delumeau. renascimento e antiguidade

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Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento , Vol. I, Lisboa, Estampa, p. 85-92. CAPITULO III RENASCIMENTO E ANTIGUIDADE O Renascimento definiu-se a si próprio como movimento em direcção ao passado - característica aparentemente oposta à do nosso mundo moderno, a caminho do progresso. O Renascimento quis voltar às fontes do pensamento e da beleza. Petrarca é, indubitavelmente, o criador da noção de «tempos obscuros», que viria a dominar durante muito tempo a interpretação da história medieval. Qualificou de «antiga» a época anterior à conversão de Constantino e de «moderna» aquela que lhe sucedera e continuava ainda no século XIV. Ora Petrarca caracterizava esta idade moderna pela «bar- bárie» e pelas «trevas». E, ao mesmo tempo, votava ao passado romano uma admiração apaixonada e quase romântica. Foi, assim, considerado iniciador da revolução intelectual do Renascimento, restaurador daqueles sludia humanitatis pelos quais o homo ferus (homem selvagem) chega aos valores da civilização. Ao compor em 1436 as suas Vidas de Dante e de Petrarca, o humanista florentino Leonardo Bruni, para quem o «estilo literário» só podia ser o latim, embora reconhecendo o talento de Dante dava a preferência a Petrarca, que «foi o primeiro a possuir bastante graça e génio para poder distinguir e evidenciar a antiga elegância do estilo, que estava perdida e extinta». Num Diálogo dos Sábios (1490) dedicado a Lourenço, o Magnífico, Paolo Cortese acentuou também a importância de Petrarca.«Tinha tão grande espírito e tão extensa memória que foi o primeiro a ousar fazer voltar à luz o estudo da eloquência. De facto, foi sob a acção do seu génio que a Itália recebeu o primeiro estímulo, o primeiro impulso para o estudo». Mas, prosseguia Cortese, Petrarca não escrevia num latim suficientemente clássico. Que havia nisso de espantoso? «Ao homem que nasceu na lama acumulada por todos os séculos faltavam esses ornamentos da arte de escrever». Depois dele tinham sido feitos alguns progressos. Quando, a partir do fim do século XV, o movimento humanista alcançou os países transalpinos, também fora de Itália foi adoptada a 85

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Page 1: DELUMEAU. Renascimento e Antiguidade

Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Vol. I, Lisboa, Estampa, p. 85-92.

CAPITULO III

RENASCIMENTO E ANTIGUIDADE

O Renascimento definiu-se a si próprio como movimento em direcção ao passado - característica aparentemente oposta à do nosso mundo moderno, a caminho do progresso. O Renascimento quis voltar às fontes do pensamento e da beleza.

Petrarca é, indubitavelmente, o criador da noção de «tempos obscuros», que viria a dominar durante muito tempo a interpretação da história medieval. Qualificou de «antiga» a época anterior à conversão de Constantino e de «moderna» aquela que lhe sucedera e continuava ainda no século XIV. Ora Petrarca caracterizava esta idade moderna pela «bar-bárie» e pelas «trevas». E, ao mesmo tempo, votava ao passado romano uma admiração apaixonada e quase romântica. Foi, assim, considerado iniciador da revolução intelectual do Renascimento, restaurador daqueles sludia humanitatis pelos quais o homo ferus (homem selvagem) chega aos valores da civilização. Ao compor em 1436 as suas Vidas de Dante e de Petrarca, o humanista florentino Leonardo Bruni, para quem o «estilo literário» só podia ser o latim, embora reconhecendo o talento de Dante dava a preferência a Petrarca, que «foi o primeiro a possuir bastante graça e génio para poder distinguir e evidenciar a antiga elegância do estilo, que estava perdida e extinta». Num Diálogo dos Sábios (1490) dedicado a Lourenço, o Magnífico, Paolo Cortese acentuou também a importância de Petrarca.«Tinha tão grande espírito e tão extensa memória que foi o primeiro a ousar fazer voltar à luz o estudo da eloquência. De facto, foi sob a acção do seu génio que a Itália recebeu o primeiro estímulo, o primeiro impulso para o estudo». Mas, prosseguia Cortese, Petrarca não escrevia num latim suficientemente clássico. Que havia nisso de espantoso? «Ao homem que nasceu na lama acumulada por todos os séculos faltavam esses ornamentos da arte de escrever». Depois dele tinham sido feitos alguns progressos.

