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1 DESENVOLVIMENTO HUMANO E TRABALHO EDUCATIVO: UMA ABORDAGEM DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL. Fábio Brazier. UNIFAL-MG. [email protected]. Eixo Temático: 3 Teoria Histórico-Cultural e Educação. HUMAN DEVELOPMENT AND EDUCATIONAL WORK: AN APPROACH OF HISTORICAL - CULTURAL THEORY Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir as contribuições da Teoria histórico- cultural, com fundamentação no materialismo histórico e dialético, sobretudo a partir dos pressupostos de Vigotski, para repensarmos a educação e o desenvolvimento humano a partir do trabalho educativo desenvolvido no espaço escolar. Na perspectiva da Teoria Histórico- Cultural os seres humanos apropriam-se da cultura para se desenvolverem. Sendo assim, o papel do trabalho educativo, sobretudo do docente, deve favorecer a identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos, além de permitir a descoberta das formas mais adequadas para atingir o objetivo. O texto está estruturado a partir da ideia central de que o ser humano está em permanente desenvolvimento e é por meio de ações mediadas que se desenvolve e humaniza. Desse modo, o texto aborda, de modo objetivo, conceitos como mediação, internalização, zona de desenvolvimento proximal, a relação com o meio e as vivências dentre outros conceitos que correspondem às funções psicológicas superiores que são tipicamente funções humanas. A compreensão teórica dos conceitos abordados no texto permite a discussão da escola enquanto espaço favorável ao desenvolvimento humano e do professor enquanto elemento mediador na relação ensino- aprendizado. Palavras-chave: Desenvolvimento humano; teoria histórico-cultural; trabalho educativo. Abstract: This paper aims to discuss the contributions of historical-cultural theory, with foundation in the historical and dialectical materialism, especially from Vygotsky's assumptions, to rethink education and human development from the educational work at school. From the perspective of Historical-Cultural Theory humans appropriated from the culture to develop. Thus, the role of educational work, especially the teacher, should promote the identification of cultural elements that need to be assimilated by individuals, and enables the discovery of better ways to achieve the goal. The text is structured from the central idea that the human being is in constant development and is mediated through actions that develops and humanizes. Thus, the text addresses, objectively, concepts such as mediation, internalization, zone of proximal development, the relationship with the environment and the experiences from other concepts that correspond to higher psychological functions that are typically human functions. The theoretical understanding of the concepts covered in the text allows school discussion as a favorable location to human development and the teacher as a mediator element in the teaching- learning relationship. Keywords : Human Development ; historical- cultural theory ; educational work. 1. Introdução

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DESENVOLVIMENTO HUMANO E TRABALHO EDUCATIVO: UMA

ABORDAGEM DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL. Fábio Brazier. UNIFAL-MG.

[email protected].

Eixo Temático: 3 Teoria Histórico-Cultural e Educação.

HUMAN DEVELOPMENT AND EDUCATIONAL WORK: AN APPROACH OF

HISTORICAL - CULTURAL THEORY

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir as contribuições da Teoria histórico-cultural, com fundamentação no materialismo histórico e dialético, sobretudo a partir dos pressupostos de Vigotski, para repensarmos a educação e o desenvolvimento humano a partir

do trabalho educativo desenvolvido no espaço escolar. Na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural os seres humanos apropriam-se da cultura para se desenvolverem. Sendo assim, o

papel do trabalho educativo, sobretudo do docente, deve favorecer a identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos, além de permitir a descoberta das formas mais adequadas para atingir o objetivo. O texto está estruturado a partir

da ideia central de que o ser humano está em permanente desenvolvimento e é por meio de ações mediadas que se desenvolve e humaniza. Desse modo, o texto aborda, de modo

objetivo, conceitos como mediação, internalização, zona de desenvolvimento proximal, a relação com o meio e as vivências dentre outros conceitos que correspondem às funções psicológicas superiores que são tipicamente funções humanas. A compreensão teórica dos

conceitos abordados no texto permite a discussão da escola enquanto espaço favorável ao desenvolvimento humano e do professor enquanto elemento mediador na relação ensino-

aprendizado. Palavras-chave: Desenvolvimento humano; teoria histórico-cultural; trabalho educativo.

