desafios para uma reflexão acerca do ensino de filosofia - cocar

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 DESAFIOS PARA UMA REFLEXÃO ACERCA DO ENSINO DE FILOSOFIA E SEU SENTIDO NO ENSINO MÉDIO PAULISTA Genivaldo de Souza Santos André Santiago Baldan José Antônio Leandro Filho Universidade do Oeste Paulista CHALLENGES FOR A REFLECTION ON THE TEACHING OF PHILOSOPHY AND ITS MEANING IN THE ‘PAULISTA’ HIGH SCHOOL Resumo Com o retorno da losoa para o ensino médio, muitos de - saos foram postos à pesquisa e à práxis escolar, tornando necessárias investigações sistemáticas que tomem como ob-  jetos de pesquisa o ensino de losoa. A losoa é tradicio- nalmente identicada como um conhecimento emancipador,  porém, no contexto escolar, ela é limitada por questões cur- riculares que levam a uma redução dos seus sentidos. A partir desse quadro, investigamos os documentos curriculares do ensino básico bem como duas concepções losócas do ensi - no de losoa. Como resultado, consideramos a necessidade de uma relação de sentido do professor com a disciplina que ministra (losoa), estimulada pela formação inicial, que as - sume entre os objetos de reexão losóca seu próprio en - sino, restrito atualmente aos campos pedagógicos da didática e das metodologias. Palavras-chave: Ensino de losoa. Currículo. Escola. Abstract Considering the return of philosophy to the high school syl- labus, a large number of challenges has been proposed to the research and the praxis in school context, which has required systematic investigations that take as a research object the teaching of philosophy. Philosophy is traditionally identied as an emancipating knowledge, nevertheless, in the school context it is limited for curriculum reasons which leads to a reduction of its senses. Focusing on this idea, we investigated  both the curricular documents of the elementary school and two philosophical conceptions of philosophy teaching. As a result, we consider the necessity of a relationship of sense  between teacher and the subject he /she teaches (philosophy), motivated by the initial formation, that considers among the objects of philosophical reection the teaching itself, limited in the present time to the pedagogical eld of didactics and methodologies. Key-words: Philosophy teaching. Curriculum. School. Revista Cocar. Belém, vol. 8, n.15, p. 79-87/ Jan-Jul 2014 - 79

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Artigo acadêmico

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  • DESAFIOS PARA UMA REFLEXO ACERCA DO ENSINO DE FILOSOFIA E SEU SENTIDO NO

    ENSINO MDIO PAULISTA

    Genivaldo de Souza SantosAndr Santiago Baldan

    Jos Antnio Leandro FilhoUniversidade do Oeste Paulista

    CHALLENGES FOR A REFLECTION ON THE TEACHING OF PHILOSOPHY AND ITS MEANING IN

    THE PAULISTA HIGH SCHOOL

    Resumo

    Com o retorno da filosofia para o ensino mdio, muitos de-safios foram postos pesquisa e prxis escolar, tornando necessrias investigaes sistemticas que tomem como ob-jetos de pesquisa o ensino de filosofia. A filosofia tradicio-nalmente identificada como um conhecimento emancipador, porm, no contexto escolar, ela limitada por questes cur-riculares que levam a uma reduo dos seus sentidos. A partir desse quadro, investigamos os documentos curriculares do ensino bsico bem como duas concepes filosficas do ensi-no de filosofia. Como resultado, consideramos a necessidade de uma relao de sentido do professor com a disciplina que ministra (filosofia), estimulada pela formao inicial, que as-sume entre os objetos de reflexo filosfica seu prprio en-sino, restrito atualmente aos campos pedaggicos da didtica e das metodologias.

    Palavras-chave: Ensino de filosofia. Currculo. Escola.

    Abstract

    Considering the return of philosophy to the high school syl-labus, a large number of challenges has been proposed to the research and the praxis in school context, which has required systematic investigations that take as a research object the teaching of philosophy. Philosophy is traditionally identified as an emancipating knowledge, nevertheless, in the school context it is limited for curriculum reasons which leads to a reduction of its senses. Focusing on this idea, we investigated both the curricular documents of the elementary school and two philosophical conceptions of philosophy teaching. As a result, we consider the necessity of a relationship of sense between teacher and the subject he/she teaches (philosophy), motivated by the initial formation, that considers among the objects of philosophical reflection the teaching itself, limited in the present time to the pedagogical field of didactics and methodologies.

    Key-words: Philosophy teaching. Curriculum. School.

    Revista Cocar. Belm, vol. 8, n.15, p. 79-87/ Jan-Jul 2014 - 79

  • Introduo

    Investigaes em torno do ensino de filosofia desta-cam sua importncia no processo educativo escolar, na for-mao do educando como um sujeito crtico, consciente de sua cidadania e capaz de posicionar-se no mundo. Seu retor-no como disciplina escolar ocorreu por meio da presso dos educadores que acreditaram em seu potencial emancipatrio, alimentados pelo desejo de que os/as alunos/as pudessem refletir sobre seu cotidiano para transform-lo. Investigaes realizadas sobre o ensino de filosofia no contexto da escola bsica apontam para alguns limites, dentre eles, destacamos as condies nas quais a filosofia foi estabelecida como disciplina escolar obrigatria, o seu sig-nificado extremamente reduzido nos moldes curriculares e, no caso da poltica de currculo do Estado de So Paulo, a in-consistncia do material oferecido pela SEE/SP e sua incon-gruncia com a Proposta Curricular, que, paradoxalmente, deveria orientar a elaborao dos Cadernos33 do aluno e do professor (GARCIA et al., 2010). Em relao s possibilidades do ensino de filosofia, as investigaes conduzidas pelo mesmo grupo de estudo34 apontam para necessidade de reestruturao de alguns par-metros metodolgicos de ensino face tentativa de supera-o da forma mecanizada de transmisso de contedos, o que torna imprescindvel uma concepo filosfica de forma-o docente, bem como da educao em suas determinadas tendncias pedaggicas que permeiam as prticas escolares. Nesse sentido, o presente texto articula-se como mo-mento inicial de uma pesquisa de maior amplitude, atravs de uma investigao que busque um dilogo entre os temas do ensino da filosofia e das polticas de currculo implementadas no estado de So Paulo, destacando a seguinte problemtica: o que e como ensinar a filosofia no contexto da escola bsica? A primeira questo apresenta-se como uma questo essencialmente curricular e a segunda avana para o terreno das metodologias. Em relao primeira questo, lanamos um ques-tionamento aos documentos curriculares sobre o sentido da filosofia no ensino bsico, que nos encaminhou para a prob-lematizao da noo de cidadania nesses mesmos textos le-gais. Avanando para a segunda questo, problematizamos duas concepes clssicas sobre o ensino de filosofia: a de Immanuel Kant e a de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, uma vez que representam, no conjunto da histria da filosofia, autores importantes que problematizaram filosoficamente o ensino da filosofia. Consideramos que o dilogo entre as questes cur-riculares, no caso especfico da filosofia, e as metodologias de ensino de filosofia revela-se como um campo promissor, pois relaciona, de um lado, os percursos curriculares (quer seja, contedos ou habilidades e competncias), sintoniza-dos de forma mais aguda com as necessidades das apren-

