desfiando as teias da pesquisa - 7º seminário brasileiro ... · nas páginas da revista vemos...
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MAGRA E FELIZ: LIÇÕES DE BELEZA DA REVISTA SOU MAIS EU!
Danielle Corrêa Sarraf
Universidade Federal do Pará – Instituto de Ciências Biológicas
Sandra Nazaré Dias Bastos
Universidade Federal do Pará – IECOS – Campus de Bragança ([email protected])
Desfiando as teias da pesquisa
Há muito se discute que o corpo humano estudado na escola pouco tem a ver com
o corpo que circula dentro dela. Os documentos oficiais que norteiam a educação
brasileira são claros ao apartar o corpo de sua dimensão cultural ao enfatizarem que o
ensino deve dirigir-se para o reconhecimento do próprio corpo (em sua anatomia e
fisiologia) e dos “hábitos saudáveis” que devem ser dispensados para garantir qualidade
de vida e responsabilidade em relação à saúde individual e coletiva (BRASIL, 1998).
Trivelato (2005) contribui com essa discussão ao nos perguntar sobre “Que ser humano
cabe no ensino de biologia?” Nas palavras da autora:
O ser humano cabe, no ensino, apenas aos pedaços. Nas séries iniciais ele
entra dividido em cabeça, tronco e membros. Mais adiante, o lugar do corpo
humano é o lugar dos sistemas, em que cabe apenas um sistema por vez: o
digestivo, o circulatório, o reprodutor, o respiratório... No ensino médio, o
corpo humano se “espreme” nas células e se estudam as funções celulares e
moleculares, que já não são exclusivas do corpo humano, mas universais para
os seres vivos. Parece que ao avançarmos na escolaridade, avançamos
também na fragmentação desse corpo”.
Convém destacar que, se por um lado a escola nos mostra o corpo fragmentado,
fora do contexto cultural e histórico, pelos meios de comunicação em massa temos
acesso a corpos vivos, pulsantes e acima de tudo desejáveis. Celebridades femininas,
magras e brancas estampam as capas de revistas nos ensinando quais são as “nossas”
necessidades, projetos, desejos e o que é preciso almejar em nome de uma suposta
"felicidade" (BRAGA, 2009).
Sobre isso Fischer diz que: “se atentarmos bem para o modo como são elaborados
inúmeros produtos midiáticos, há um sem-número de técnicas através das quais se
propõe a todos nós que façamos minuciosas operações sobre nosso corpo, sobre nossos
modos de ser, sobre as atitudes a assumir” (FISCHER, 2002, p. 156). Diante disso é
necessário “ampliar nossa compreensão sobre as formas concretas com que somos
diariamente informados, os modos como nossas emoções são mobilizadas” e como
construímos sentidos por meio de diferentes artefatos midiáticos que nos ensinam
comportamentos, valores, sentimentos e prazeres. Diante dessas questões e, como
professoras de ciências e biologia, tomamos como objeto de estudo os enunciados
midiáticos que prescrevem normas para um determinado tipo de corpo feminino, que é
adjetivado como belo e saudável, e nessa condição aciona maneiras uniformes de agir,
pensar, vestir, desejar...
Caminhos metodológicos e corpus da pesquisa
No caminho de pinçar os discursos sobre o corpo feminino belo e perfeito nosso
trabalho tomou como corpus empírico sete edições contínuas da revista semanal Sou
mais Eu!1. A revista tem circulação nacional, com tiragem de 91.958 exemplares, sendo
vendida ao preço de dois reais e cinquenta centavos. São 19 seções voltadas para o
público feminino, “especificamente da classe C”, que trazem matérias e reportagens que
ensinam a montar um negócio em casa, cuidados com a pele e cabelos, culinária,
horóscopo, relacionamentos, entre tantos outros temas que pretensamente são
relacionados ao “universo feminino”. A matéria em destaque é anunciada na capa da
revista e aborda, invariavelmente, como é possível alcançar o corpo perfeito a partir do
“relato de experiências de pessoas comuns”. Como ressalta o editorial a principal
“missão” da revista é servir de “palco para que essas pessoas contem suas histórias
extraordinárias” e com isso mudar a vida de outras pessoas.
