dissertação de mestrado

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  Marcelo da Silva Carneiro Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da  justiça em Mt 5,17-20: uma análise e xegético-teológica. Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo Rio de Janeiro Janeiro de 2008

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Jesus, a Torá e os Nebîim.Uma análise teológico-literária

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  • Marcelo da Silva Carneiro

    Jesus, a Tor e os Nebim, e o pleno cumprimento da justia em Mt 5,17-20: uma anlise exegtico-teolgica.

    Dissertao de Mestrado

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teologia.

    Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo

    Rio de Janeiro Janeiro de 2008

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    Marcelo da Silva Carneiro

    Jesus, a Tor e os Nebim, e o pleno cumprimento da justia em Mt 5,17-20: uma anlise exegtico-teolgica.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teologia. Aprovada pela Comisso Examinadora aba

    Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo

    Rio de Janeiro Janeiro de 2008

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    Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao do autor, do orientador e da universidade.

    Marcelo da Silva Carneiro Graduou-se em Teologia pelo Instituto Metodista Bennett em 1998. Fez Especializao em Teologia na mesma instituio, em 2002. Como pastor Metodista, trabalhou em vrios projetos de Educao com crianas, adolescentes, jovens e adultos, preferindo o ensino na rea bblica. Iniciou sua pesquisa lecionando como professor substituto na Faculdade de Teologia Bennett. Efetivado, especializou-se na rea do Novo Testamento. Atualmente coordenador acadmico do curso, alm de professor.

    Ficha Catalogrfica Carneiro, Marcelo da Silva

    Jesus, a Tora e os Nebim, e o pleno cumprimento da justia em Mt 5, 17-20: uma anlise exegtico-teolgica / Marcelo da Silva Carneiro ; orientador: Isidoro Mazzarolo. 2008. 170 f. ; 30 cm Dissertao (Mestrado em Teologia)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Jesus histrico. 3. Evangelho de Mateus. 4. Sermo do Monte. 5. Lei e profetas. 6. Justia. 7. Escribas e fariseus. 8. Escatologia. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.

  • 4

    Mrian, Luiza e Gabriel, meu porto seguro e fonte de motivao.

  • 5

    Agradecimentos Ao meu orientador, Dr. Isidoro Mazzarolo, pela paciente troca de idias e estmulo, fundamentais para que esse trabalho se concretizasse. Ao CNPq e Vice-Reitoria Acadmica da PUC-Rio, pelos auxlios concedidos, imprescindveis para viabilizar a realizao dessa pesquisa. Aos professores e professoras do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que me possibilitaram uma abertura de conhecimento e estimularam a sede pelo saber. s secretrias do Departamento de Teologia da PUC-Rio, Denise e Jussara, que, com sua disponibilidade e simpatia, facilitaram o processo acadmico. Aos colegas de complementao e disciplinas de ps-graduao, pela riqueza de compartilhar suas experincias pessoais e acadmicas. Aos meus colegas da Teologia do Bennett, e da Coordenao Regional de Capacitao Missionria, pelo suporte e apoio no processo de estudos. Ao bispo Paulo Lockmann, por seus conselhos, apoio e generosidade nas trocas de idias pastorais e acadmicas. Mrian, pois sem ela eu no me tornaria a pessoa que sou hoje, por seu amor incondicional, sua cumplicidade e sua lucidez. Aos meus filhos, Luiza e Gabriel, por me fazer desejar ser uma pessoa melhor e mais capaz. Aos meus pais, que acreditam e torcem por mim. Aos amigos, amigas e parentes que, de alguma forma, nas encruzilhadas da vida, me ajudaram a chegar at aqui. Muitas delas so responsveis diretas pela concretizao desse projeto.