Abstract: This paper aims to discuss the contributions of historical-cultural theory, with foundation in the historical and dialectical materialism, especially from Vygotsky's

assumptions, to rethink education and human development from the educational work at school. From the perspective of Historical-Cultural Theory humans appropriated from the

culture to develop. Thus, the role of educational work, especially the teacher, should promote the identification of cultural elements that need to be assimilated by individuals, and enables the discovery of better ways to achieve the goal. The text is structured from the central idea

that the human being is in constant development and is mediated through actions that develops and humanizes. Thus, the text addresses, objectively, concepts such as mediation,

internalization, zone of proximal development, the relationship with the environment and the experiences from other concepts that correspond to higher psychological functions that are typically human functions. The theoretical understanding of the concepts covered in the text

allows school discussion as a favorable location to human development and the teacher as a mediator element in the teaching- learning relationship.

Keywords : Human Development ; historical- cultural theory ; educational work. 1. Introdução

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Na condição de instituição social, a escola exerce vários papeis na sociedade, dentre

eles destaca-se a função de formação do cidadão e do profissional do futuro. Desse modo,

como afirma Ponte (1997, p. 1), "o papel fundamental da escola já não é o de preparar uma

pequena elite para estudos superiores e proporcionar à grande massa os requisitos mínimos

para uma inserção rápida no mercado de trabalho".

Para Ponte (1997), a escola passa a exercer um papel centrado na preparação de

indivíduos capazes de se inserir na sociedade de forma crítica e reflexiva.

Desse modo, o ensino, a aprendizagem e a construção de novos saberes ganham papel

de destaque no cenário pedagógico. É o que também afirma Gadotti (2001), ao trazer a

discussão da necessidade constante de mudança na escola, nos educadores e nas práticas

pedagógicas, tendo em vista as novas configurações da sociedade.

Diante da velocidade com que a informação se desloca, envelhece e morre, diante de um mundo em constante mudança, seu papel vem mudando, senão na essencial tarefa de educar, pelo menos na tarefa de ensinar, de conduzir a aprendizagem e na sua própria formação que se tornou permanentemente necessária. (GADOTTI, 2001, p. 7).

Este trabalho é um recorte de uma pesquisa em andamento, realizada no âmbito do

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alfenas, PPGE-

UNIFAL-MG, a qual se denominou “A escola como espaço de desenvolvimento humano:

contribuições da Teoria Histórico-Cultural”. A pesquisa está sendo desenvolvida com o

objetivo de analisar os processos escolares e o desenvolvimento humano, a partir dos aportes

teóricos da Teoria Histórico-Cultural e de produções científicas sobre o tema.

Substancialmente a pesquisa apresenta como constructo teórico os apontamentos da

Teoria Histórico-Cultural, elaborada por L. S. Vigotski, A. R. Luria e A. Leontiev, no

contexto pós Revolução Russa de 1917, sobretudo sobre os apontamentos de Vigotski.

Fundamentado no materialismo histórico dialético de Karl Marx (1818-1883),

Vigotski (2000), concebe que a psicologia deve ver o homem como partícipe ativo da

construção da história e desse modo defende a premissa de sua constituição através do outro,

resultando em um ser complexo e constituído pelas relações sociais. Dessa forma, seus

estudos ajudam a compreender que o ser humano é constituído pelas relações sociais e pela

historicidade.

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O objetivo deste recorte é investigar, nessa perspectiva, o processo de

desenvolvimento humano a partir das relações estabelecidas no cotidiano escolar,

compreendendo a escola como favorecedora ou inibidora de processos de desenvolvimento.

2 Pressupostos teóricos

Segundo Cole & Scribner (1991), as primeiras décadas do século XX representaram

uma ruptura no campo da psicologia, pois havia duas grandes tendências que se opunham. De

um lado, um ramo com características de ciência natural, buscando explicar os processos

sensoriais elementares e reflexos, e de outro a busca pela compreensão da ciência mental,

descrevendo os processos psicológicos superiores.

Dessa forma, a teoria histórico-cultural permitiu o inicio de pesquisas sobre as

condições sociais da gênese da consciência e do desenvolvimento dos indivíduos,

diferenciando e rompendo abruptamente com a psicologia idealista vigente na época, a

Reflexologia.