Diante disso, nosso trabalho focaliza a seção “dieta da capa”, de onde
selecionamos os enunciados que prescrevem os cuidados com o corpo feminino visando
torná-lo: belo, atraente, saudável, desejável, poderoso, independente e acima de tudo,
feliz! Destacamos, no entanto, que ao levantar tais questões não pretendemos criticar o
que está posto, mas identificar e problematizar as verdades que a revista veicula e os
efeitos de verdade que produz para discutir como esses enunciados nos ensinam formas
desejáveis de ser.
1 As revistas analisadas correspondem aos números 409, 410, 411, 412, 413, 414 e 415 referentes aos
meses de setembro e outubro do ano de 2014. A revista Sou Mais Eu! é uma publicação da Editora Caras.
Biopoder e normalização: o corpo perfeito ao alcance de qualquer uma
Nas páginas da revista vemos circular as representações do corpo feminino tido
como ideal: magreza e beleza são apresentadas como sinônimos e com um corpo assim
a mulher consegue alcançar seus ideais, sua saúde, um bom emprego, e quase sempre, o
grande amor de sua vida. O corpo gordo é desvinculado da imagem de beleza e,
portanto, do poder de atratividade e incitação do desejo sexual masculino. Para serem
belas e atraentes é preciso se livrar da carga extra de gordura que carregam em seus
corpos (NOVAES, 2010, p. 66), e para isso elas generosamente nos ensinam algumas
lições a partir de suas histórias de superação que servirão de “inspiração para a mudança
de vida de milhares de pessoas”.
Michel Foucault chama de “bio-história” às pressões por meio das quais os
movimentos da vida e os processos da história interferem entre si, nesse contexto, um
mecanismo de saber-poder, que ele denomina de ‘biopolítica’, faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, funcionando como agente de
transformação da vida humana. Nas palavras do autor:
Esse poder (biopoder) que tem a tarefa de se encarregar da vida tem também
a necessidade de mecanismos contínuos não só reguladores como corretivos.
Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de
distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa
natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se
manifestar em seu fausto mortífero; não tem que traçar a linha que separa os
súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera distribuições em torno da
norma (FOUCAULT, 1998, p. 134).
E a norma é tanto aquilo que se pode aplicar a um corpo que se deseja disciplinar
como a uma população que se deseja regulamentar. A sociedade de normalização é uma
sociedade onde se cruzam a norma disciplinar e a norma da regulamentação (DANNER,
2010). E é nesse contexto que a revista Sou Mais Eu! se inscreve como mais uma, entre
tantas outras tecnologias educativas que investem sobre o corpo determinando o que é
bom para a sua saúde, para o seu bom funcionamento, suas condições de vida,
determinando com isso o espaço e a forma de sua existência (FOUCAULT, 1998).
As garotas da capa
Na maioria das revistas femininas o corpo gordo e opulento, embora não apareça
nas imagens, acaba ganhando contornos (sempre indesejáveis) através de seu
silenciamento, pois é justamente por não se falar dele ou mostrá-lo que ele se constrói:
um corpo antítese daquilo que se afirma o tempo todo (FIGUEIRA, 2013, p. 133).
Em Sou mais Eu! o corpo gordo ganha a capa da revista. Lá ele pode ser visto
desengonçado e muitas vezes “mal” vestido com roupas largas e ultrapassadas. Ao seu
lado, outro corpo aparece em maior destaque, esguio e delicado, vestido com roupas
modernas e graciosas aparece inevitavelmente sorrindo: “olhe no que me transformei”
parece dizer (Figura 1).
No mais famoso estilo “antes e depois” as imagens do corpo magro sinalizam a
evolução, ou uma espécie de aperfeiçoamento do corpo gordo. Ele materializa-se ali
como modelo de beleza, saúde e felicidade a ser atingido. Aparecendo dessa forma, não
é difícil atribuirmos ao corpo gordo adjetivos como feio, indesejável e até mesmo
doente (MARTINS e COSTA, 2009).
