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DESAFIOS NA ELUCIDAÇÃO DA PREEXISTÊNCIA: Sobre a
metodologia de levantamento e registro adotada para a primeira
Estação Rodoviária de Salvador
FREIRE, RAQUEL NEIMANN DA CUNHA
Universidade Federal da Bahia. Mestrado Profissional em Conservação e Restauro de
Monumentos e Conjuntos Históricos (MP-CECRE)
Rua do Timbó 600, Apt. 804. Caminho das Árvores, Salvador – BA. 41820-660
RESUMO
Poder-se-ia dizer que, em hipótese, levantar gráfica e iconograficamente um edifício do século XX
seria tarefa de menor dificuldade. Tal premissa se mostrou completamente equivocada em se
tratando da primeira Estação Rodoviária de Salvador, parte da “parcela significativa dos monumentos
e bens de relevante valor histórico, artístico e arquitetônico” que “ainda não se encontra devidamente
documentada”. Este trabalho tem como objetivo apresentar, frente aos desafios e obstáculos
encontrados, a metodologia de levantamento e registro desse importante edifício, onde a ausência de
qualquer espécie de desenho exigiu, nos processos de aproximação e registro, uma busca exaustiva
por fotos da época, o domínio do espaço construído e o estudo pormenorizado de todas as
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informações obtidas, num constante intercruzamento entre elas. A contraposição entre o cadastro,
através da leitura do repertório e dos gestos arquitetônicos, com as imagens do objeto de 1963 até os
dias atuais e a identificação das técnicas e materiais construtivos é que permitiram a elaboração de
simulações do projeto construído, conduzindo ao seu entendimento enquanto edifício rodoviário,
equipamento urbano e patrimônio descaracterizado, merecedor de atenção e zelo, “como forma de
preservação da memória”. Todas as informações que dispúnhamos então se resumiam: a autoria do
projeto; a construção em concreto protendido; o pouco tempo de funcionamento; e treze fotografias
externas. Faziam-se necessários mais dados para construir a cronologia do edifício, sua arquitetura
inicial e as intervenções projetuais. Foram estabelecidas três frentes de trabalho em paralelo para
arregimentação do material faltante: busca nos acervos e arquivos da cidade que pudessem conter os
desenhos do projeto; pesquisa em fontes escritas primárias e secundárias; levantamento
planialtimétrico da atual situação do objeto. A busca nos acervos mostrou-se improdutiva.
Contrariando as expectativas, não obtivemos desenhos de nenhuma etapa do projeto ou da
construção do edifício. Recorremos às fontes primárias e secundárias para preencher essa lacuna
histórico-arquitetônica. Encontradas quase na totalidade em jornais, essas frações de tempo
apresentaram toda uma sequência de fatos até então por nós desconhecidos. Foram catalogadas
duzentas e cinquenta publicações, todas recebidas e analisadas com o devido olhar crítico. Desta
pesquisa saíram, ainda, as outras vinte e nove iconografias que muito ajudaram na elucidação do
espaço arquitetônico primeiro da Estação Rodoviária. Terminadas as medições e os desenhos, nosso
levantamento planialtimétrico adquiriu uma importância dobrada, por ter sido o único meio para
obtenção dos desenhos do edifício construído. Através do cadastro, necessário ao entendimento do
percurso do objeto no tempo, base para elaboração do diagnóstico e do projeto de intervenção,
pudemos chegar ao que provavelmente foi o projeto construído entre 1962 e 1963. Todo material por
nós produzido só o foi por enxergarmos no monumento o documento a ser transcrito, com todas as
suas peças acrescidas e lacunares. Na busca por entender o seu texto original, contrapusemos a sua
imagem atual àquela iconográfica e à escrita para assim melhor analisá-lo e repropô-lo, com respeito
às suas qualidades artísticas e às suas peculiaridades históricas, no contexto cultural do século XXI.
Palavras-chave: Metodologia; Levantamento; Registro; Estação Rodoviária.