Na constituição da teoria histórico-cultural estão presentes concepções de Marx e

Engels sobre a sociedade, trabalho humano, bem como o uso dos instrumentos, interação

dialética entre o homem e a natureza. Dessa forma, os novos pressupostos teóricos se

fortalecem em oposição aos conceitos existentes na época da psicologia tradicional, que não

operava na perspectiva da totalidade, apresentando concepções multifacetadas, e, sobretudo

carentes de princípios e leis gerais.

A partir do princípio de aplicação do materialismo histórico-dialético à psicologia

como forma de superar a crise, surge no século XX, no contexto da Revolução Soviética, a

Teoria Histórico-Cultural.

Essa corrente científica da nova psicologia adota a constituição da criança e sua

humanização pela via da concepção de um sujeito concreto, superando assim concepções

individualizantes e psicométricas que se voltava exclusivamente para a avaliação do

indivíduo.

Construída a partir da formação de um grupo, conhecido por “troika”, formado por

Alexander Romanovich Luria (1092-1977), Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1979) e pelo

líder, Lev Semenovitch Vigotski (1896-1934), a teoria mantinha um grande vínculo com o

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paradigma marxista, por se caracterizar como uma psicologia de caráter dialético, porém sob a

concepção de que o marxismo não era um dogma a ser seguido, mas um pensamento essencial

para o estudo e investigação.

Tinha como projeto principal estudar os processos de transformação do

desenvolvimento humano na sua dimensão filogenética, histórico-social e ontogenética. O que

o levou aos estudos dos mecanismos psicológicos mais sofisticados, as funções psicológicas

superiores, a saber, o controle consciente do comportamento, atenção e lembrança voluntária,

memorização ativa, pensamento abstrato, raciocínio, planejamento.

Desse modo, a obra de Vigotski se caracteriza por compreender o meio como objeto

historicamente construída e fonte inicial do conhecimento do indivíduo, concebido como um

ser social que apresenta uma identidade individual construída a partir das interações mediadas

pela cultura.

Para Oliveira (2003),

É na dialética-homem-natureza-cultura que o ser humano se desenvolve, e,

agindo sobre a natureza, não apenas se apropria de seus elementos, como

transforma, segundo suas intenções. Por outro lado, ao transformar, é

transformado no processo interativo. (OLIVEIRA, 2003, p. 45).

Desse modo, buscando uma compreensão teórica é possível dizer que o homem não é

simplesmente produto do meio, pelo contrário ele se torna produtor de cultura. Do mesmo

modo é possível afirmar que a constituição humana é resultado de um processo dialético

formado pela história filogenética do homem que determina diretamente o seu

desenvolvimento ontogenético.

3 Desenvolvimento humano e educação escolar

A Teoria histórico-cultural pode ser considerada uma teoria educacional na medida em

que possibilita pensar além do desenvolvimento de potencialidades individuais biológicas, ou

seja, permite a compreensão do indivíduo a partir de um contexto de crescimento da cultura

humana da qual o homem procede.

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Nesse contexto, a escola, configura-se como um lugar privilegiado, pois se caracteriza

fundamentalmente por ser um espaço social de trocas e de exploração de diferentes culturas

ao mesmo tempo em que favorece à manutenção do conhecimento historicamente acumulado

pela sociedade, para que o homem possa de apropriar-se, e consequentemente se desenvolver.

Nesse sentido, para Vigotski (1995, p.383), “[...] o meio determina o desenvolvimento

da criança através da vivência de dito meio”. Sendo considerado o meio para Vigotski como a

relação entre o espaço e as vivências que ocorrem ao seu redor que condicionam seu processo

de formação e de humanização.

[...] para compreender o papel que o meio desempenha no desenvolvimento da criança, sempre é necessário, se é que se pode dizer assim, enfocá-lo não a partir de uma condição absoluta, senão relativa. Ao mesmo tempo, o meio não deve ser considerado como condição do desenvolvimento que determina, de maneira puramente objetiva [...] deve enfocar-se sempre do ponto de vista da relação que existe entre a criança e seu meio, como uma

etapa dada de seu desenvolvimento. (VIGOTSKI, 1996, p. 1)

A partir das concepções da psicologia histórico-cultural o homem é visto radicalmente

diferente dos seus antepassados animais, ao passo que o processo de hominização foi

consequência da passagem a uma vida em sociedade organizada na base do trabalho. Desse

modo, o desenvolvimento dos homens não está submetido às leis biológicas, mas às leis sócio

históricas.