    dizagens dos/as alunos/as; e do outro, a necessidade de um ensino filosfico de filosofia, que supere a crena moderna no mtodo universal35 , que aparece de modo bastante ar-raigado na atuao do/a professor/a de filosofia. Atualmente, as demandas prprias da escola bsica tm requerido dos professores de filosofia a superao de for-mas mecnicas que visam a uma suposta transmisso de con-hecimento, que depende de uma formao docente, inicial e continuada, que contemple a problematizao e a reflexo sobre a educao e sobre um ensino filosfico da filosofia, para alm dos necessrios, porm insuficientes, aspectos didtico-pedaggicos.

    1. O lugar da filosofia nos Parmetros Curriculares Nacionais.

    A filosofia, como disciplina escolar, tem uma tra-jetria marcada por rupturas e descontuidades na histria da educao brasileira. Excluda do currculo oficial pela ditadura militar, comeou a regressar lentamente a partir da dcada de 1980, marcando sua presena na LDB Lei de Diretrizes e Bases de 1996, oficializada com a lei 11.684 de 02 de junho de 2008 que [...] estabelece as diretrizes e bases da educao nacional de incluso da filosofia e da sociologia como disciplina obrigatria nos currculos do Ensino m-dio. (BRASIL, 2010) Slvio Gallo (2002, p. 12) diz que [...] provavel-mente a legislao educacional em vigor nunca deu tanta n-fase importncia da filosofia na educao bsica quanto o atual PCNs tanto para o ensino fundamental quanto para o ensino mdio. A insero da disciplina de filosofia na matriz curricular do ensino mdio poderia indicar uma preocupa-o com uma educao em seu sentido formativo mais am-plo, comportando as dimenses polticas, ticas e estticas, visando ao ideal grego de uma formao para o exerccio da cidadania.

    1.1 A legislao pedaggica no Brasil e a Reforma do Ensino Mdio

    Nas ltimas dcadas, a legislao pedaggica brasileira sofreu profundas modificaes que foram material-izadas em dezenas de documentos (Leis, decretos, portarias, pareceres e resolues), cujos eixos podem ser identificados como a nova Leis de Diretrizes e Bases 9.394/96 (LDB), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs). O Ministrio da Educao (MEC), atravs da Sec-retaria do Ensino Mdio e Tecnolgico, articulou a reforma do ensino mdio brasileiro como parte de uma poltica mais geral de desenvolvimento social que priorizou as aes na rea da educao (BRASIL, 1999, p. 15). Alm do Brasil, os pases latino-americanos se empenharam nessas reformas

    33 Podemos caracteriz-los como uma espcie de fascculo, nos moldes de uma pequena apostila, categorizada e dividida por disciplinas, as quais so distribudas bimestralmente aos alunos e professores. A expresso Cadernos e no simplesmente apostilas quer indicar que se trata de um material de apoio e no didtico que busca uma relao mais interativa com o aluno, bem como evitar o tom conteudista que pesa sobre as apostilas, pois parte-se do princpio de que desenvolver habilidades e competncias mais importante que simplesmente transmitir contedos. O que gera uma particularidade negativa, na medida em que at os textos filosficos so tomados como contedos e, nesse sentido, tm uma presena reduzida nos Cadernos. Alm disso, os Cadernos distribudos aos professores contam com textos e explicaes suplementares (incluindo a sugesto de metodologia, recursos e materiais, entre outras) que, na sua justa medida, seria bastante interessante para o /a aluno/a. 34 Grupo de Estudos Ensino de Filosofia (ENFILO) e do Grupo de Pesquisa Filosofia e Educao (GEPEF), ambos vinculados a UNESP-Marlia. 35 Cuja dinmica separa objeto do conhecimento e o mtodo de conhecimento, tornando aquela varivel face invariabilidade desse. Assim, bastaria um mtodo eficaz para que o ensino pudesse ocorrer (RANCIRE, 2002).Os PCNs Parmetros Curriculares Nacionais so o conjunto das orientaes que definem no um currculo nico, mas balizas para um currculo flexvel, incluindo uma orientao mais geral que so a LDB e sua fundamentao, isto , as DCNs. O ensino mdio, o ensino fundamental e a educao profis-sionalizante dispem de um PCN e DCN prprios.80 - Revista Cocar. Belm, vol. 8, n.15, p. 79-87/ Jan-Jul 2014