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Desafios na elucidação da preexistência: Sobre o a metodologia de
levantamento e registro adotada para a primeira Estação Rodoviária de
Salvador
Sobre o levantamento de um bem moderno
A execução do cadastro de um edifício ou de qualquer outro bem cultural transcende
a simples atividade de levantamento de sua documentação (...). Significa antes uma
ação que se confunde com a própria preservação da memória, pois é capaz de
conservar não só a imagem e a história do patrimônio constituído, como também
daquele, infelizmente, fadado ao desaparecimento. Por isso, todas as instituições,
órgãos e programas que se ocupam do resgate da memória da humanidade
precisam difundir o conhecimento dessas técnicas, cujo domínio se torna ainda mais
importante em nosso país, onde parcela significativa dos monumentos e bens de
relevante valor histórico, artístico e arquitetônico ainda não se encontra devidamente
documentada. (BRAGA In.: OLIVEIRA, 2008: 7)
Poder-se-ia dizer que, em hipótese, levantar gráfica e iconograficamente um edifício do
século XX seria tarefa de menor dificuldade. Tal premissa se mostrou completamente
equivocada em se tratando da primeira Estação Rodoviária de Salvador, parte da “parcela
significativa dos monumentos e bens de relevante valor histórico, artístico e arquitetônico”
que “ainda não se encontra devidamente documentada”. A ausência de qualquer espécie de
desenho exigiu, nos processos de aproximação e registro do edifício, uma busca exaustiva
por fotos da época, o domínio do espaço construído e o estudo pormenorizado de todas as
informações obtidas, num constante intercruzamento entre as mesmas. Aqui atestamos a
“importância de se fazer levantamentos pormenorizados da situação existente” (VIOLLET-
LE-DUC, 2006: 23) já preconizada por Viollet-le-Duc em uma das suas mais conhecidas
formulações enunciadas no Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XIₑ au XVIₑ
siècle, no verbete “Restauração”. A contraposição entre o cadastro, através da leitura do
repertório e dos gestos arquitetônicos, com as imagens do objeto de 1963 até os dias atuais
e a identificação das técnicas e materiais construtivos é que permitiram a elaboração de
simulações do projeto construído, conduzindo ao seu entendimento enquanto edifício
rodoviário, equipamento urbano e patrimônio descaracterizado, merecedor de atenção e
zelo:
Um dos instrumentos importantes para a preservação da memória é o seu registro
iconográfico, quer pelos métodos milenares, quer pelos processos e instrumentos
mais recentes que a ciência e a técnica do nosso tempo nos trouxeram. Nesse caso,
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desaparecido o objeto que testemunha o nosso passado, a sua imagem pode
substituir, embora parcialmente, a necessidade imanente à natureza humana de
manter contato com o que se foi. Daí uma das várias utilidades das representações
cadastrais como forma de preservação da memória. (OLIVEIRA, 2008: 13, grifo do
autor)
ALGUNS DESAFIOS INESPERADOS
A Estação Rodoviária Armando Viana de Castro não era nossa primeira opção para objeto a
ser estudado no Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumento e
Conjuntos Históricos (MP-CECRE), que se tratava de dois edifícios vizinhos situados na
Baía de Todos os Santos. Visto que um deles já havia sido trabalhado anteriormente no
CECRE, fomos lançados ao desafio de escolher um novo objeto. Sabendo disso, nosso
orientador, que havia sido, entre 2008 e 2009, coordenador do GT Acautelamento da
Arquitetura Moderna – IPHAN, no qual trabalhamos na condição de estagiária até 2010,
questionou-nos “e porque não um exemplar da arquitetura moderna?” Dentre os bens que
havíamos inventariado, incontáveis eram aqueles sucateados, esvaziados de suas funções,
desprovidos de suas feições – um patrimônio fragilizado e, em muitos casos, não valorado
pela população em geral. Sugerindo sete edificações modernas, de grande importância para
o Estado, dentre elas, a antiga Estação Rodoviária de Salvador, projeto dos dois maiores e
mais importantes arquitetos da Bahia: Diógenes Rebouças e Assis Reis, instigou-nos a
