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A INSUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Carlo Romani No ano de 2004, o candidato derrotado à presidência dos EUA, Al Gore, lançou um documentário com ampla distribuição mundial pela Paramount cujos objetivos imediatos eram os de alertar a opinião pública mundial, a classe média consumidora das áreas economicamente mais desenvolvidas do capitalismo, para uma verdade inconveniente: a da lenta agonia do planeta Terra. Sua conclusão, a de que a persistência na atual forma de desenvolvimento econômico é insustentável e se faz necessária uma decisiva e contínua mudança no modelo. Para além do apelo a recursos visuais, estéticos e didáticos de fácil assimilação e sensibilização do público leigo, a inconveniência da tese do documentário é fundamentada pela ampla divulgação de dados empíricos e laudos científicos, ou seja, pelo aval dos experts. Não vamos neste texto discutir a validade ou não das questões, das propostas e das conclusões do documentário, nem a gravidade do problema ambiental em si. O que nos interessa neste texto é investigar, numa perspectiva genealógica, quais as condições históricas que permitiram a institucionalização de um tema para o qual, duas décadas atrás, tanto os agentes políticos quanto os agentes econômicos do mainstream internacional torciam o nariz. A questão ambiental deixa de ser uma atividade ainda em grande parte restrita a militantes conservacionistas e passa a ser tratada como questão de política internacional a partir de

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Este artigo debate a possibilidade ou nao de existir alguma forma de desenvolvimento que seja sustentavel ou se o DS trata-se somente de um modo de mascarar e protelar a atual crise ambiental.

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Page 1: Desenvolvimento insustentavel

A INSUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Carlo Romani

No ano de 2004, o candidato derrotado à presidência dos EUA, Al Gore, lançou um

documentário com ampla distribuição mundial pela Paramount cujos objetivos imediatos eram

os de alertar a opinião pública mundial, a classe média consumidora das áreas

economicamente mais desenvolvidas do capitalismo, para uma verdade inconveniente: a da

lenta agonia do planeta Terra. Sua conclusão, a de que a persistência na atual forma de

desenvolvimento econômico é insustentável e se faz necessária uma decisiva e contínua

mudança no modelo. Para além do apelo a recursos visuais, estéticos e didáticos de fácil

assimilação e sensibilização do público leigo, a inconveniência da tese do documentário é

fundamentada pela ampla divulgação de dados empíricos e laudos científicos, ou seja, pelo

aval dos experts. Não vamos neste texto discutir a validade ou não das questões, das propostas

e das conclusões do documentário, nem a gravidade do problema ambiental em si. O que nos

interessa neste texto é investigar, numa perspectiva genealógica, quais as condições históricas

que permitiram a institucionalização de um tema para o qual, duas décadas atrás, tanto os

agentes políticos quanto os agentes econômicos do mainstream internacional torciam o nariz.

A questão ambiental deixa de ser uma atividade ainda em grande parte restrita a

militantes conservacionistas e passa a ser tratada como questão de política internacional a

partir de pressupostos científicos, somente na década de 1960. Fora do campo biológico da

ecologia, num primeiro momento, a problemática ambiental no planeta foi elaborada como

um problema de gestão de recursos naturais. Foram os demógrafos e os economistas

patrocinados pelo Clube de Roma, os primeiros a colocarem o problema. E o fizeram numa

perspectiva neomalthusiana, na medida em que a explosão demográfica registrada no século

XX – a duplicação da população da Terra em menos de cinquenta anos – chocava-se

diretamente com a apropriação dos recursos naturais. E o fizeram dentro do modelo

dominante do liberalismo, do crescimento econômico como sinônimo de desenvolvimento. O

estudo organizado por Daniel Meadows sobre os limites do crescimento pauta a primeira

conferência da ONU sobre o Meio Ambiente Humano. Nele detectam-se cinco variáveis

negativas: industrialização crescente, população crescente, desnutrição crescente, recursos

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não-renováveis em extinção e meio ambiente em degradação. A simulação para o futuro

previa um cenário de catástrofe para o planeta em menos de cem anos.