  • para superar as desvantagens com relao aos pases mais desenvolvidos. Os prprios PCNs36 apontam dois fatores que de-terminaram a urgncia de tais reformas. O primeiro refere-se ao econmico, possibilitado pela ruptura tecnolgica, identificada como a terceira revoluo tcnico-industrial ou a revoluo informtica37 . O segundo fator diz respeito crescente expanso da rede pblica e universalizao do ensino mdio; de naturezas diversas, ambas mantm rela-es observveis, afirma o documento, j que a sociedade do conhecimento desenhada pela revoluo informtica requer indivduos aptos a manipular as diversas tecnologias em con-stante mutao. O ensino mdio constitui esse espao/tempo de preparao do novo trabalhador, relao determinante no aumento da procura por esse segmento de ensino e os arran-jos e reformas para suprir tais demandas. Tais reformas no mbito da educao ocorre-ram dentro de um contexto histrico-social propcio a essa dinmica, alm da pequena diferena temporal da promul-gao da Constituio Federativa do Brasil (1988), e fazem parte desse contexto: a consolidao da democracia, o ad-vento das novas tecnologias, as mudanas na produo de bens e servios (BRASIL, 1999, p. 13), a abertura para o mercado externo e a globalizao. Elas se situam, portanto, no raio de influncias desses importantes acontecimentos que marcaram a histria recente do Brasil. No bojo dessas transformaes, o ensino mdio, por razes tambm histricas, ficou em grande evidncia. Sua identidade em permanente crise38- foi mote de ardorosos debates, atualizando as discusses dos educadores desde seu surgimento: tem ele o carter de finalidade ou propeduti-co? Deve ser profissionalizante? Pode se constituir em zonas nas quais o estudante escolhe seu fim? Deve ter uma preo-cupao com uma formao geral ou tcnica? Sua orienta-o deve ser humanista, tecnicista ou hbrida? possvel tal hibridismo? Tais impasses apenas ilustram a busca de uma definio para o ensino mdio no Brasil que se arrasta por vrias dcadas, seno, desde seu surgimento. Juntamente questo de sua identidade, outra questo de carter mais prtico ficou evidente nos ltimos

    anos. Torna-se mister notar que esse segmento da educao brasileira teve, nas ltimas duas dcadas, um crescimento desproporcionalmente maior se comparado aos outros seg-mentos do sistema educativo brasileiro, ocupando um espao e uma preocupao inusitados devido s polticas de incluso do ensino fundamental, cuja tendncia foi um maior nmero de estudantes aptos a frequentar a escola mdia, bem como aqueles fatores apontados acima que contextualizaram a re-forma do ensino no Brasil. Professores capacitados, escolas capacitadas para receber essa nova clientela, vagas, recursos pedaggicos e fsicos constituram (e ainda constituem) de-safios a serem enfrentados em um curto espao de tempo. Entre os elementos que evidenciam a ruptura com a legislao anterior (Lei 5.692/71) e que tentam imprimir uma nova identidade ao documento, est sua mudana de direo que, a grosso modo, passou de uma orientao tec-nicista-profissionalizante para uma orientao humanista, ao menos no que diz respeito sua legislao; constitui tambm a nova identidade do ensino mdio no Brasil, sua incluso na educao bsica e sua progressiva universalizao, direito do cidado e dever do Estado, j apontado no Art. 208, Inciso II da Constituio de 1988. Incorpora-se nessa redefinio, como reza o docu-mento, o carter de terminalidade de um ciclo, a educao bsica, e surge a possibilidade do ingresso em outra etapa, a educao superior. Alm dessa, outras rupturas so tomadas como objetivos pela reforma, entre elas: um ensino contex-tualizado (Lei 9.394/96) frente ao ensino descontextualizado (Lei 5692/71); interdisciplinaridade (Lei 9.394/96) versus ensino compartimentalizado (Lei 5692/71); o estmulo do raciocnio e da capacidade de aprender (Lei 9.394/96) em contrapartida ao acmulo de informaes (Lei 5692/71). O artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases retoma a frmula da Constituio Federativa do Brasil (1988), desta-cando como objetivos da educao bsica o desenvolvimento do educando, assegurando-lhe uma formao comum indis-pensvel para o exerccio da cidadania, os meios para pro-gredir no trabalho e nos estudos posteriores. Ficam explcitas no documento as duas grandes preocupaes presentes na Constituio Federativa do Brasil de 1988: preparao para a

    36 Os PCNs Parmetros Curriculares Nacionais so o conjunto das orientaes que definem no um currculo nico, mas balizas para um currculo flexvel, incluindo uma orientao mais geral que so a LDB e sua fundamentao, isto , as DCNs. O ensino mdio, o ensino fundamental e a educao profissionalizante dispem de um PCN e DCN prprios. 37 A terceira revoluo tcnico-industrial, denominada pelo documento de revoluo informtica, apontada pelo economista Paulo Tigre como o novo paradigma microeletrnico. Em seu artigo intitulado Paradigmas tecnolgicos, Tigre (1997) analisa o impacto econmico na sociedade ocidental das desco-bertas de diferentes tecnologias desde a mquina a vapor (1769) at o paradigma microeletrnico. Para o autor, h uma vasta literatura que comprova tal revoluo, entre eles, Chris Freeman e Carlota Perez, com os quais concorda nos pontos que evidenciam tal ruptura: a) custos baixos e com tendncias declinantes, levando em considerao o nmero cada vez maior de pessoas com acesso s tecnologias produzidas e o tempo cada vez menor de penetrao social; b) oferta aparentemente ilimitada se comparado com produtos oriundos do petrleo ou outro recurso natural no renovvel, sabidamente limitado, levando em considerao que a matria prima da microeletrnica o silcio, abundante na natureza e utilizado de maneira insignificante; o insumo crtico da microeletrnica a inteligncia humana, aparentemente, ilimitada; c) potencial de difuso pervasiva a toda a sociedade que permite sua aplicao potencial em toda atividade econmica. Uma outra anlise permite que tenhamos uma viso mais ampla da questo, a Leis de Diretrizes e Bases (Lei 9394/96) se apoia em argumentos como esses apresentados pelo economista Paulo Tigre. Em sua tese de doutorado, a Prof. (a) Maria Sylvia de Simes Bueno, pesquisando as polticas educacionais para o ensino mdio, destaca Vilkhovtchenko, um pensador russo que escreveu acerca das polticas de reforma, concebida na URSS ante sua crise estrutural, em seus trabalhos, poca, ele j apontava para as alteraes profundas do trabalho nas sociedades contemporneas. O referido autor, em suas anlises, localiza o surgimento de um novo tipo de organizao da produo em pases capitalistas, partir dos anos setenta. Tal modelo, desdobrando-se em novos princpios, que, uma vez aplicados no aproveitamento dos recursos humanos, tinham a pretenso de plus de eficcia na explo-rao de todos os componentes disponveis na fora de trabalho: fsicos, emocionais, intelectuais. A linha mestra deste tipo de organizao o estmulo da capacidade criativa do trabalhador com implicaes de ordem fsica e sociais do trabalho e alteraes significativas em seu contedo e organizao. Este fenmeno decorrente, mas no apenas, da revoluo industrial e trazida pela inovao tecnolgica ao exigir uma sociedade mais culta e trabalhadores mel-hores informados, colocaria em dvida o taylorismo como sistema consolidado de domnio de classe e desencadearia, j nos anos setenta, sua substituio pela racionalizao capitalista da produo conhecida como humanizao do trabalho (BUENO, 1998). 38 Em artigo publicado no dia 17 de setembro de 2007, no site de Educao do UOL Universo On Line via Agncia Brasil, o atual ministro da educa-o, Fernando Haddad, afirmou que o ensino mdio vive uma crise aguda. A declarao foi feita na abertura do seminrio Ensino Mdio Diversificado, na Cmara dos Deputados, em Braslia. A declarao veio ao encontro dos dados fornecidos pelo IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica que mostram a m qualidade do ensino mdio oferecido aos estudantes. Para o ministro, a dicotomia formao geral e formao profissionalizante do ensino mdio est um pouco fora de moda.