Nesse contexto, Novaes (2010) alerta que o corpo tomou conta do nosso
imaginário de forma nunca antes vista. Conquista práticas e discursos, define normas de
comportamentos, regula nossas práticas cotidianas e determina padrões de inclusão e
Figura 1 – Capas da revista Sou Mais Eu!
exclusão social e é assim que a gordura se torna associada à feiura e se constitui como
uma das mais presentes formas de exclusão social feminina.
Assim, a normalização disciplinar demarca a fronteira entre o normal e o anormal
impondo um modelo ótimo que é construído em função de um determinado resultado. O
próximo passo desse processo é procurar tornar as pessoas (seus gestos e atos) conforme
esses modelos, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma
e o anormal quem não é (FOUCAULT, 2008, p. 75).
As “histórias inspiradoras” disponibilizadas pela revista oferecem as prescrições
que, se forem seguidas, proporcionarão a muitas mulheres a garantia de uma vida
melhor. A transformação é o fio condutor das recomendações: no caminho de alcançar
ideal há também a promessa de uma vida mais longa e saudável. Vemos aí uma teia de
discursos e representações que autorregulam o indivíduo tornando-o, muitas vezes,
vigia de si próprio. É preciso fechar a boca, trabalhar o corpo, ter força de vontade. A
ênfase na liberdade do corpo, com sua possibilidade de exposição e desnudamento nos
espaços públicos, caminha passo a passo com a valorização dos corpos “enxutos”. Aí o
excesso, mais que rejeitado, é visto, muitas vezes, como displicência e falta de cuidado
(GOELLNER, 2013, p. 40-41). Mas que lições essas garotas da capa tem a nos ensinar?
Lição 1: o corpo desejável é, acima de tudo, um corpo magro!
As histórias são estruturadas em três momentos. No primeiro as mulheres narram
a insatisfação com o corpo, os constrangimentos que suportam e o sofrimento causado
por desafiarem os padrões estéticos ditos “normais”. As mulheres estão infelizes e a
autoestima inexiste e a primeira lição que nos ensinam é que o corpo desejável é, acima
de tudo, um corpo magro!
“Nossa, ela não cabe nas roupas” [...] “Nossa, como você engordou”. Na
turma, eu era conhecida como “a Camila Gordinha”, mas nunca tive
coragem de dizer a eles o quanto esse apelido machucava (Camila Cristina
Fernando Menchini, edição 412, 9 de outubro de 2014, p.9. Grifos nossos).
“Ela não vai caber nesse carrinho”. Eu estava em um parque de diversões,
na fila da montanha-russa, e ouvi o cunhado de uma amiga fazer esse
comentário sobre mim. Não falei nada na hora, fingi que não escutei. Quando
chegou minha vez, rezei muito para conseguir entrar no brinquedo. Fiquei
meio espremida, mas deu certo. Só que nem me diverti, de tão encanada.
(Juliana Rodrigues Ramalho, edição 415, 30 de outubro de 2014, p. 8. Grifos
nossos).
Quando conheci o Fábio, meu atual marido, em 2010, eu estava em forma
[...]. Depois que nos casamos, mostrei minhas fotos com 96 kg e ele ficou em
choque. Falou que nunca teria casado comigo se me conhecesse enorme
daquele jeito. [...] Aí, quando engravidei da nossa filha, tive uma depressão
durante a gestação, descontei tudo na comida e engordei novamente: cheguei
aos 89 kg! Pra piorar, me desentendi com o Fábio e ele me deixou. Queria
meu marido de volta, mas lembrava o tempo todo que ele não gostava de
mim gorda (Regiane Marchetti, edição 410, 25 de setembro de 2014, p.8.
Grifos nossos).