Quando, a partir do fim do século XV, o movimento humanista alcançou os países transalpinos, também fora de Itália foi adoptada a

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noção de um renascimento literário obtido por meio do regresso aos autores da Antiguidade. Um francês, Jean Despautière, reconhecia sem dificuldade no prefácio da sua Ars versificandi (1516) que fora Petrarca quem, «não sem inspiração divina, tinha inaugurado, cerca do ano 1340, a guerra aberta contra os Bárbaros e, chamando as musas fugidas, estimulou vigorosamente o estudo da eloquência». Mas a «guerra contra os Bárbaros» começou, aquém-Alpes, com mais de um século de atraso em relação à Itália. Daí a importância de Erasmo, muitas vezes considerado, fora da península, na expressão de Guillaume Budé (carta de 1517), como «o pai do começo que se fez no nosso tempo». Esta opinião era compartilhada por Jacques Charron, que, ao reeditar os Adágios em 1571, afirmou no prefácio: «(Erasmo) foi o primeiro a fazer valer as boas letras na época em que elas estavam a renascer e a emergir do aluvião bárbaro». No entanto, devido ao orgulho nacional, foi a Francisco I que muitos escritores franceses atribuíram o renascer das letras no seu país. Assim, Jacques Amyot, dedicando a Henrique II a sua tradução das Vidas dos Varões Ilustres de Plutarco, declarava: «O grande rei Francisco, teu pai, fundou felizmente as boas letras e fê-las renascer e florir neste nobre reino».

O termo «Renascimento» tem, todavia, também, uma ressonância estética, devida aos humanistas e artistas da época. Neste aspecto, faz figura de pioneiro Filippo Villani, que compôs no fim do século XIV um Livro dos Cidadãos Famosos da Cidade de Florença. Com efeito, faz nesta obra o elogio dos pintores florentinos, «que reergueram as artes anemiadas e quase extintas», a começar por Cimabue, que soube reconduzir a arte à semelhança com a natureza. «Depois dele — acrescentava —, e aberto caminho para uma arte nova, Giotto — que não só suporta comparação com os ilustres pintores da Antiguidade como os ultrapassa em talento e em génio— restituiu à pintura a sua antiga dignidade e a sua mais alta fama». A opinião de Villani sobre a ressurreição da pintura foi retomada no século XV por Ghiberti no seu segundo Comentário (1455). Quanto a Leone Battista Alberti, atribuiu aos seus contemporâneos — Bru-nelleschi, Donatello, Ghiberti, etc. — o renascimento das artes plásticas. Seja como for, era evidente para os Italianos esclarecidos do século XV que a sua época vira a arte renascer das cinzas. Isso mesmo o afirmavam também humanistas de nomeada ao sublinhar o sincronismo dessa ressurreição com a das belas-artes. Marsilio Ficino proclamava, não sem chauvinismo: «É sem dúvida um século de ouro, que trouxe à luz as artes liberais, anteriormente quase destruídas: gramática, eloquência, pintura, arquitectura, escultura, música. E tudo em Florença.»

Nos meados do século XVI, Vasari, pintor e arquitecto que recebera educação humanista, começou a escrever uma verdadeira história da arte italiana, que intitulou Vidas dos Maiores Arquitectos, Pintores e Escultores Italianos desde Cimabue até à Nossa Época (1550). Vasari apresentava com nitidez uma síntese histórica de que ainda hoje somos parcialmente

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tributários. O seu propósito era acompanhar a arte italiana desde o despertar — a sua rinascità — até ao sublime desenvolvimento da época de Miguel Ângelo. Distinguia, portanto, três períodos. O primeiro começava em meados do século XIII com os artistas toscanos, que, «abandonando o velho estilo, começaram a copiar os Antigos com vivacidade e diligência». O segundo correspondia ao século XV, assinalado por grandes, artistas como Brunelleschi, Masaccio, Donatello — que procuravam, principalmente, imitar a natureza «mas nada mais». Veio, finalmente, o século XVI, período da perfeição durante o qual «posso dizer com toda a segurança — escrevia Vasari— que a arte realizou tudo o que é permitido a um imitador da natureza e se elevou tão alto que, hoje, é mais de recear o seu declínio que esperar novos progressos».