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  • cidadania e para o trabalho39 . Novamente, retoma-se a frmula contida na Con-stituio Federativa do Brasil de 1988, bem como o contido no Artigo 22 da LDB, isto , a centralidade dos conceitos de cidadania e do trabalho como objetivos da educao bsi-ca, agora, direcionada ao ensino mdio. Mas o artigo 35, pargrafo III, deste documento (LDB), que torna possvel a preparao do terreno para a elaborao de uma proposta curricular com a tnica humanista e no mais meramente tecnicista-profissionalizante, ao menos, na legislao. Ao in-troduzir as noes de: i) pessoa humana; ii) formao tica; iii) desenvolvimento intelectual; iv) desenvolvimento do pensamento crtico, permite que se vislumbre a abertura ne-cessria, a legitimao e a justificativa para que legislaes especficas posteriores alinhem a educao, no caso espec-fico do segmento mdio, a um humanismo pedaggico, o que ser realizado pelo Parecer n. 15/98 e pela Resoluo n. 03/98. A presena da filosofia no currculo escolar pode ser traduzida como uma aposta nas potencialidades crticas e criativas dos jovens estudantes do ensino mdio. Dada a amplitude de temas, autores, problemas e solues que compem a histria da filosofia40 , essa aposta sucita outras duas questes: que papel cumpriria a disciplina de filosofia no contexto do ensino mdio contemporneo? O que en-sinar quando se ensina filosofia? Uma pista que pode nos auxiliar na tentativa de resposta para tais questes surge quando tomamos o obje-tivo da disciplina de filosofia para o PCN que o exerccio da cidadania (BRASIL, 1999. p. 329). Nesse sentido, tais parmetros curriculares esto orientadas por dois objetivos principais, formar para o mundo do trabalho e para o ex-erccio da cidadania, o que garante uma certa unidade cur-ricular, mas deixa livre a seleo dos contedos e mtodos constituintes dos percursos curriculares aplicados em sala de aula. Nesse contexto, balizada pelas noes de trabalho e de cidadania que justificam a reinsero da filosofia no currculo escolar, enquanto disciplina, sendo por meio delas que ela dever restringir-se para encontrar seu espao. Entretanto, essa flexibilidade curricular dispensada aos sistemas de ensino e aos docentes deveria ser acompan-hada de uma preocupao efetiva com a formao dos profes-sores que atuaro em tais sistemas de ensino, implicando uma slida formao que possibilite ao futuro docente saber no apenas o que ensinar, mas como ensinar no contexto de uma educao dirigida a crianas e adolescentes. Caso con-trrio, o potencial emancipatrio da filosofia se perde e as aulas podem se transformar simplesmente em mais uma disciplina que com a qual ou sem a tal o mundo continua tal e qual.

    Mesmo que, segundo Cerletti (2008), o exerccio da filosofia nos coloque o desafio de termos que dar conta, permanentemente, da distncia ou o vazio que nunca acaba de encher (p. 24-30), ensinar conduzir ante-sala de desa-fios que, em ltima instncia, so pessoais. O que cabe ao professor de filosofia estimular e levar adiante esse desafio. Filosofar, ento, se atrever a pensar por si mesmo, ou seja, atrever-se a pensar por si mesmo, ou seja, atrever-se a se rela-cionar de outra maneira com o mundo e com os conhecimen-tos e no apenas reproduzi-los.

    1.1 A cidadania no contexto dos Parmetros Curriculares Nacionais.

    Uma educao com vistas cidadania um dos maiores desafios que enfrentamos nos contextos educativos atuais, pois significa formar pessoas que sirvam-se de seus juzos e valores morais em consonncia aos problemas de nossa sociedade, ordenada segundo os ideiais do capitalismo. Nessa situao, seria possvel criar situaes em que os/as alunos/as pudessem pensar por si mesmo, de modo autno-mo? A cidadania exercitada em sala de aula um frag-mento de uma totalidade de conhecimento que a pessoa ad-quire. a expresso de uma cadeia de maneiras pela qual os valores so transmitidos. Dessa forma, podemos at afirmar que a educao cidad poderia existir sem necessariamente existir a escola e o professor como os conhecemos (VALLE, 2001), pois, por toda parte do mundo, pode haver maneiras de transmisso de conhecimento, em que as prprias famlias podem ser transmissoras do saber de uma gerao para outra. A superao do desafio proposto poderia acontecer medida que o educador possa compreender que o seu papel est ligado ao trabalho de desenvolvimento de uma racio-nalidade de resistncia contra a passividade frente ideolo-gia dominante. do educador a misso de desvelar as pre-scries dogmticas que impossibilitam o desenvolvimento da prtica libertadora. Aprofundar a tomada de conscincia superar a mera cincia. Mas isso somente ser possvel quando todos estiverem cientes do que seja a nossa realidade. Para que isso ocorra, cabe ao educador a tarefa de problematiz-la para produzir nos educandos a conscientizao e possibilitar uma relao com a realidade social. Embora a filosofia, no contexto escolar, tenha sido fixada entre os dois eixos que se supem bsicos para o cur-rculo da educao bsica e entre eles deva fixar territrio41, sua natureza inquieta e questionadora no se contenta com o