O ano de 1972 marcou o início do processo de institucionalização da problemática

ambiental. Aquela conferência de Estocolmo organizada pela UNEP, a recém-criada agência da

ONU para os programas ambientais, foi profundamente influenciada pela idéia da finitude do

crescimento e elevou a discussão do problema para um patamar de visibilidade que

ultrapassava o do círculo restrito dos experts e ativistas. E aqui cabe discutir a importância de

ambos na constituição de uma arena política para o problema ambiental no âmbito da

sociedade civil. Vale lembrar as intrínsecas relações entre saber e poder, que no caso da

sociedade moderna se desenvolvem entre a ciência e o direito, entre a legitimação científica e

regulamentação normativa. A sociedade contemporânea que Michel Foucault denomina

biopolítica se organiza a partir de um sistema de veridição, a prova é válida quando tem a

anuência técnica, o laudo de um expert. E foi justamente essa legitimidade científica que

permitiu uma primeira internalização da existência de um problema ambiental nos níveis mais

decisórios do poder. Por outro lado, uma sociedade de massa é vulnerável à propaganda, e a

publicidade sobre o tema não era ainda algo que interessasse diretamente ao establishment

como passou a ocorrer mais recentemente. Nesse sentido, a ação de ambientalistas dos mais

diversos matizes (conservacionistas, ecologistas, anti-nucleares) nos anos setenta e oitenta foi

decisiva para ampliar o espaço de debate e dar maior visibilidade ao problema ambiental.

Contudo, se a discussão em Estocolmo foi produtiva para institucionalizar e internalizar

o debate nas arenas da governança global e nos círculos acadêmicos e ativistas ambientais, ele

também foi rechaçado pela maioria dos atores políticos tanto à direita quanto à esquerda. As

reações contrárias começaram no próprio campo ideológico de onde partiu a crítica ao

crescimento econômico como sendo inviável para a sobrevivência da vida no planeta. O

capitalismo entendeu que o problema ambiental colocado nesses termos inviabilizaria seu

primeiro e último objetivo: o lucro e a contínua expansão dele. Nessa perspectiva, para os

agentes econômicos dos países industrializados, uma teoria crítica ao crescimento econômico

de um modo geral é uma teoria anti-capitalista. Por outro lado, essa mesma teoria foi vista

pelos governos dos países do então chamado Terceiro Mundo como um cerceamento à sua

possibilidade de desenvolvimento. Em termos brasileiros, por exemplo, isso poderia ser

traduzido pela frase: “vocês já exploraram todas as suas florestas e agora não querem que eu

explore as minhas”. A esquerda tradicional, direcionada pela economia planificada, entendeu

esse problema como uma orquestração do mundo desenvolvido contra o socialismo. Portanto,

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na década de 1970, a questão ambiental que já se encontrava na agenda da ONU foi

combatida por quase todos os atores políticos institucionais do mundo.

Coincidentemente, foi no campo político da esquerda onde surgiram as primeiras

propostas alternativas à economia neoclássica. A tese do economista romeno Georgescu-

Roegen, de que é possível realizar uma administração de recursos, ou uma economia da

energia, de equilíbrio entrópico entre a necessidade de consumo e o gasto energético, fornece

subsídios para uma teoria da economia ecológica. Essa reformulação do problema econômico

será muito cara aos ativistas e cientistas de esquerda, que propõem diversos modelos de

gestão descentralizados, o retorno à convivencialidade, a ecologia social a partir das pequenas

comunidades, a ecologia popular camponesa e indígena ou o ecosocialismo das trocas

compensatórias. Todos postulam posições marxistas não ortodoxas ou libertárias, ecologistas,

combatem o crescimento, propõem a redução do consumo, fazem a critica radical do fetiche e

constituem o conteúdo programático dos primeiros partido verdes que surgiriam no início da

década de 1980.