Para essas mulheres o excesso de peso as desvia das normas de um corpo
desejável, ao mesmo tempo em que as aproxima de um corpo que incomoda, que não
cabe nos espaços, um corpo doente e que é incapaz de suscitar desejo no outro. Todos
esses efeitos evidenciam a exclusão imposta para quem não corresponde ao padrão
corporal tido como ideal. Em uma sociedade imagética, em que o sujeito é definido por
sua aparência, não há como desconsiderar o sofrimento psíquico decorrente de todas as
regulamentações e limitações que incidem sobre o corpo, principalmente o feminino
(NOVAES, 2011).
Para Mary del Priore vivemos em uma época na qual a lipofobia impera e
queremos, a todo custo, nos livrar da gordura que um dia nos salvou da extinção
(FREIRE, 2011, p. 471). Nos dias atuais obesidade e flacidez muscular são indicadores
de falta de controle, força de vontade ou de determinação (PEGORARO e FREITAS,
2011). Do direito à saúde passamos à “obrigação de sermos magras, belas e jovens para
sermos felizes”, e assim, se toma a magreza como virtude, substitui-se a necessidade
que havia no passado, de confessar os pecados morais cometidos pela via da
sexualidade, pela obrigatoriedade de subir na balança para prestar contas ao social e a si
(FREIRE, 2011, p. 471).
A mulher que não cuida do seu corpo está sujeita a uma série de punições: a perda
do marido, de sua autoestima, do amor próprio, do respeito por si, do respeito dos
outros. E o que é isso senão a morte social provocada pela exclusão de determinados
grupos e pela rejeição do outro? Como explica Foucault, tirar a vida não está apenas
relacionado ao assassínio direto, mas também a fatores indiretos que podem provocar,
por exemplo, a morte política e social pela rejeição ou pela expulsão de uma pessoa de
seus grupos sociais (FOUCAULT, 1999, p. 36)
Se as narrativas enfocam inicialmente momentos de perda e desamparo, logo em
seguida as histórias descrevem o momento da virada, da tomada de consciência de que é
preciso, de alguma forma, agir. É o marco para a mudança de atitudes e
consequentemente da mudança de vida.
No dia do episódio no parque de diversões, assim que chequei em casa, fui
pra frente do espelho e comecei a me enxergar como os outros me
enxergam. [...] Foi assim que, finalmente, acordei para a minha nova
vida: era hora de parar de me esconder e batalhar por uma vida melhor!
(Juliana Rodrigues Ramalho, edição 415, 30 de outubro de 2014, p. 9. Grifos
nossos).
[...]. As outras mulheres estavam lindas, com vestidos da moda. Nossa, me
senti a pior pessoa do mundo... Fiquei tão arrasada que lá mesmo decidi:
“Chega, não dá mais”![...]. (Daiane Cristina Geraldo Frisão, edição 409, 18
de setembro de 2014, p. 8. Grifos nossos).
“Decidi recuperar meu corpo e meu casamento”. Eu queria muito voltar a
ser a Regiane por quem o Fábio se apaixonou. [...] decidi que ia fazer tudo
que estivesse ao meu alcance para ser magra novamente [...] (Regiane
Marchetti, edição 410, 25 de setembro de 2014, p.8. Grifos nossos).
Para Jandrey (2014, p. 110) “cuidar de nossos corpos tem se tornado um processo
massificado e, ao mesmo tempo, individualizado de gestão e administração da chamada
‘vida saudável’”. Todavia, os cuidados pretendidos e almejados remetem somente a
corpos magros e esguios, pois o corpo gordo é uma espécie de derrota do corpo pelo
próprio corpo (SANT’ANNA 2013).
E é a vitória sobre esse corpo indesejado que aparece no final de cada uma das
narrativas. No final feliz, o corpo gordo é eliminado e em seu lugar um corpo novo (e
finalmente feliz!) surge:
Mas hoje olho no espelho e reconheço a mulher que eu vejo! Minha
aparência e minha autoestima estão a mil! [...] Agora tenho certeza de que
sou a pessoa por quem meu marido se encantou. (Regiane Marchetti, edição
410, 25 de setembro de 2014, p.9. Grifos nossos).