    39 Art. 35. O ensino mdio, etapa final da educao bsica, com durao mnima de trs anos, ter como finalidades: I - a consolidao e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - a preparao bsica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condies de ocupao ou aperfeioamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico; IV - a compreenso dos fundamentos cientfico-tecnolgicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prtica, no ensino de cada disciplina. Art. 36. O currculo do ensino mdio observar o disposto na Seo I deste Captulo e as seguintes diretrizes: I - destacar a educao tecnolgica bsica, a compreenso do significado da cincia, das letras e das artes; o processo histrico de transformao da sociedade e da cultura; a lngua portuguesa como instrumento de comunicao, acesso ao conhecimento e exerccio da cidadania. (BRASIL, 1999, p. 43-46, grifo nosso). 40 Os PCN de Filosofia reconhece esta amplitude quando diz que multiplicidade real de linhas e orientaes filosficas e ao grande nmero de problemas herdados da grande tradio cultural filosfica somam-se temas e problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posies filosficas (BRASIL, 1999. p. 329). 41 Numa tentativa de compreender o humanismo no contexto da legislao educacionais brasileira, de modo especfico, as DCEm Diretrizes Curriculares para o Ensino Mdio, Santos (2008) interpreta que a insero de categorias filosficas, normalmente associadas emancipao, em documentos pedaggicos curriculares, cumpriria a funo de legitimao das proposies legais. Entretanto, ao serem enxertadas nos discursos pedaggicos, tais categorias perderiam grande parte de sua fora ideolgica e crtica. A recontextualizao, um conceito cunhado pelo pedagogo Basil Berstein e a hibridao, conceito elaborado pelo socilogo Canclini, so tomados pelo autor como os dispositivos responsveis por promover essa situao paradoxal. Em outras palavras, uma proposta humanista que no se sustenta luz do humanismo filosfico. Pensamos que se trata de um processo que tambm atingiria a filosofia na sua reinsero no universo pedaggico escolar.82 - Revista Cocar. Belm, vol. 8, n.15, p. 79-87/ Jan-Jul 2014

  • sedentarismo da fixidez, como tambm no consegue se sub-meter s regras dos cdigos pedaggicos, orientados tradicio-nalmente para o controle. Assim, consoante a essa natureza, a prpria noo de trabalho e de cidadania deve tornar-se objeto de reflexo filosfica no contexto escolar, bem como a questionabilidade de tais categorias (cidadania e trabalho) como objetivos finais de uma educao para a vida.

    2. Ensino da Filosofia, processo ou resultado?

    Como nos aponta Severino (1990), a histria da fi-losofia mistura-se e confunde-se com a histria da educao, o que est evidenciado no percurso da histria da filosofia. Como exemplo, temos, na filosofia clssica, a preocupao de Plato em esclarecer conceitos em seus dilogos; ou, na filosofia medieval, a filosofia escolstica conferindo as bases para o mtodo utilizado na formao cultural e religiosa de seu tempo. Seguindo tal percurso, temos o projeto humani-sta, na filosofia renascentista, que levava as preocupaes filosficas a centrarem-se nos homens; tendo, ainda, na fi-losofia moderna, o iluminismo que se preocupava em tirar o homem da ignorncia (menoridade). Tal preocupao da filosofia com a educao permaneceu vlida at o final da primeira metade do sculo XX, quando, devido a influncias positivistas, as preocupaes filosficas voltaram-se a ex-erccios puramente lgicos, afastando-se das preocupaes pedaggicas. Apesar da pouca tradio filossofica brasileira, podemos dizer que j passamos por trs perodos de destaque no que se refere ao ensino de filosofia: (1) o ensino de filoso-fia no sculo XX, quando se procurava ensinar A Filosofia, [...] constituda por contedos como Lgica, Metafsica, Histria da Filosofia [...] (TOMAZETTI, 2012. p. 231). En-tretanto, em 1961, a partir do Decreto de Lei n. 4.024/61, a filosofia deixou de ser obrigatria no ensino e foi com o Decreto de Lei n 869/69, regulamentado pelo Decreto n 68.065/71, que a filosofia sai definitivamente do currculo do segundo grau, dando lugar para a Educao Moral e Cvica e OSPB; (2) dos anos 1980 at a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/96, com a luta pelo retorno do ensino de filoso-fia s salas de aula, indicando como objetivo da filosofia en-sinar o aluno a ser crtico de seu tempo; apesar de tmida, a conquista vinda com a LDB 9.394/96 deu incio ao terceiro perodo; (3) com a luta pela obrigatoriedade da disciplina de filosofia nas salas de aula do ensino mdio brasileiro, mar-cada pelos discursos de que ensinar filosofia ensinar a fi-losofar. Com base nesse discurso, passamos a refletir sobre o ensino de filosofia: como ensinar a filosofar? Qual o lugar da histria da filosofia no ensino de filosofia? Partindo dessas questes, apresentamos as concep-es de Kant e Hegel sobre o ensino de filosofia. O primeiro filsofo aponta o ensino de filosofia como um exerccio, o filosofar, que transforma a sala de aula em um laboratrio de ideias; j o segundo filsofo utiliza-se da histria da filosofia como centro de sua concepo sobre o ensino de filosofia, numa tentativa de elevar os alunos filosofia atravs da sua exposio s diversas filosofias, organizadas em sua histria.