Para Leontiev (1964), o desenvolvimento humano é um processo complexo pelo qual

aspectos biológicos e sociais devem estar intrinsicamente associados, pois para o autor o

desenvolvimento ocorre a partir de um disparo biológico com influências do social, ou seja, o

homem “possui já todas as propriedades biológicas necessárias ao seu desenvolvimento sócio-

histórico ilimitado [...] a passagem do homem a uma vida em que a cultura é cada vez mais

elevada não exige mudanças biológicas hereditárias” (LEONTIEV, 1964, p. 263-264).

Ainda sobre o processo de hominização, Rego (2009), afirma ser a passagem do

estado puramente instintivo, animal, ao estado de homem, guiada pela razão. Em uma

caracterização a autora exemplifica o processo através da constituição de estágios, sendo

caracterizados primeiramente pela preparação biológica do homem, na qual ainda reinam as

leis biológicas.

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Em sequencia, um segundo estágio seria caracterizado pela passagem ao homem, que

apesar de estar submetido ainda às leis biológicas, o homem já inicia a fabricação de

instrumentos e as primeiras formas de trabalho e de sociedade. O terceiro é o estágio do

aparecimento do Homo sapiens, a partir desse momento o homem passa a ser regido apenas

pelas leis sócio-históricas.

As mudanças ocorridas podem ser caracterizadas de acordo com Vigotski, como um

santo ontológico, ou seja, a parir do desenvolvimento do ser biológico, desenvolvem-se

trabalhos específicos, ou seja, o trabalho como atividade específica humana, inaugurando o

processo de humanização do homem.

Para Vigotski o desenvolvimento humano não segue uma sequencia linear conforme o

exposto no processo de hominização, para o autor o que ocorre são trocas mediadas por

signos.

3.2 Mediação

No processo de apropriação da cultura, advindo das atividades humanas, surge um

pressuposto fundamental para a compreensão do desenvolvimento humano, a mediação.

A mediação na perspectiva vigotskiana pode ser compreendida como um processo de

relação do homem com o mundo por meio das interações sociais favorecedor de

transformação das funções psicológicas elementares, memória natural, reflexos, atenção

involuntária, formas naturais de pensamento em funções psicológicas superiores, atenção

voluntária, pensamento verbal, linguagem intelectual, domínio de conceitos.

Para Vigotski (1998), o desenvolvimento deve ser considerado em dois níveis, sendo o

primeiro deles o desenvolvimento real, ou seja, aquilo que o indivíduo é capaz de realizar de

forma independente.

O primeiro nível pode ser chamado de nível de desenvolvimento real, isto é, o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados. Quando determinamos a idade mental de uma criança usando testes, estamos quase sempre tratando do nível de desenvolvimento real. Nos estudos do desenvolvimento mental das crianças, geralmente admite-se que só é indicativo da capacidade mental das crianças aquilo que elas conseguem fazer por si mesmas. (VIGOTSKI, 1998, p. 111)

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O segundo seria o nível de desenvolvimento potencial, em outras palavras, aquilo que

não é capaz de realizar sozinho, mas com a intervenção de um parceiro consegue realizar.

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de “frutos” do desenvolvimento. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente. (VIGOTSKI, 1998, p. 113)

Nesse sentido, o conceito de Zona de desenvolvimento proximal permite pensar no

papel do professor como agente mediador dos processos pedagógicos no espaço escolar,

atuando de forma a favorecer a aprendizagem, completando o processo do interpessoal para o

intrapessoal.