Mas, os modelos de gestão pensados no grande arco político da ecologia socialista

permaneceram restritos às pequenas comunidades, às cooperativas de trabalhadores, ou a

movimentos camponeses, que mesmo organizando-se nas redes ecossociais que proliferaram

durante os anos oitenta, não tiveram força para revolucionar as formas convencionais e não

convencionais do liberalismo. Mesmo porque, ao final da década de 1980 estava em curso

uma forte reação conservadora no campo da política, o neoliberalismo, ao mesmo tempo em

que o modelo de gestão socialista da economia planificada esgotava-se. É nesse contexto

político da década de 1980 que novos modos de pensar a economia e o meio ambiente

incorporam algumas das críticas da economia ecológica em relação ao crescimento, porém,

partindo do princípio de que o mercado é impermeável a imposições externas. A idéia do

desenvolvimento ecológico elaborada por Ignacy Sachs, sobre a possibilidade de se manter o

crescimento econômico diminuindo progressivamente a degradação ambiental, é muito cara à

esquerda terceiro-mundista e a muitos ativistas ambientais nos países desenvolvidos.

Simultaneamente, o debate sobre uma segunda modernidade, na qual a política é percebida

como meio de ação reflexiva e a ciência como reafirmação da prova, são os pilares para a

construção e difusão da idéia de que a sociedade humana está em risco e o risco é causado

pelos hábitos errados de consumo. Portanto, trata-se politicamente de internalizar a noção do

risco e de suas externalidades, que está embutida na ação do consumo, e de realizar isso

inclusive com o apoio do empreendedor capitalista. De outro modo, trata-se de construir a

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idéia de que a variável ambiental não é prejudicial ao capital, e sim de que ela pode ser

incorporada positivamente na gestão da produção.

O período que vai de Estocolmo à nova conferencia mundial sobre o meio ambiente, a

Rio 92, foi marcado por sucessivos desastres ambientais com muitas vítimas, tanto nos países

mais industrializados (Three Mile Islands e Chernobyl, radiativos, e Seveso, gases tóxicos),

como nos em via de desenvolvimento (Cubatão/Petrobrás, Bophal/Union Carbide) que

despertaram o alarme na sociedade civil. O tema da problemática ambiental volta à carga no

âmbito da ONU com o relatório Brundtland que lança as bases difusas da idéia de

desenvolvimento sustentável. O novo conceito ainda será alvo de intensos debates

principalmente durante e logo após a Rio 92, mas desbancará em nível institucional as

propostas ecológicas mais radicais e será a coqueluche do começo do século XXI. Em termos

de discurso, sustentabilidade é a nova palavra que viabilizaria através de um conjunto de

políticas públicas (ambientais, educativas, normativas) e da internalização do problema pelos

consumidores e pelos agentes gestores da produção, a possibilidade de salvação do planeta. E

o que seria melhor, sem impedir o crescimento econômico.

Assim, dirimidas as diferenças, isoladas as minorias, a questão ambiental finalmente

pôde tornar-se um problema de primeira grandeza a partir da metade da década de 1990. O

lançamento da Agenda 21 (um conjunto de propostas, ações e metas para o futuro voltadas

para a sustentabilidade) e a criação pela ONU do Global Environmental Facility com recursos

do Banco Mundial, instrumento gestor das políticas ambientais em nível mundial, permitiram a

definição de vários marcos regulatórios estatais negociados através de organizações inter-

governamentais. Os problemas da poluição da biosfera, do efeito estufa, do desmatamento,

do aquecimento global tornaram-se pautas das reuniões de todas as organizações envolvidas

com a governança global e motivaram a realização de conferências globais específicas sobre os

temas como em Kyoto em 1997 e mais recentemente em Copenhagen.

Se o desafio ambiental foi internalizado de forma reflexiva pelos atores envolvidos com

o problema que promoveram novos marcos regulatórios, também foi rapidamente capturado

pelo capitalismo induzido pelo marketing. O programa de certificação de qualidade ambiental

ISO 14000 tornou-se um selo necessário a qualquer grande corporação mundial. O surgimento

de um mercado justo entre consumidores verdes no Norte e produtores nos países das

florestas úmidas do Sul foi incorporado como variável corporativa. Cubatão, a cidade mais

poluída do mundo na década de 1980, tornou-se repentinamente exemplo mundial de

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recuperação ambiental. Uma corporação como a Shell pode lançar anualmente um relatório

sobre seu programa de mitigação de danos sem que a opinião pública saiba, ou não queira

saber do desastre ambiental em seus campos de petróleo na Nigéria. Onde acaba a

maquiagem e onde começa o dano real, confundem-se, assim como se confunde a floresta

com o jardim. O problema ambiental foi transformado em um grande negócio que envolve um

sistema comunicativo de marketing, uma academia produtora de gestores ambientais e a

ampliação do aparelho jurídico.