    2.1 O ensino de filosofia como exerccio de filosofar

    Conhecida de muitos estudantes de filosofia, e que praticamente se caracteriza como um mantra para alguns professores da disciplina no ensino mdio, ressoa a famosa frase no se ensina filosofia, se ensina a filosofar!, o que descreve panoramicamente o ensino de filosofia no mbito escolar conforme a concepo kantiana42. Trata-se, tambm, de uma expresso assumida como base dos discursos realiza-dos por acadmicos brasileiros na luta pelo retorno da disci-plina de filosofia s salas de aula do ensino mdio em nosso pas. Porm, o sentido da concepo kantiana acerca do ensino de filosofia, ou mesmo sobre o ensino de um modo geral, no pode ser to pobremente resumido em uma nica frase. Os escritos desse clebre autor acerca da arte de ensin-ar so relevantes quando refletimos sobre a forma de ensinar filosofia. Tomando a categorizao de Ramos (2007), em que ela indica que Kant possui trs aspectos essenciais que di-recionam sua viso acerca da pedagogia, incluindo o que se refere ao ensino de filosofia, esses aspectos seriam:

    [...] a) o ideal de perfectibilidade do gnero humano; b) o preceito da Aufklarung do pensar por si mesmo e o exer-ccio crtico da razo, e c) a necessidade da coao como instrumento para a realizao dos fins racionais do carter normativo da conduta humana [...] (RAMOS, 2007. p. 199).

    O ideal de perfetibilidade do gnero humano sig-nifica que o objetivo final da educao aperfeioar a na-tureza de cada indivduo atravs da orientao de um edu-cador, e esse deve ser guiado por um ideal de humanidade, utilizando-se da disciplina com a [...] funo de transformar aquilo que animal ou selvagem no homem em humani-dade (GELAMO, 2009, p. 42, grifos do autor), potenciali-zando o que h de natural nos homens, a aprendizagem e o pensamento. Ou seja, a busca por ser uma pessoa melhor, a busca por preencher lacunas em seu ser torna a educao es-sencial; sendo essa a responsvel pelo aperfeioamento dos homens:

    dever do homem educar-se, tornar-se melhor, desen-volver todas as suas disposies e potencialidades, sobre-tudo, aquelas que dizem respeito moralidade. Ao agir na formao do indivduo, a educao porfia em desenvolver o ideal de humanidade que se conquista gerao aps ge-rao (RAMOS, 2007. p. 200).

    O aspecto do pensar por si mesmo o segundo as-pecto de relevncia para a filosofia kantiana, visto que se car-acteriza pelo exerccio crtico da razo, estando esse preceito formulado nas trs mximas do juzo de gosto: A primeira mxima a do pensamento livre do preconceito, a segunda mxima aquela do pensamento alargado, a terceira mxima a do pensamento consequente [...] (RAMOS, 2007. p. 200). A primeira mxima remete ao fato de o homem ser capaz de pensar autonomamente, a capacidade e habilidade humana de poder pensar com uma razo crtica, livre de co-

    42 Apesar da explanao panormica, essa frase no encontrada nas obras de Immanuel Kant; porm no deve ser desconsiderada, visto que essa mesma afirmao, amplamente difundida pela tradio filosfica, direciona/ou as discusses acerca do ensino de filosofia no Brasil.

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  • ero, porm guiada por uma mente esclarecida. A segunda mxima refere-se capacidade do homem de pensar por meio do esprito aberto, fazendo com que a capacidade de pensamento livre se regule e se corrija. J a terceira mxima vem de modo a suprir um paradoxo deixado pelas duas capacidades iniciais: um pensa-mento livre no coagido, esse pensamento visa rejeitar toda coao possvel; j o pensamento alargado mostra-se um pensamento coagido visto que ele visa se autorregular, posicionando-se sempre com a viso do outro. O pensamento consequente vem por tentar solucionar essa querela utilizan-do do imperativo do dever e do imperativo do direito, em que tais imperativos possibilitam que o homem, sendo coagido de modo externo ou interno, chegue maioridade quando poder ento fazer o bom uso da razo. O terceiro aspecto, que se refere [...] necessidade da coao como instrumento para a realizao dos fins racio-nais do carter normativo da conduta humana [...] (RA-MOS, 2007, p. 199), est mais intimamente ligado com a essncia da educao, em que a educao ocorre por meio da coao, utilizando-se de educadores que j passaram pelo processo de educao pela coao e que esto preparados para instruir os jovens e form-los para a vida. O educador deve preocupar-se em criar o jovem para seguir as regras e leis da sociedade em que esse indivduo se encontra e para que consiga utilizar-se do pensamento livremente, visando ao crescimento pessoal e at mesmo ao crescimento da hu-manidade, visto que para Kant o pensamento filosfico no est dado, mas est em constante construo (GELAMO, 2009). Conhecidos os trs aspectos de relevncia sobre o ensino na filosofia kantiana, entendemos que o prprio homem culpado pela sua menoridade e deve ento buscar o esclarecimento objetivando a maioridade; apenas uma con-exo da autonomia moral, da cultura e da autonomia cogni-tiva levariam ao esclarecimento, pois a [...] educao deve ter por finalidade formar no educando o desejo de andar com as prprias pernas, e fazer com que ele tenha a coragem de fazer uso do seu prprio entendimento (RAMOS, 2007, p. 201). Desse modo, o ensino de filosofia deve ocorrer de modo a ensinar o sujeito a filosofar. Filosofia deve ter um papel significativo na vida do jovem, deve ser prxima a ele, auxiliando-o a alcanar a maioridade, tornando-o capaz de se utilizar de um pensamento livre de toda coao possvel; ou, como nos aponta Gelamo (2009), Kant entende que a fi-losofia deve ser entendida como cincia da representao, do pensamento e da ao do homem; a filosofia tem que auxil-iar no desenvolvimento do uso pblico da razo, preparar o cidado para tornar-se um crtico do pensamento que con-siga fazer o bom uso da razo. Diferente do que desejado, quando ensinamos (transmitimos) ao indivduo contedos (histricos) de filosofia, pois desestimulamos o sujeito a desenvolver seus prprios pensamentos, afinal se no h a necessidade de pensar por si mesmo porque outros j pen-saram, por que motivo o faria? Assim, o professor deve guiar seu aluno no exerccio de pensar por meio de perguntas que remetam quilo que o mestre deseja ensinar. A mera erudio do indivduo pode transform-lo em uma pessoa culta, porm limitada no uso de seu conhe-cimento. Sem contar que ao legitimarmos um ensino con-teudista corremos o risco de termos mentes servis, depen-dentes e tuteladas. O ensino como treinamento prepara os homens para o uso privado da razo, fazendo com que