Hoje sou mais autoconfiante e faço amizades com facilidade porque ganhei
uma vida social de verdade. Vivo saindo para me divertir. [...] Sinto que
nasci de novo. E eu amo essa nova Cíntia! (Cíntia Cristina dos Reis, ed.
411, 2 de outubro de 2014, p. 7. Grifos nossos).
[...] Agora não tenho mais por que me esconder. Pelo contrário: amo sair
porque recebo um montão de elogios! Tô podendo! [...] Perdi peso e ganhei
amor-próprio (Juliana Rodrigues Ramalho, edição 415, 30 de outubro de
2014, p. 9. Grifos nossos).
É pela morte do anormal que a vida em geral se torna mais sadia e mais pura
(FOUCAULT, 1999, p. 305). O corpo que renasce completamente diferente, é o corpo
que traz a felicidade e a realização dos sonhos: um corpo que cabe dentro das roupas,
que sai para as baladas e que provoca desejos.
Se, historicamente as mulheres preocupavam-se com sua beleza, hoje elas são
responsáveis por garanti-la. De dever social (se conseguir, melhor) a beleza tornou-se
obrigação moral (se realmente eu quiser, eu consigo!). O fracasso não se deve a sua
impossibilidade mais ampla, mas a uma incapacidade individual (NOVAES, 2011).
Lição 2: Seja forte: com força de vontade se consegue qualquer coisa, até
emagrecer!
O caminho para conseguir o corpo perfeito envolve dificuldades e dietas
restritivas que podem ser associadas à rotina de exercícios físicos. As garotas da capa
ensinam seus segredos e compartilham as receitas de sucos que “atacam as gordurinhas
da barriga”, de “bolachinhas caseiras que bloqueiam a gordura”, da água
“emagrecedora com gengibre e limão para queimar as gordurinhas” ou ainda
descrevem os aplicativos de celular para ajudar nos exercícios físicos. Cada uma delas
tem uma receita especial e infalível para atingir o corpo perfeito.
Por coincidência, nessa época, vi na TV uma reportagem falando de um
aplicativo para celular gratuito que ajuda a perder peso e fazer dieta. [...] O
app calcula o nosso peso ideal, dá dicas de exercícios e alimentação, avisa a
cada três horas que é hora de comer... Amei!
Tive que usar a criatividade e improvisar os exercícios. [...] No começo
era bem difícil, mas hoje dou pelo menos 500 pulos por vez. [...] Além disso,
amarro sacos de feijão na panturrilha e fico subindo e descendo as
escadas. A gente faz o que pode né? (Regiane Marchetti, edição 410, 25 de
setembro de 2014, p.9. Grifos nossos).
O primeiro passo foi fechar a boca. [...] As quantidades no prato passaram
a ser bem menores. Passei a beber 2 litros de água por dia e comecei a me
policiar para comer a cada três horas. Mas eu ainda sentia aquela vontade
louca de comer doce, [...] Mas descobri a salvação na internet: as
bolachinhas caseiras, feitas com aveia, mel e uva-passa (Daiane Cristina
Geraldo Frisão, edição 409, 18 de setembro de 2014, p. 9. Grifos nossos).
Segundo Figueira de todas as práticas autorreguladoras destinadas à aquisição da
beleza, a alimentação tem um grande destaque visto que a todo momento nos são
apresentadas milhares de possibilidades de consumo de alimentos. O autor chama a
atenção para o volume de textos e imagens (em uma revista destinada ao público
adolescente) que fornecem dicas, recomendações, conselhos sobre como cuidar do
corpo tendo como objetivo torná-lo magro e em forma em uma obsessão pela magreza e
uma quase maníaca rejeição à obesidade (FIGUEIRA, 2013, p. 133).
As frases proferidas por essas mulheres funcionam como elementos estímulo que
reforçam positivamente que as pessoas gordas persistam em suas dietas e/ou rotinas de
exercícios, vendendo muito bem a ideia do corpo magro como ideal a ser atingido ao
mesmo tempo em que reforçam a representação social do gordo como um imperfeito
que deve ser reeducado de forma eficiente. Nesse sentido, nada espelha melhor a moral
do culto ao corpo do que a disciplina, a perseverança e a obstinação. (NOVAES, 2010,
p. 65-66).