Os marcos regulatórios inter-governamentais para a definição de metas para a redução

de emissões de carbono, de nitratos, enxofre, ozônio, e outros particulados na atmosfera,

esbarram antes de tudo, no problema do crescimento econômico. Os certificados de redução

da emissão de carbono tornaram-se commoditie comercializados em bolsa. Isso significa dizer

que o meio ambiente foi internalizado pelo capitalismo como mais uma variável produtora de

capital. Por outro lado, as políticas de redução de poluição que implicam na redução de

consumo ou na transformação do processo produtivo, fato que requer tecnologia avançada e

mão-de-obra especializada, são muito difíceis de serem assimiladas. Parece pouco plausível a

um habitante de um país em desenvolvimento dizer-lhe que o trabalho que ele faz para

atender uma demanda fetichista num país mais desenvolvido não pode mais ser feito. Muito

mais difícil então é convencer o representante político desse habitante que o meio ambiente

não é um “problema”, que não se trata de um entrave ao crescimento. Ou então, visto por

outro prisma, é difícil convencer esse mesmo habitante que apenas está ingressando no

mundo do consumo e iniciando a satisfazer necessidades criadas pela mídia, às quais antes ele

não tinha acesso, que ele deve abdicar desse direito porque a festa está chegando ao fim.

Portanto, o controle dessa relação de demanda e produção será muito difícil de ser realizada

somente de forma reflexiva. Esse é o outro desafio já antecipado por Ivan Illich e André Gorz

na década de 1970: o estabelecimento de metas e de cortes nos níveis de consumo definidos

por uma tecnocracia somente poderem ser executados com o auxílio de uma força coercitiva

internacional.

A verdade inconveniente de Al Gore não pode ser percebida de forma estruturante.

Nela, a inconveniência não está no fato de que a sobrevivência da forma econômica em que

vivemos, ou seja, a economia de mercado capitalista depende, fundamentalmente, de sua

expansão ilimitada. O que significa dizer que ela precisa continuadamente criar, como disse

Marx, novos fetiches, portanto, novas demandas, novas ofertas de consumo para muito além

das necessidades básicas dos indivíduos, o que implicaria num tipo de economia ecológica e

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não no desenvolvimento sustentável. Mesmo que hipoteticamente esse novo padrão de

consumo global fosse absolutamente sustentável, portanto fundamentado na idéia de reciclar

tudo o que é consumido (alimentar-se dos próprios dejetos), mesmo assim, o dispêndio

energético empenhado na reciclagem dificilmente seria sustentável. A sustentabilidade implica

num consumo minimalista. Mas o minimalismo não faz parte das premissas fundadoras da

economia capitalista.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

ARRIGHI, G. e SILVER, B. Caos e governabilidade no Moderno Sistema Mundo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.BECK, U. Risk society. Londres: SAGE, 1992.BOOKCHIM, M. Historia, civilización y progreso. Madri. Nossa y Jara, 1997.BRUNDTLAND, G. H. Sustainable development. The European Journal of Development Research, v. 3, n.º1, 1991.DAILY, H. et alli. For the common good. Londres: Green Print, 1990.ENZENSBERGER, H.M. A critique of political ecology. New Left Review, v. 84, 1974.GEORGESCU-ROEGEN, N. The entropy law and the economic process. Cambridge: Harvard University Press, 1971.HOBSBAWM, E. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.IANNI, O. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.MARTINEZ ALIER,J. De la economia ecológica al ecologismo popular. Montevidéu: Nordan-Comunidad, 1995MEADOWS, D. et alli. The limits to growth. Londres: Potomac, 1972.NOBRE, M. et alli. Desenvolvimento sustentável. Brasília: IBAMA, 2002SACHS, I. Ecodesenvolvimento: Crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986.THEYS, J. et alli. La Terre outragée. Paris: Autrement, 1992.