    os homens se preocupem quase que exclusivamente com o modo como o mundo funciona, to valorizada quanto menosprezada a capacidade de problematizao das normas a que esto submetidos; essa forma de ensino acaba sendo a desejada pelos governantes pois contribui para um controle social e a [...] inibir o homem de fazer uma problematizao dos pressupostos doutrinrios [...] (GELAMO, 2009, p. 47) O mestre aparece cumprindo um papel parecido com o de Scrates, numa concepo platnica, tentando trazer luz o conhecimento ao estudante atravs de um exer-ccio erottico em que o professor, de modo dialgico ou catequtico, faz com que o estudante chegue s concluses desejadas. A educao assume ento o papel de possibilitar a autonomia do homem, fazendo com que ele consiga se livrar das coeres, paradoxalmente, atravs do uso da coero. O homem, para que possa alcanar um estgio de autonomia, primeiro ter de se submeter educao coercitiva. Com isso vemos ento que o [...] princpio supremo da educao a cultura da liberdade pela coero [...] (RAMOS, 2007, p. 207), auxiliando o indivduo a atingir a autonomia mesmo estando sob uma fora coercitiva legtima.

    2.2 Do ensino hegeliano

    Hegel esteve fortemente envolvimento com a educa-o de seu tempo, apesar de nunca ter escrito nenhum tratado especificamente sobre esse assunto. Quando o filsofo esteve frente do colgio de Nuremberg como diretor e professor de filosofia (1806-1816), escreveu trs textos relacionados estrutura educacional de sua poca. O primeiro texto, trata essencialmente do que sig-nifica para os jovens ginasiais terem a possibilidade de es-tudar filosofia, [...] um parecer elaborado para o real con-selheiro superior da Baviera, Immanuel Niethammer [...] (NOVELLI, 2005. p. 130). O segundo texto, cujo teor se refere aos conflitos existentes entre forma e contedo, tam-bm uma carta ao real conselheiro superior Niethammer. Por fim, o terceiro texto, que se refere ao ensino de filosofia nas instituies superiores, uma carta enviada a Friedrich V. Raumer, professor e real conselheiro do governo prussiano. Vale ressaltar que o filsofo no possui certo apreo pelas tendncias pedaggicas que lhe eram contemporneas, pois elas se preocupavam [...] com situaes perifricas em relao educao que se traduziam na concentrao sobre os mtodos e as tcnicas [...] (NOVELLI, 2005, p. 132). As preocupaes com o homem em um momento pontual no so de importncia para Hegel, pois tais preocupaes deveriam voltar-se para um homem focado no todo; afinal, o homem caracterizado por construir-se e, nesse processo, tambm contri tudo o que lhe rodeia. Hegel acredita que o ato de utilizar a razo seria o insuficiente para [...] emitir um juzo caracterizado pela atividade filosfica [...] (NOVELLI, 2005, p. 136), pois a filosofia seria fruto de reflexo e anlise, e no deve ser re-baixada ao povo, mas sim elevar o povo filosofia. Apesar das dvidas quanto permanncia do ensino de filosofia no ginsio, ele concede grande ateno ao assunto, que chegou a ser sua ocupao quando veio a se tornar diretor e professor de cincias filosficas preparatrias no Ginsio de Nurem-berg. O ensino da filosofia aparece no como um mero refletir sobre algo, pois para Hegel o exerccio filosfico se d atravs da exposio do educando aos mais elevados mo-

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  • dos de pensar; trazendo contedos especficos ao estudo de filosofia. Hegel se preocupou em formular um mapa de con-tedos a serem abordados de forma que partam de algo ex-istente at chegarem ao pensamento conceitual (GELAMO, 2008). Com isso, o filsofo mostra-se parcialmente de acor-do com o regimento do ensino de sua poca, concordando que o ensino de filosofia, na primeira etapa formativa (corre-spondente ao primeiro ano do ginsio), deveria se dar atravs do ensino de direito, passando para ensinamentos morais at chegar temtica da religio. Na segunda etapa (correspondente a dois anos de estudos), o estudo seria voltado s temticas da lgica, metafsica e da psicologia. O filsofo concorda quanto s temticas propostas pela Normativa de sua poca, porm dis-corda que a o estudo da lgica deva ocorrer prioritariamente com a lgica kantiana. Hegel a favor que Kant seja conhe-cido a fundo, porm acredita que os estudos sobre a lgica devam ocorrer com nfase em [...] sua lgica objetiva (que consiste na superao da lgica formal e da lgica kantiana) [...] (GELAMO, 2008,. p. 157, grifos do autor); ao que con-cerne a temtica metafsica Hegel, posiciona-se a favor de estudos relacionados s obras kantianas. Passando pela lgica e pela metafsica, Hegel co-loca como contedo posterior a psicologia, que a mais ab-strata das trs temticas e por isso deve vir por ltimo. Esse tema deve ser abordado cuidadosamente, visto que para o filsofo o estudo de psicologia nessa fase pode ser danoso formao do indivduo. Os estudos sobre psicologia deve-riam ser divididos em duas partes: a primeira, a do esprito que se manifesta, em que deveriam estudar temas como a conscincia, a autoconscincia e a razo; e, a segunda parte, a do esprito em-si e para-si, na qual tem-se como objetivo explicitar a relao do esprito consigo mesmo. Chegando ao que seria a terceira, e ltima, fase dos estudos (correspondente ao ltimo ano do ginsio) sobre fi-losofia, Hegel estabelece que de extrema importncia abor-dar apenas contedos estritamente filosficos, reservando-se, assim, aos estudos enciclopdicos; que o filsofo restringe lgica, filosofia da natureza e filosofia do esprito. Ao final desse ltimo ano de estudos, indica-se um estudo mais agradvel ao aluno com estudos relacionados esttica. Hegel demonstra, com isso, que o ensino de filosofia deve ocorrer de modo enciclopdico, no sentido de buscar uma educao universal. O pensador elabora contedos de filosofia de forma que eles tenham relao e que atravs do estudo desses temas os alunos tenham contato com o exerccio de pensamento re-alizado por grandes mentes da histria da humanidade. Essa aproximao do educando com os contedos de filosofia far-ia com que os alunos aprendessem como ocorre o exerccio de pensar, e aprendendo esse exerccio, os alunos estariam aprendendo contedos de filosofia. Ainda no que se refere aos contedos de filosofia, o filsofo d grande importncia para o estudo dos clssicos, a filosofia grega, visto que esses trabalham com grande destre-za assuntos relacionados formao do homem. Conforme as palavras de Novelli (2005), isso se deve porque o [...] homem derivado do mundo grego aquele que se direciona para a eticidade, pela razo e pelo esprito despojado de suas contingncias. Saber e conhecer o que os gregos sabiam e conheciam significa garantir a formao de homens guiados pela razo e pelo esprito (NOVELLI, 2005. p. 134).