Esse incentivo também aparece materializado em números que estampam a capa
das revistas. Eles anunciam o quanto de peso foi perdido com a dieta indicada para
aquela semana e quanto tempo se leva para alcançar o corpo ideal. (Figura 2).
Figura 2 – Os números da capa
Sobre essa questão Novaes (2011) afirma que muitas mulheres tratam seu corpo
com profunda tirania, privando-o de alimentos, mortificando-os em cirurgias
“corretivas”, ou submetendo-os a exercícios físicos torturantes e, não por acaso, o termo
frequentemente empregado para esse disciplinamento do corpo é “malhar”, como se faz
com o ferro. A dor e a frustração deixam de ser indicativos de limites inerentes à
experiência humana e passam a ser insuficiência daquele sujeito. Difunde-se com isso a
ideia de que a imagem ideal está disponível para todos, a um mínimo de esforço. A não
concretização desse modelo decorrerá exclusivamente de uma incapacidade individual.
A lógica das práticas corporais, que associa o prazer à saúde, à vitalidade e à
beleza, promete eliminar a inquietude que o olhar do outro provoca, por meio do
esforço, da determinação e da disciplina, apontando todo o tempo para a
responsabilidade do sujeito (NOVAES, 2011, p. 494).
Lição 3: As medidas do corpo perfeito
A beleza se constitui a partir de um aparato discursivo baseado nas medidas
corporais e não é de hoje que elas têm servido de parâmetro para a classificação das
pessoas conferindo-lhes diferentes lugares sociais. Se no passado o tamanho do cérebro
era relacionado ao nível de inteligência, a forma do rosto e a cor da pele determinavam
a aptidão para o trabalho intelectual ou braçal e o tamanho e forma das mãos
possibilitava a identificação de traços de violência ou loucura (GOELLNER, 2005) hoje
os diâmetros da cintura, quadril e busto aliado ao peso e a altura podem indicar se
estamos dentro do “peso ideal” ou não.
Sobre essa questão Pegoraro e Freitas (2011) reiteram o papel que a mídia assume
nesse contexto ao colocar circulação discursos que associam o conceito de felicidade ao
de beleza e este com o de magreza: “ser magra, é ser bela e, portanto feliz”. Quem está
fora das medidas, está fora do padrão o que provoca o sentimento de inadequação.
No caso das garotas da capa outra unidade de medida, que não é corporal, é
adicionada à receita de sucesso: o tempo. Perder peso e reduzir medidas, com o mínimo
de esforço e em curto espaço de tempo parece ser a principal regra de convencimento.
Mas em quanto tempo (ou com a perda de quantos quilos) se tem o corpo ideal?
Todo meu esforço valeu a pena: em seis meses, emagreci 25 kg na raça. [...]
Para me incentivar, o Fábio decidiu que também ia participar da minha
reeducação alimentar. Meu amor emagreceu 11 kg e perdeu a
barriguinha. (Regiane Marchetti, edição 410, 25 de setembro de 2014, p.9.
Grifos nossos).
Foram oito meses de muita força de vontade para eliminar 37 kg, sem
remédio nem cirurgia! Fiquei tão orgulhosa... Mas ainda não atingi meu
objetivo, não: há um mês, procurei uma nutri para me ajudar com os 5 kg
restantes. Mesmo assim, já me sinto outra mulher (Juliana Rodrigues
Ramalho, edição 415, 30 de outubro de 2014, p. 9. Grifos nossos).
O caminho foi longo: um ano e quatro meses de batalha. Desde o começo,
acreditei que conseguiria. “Eu posso!” era a frase que me acompanhava. Essa
autoconfiança foi essencial para que atingisse meu objetivo. [...] Foi assim
que consegui eliminar 67 kg e 76 cm de circunferência abdominal!
(Camila Carla de Carvalho, edição 414, 23 de outubro de 2014, p. 11-12.
Grifos nossos).