Não é casual que tal esquema histórico tenha sido composto por um italiano. As recordações da Antiguidade tinham sido, na península e durante a Idade Média, mais numerosas e mais vivas que em qualquer outro lado. Pelo contrário, foi em França que a arte gótica mostrou os seus mais belos lampejos. Seja como for, era tal o prestígio da arte italiana na Europa desde o início do século XVI, que se adoptou sem grande dificuldade do lado de cá dos Alpes a concepção humanista, e portanto italiana, do renascimento das artes. O hebraizante Reuchlin visitou e admirou Florença, «onde todas as melhores artes tinham voltado a viver». O próprio grande Durer declarou que a pintura tinha sido desprezada e perdida durante os mil anos que sucederam à queda do Império Romano até que, já desde há dois séculos, os Italianos a fizeram voltar à luz do dia. No século XVII, tanto o flamengo Van Manders como o alemão von Sandrat ou como o francês Félicien des Avaux — todos eles autores de tratados de história da arte — adoptaram, nas suas linhas gerais, o esquema de Vasari.

O termo «Renascimento», a muitos títulos inexacto, é, porém, para o historiador, um testemunho sobre a consciência que uma época teve de si própria. O florentino Giovanni Rucellai observava em 1457: «Pensa-se que o nosso tempo tem, a partir de 1400, mais motivos de contentamento que nenhum outro desde que Florença foi fundada». Em 1518, Ulrich von Hutten exclamava: «Ó século, ó estudos, viver é um prazer!». Também se recorda a afirmação de Rabelais no Pantagruel: «Vejo os bandidos, os carrascos, os aventureiros e os palafreneiros de agora mais doutos que os doutores e pregadores do meu tempo.»

Os homens do Renascimento simplificaram a História, porque a Idade Média nunca perdera completamente o contacto com a Antiguidade. De espírito fruste e de irradiação limitada, o «Renascimento carolíngio» teve, no entanto, o mérito de conservar e recopiar numerosos manuscritos de autores antigos: uma preciosa reserva para a posteridade Os séculos

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XI e XII viram também o retomar dos estudos clássicos — e igualmente se falou, quanto a essa época, certamente com excesso, de «Renas-cimento». Em França, nas escolas que floresceram na vizinhança dos capítulos das catedrais, comentou-se Virgílio, Ovídio, Juvenal, Eustáquio, Horácio, Lucânio, Salústio, etc. Nos debates morais não se receou citar De amicitia de Cícero ou as cartas de Séneca. Havia monjas que liam devotamente a Arte de Amar de Ovídio; e dava-se-lhes extractos comentados das Metamorfoses. Será necessário recordar o duradouro êxito dos Romances de Tebas, de Tróia ou de Eneias para demonstrar a sobrevivência da Antiguidade — muitas vezes deformada, embora — durante os longos séculos da Idade Média? Facto menos conhecido mas, talvez, mais significativo: Petrarca tinha na sua biblioteca o Liber ymaginum deorum de Albricus, uma espécie de dicionário mitológico composto no princípio do século XIII. Utilizou-o directamente para escrever o terceiro canto da sua epopeia latina, África, que exaltava a figura de Cipião. Assim, o humanismo nascente não receava beber nas compilações medievais referentes à Antiguidade.