    Consideraes finais

    Foram apresentados dois desafios aos educadores atualmente interessados na filosofia no contexto escolar, a saber: o primeiro tem a ver com o sentido da presena de um saber multimilenar, profundo e transformador como a filoso-fia nas salas de aula do ensino bsico brasileiro. De antemo, os documentos pedaggicos, que supostamente sintetizariam a vontade poltica de um determinado momento histrico de um povo, definem os objetivos finais da educao bsica, como uma educao para o trabalho e para o exerccio da cidadania e entre tais objetivos e, para ajudar a cumpr-los, a filosofia foi reinserida como disciplina escolar no ensino mdio. As tentativas de enquadrar a disciplina de filosofia, desenvolvida no contexto escolar, nos moldes da disciplina de Educao Moral e Cvica, dos tempos da ditadura brasilei-ra, evideciam o paradoxo da filosofia no mbito da escola: a impossibilidade de manter o discurso emancipador, crtico e radical, prprio da filosofia, com a obedincia aos limites impostos pelos moldes curriculares. No caso brasileiro, por concepes de trabalho e de cidadania orientados pela lgica da produo, do consumo e do lucro. Nesse meio paradoxal, o filsofo-educador deve habitar e transitar, exercendo uma arte, bastante exigente, de questionar as prprias condies, o que lhe garante o exerccio do seu papel. O outro desafio tem a ver com o ensino desse sa-ber multimilenar e radical, dado num contexto cultural que valoriza mais a superfcie do que o profundo, a rapidez que a apreciao, o resultado mais que o processo. No contexto es-colar, o ensino de filosofia re-enquandrado mais uma vez no universo escolar, matizado contemporaneamente pelo ideal do controle (social, moral e epistemolgico) e dos resultados, com vistas agilidade dos processos (perfomance). Na histria da filosofia, o ensino de filosofia apa-rece como objeto de reflexo em dois autores clssicos, Kant e Hegel. Uma primeira leitura nos apontaria que uma das diferenas que marcam tais filsofos no tocante ao ensino da filosofia a relao que ambos mantm com a histria da filosofia. Se para o primeiro no existe contedo filosfico a ser ensinado, para o outro, a prpria histria da filosofia com-poria tais contedos, de modo que ensin-los, de uma certa maneira, j seria ensinar a filosofia. Essa duplicidade no trato com a histria da filosofia revela uma questo clssica no mbito do ensino da filosofia que no pode ser equacionada com ligeireza. Por ora, deixaremos essa questo aberta para estudos futuros, luz dos autores contemporneos. Embora seja necessrio que a filosofia instituciona-lizada tenha a configurao de [...], algo ensinvel e dis-ponvel como um conhecimento que se pode administrar. (CERLETTI, 2009, grifos do autor), isso nos remeteria concepo hegeliana e na sua aposta na transmisso de con-tedos definidos pela histria da filosofia. Porm, ao assum-irmos o pensamento de Hegel de forma irresponsvel, cor-remos o risco de cair em uma educao enciclopdica, que levaria ao desprezo pela filosofia, como aponta Nietzsche (1874) em Schopenhauer como educador. Corroborando com Nietzsche, quando adotamos um ensino enciclopdico, ensinamos o desprezo pela filoso-fia quando os jovens decoram esquemas filosficos para um exame, em que demonstram o conhecimento necessrio, e depois esquecem todo o contedo. Nesse estilo de ensinar fi-losofia, ensinamos [...] uma filosofia completamente afasta-da da vida dos jovens estudantes (GALLO, 2012, p. 120).

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    aqum dessas questes metodolgicas e curriculares, ne-cessrias aos processos pedaggicos, caberia ao/a professor/a de filosofia desenvolver um cuidado sobre aquilo que en-sina e sobre como se ensina, decorrente de sua prpria re-lao com a filosofia e com os sentidos que dela emergem.

    Referncias

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  • Sobre os autores

    Genivaldo de Souza SantosDoutor pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Uni-versidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho - Campus Marlia. Atualmente professor-pesquisador do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) e professor-colaborador do Centro Universitrio SENAC-P.Prudente/SP. E-mail: [email protected].

    Andr Santiago BaldanMestrando no Programa de Ps Graduao em Educao pela Universidade do Oeste Paulista Presidente Pudente. Bolsista CAPES/PROSUP. E-mail: [email protected].

    Jos Antnio Leandro FilhoMestrando no Programa de Ps Graduao em Educao pela Universidade do Oeste Paulista- Presidente Prudente. Atual-mente professor da Uniesp de Presidente Venceslau e professor de filosofia e sociologia na rede pblica do estado de So Paulo. E-mail: [email protected]

    Recebido em: 04/04/2014Aceito para publicao em: 31/05/2014

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