela união de Tom e

Viniciuse suaprimeiraparceria, comopelaantecipaçãodaquiloquesechamariabossa

nova

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Recebidoem12/05/2011.

Aceitoem07/06/2011.