As obras de arte, por seu lado, provam que a Idade Média não tinha esquecido tanto, como durante muito tempo se julgou, certos temas e assuntos antigos. Os escultores romanos inspiraram-se em estátuas, baixos-relevos, estelas e sarcófagos abandonados pela Antiguidade durante o refluxo. O antigo tímpano de Santo Ursino de Bourges, que representa uma magnífica cena de caça cujo modelo foi um sarcófago, o Hércules da catedral de Langres, os capitéis que evocam o rapto de Ganimedes, em Vézelay, ou uma luta de galos, em Saulieu: outros tantos laços reatados com a civilização romana. A própria arte gótica mergulhou raízes no tesouro da Antiguidade. No campanário de Giotto, em Florença, os deuses planetários sentam-se, sob o alto patrocínio dos Profetas e das Sibilas, na mesma linha que as Virtudes, as Ciências e os Sacramentos. Na Catedral de Reims, certas estátuas - especialmente o célebre grupo da Visitação, feito por volta de 1230 - têm uma atitude a tal ponto clássica que já se chamou ao seu anónimo escultor «o mestre das figuras antigas». Certamente que esse escultor nunca foi a Atenas, apesar da hipótese de É. Mâle, mas terá buscado inspiração nas nume-rosas ruínas galo-romanas da região de Reims. O seu melhor aluno, Villard de Honnecourt, também trabalhou em Reims. Os seus desenhos provam, de modo evidente, as preocupações antiquizantes da oficina a que ele pertencia, visto que deixou estudos feitos directamente segundo os bronzes e os baixos-relevos galo-romanos. Poderíamos prolongar a enumeração; mas, para fechar este esclarecimento, é melhor recordar que, na Divina Comédia, Dante é guiado por Virgílio e que a maior construção intelectual da Idade Média, a Summa theologica de Tomás de Aquino, procurava conciliar a mensagem de Jesus com a filosofia de Aristóteles. Na idade de ouro do humanismo florentino, a preocupação de Ficino, ao procurar cristianizar Platão, não será diferente.

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Na sequência dos humanistas e de Vasari, afirmou-se durante demasiado tempo que a civilização gótica esgotada estava em decadência no fim da Idade Média. Mas uma análise profunda e objectiva revela que ela era ainda «uma forma de cultura viva e até criadora» (Galienne Francastel), cuja sobrevivência deveria ser longa. Alinhando com a opinião de L. Hautecoeur, recusaremos, portanto, ver no flamejante apenas «uma degenerescência do gótico, uma forma de proliferação cancerosa dos seus elementos». Nada mais sóbrio, pelo contrário, que o coro da abadia do Mont-Saint-Michel (fim do século XV). A sobrecarga que complica aqui um dourado, ali um jubeu não deve esconder-nos o essencial. O grandioso Retablo mayor da Catedral de Toledo (princípio do século XVI) caprichou em elevar-se até ao cimo da alta nave, em fazer aparecer centenas de figuras, em incluir uma multidão de nichos e dosséis finos como rendas; está, todavia, composto com rigor e clareza. Os vários painéis, que representam a vida de Cristo e da Virgem, são bem legíveis pelo crente que ora junto ao altar. A arte medieval, depois do século XIII, caracteriza-se pelo esforço de «extrair todas as consequências das premissas góticas, das suas formas, dos seus processos, do seu cenário». Nas grandes igrejas — em Metz, em Estrasburgo, em Sées—, procura-se dar maior largura às naves e às aberturas de portas e janelas. Há o prazer de recortar os pilares em finas colunas e, para que as naves pareçam mais esbeltas, são suprimidos os capitéis. Triunfa o «verticalismo». Como os pedreiros e canteiros são agora mais hábeis que outrora, multiplicam-se os liernes e terciarões e surgem essas abóbadas adelgaçadas, estreladas ou em leque que estão — especialmente em Inglaterra, mas também em Kutná Hora, na Boémia, ou na Capela Fugger de Augsburgo — entre as mais belas realizações da arte europeia. Há, mais do que nunca, um esforço para fazer triunfar os vazios sobre os cheios. Não estaria isto na lógica de uma arte que criara a Santa Capela? As finas redes de pedra que agora dividem as janelas, das quais se tirou —só no século XIX— a palavra «flamejante», visto que os seus elementos mostram o movimento ondulante das labaredas; os fechos muito trabalhados e pendentes do centro das abóbadas, com justificação funcional mas semelhantes às «estalactites» dos monumentos árabes; os arcos que se acumulam em volta dos portais, os dosséis infinitamente rendilhados, as galerias e balaustradas também, as torrinhas, pináculos, florões: que prova tudo isso senão uma técnica mais segura e uma civilização mais requintada do que a do período anterior? Quem poderá provar que o campanário norte da Catedral de Chartres, obra-prima de elegância, erguido no princípio do século XVI a cento e quinze metros de altura, é menos belo que o outro, mais austero e mais atarracado, que é do século XII? O flamejante é como o rococó: ambos são momentos de uma civilização.