Desse modo, as práticas pedagógicas devem ser pautadas de modo que concebam que

o “bom aprendizado é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento” (VIGOTSKI,

1998, p. 117)

3.3 Funções psicológicas superiores

Segundo Meira (2001), os espaços educativos tem a função de desenvolver as funções

psicológicas superiores, mediando o campo da vida cotidiana e as áreas não cotidianas, “ao

possibilitar o contato dos alunos com as expressões mais desenvolvidas da cultura humana, a

escola pode e deve ser não apenas ponte entre alunos e conhecimento, mas ela própria fonte

rica de desenvolvimento” (MEIRA, 2001, p. 127).

Dessa forma, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores está diretamente

relacionado ao processo de apropriação das objetivações que são produzidas pelo homem de

forma histórica, como por exemplo, a linguagem conceitual, pois somente à medida que se

torna possível seu uso consciente e arbitrário é que as funções psicológicas elementares se

tornam superiores.

Do ponto de vista dialético o processo de desenvolvimento é superado pelas novas

formações qualitativas que se originam socialmente, através da mediação de um adulto

instrumentalizado. Para o autor, “a essência das coisas é a dialética das coisas, e esta se revela

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na dinâmica, no processo de movimento, da mudança, da formação e da destruição, e no

estudo da gênese e do desenvolvimento” (VIGOTSKI, 1983, p. 170).

As relações sociais são constituidoras do humano, nesta direção a história da

humanidade determina as direções da história do desenvolvimento individual.

Nesse momento é preciso compreender que para Vigotski o processo de mediação

pode ocorrer por meio das interações entre as pessoas ou por meio de mediação entre o

indivíduo e signos representativos, dessa forma a escola através de suas práticas deve agir de

forma intencional a fim de que os conceitos espontâneos, aqueles que os indivíduos trazem

consigo de experiências empíricas, tornem-se conhecimentos científicos.

Os conceitos espontâneos estabelecem uma relação direta com as experiências

vivenciadas pelos indivíduos em sua trajetória de vida, partem do concreto, ou seja, do

próprio objeto e avança, até alcançar o nível abstrato, em outras palavras seria a apropriação

de um conceito relacionado diretamente ao seu uso.

Para Vigotski (1995, p. 345), “o indivíduo tem o conceito do objeto e a consciência

representado nesse conceito, mas não tem consciência do próprio conceito, do ato

propriamente dito, do pensamento através do qual concebe esse objeto”. A compreensão desse

ato se dá porque a atenção do educando está voltada para o objeto e não para operação

psicológica de conceitua-lo.

Nesse sentido, a atuação escolar deve agir de modo que os conceitos científicos, que

não são espontâneos, possam ser constituídos. Sua configuração se dá seguindo a lógica do

abstrato para o concreto, parte do conceito para alcançar o objeto.

Os conceitos científicos são caracterizados pelo uso do arbitrário, pela sistematicidade

e a possibilidade de generalização. Sobretudo, deve-se ressaltar que a apropriação dos

conceitos científicos somente se realiza no processo de ensino e aprendizagem, ou seja, não se

chega aos conceitos científicos de forma espontânea.

De acordo com Vigotski,

O ensino escolar opera com funções psíquicas superiores que não só se distinguem por uma estrutura mais complexa como ainda constituem formações absolutamente novas, sistemas funcionais complexos. [...] todas as funções superiores têm uma base similar e se tornam superiores em função da sua tomada de consciência e da sua apreensão. (VIGOTSKI, 1995,

p. 309)

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Nesse sentido, também aparece a figura do professor,

O curso do desenvolvimento do conceito científico nas ciências sociais transcorre sob as condições de colaboração educacional, que constitui uma forma original de colaboração sistemática entre o pedagogo e a criança, colaboração essa em cujo processo ocorre o amadurecimento das funções psicológicas superiores da criança com o auxílio e a participação do adulto.

(VIGOTSKI, 1995, p. 310)

Ao dar ênfase aos conceitos científicos, o ensino escolar atua de forma a favorecer o

uso consciente dos conceitos. Dessa forma, à medida que os conceitos científicos são

aprendidos, pela apropriação das objetivações e pela mediação do professor proporcionam o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Desse modo, compreende-se que as funções psicológicas superiores não estão dadas a

priori e não são constituídas por meio de um aparato biológico, todavia, são funções

construídas e desenvolvidas por meio da atividade educativa, pelo processo de aprendizagem.