participar desse debate contemporâneo e polêmico que envolve a discussão dos critérios,
métodos e princípios para intervenção no patrimônio moderno, tão próximo em
temporalidade, tão frágil na durabilidade dos materiais (em comparação com materiais
tradicionais como a pedra e o tijolo) e cujo sistema construtivo ainda faz parte do nosso
modus operandi compositivo e edificante, sendo uma
(...) ocasião para reclamar a atenção sobre a necessidade de meditar sobre os
critérios de valoração das obras em cimento armado que devem ser salvas para
transmitir ao futuro a herança de um século de arte da construção. Um grande
número de edifícios e de infraestrutura (gostaria de poder chamar estas últimas de
“obras de arte”, como se faz há séculos) foi construído em cimento armado, a partir
do século XIX. (...) Muitos de tais edifícios foram, contudo, demolidos ou
substituídos. Outros, por sua vez, tornaram-se ponto de referência universalmente
conhecidos. Engenheiros e arquitetos são hoje famosos pelas suas obras em
concreto. Por isso a comunidade científica tem a tarefa de conservar aquelas, entre
tais obras, que são precioso testemunho de uma época da nossa civilização e
devem, portanto, ser transmitidas “na plena riqueza da sua autenticidade”. Tal
missão dos organismos responsáveis pela conservação tem dois aspectos: introduzir
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critérios para estabelecer o “valor” de tais obras e orientar a escolha; definir a técnica
de conservação que não arrisca a perda da autenticidade (levando em conta as
dificuldades que se encontram no combater a degradação do concreto e os
processos de corrosão da armadura). (DEZZI BARDESCHI, 2010: 33-34)
Ao ver as desconhecidas fotografias do belo edifício recém-inaugurado (Figura 1), e não
conseguindo associá-lo à sua atual imagem desfigurada (Figura 2), deu-se o início da
vontade de recuperar em espacialidade, em imponência, em beleza e em significância,
aquele bem tornado obscuro pelos anos. Trazer à luz um especial edifício que permanece,
irreconhecível, ainda hoje presente no cotidiano da região das Sete Portas (local de densa
dinâmica citadina), significaria resgatar a “relação de escala (...) com seu observador”,
dessa arquitetura de vulto urbano, que por nossa sorte presenciamos persistir no tempo,
ainda que atrofiada:
Há que se chamar à atenção, porém, em nossa linha de reflexão, que não se deve
cair na tentação de acreditar que a imagem pode substituir satisfatoriamente o
artefato representativo da nossa memória. Seria aceitar que uma fotografia pudesse
tomar o lugar da pessoa ou objeto do nosso afeto. No caso da arquitetura, o fosso
das dificuldades alarga-se mais ainda, porque nada, mas nada mesmo, pode
substituir a relação de escala dos edifícios com o seu observador, nada pode
substituir a concreta realidade da pedra, do cimento, do ferro, das leis físicas que
governam o organismo estático e das precípuas solicitações que deles se irradiam.
Aliás, esta dificuldade de representação já foi brilhantemente esclarecida por Zevi no
Saber ver a arquitetura. (OLIVEIRA, 2008:13)
Todas as informações que dispúnhamos então se resumiam: a autoria dos arquitetos
Diógenes Rebouças e Assis Reis; a construção em concreto protendido; ao pouco tempo de
funcionamento; e a treze fotografias externas. Faziam-se necessários mais dados para
construir a cronologia do edifício, sua arquitetura inicial e as intervenções projetuais (em
maioria, desastrosas). Foram estabelecidas três frentes de trabalho em paralelo para
arregimentação do material faltante: busca nos acervos e arquivos da cidade que pudessem
conter os desenhos do projeto; pesquisa em fontes escritas primárias e secundárias;
levantamento planialtimétrico da atual situação do objeto.
A busca nos acervos e arquivos mostrou-se improdutiva. Contrariando as expectativas, que
contavam como certo que em algum órgão estadual ou municipal, na construtora ou ainda
nos acervos dos próprios arquitetos seriam encontradas as pranchas dos anos 1960, não
obtivemos desenhos de nenhuma etapa do projeto ou da construção do edifício.