Os números representam a coroação do esforço empregado nas dietas e exercícios:
o tanto que perderam de seus excessos corporais. Sant’Anna nos alerta que a luta contra
a obesidade assumiu a forma de uma guerra generalizada, na qual um diversificado
exército (composto por médicos, psicólogos, famílias, educadores, meios de
comunicação de massa, entre tantas outras instituições) tende a ser convocado. Nessa
guerra a demanda é que o obeso se regenere, uma vez que a obesidade é vista como uma
incontrolável degeneração. O que se espera é ele passe por uma espécie de conversão
por meio da qual ele modificaria radicalmente o seu corpo (SANT’ANNA, 2013, p.
263).
Jandrey (2014) reitera ainda que esses discursos se transformam em práticas que
deverão ser adotadas em nome de um corpo saudável que se sustenta sobre concepções
idealizadas de um “sujeito saudável”, único e estável. Alguém com capacidade de que
alguém/algo o instrua e modele. O processo disciplinar que molda o corpo se caracteriza
por analisar e decompor os indivíduos, classificando-os em função de objetivos
determinados, estabelecendo um padrão a ser seguido através do adestramento
progressivo do corpo (FOUCAULT, 2008).
Considerações finais
Mary Del Priori anuncia que “longe vão os dias em que “vastas e ostensivas
ancas” eram “insígnias aristocráticas” que qualificam uma mulher mais feminina,
desejável e fecunda”. Nessa conformação anatômica, sua função biológica e ao mesmo
tempo sagrada que era “reproduzir, procriar, perpetuar” estava garantida, pois a mulher
“descadeirada” era vista como a deficiente de corpo (Del Priori, 2010, p. 9). Nesse
sentido é pertinente perguntarmos: em que momento o peso corporal entrou na pauta
das preocupações humanas?
Sant’Anna (2013) explica que a preocupação com o peso passou a fazer parte da
rotina das pessoas nos últimos quarenta anos e com isso a obesidade passou a ser
considerada não só como doença, mas como doença grave (SANT’ANNA, 2013, p.
264). Nesse contexto as prescrições para uma vida mais saudável são dadas a conhecer
em diversas materialidades, principalmente as midiáticas, que pautadas pelas
orientações de uma “alimentação saudável” passam a integrar práticas das quais
devemos lançar mão para nos construirmos como sujeitos que têm cuidados adequados
com o corpo, que gostam de si mesmos, que se cuidam e estão, invariavelmente, atentos
(SOUZA e CAMARGO, 2014, p. 111).
Esses enunciados conferem aos indivíduos a responsabilidade pela ‘boa’
administração de seu corpo, buscando, o máximo possível, adequá-lo a tais normas,
caso contrário, esse indivíduo será visto como desleixado, relapso, cujo caminho será a
gradativa degenerescência. Assim, não basta conservar o corpo, mas se torna necessário
preservá-lo jovem, magro, liso e definido (SOUZA e CAMARGO, 2014, p. 125).
As histórias selecionadas nesse trabalho, embora enfoquem pessoas diferentes,
trazem em comum recomendações relacionadas aos cuidados com o corpo: perder peso,
fazer exercícios e ter uma dieta equilibrada são os passos necessários para uma vida dita
melhor. Discursos como estes invadem nossas vidas cotidianas acionando em nós
vontades, desejos, metas a serem cumpridas, padrões de beleza e saúde a serem
alcançados. Daí pensarmos com Fischer (2002) que a mídia, em seus diferentes
suportes, é um campo extremamente poderoso na produção e circulação de valores,
concepções e representações nos ensinando o que devemos fazer com nosso corpo, de
que modo deve ser feita nossa alimentação, qual biotipo é mais desejado.
Dentro desse contexto, a revista Sou mais Eu! é mais um suporte, entre tantos
outros, onde esses discursos são dados a conhecer. É preciso que estejamos atentos a
outras pedagogias culturais que, além da escola, nos ensinam a conhecer e interpretar
nossos corpos, o que significa entender que a cultura tem um papel constitutivo
fundamental em nossas subjetividades (PEGORARO e FREITAS, 2011).
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