Nesse sentido, ao apresentar uma explicação sobre a relação entre aprendizagem e o

desenvolvimento, Vigotski (1988) descreve que:

[...] a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não-naturais, mas formadas historicamente. (VIGOTSKI, 1988, p. 115)

Neste sentido, se a escola e os profissionais à ela diretamente relacionados percebem o

indivíduo unicamente pelo viés biológico, ou outro viés puramente naturalizante, e de

insuficiências pouco poderá ser feito para a promoção do desenvolvimento.

O desenvolvimento incompleto das funções superiores está ligado ao desenvolvimento cultural incompleto [...] à sua exclusão do ambiente cultural, [...] a um desenvolvimento cultural incompleto, uma negligência pedagógica. Com frequência, as complicações secundárias são resultados de uma educação incompleta. (VIGOTSKI, 1983, p. 144-145)

Dessa forma, torna-se papel da escola compreender o seu espaço como local de

desenvolvimento, ou seja, um ambiente educacional favorecedor de mediações que

possibilitem a internalização destes instrumentos que podem conduzir ao desenvolvimento.

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Toda função psicológica superior, no processo de desenvolvimento infantil, se manifesta duas vezes, a primeira como função da conduta coletiva, como organização da colaboração da criança com o ambiente, depois como função individual da conduta, como capacidade interior da atividade do processo psicológico no sentido estrito e exato desta palavra. Do mesmo modo, também a linguagem se transforma, de meio de comunicação a meio do pensamento. (VIGOTSKI, 1983, p. 139)

Diante disso, a interação social estabelecida com o indivíduo ou com os elementos

culturais se tornam meios para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, que

para Vigotski é a modificação da atividade psicológica a partir da atividade mediada por

signos e instrumentos.

Portanto, fica evidente que as funções psicológicas superiores pouco dependem da

herança genética, contudo são direcionadas pela educação e pelo social, com isso a psicologia

histórico-cultural permite contribuições para o âmbito educacional e desenvolvimental ao

esclarecer que a educação não interfere apenas em alguns processos de desenvolvimento, mas

estabelece uma reestrutura das funções do comportamento humano.

Nessa direção, através do processo de aprendizagem a criança desenvolve a

capacidade de utilização de instrumentos, ou seja, desenvolve o pensamento, a linguagem, a

capacidade de planejamento e antecipação, entre outros. Instrumentos psicológicos esses que

irão estabelecer mediação entre a criança, indivíduo e o mundo, favorecendo uma mudança de

comportamento.

Para Vigotski (1998), as funções psíquicas elementares, naturais e biológicas, nesse

processo, são elevadas a um nível superior, mais complexo e passam a depender

funcionalmente do instrumento utilizado pela criança. Assim, compreende-se que a educação,

quando efetiva, e o espaço escolar quando bem utilizado são capazes de reestruturar e

revolucionar as funções psíquicas.

Para Saviani (1991, p. 21), “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e

intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e

coletivamente pelo conjunto dos homens”. Desse modo para que isso se materialize na prática

o professor deve assumir sua postura mediadora e a escola comprometer-se com o processo

de desenvolvimento humano de todos os alunos.

Desse modo, ao se discutir os pressupostos teóricos da teoria histórico-cultural

observam-se elementos favorecedores para a compreensão de questões educacionais. Nesse

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sentido, é possível afirmar que a teoria histórico-cultural possibilita a discussão das práticas

pedagógicas ao passo que traz contribuições significativas para se pensar o espaço escolar

como espaço favorecedor de trocas de experiências e para que o ato de aprender esteja

acompanhado de significado.

À luz da teoria histórico-cultural observa-se o conceito de mediação, que auxilia-nos a

pensar nas apropriações que os indivíduos fazem, bem como na relação objeto-professor-

aluno, que acabam por se tornar fundamentais para o processo de internalização e

consequentemente para o desenvolvimento.

Sob essas concepções torna-se inevitável pensar nas práticas escolares, bem como no

espaço escolar, constituído pelos seus atores, funcionários, familiares e, sobretudo alunos e

professores. Neste sentido, coloca-se a necessidade de a escola identificar os elementos

culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos para que se tornem humanos, bem

como as maneiras possíveis de interação para se alcançar tal objetivo.

Referências

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