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No século XIV e nos princípios do século XV, a Itália, do ponto de vista artístico, ainda procurava um caminho. Mas, cerca de 1380, Nicolas Bataille tecia a célebre tapeçaria conhecida com o nome de Apocalipse de Angers, menos espantosa pelo comprimento, de resto insólito — tinha cento e quarenta e cinco metros—, que pelo vigor do desenho e pelo feliz contraste das personagens de cores claras com os fundos azuis e vermelhos. Entre 1380 e 1420 florescia em Paris e na região do Loire uma escola internacional de pintura e de miniatura que produziu livros de horas admiráveis: maravilhas de paginação, de finura e de colorido. Foi também cerca de 1400 que Claus Sluter esculpiu em Champmol aqueles profetas poderosos e meditabundos que anunciam já os de Miguel Ângelo. A fecundidade artística da Europa não-italiana não se desmentiu no século XV. Basta evocar a poesia das Virgens e dos anjos-músicos de Jan Van Eyck, a intensa vida espiritual das Descidas da Cruz e dos Juízos Finais de Van der Weyden, a marcial sobriedade do túmulo de Philippe Pot, a atmosfera inquieta e envolvente das miniaturas do rei René (Livre du coeur d'amour épris), a riqueza da experiência humana e artística de Wit Stwosz, que ergueu e esculpiu em Cracóvia, a partir de 1477, um imenso retábulo com treze metros de altura e onze de largura, verdadeira soma das pesquisas medievais.

Usámos aqui, propositadamente, a palavra «pesquisas». É que a arte gótica, longe de esclerosar-se e de viver fechada sobre as aquisições já conseguidas, aventurou-se, no seu último período, por caminhos resolutamente novos. Contribuiu, com isso, para o questionamento dos valores medievais e para a construção do Renascimento - que, para alcançar a beleza, tinha de passar pelo atalho da realidade. Procurar apenas em Florença, na época de Masaccio, o nascimento da estética nova é uma atitude excessivamente simplista. Porquê isolar Florença, ou até, de modo mais lato, a Itália, do todo europeu e recusar ao resto do Ocidente a participação na elaboração dos valores artísticos e culturais que substituíram gradualmente os da Idade Média? Porque se teriam formado quase totalmente separados um do outro o «estilo flamengo» e o «estilo florentino» do século XV sabendo-se, como se sabe, que eram frequentes as relações económicas entre a Flandres e a Toscana? Na realidade, o gótico transalpino contribuiu, a seu modo, para criar a arte do Renascimento. Isso nada tira ao facto de ter sido a Itália que, operando a síntese das experiências alheias, das suas próprias pesquisas e das lições que pediu à Antiguidade de forma mais intensa que dantes, descobriu as fórmulas estéticas e intelectuais mais adequadas às aspirações da Europa desse tempo.

A arte ocidental era, no fim da Idade Média, largamente internacional e sofria forte influência da Flandres e da França. Jean Fouquet (14207-1480), que visitou a Itália entre 1443 e 1447 e pintou em Roma um retrato de Eugénio IV, foi considerado pelos próprios Italianos como um dos maiores pintores daquela época. Jan Van Eyck (m. 1441) foi

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enviado duas vezes a Portugal pelo duque da Borgonha. O seu estilo e a sua técnica —como também o estilo e a técnica de Van der Goes — estão patentes em Lisboa no grande Retábulo de São Vicente, no qual Nuno Gonçalves, em 1460, representou em tamanho natural sessenta personagens, umas de pé e outras ajoelhadas perante o santo. A obra foi pintada a óleo, como as dos Flamengos, e, tal como no políptico do Cordeiro Místico, a vasta composição não prejudica a aguda precisão dos pormenores. As intensas relações económicas entre Lisboa e os Países Baixos no fim do século XV e a seguir a ele explicam a persistência da influência flamenga em Portugal na época da arte manuelina até 1540. Retábulos e manuscritos eram comprados em Bruges e em Antuérpia e pintores do Norte da Europa trabalhavam em Lisboa e em Tomar.