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Figura 1: O edifício da primeira Estação Rodoviária de Salvador recém-inaugurado. (Fonte: Construtora Norberto Odebrecht S.A.. 20 Anos CNOSA MCMXLV MCMLXV. Salvador e Recife, 1965)
Visto que na bibliografia consagrada sobre a modernização do Estado da Bahia e da cidade
de Salvador as referências à primeira Estação Rodoviária da capital eram muito raras e
sintéticas, recorremos às fontes primárias e secundárias para preencher essa lacuna
histórico-arquitetônica. Encontradas quase na totalidade em jornais, mais especificamente
nas edições dos anos de 1961 a 1979 no Jornal A Tarde, essas frações de tempo
apresentaram toda uma sequência de fatos até então por nós desconhecidos. Foram
catalogadas duzentas e cinquenta publicações, dentre notícias, entrevistas, editais, avisos,
opiniões de leitores, crônicas, editoriais, reportagens, etc., todas recebidas e analisadas com
o devido olhar crítico. Desta pesquisa saíram, ainda, as outras vinte e nove iconografias que
muito ajudaram na elucidação do espaço arquitetônico primeiro da Estação Rodoviária,
validando:
(...) a utilidade da fotografia para o trabalho de preservação dos bens culturais, por
sua capacidade em conservar a imagem de um objeto, mesmo que desaparecido. É,
igualmente, instrumento imprescindível de anotação para facilitar os trabalhos de
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cadastramento, além de oferecer a possibilidade de, por meio da retificação de
imagem, se obter um levantamento geométrico confiável (fotogrametria terrestre ou
de curta distância). Ao serem empreendidos inventários de bens móveis ou imóveis,
sabemos que a fotografia é apoio imprescindível. (OLIVEIRA, 2008: 59)
(...) a fotografia apresenta essa vantagem de fornecer relatórios irrefutáveis e
documentos que podem, ser consultados sem cessar, mesmo quando as
restaurações mascaram os traços deixados pela ruína. A fotografia levou,
naturalmente, os arquitetos a serem ainda mais escrupulosos no respeito pelos
mínimos remanescentes de uma disposição antiga, a melhor se conscientizar da
estrutura, e fornece-lhes um meio permanente de justificar suas operações.
(VIOLLET-LE-DUC, 2006: 68-69)
Figura 2: A atual configuração do edifício da Estação Rodoviária. (Foto: Maria Emília Regina, agosto/2014)
O INÍCIO DA APROXIMAÇÃO
Para realização dos levantamentos planialtimétricos, entramos em contato com a
proprietária do edifício, a Empresa Baiana de Alimentos S.A. (EBAL) que, na figura do
Gerente de Marketing, o Senhor Anselmo Costa, autorizou-nos a circular pelas
dependências do edifício e sua área externa, podendo fotografar e medir os locais
desejados e propícios para tanto. Essa aproximação ao objeto, iniciada a partir de fevereiro
de 2014, forneceu-nos
(...) instrumentos imprescindíveis para a execução de qualquer intervenção
restaurativa sobre o monumento, representando um ponto básico da metodologia da
conservação e da restauração. Neste particular, trata-se do momento no qual
obtemos maior intimidade com o fabricado e os seus problemas, observamos as
suas patologias de estrutura e de materiais. (OLIVEIRA, 2008: 29)
Conjuntamente com as primeiras tomadas de fotografias dos dois pavimentos do edifício e
seus diversos ambientes, começaram a surgir dúvidas quanto à correspondência temporal
das intervenções sobre o edifício, a articulação entre os diferentes níveis (visto que hoje não
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existe circulação vertical interna) e quanto à existência de dois extensos corredores
semienterrados no pavimento térreo. A estrutura da cobertura (Figura 3) fazia-se um desafio
à parte, elemento protagonista de difícil apreensão, entendimento e representação,
principalmente pelas interrupções geradas na sua leitura pelos acréscimos espúrios:
São poucos os edifícios (...) que não tenham sofrido modificações notáveis, seja
através de acréscimos, transformações ou mudanças parciais. É, portanto, essencial
antes de qualquer trabalho de reparação, constatar exatamente a idade e o caráter
de cada parte, compor uma espécie de relatório respaldado por documentos