Não é de admirar que a Alemanha, no fim da Idade Média, se tenha virado para os Países Baixos, principalmente depois do eclipse de Praga, centro artístico importante no século XIV mas depois afectado pelas guerras hussitas. Mas a Itália, longe de ter ficado isolada, teve também, durante o século XV, frequentes contactos com a Flandres. Van der Góes e Van der Weyden trabalharam em Itália. O duque Fede-rico mandou vir Juste de Gand para Urbino em 1473-1475. E o rei René trouxera consigo para Nápoles muitos artistas flamengos, cuja acção sobre Antonello da Messina parece ter sido importante. Assim, a Europa Oci-dental e Central conheceu, antes das guerras de Itália, um vaivém de artistas, uma contradança de estilos e de estéticas e a sua fusão. Nada há de mais significativo que as questões levantadas pela Anunciação de Aix (1442). Pergunta-se quem foi o seu autor: seria flamengo? seria napolitano? ou, ao contrário, borguinhão, já que os panejamentos fazem lembrar os de Sluter? Não se sabe. Quanto à Pietà de Avinhão, já foi sucessivamente atribuída a um francês do norte, a um catalão, a um discípulo de Nuno Gonçalves, a um aluno de Van der Weyden. Esta emocionante obra-prima é, provavelmente, francesa; mas estas hesitações são uma prova do carácter já largamente internacional da pintura do século XV, principalmente num foco de cultura e de arte como era Avinhão.

Também a música era internacional, mas o papel principal foi, neste caso, desempenhado durante muito tempo por flamengos e não por italianos. Johannes Ockhegem (m. 1495?), primeiramente chantre na cate-dral de Antuérpia, foi depois mestre da capela de Carlos VII, Luís XI e Carlos VIII. Josquin des Prés (1450-1521), nascido no Hainaut ou na Picardia, mas, de qualquer modo, educado em ambiente neerlandês, teve em Itália o seu princípio de carreira, vivendo em Milão, em Soma e depois na corte dos Este. Esteve depois algum tempo ao serviço de Luís XII. Arcadelt (m. 1557?) dirigiu a capela Julia em Roma antes de ser mestre de capela do cardeal Carlos de Lorena e, a seguir, músico do rei de França. Mais internacional ainda foi a carreira de Roland de

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Lassus (1532-1594), representante típico do cosmopolitismo ao Renascimento. Mestre de capela, durante algum tempo, em S. João de Latrão, viajou depois por Inglaterra e por França, fixou-se provisoriamente em Antuérpia e foi, finalmente, mestre de capela dos duques da Baviera. Portanto a polifonia flamenga irradiou larga e longamente sobre a Europa. Também do norte veio a técnica da pintura a óleo. Conhecida desde o século XIV em França e na Alemanha, utilizada também, segundo Ghiberti, por Giotto, foi criada por flamengos, especialmente por Jan Van Eyck, que teria encontrado maneira de dar ao óleo propriedades secantes e fluidez. De resto, os artistas setentrionais tinham maior necessidade de proteger os quadros contra a humidade que os do Sul. O segredo passou da Flandres para Nápoles, onde trabalhava Antonello da Messina, que já visitara Bruges. Antonello instalou-se em Veneza cerca de 1473 e os artistas venezianos apoderaram-se do processo. Esta difusão de uma técnica particular convida-nos a uma investigação de maior generalidade. Durante muito tempo se atribuiu aos Florentinos a descoberta da perspectiva. Ora se estudarmos atentamente a célebre Virgem com o Chanceler Rolin (Louvre), chegaremos rapidamente à conclusão de que «não há comparação alguma entre a virtuosidade mostrada por um Van Eyck no manejo da perspectiva linear e das linhas de fuga e o hesitante aproveitamento que delas faz, na mesma altura, Masaccio. As grandes obras-primas da perspectiva linear são, em Itália... datadas dos anos 1440-1460 ou até 1470, ao passo que a Virgem do Louvre é de 1418» (Galienne Francastel). Quererá isto dizer que temos de inverter os papéis e fazer dos Florentinos alunos dos Flamengos? Mais vale concluir que, numa época que Florença comerciava activamente com Bruges, ambas as escolas artísticas se influenciaram reciprocamente, procurando ambas situar o mundo exterior em relação ao homem: atitude humanista como nenhuma outra.

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