seguros, seja por notas escritas, seja por levantamentos gráficos. (...) Informações
tomadas sobre um monumento da Ile-de-France não podem, pois, servir para
restaurar um edifício da Champanha ou da Borgonha. (...) O arquiteto encarregado
de uma restauração deve, pois, conhecer exatamente não somente os tipos
referentes a cada período da arte, mas também os estilos pertencentes a cada
escola. Não é apenas durante a Idade Média que essas diferenças são observadas;
o mesmo fenômeno aparece nos monumentos da Antiguidade Grega e Romana. Os
monumentos romanos da época antonina que cobrem o sul da França diferem sob
muitos aspectos dos monumentos de Roma da mesma época. O romano das costas
orientais do Adriático não pode ser confundido com o romano da Itália central, da
Província ou da Síria. (VIOLLET-LE-DUC, 2006: 47-48)
Figura 3: A complexidade da cobertura, vista do pavimento superior. (Foto: Raquel Neimann, março/2014)
O cadastro (Figura 4), realizado entre os meses de junho e agosto de 2014, foi começado
no setor leste do pavimento superior, fechado há alguns anos, habitat de muitos pombos, o
que fez de máscara, luvas e touca material indispensável para realização do nosso trabalho.
Após tirarmos nível com mangueira (pelo uso do princípio dos vasos comunicantes),
tomamos, gradativamente, todas as dimensões lineares, de forma cumulativa. Finalizando-
as, passamos as medir as diagonais, triangulando o maior número de arestas existentes.
Não nos foi possível cadastrar o lado oeste desse pavimento. Ao finalizarmos o desenho da
planta baixa do trecho cadastrado (num total de 2.431,96m²) do pavimento superior, tivemos
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acesso, afortunadamente, a uma planta baixa simplificada do térreo. Vista a grande
dificuldade de levantar esse pavimento, onde funciona uma loja da Cesta do Povo, em que
suas muitas prateleiras, gôndolas e freezers impedem as medições diretas, decidimos por
ajustar as informações desse nível em função daquelas obtidas no cadastro do pavimento
superior, corrigindo e atualizando pontualmente o que fosse mensurável apenas no
pavimento inferior, a exemplo de desníveis e pequenos espaços, de enxertos de massa nos
pilares, dos gradis e portões e da caixa d’água em tronco de pirâmide invertido. A
sobreposição entre os pavimentos permitiu, novamente com auxílio das fotografias antigas e
nossas, a complementação do nível superior, com a devida aproximação nas dimensões
dos elementos previamente identificados como não contemporâneos à construção e à
inauguração do edifício.
Figura 4: Croqui para cadastro do trecho leste do primeiro pavimento, com algumas dimensões lineares já computadas.
Assim sendo, faltava-nos construir os desenhos relativos aos planos verticais, os cortes e as
elevações. As paredes convencionais, perpendiculares ao chão, eram de fácil medição, mas
a complexidade da estrutura exigiu, dentro das possibilidades dos instrumentos que
dispúnhamos, um levantamento pormenorizado, executado em duas fases. A primeira
consistia na medição em detalhe dos arranques das vigas em relação aos pilares, suas
alturas e suas angulações em relação ao apoio (Figura 5); a segunda captaria as variações
nas dimensões das vigas principais em relação ao chão (Figura 6). Para tanto, esticamos
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uma trena de fita a partir da base do pilar até a projeção do limite da viga o mais paralelo
possível ao eixo desta. Com uma trena a laser, medimos, a cada vinte e cinco centímetros,
a altura do fundo da viga, construindo assim uma espécie de “topografia da viga”. Os pontos
em que havia brusca mudança de altura também foram especialmente cadastrados,
seguindo a mesma lógica supracitada, a fim de rerratificar a silhueta determinada pelos
pontos levantados. Para um pequeno trecho das vigas que se fazia inacessível a noroeste e
inalcançável a sudeste, mensurou-se por aproximação com base nos elementos levantados,
nas fotos realizadas e no perímetro da cobertura obtido na sobreposição de imagens do
Google Earth e da Base Cartográfica de Salvador.
(...) além do valor documental, simbólico e afetivo da representação cadastral de um
edifício de interesse cultural, ela é instrumento inseparável dos que têm a difícil
missão de intervir em um monumento. Além de ser a base óbvia sobre a qual vamos
elaborar o nosso projeto de intervenção, os cadastros feitos com apuro e exatidão
nos permitem leitura mais detalhada da evolução do organismo arquitetônico e suas
transformações, além de ensejarem a avaliação das deformações estáticas que a
estrutura do edifício vem sofrendo, para que se possam aplicar as soluções
corretivas. Mostram, inclusive, certas irregularidades construtivas que facilitam o
entendimento da história do edifício, suas mutações e adições feitas no passado
para ampliação da sua capacidade ou incorporação de novos usos. Para aqueles
que se ocupam da análise histórico-crítica do monumento, os cadastros são de
primordial importância, pois podem permitir a leitura e o entendimento das corretas
proporções do projeto original e descobrir eventuais traçados reguladores que
comandaram a concepção da arquitetura, perfeitamente resgatáveis a partir de uma
boa representação. (OLIVEIRA, 2008: 13)
Terminadas as medições e os desenhos, nosso levantamento planialtimétrico adquire agora
uma importância dobrada, por ter sido o único meio para obtenção dos desenhos do edifício
construído. Através do cadastro, exigido pelo curso como pré-requisito para entendimento
do percurso do objeto no tempo e base para elaboração do diagnóstico e do projeto de
intervenção, pudemos chegar ao que provavelmente foi o projeto construído entre 1962 e
1963.
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O CAMINHO PARA A ELUCIDAÇÃO DA PREEXISTÊNCIA
Figura 6: Medição do arranque e angulação das vigas. (Foto: Paulo Veiga, agosto/2014).
A partir dos nossos desenhos de cadastro (Figura 7), elaboramos plantas faladas com
identificação dos sistemas e materiais construtivos (Figura 8). Estas, associadas à análise
pormenorizada das fotos da época da construção, auxiliaram-nos na classificação das
temporalidades das intervenções (Figura 9): se do projeto original, se acrescido por volta de
1974 – ano da desativação do uso rodoviário - ou posteriormente a esse ano. A esta altura
faltava-nos decifrar o projeto original. Foi então que nossa coorientadora sugeriu-nos retirar
dos desenhos tudo aquilo que não fosse da época da inauguração, pois assim, as plantas
“limpas” das paredes, pilares, vigas e lajes começariam a nos dar uma maior aproximação
do que teria sido aquele espaço (Figura 10), situação que, no advento da execução da
intervenção de restauro deve ser reconferida e reatualizada em função de novas
investigações e descobertas, pois
O levantamento cadastral não se constitui em operação compartimentada e
estanque, que se encerra com o levantamento rigoroso da geometria do edifício na
condição em que foi encontrado. Vai muito mais além. Deve caminhar, à guisa de
contraponto da obra, sofrendo atualizações a cada momento em que é encontrada
uma informação nova. (OLIVEIRA, 2008: 29)
Figura 5: Cadastro da variação de altura das vigas em relação ao chão. (Foto: Paulo Veiga, agosto/2014).
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Figura 7: Planta cadastral do pavimento superior.
Permaneceram, ainda, as dúvidas quanto à circulação vertical, a utilidade dos dois “túneis” -
os corredores semienterrados sem saída (Figura 11) e da disposição do programa
arquitetônico. Algumas iconografias apontavam a existência de duas escadas e o edifício
dava pistas da locação de ambas: o contorno diferenciado da viga de borda leste indicava a
ausência da escada externa; o pequeno recorte da laje limítrofe ao pé-direito duplo oeste
denunciava a demolição da escada interna. E as rampas? Novamente as fotos de época
elucidaram o sentido da topografia redesenhada pelo projeto de 1963, onde os ônibus
subiam as duas grandes rampas em continuidade ao edifício para alcançar as plataformas
de embarque e desembarque e se abrigar sob a sua generosa cobertura. Uma outra foto
mostrava também a existência de duas rampas para pedestre, cuja locação representou um
maior desafio a ser elucidado, resolvido apenas quando percebemos que dois pequenos
muros ao fundo da fotografia da plataforma de desembarque seriam os guarda-corpos das
referidas rampas (Figura 12). E finalmente pudemos entender a razão da existência de um
dos dois “túneis” – este era o corredor pelo qual se acessavam as rampas peatonais,
dispostas em paralelo às plataformas. As dimensões das rampas, em largura e
comprimento, foram consideradas em aproximação com base nas fotos e proporcionalmente
às subdivisões de cada plataforma, identificadas pelas placas afixadas aos postes de
iluminação.
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Figura 8: Planta cadastral do pavimento superior com identificação dos materiais e sistemas construtivos.
Figura 9: Planta cadastral do pavimento superior, com identificação cronológica de acréscimos e perdas.
No desvendamento da utilidade do segundo “túnel”, as palavras escritas nos jornais foram a
grande ajuda na leitura das cicatrizes arquitetônicas. Duas profundas reentrâncias na laje
sobre o segundo corredor sugeriam uma possível comunicação com o pavimento mais
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acima. Nos textos, informações sobre a instalação de um sistema de monta-cargas para
transporte das bagagens (Primeira exposição: Movimento Rodoviário. Jornal A Tarde.
Salvador, 03 abr. 1965: 20). Em sendo os vãos locados cada um exatamente em uma
plataforma, abrigariam perfeitamente então os elevadores de carga citados. Assim
articulamos mais uma peça aparentemente desconexa do conjunto. Outras fotos internas,
mostrando o pé-direito duplo, ratificavam a espacialidade que identificávamos como
primeira; livre dos enxertos de lajes, mostravam-nos também o funcionamento da Estação,
com os serviços administrativos locados, praticamente todos, junto ao muro de contenção,
sob o pequeno avanço da laje do primeiro pavimento.
Figura 10: Planta baixa do pavimento superior simulando o projeto construído em 1963.
Figura 11: Planta cadastral do térreo, com os “túneis” – os corredores enterrados sem saída.
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Figura 12: Foto do pavimento superior da Estação, com vista para as plataformas de embarque e desembarque. Atenção para laterais e fundos dos guarda-corpos das rampas peatonais. (Foto: Walter Lessa, 1963).
Todo material por nós produzido só o foi por enxergarmos no monumento o documento a
ser transcrito, com todas as suas peças acrescidas e lacunares. Na busca por entender o
seu texto original, contrapusemos a sua imagem atual àquela iconográfica e à escrita para
assim melhor analisá-lo e repropô-lo, com respeito às suas qualidades artísticas e às suas
peculiaridades históricas, no contexto cultural do século XXI.
Se nosso tempo só tivesse que transmitir aos séculos futuros esse novo método de
estudar as coisas do passado, tanto no plano material quanto no plano moral, bem
mereceria a posteridade. Mas nós o sabemos de sobra; nosso tempo não se
contenta em lançar um olhar perscrutador por trás de si: esse trabalho retrospectivo
apenas desenvolve os problemas colocados no futuro e facilita a sua solução. É a
síntese que se segue à análise. (VIOLLET-LE-DUC, 2006: 34)
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Referências Bibliográficas
DEZZI BARDESCHI, Marco; CARRERA, Marianna; DEZZI BARDESCHI, Chiara; RIBOLDI,
Emanuela (Org.). La Conservazione del Calcestruzzo Armato nella architettura
moderna e contemporanea – monumenti a confronto. Milano: Quaderni di ANANKE 2,
2010.
OLIVEIRA, Mário Mendonça de. A documentação como ferramenta de preservação da
memória. Brasília, DF: IPHAN / Programa Monumenta, 2008.
OLIVEIRA, Mário Mendonça de. Notas de aula. Salvador, 2014.
Primeira exposição: Movimento Rodoviário. Jornal A Tarde. Salvador, 03 abr. 1965: 20
SANTANA, Mariely Cabral de. Notas de aula. Salvador, 2014.