  • 6

    Resumo

    Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, a Tor e os Nebim, e o pleno cumprimento da justia em Mt 5,17-20: uma anlise exegtico-teolgica. Rio de Janeiro, 2008. 170p. Dissertao de Mestrado Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Jesus foi um judeu piedoso de seu tempo, observante da Lei, preocupado em

    cumprir a vontade de Deus. Perceber a relao de Jesus com a Lei nos ajuda a

    entender a situao das comunidades seguidoras dele na Palestina, em constante

    confronto com outras propostas de fidelidade Tor. Nessa dissertao propomos

    uma anlise exegtico-teolgica de Mateus 5,17-20, para compreender essa

    relao de Jesus com a Lei, como ele a cumpriu, e que exigncias fez a partir de

    sua prpria prtica. A afirmao de Jesus, de que veio para cumprir, j suscitou

    todo tipo de interpretao, e o fato de estar no centro do discurso conhecido como

    Sermo do Monte s aumenta o seu interesse. Com o auxlio do mtodo histrico-

    crtico, e ainda a criteriologia elaborada para a pesquisa do Jesus Histrico,

    possvel fazer uma aproximao do texto ao mesmo tempo cientfica e piedosa,

    legitimamente interessada nas afirmaes daquele que considerado o maior

    mestre de todos os tempos.

    Palavras-chave Jesus Histrico; Evangelho de Mateus; Sermo do Monte; Lei e Profetas;

    Justia; Escribas e Fariseus; Escatologia.

  • 7

    Abstract

    Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, the Torah and the Nebim, and the fulfillment of righteousness in Mt 5,17-20: an exegetical-theological analysis. Rio de Janeiro. 2008. 170p. MSc. Dissertation Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Jesus was a piety Jew in his time, a Law observer, worried about fulfilling

    the Gods will. Realizing the relationship between Jesus and the Law help us how

    to understand the situation of his followers communities on Palestine, in constant

    confrontation with other proposals of faithfulness to the Torah. This dissertation

    proposes an exegetical-theological analysis on Matthew 5,17-20 to understand this

    relationship between Jesus and the Law, the way he fulfilled it, and which

    demands he made from his own practice. The Jesus saying, that he came to

    fulfill, have already caused every kind of interpretation an the fact of being in the

    speechs center known as Sermon on the Mount just increases the interest for it.

    With the historical-critical method and still the criteria elaborated to the Historical

    Jesus research, it is possible to do an approach of the text at same time scientific

    and piety, legitimately interested on the statements of whom is considered the

    greatest leader of all times.

    Keywords Historical Jesus; Matthews Gospel; Sermon on the Mount; Law and

    Prophets; Righteousness; Scribes e Pharisees; Eschatology.

  • 8

    Sumrio

    1. Introduo 10

    2. O tema geral da pesquisa 14

    2.1. A compreenso sobre Lei e Profecia no Judasmo 14

    2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto 29

    2.3. Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus 43

    3. Anlise de Mt 5,17-20 50

    3.1. Crtica textual e traduo 50

    3.2. Anlise Literria 53

    3.3. Anlise Redacional 63

    3.4. Status quaestiones do texto de Mt 5,17-20 69

    3.5. Anlise da Historicidade 78

    4. Aspectos exegtico-teolgicos de Mt 5,17-20 88

    4.1. Introduo 88

    4.2. A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a) 88

    4.3. Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/sai (v.17b) 102

    4.4. At que passem o cu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h`

    gh/ (v.18) 120

    4.5. O menor e o maior no reino dos Cus: evla,cistoj kai, me,gaj evn

    th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n (v.19) 135

    4.6. A justia como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20) 141

    5. Concluso 153

    6. Referncias Bibliogrficas 160

  • 9

    Nas instrues concretas de Jesus transparece aquilo que mais propriamente cristo, mostra-se que o Jesus histrico tem perfeitamente algo a ver com o cristianismo, ou mesmo que o cristianismo posto prova. Em sua rigorosidade, essas instrues so o espinho na carne do indivduo que leva a srio seu ser-cristo, mas tambm da Igreja.

    Joachim Gnilka, Jesus de Nazar.

  • 10

    1. Introduo

    A presente dissertao trata da relao de Jesus com a Lei (Tor) e os

    Profetas (Nebim), a partir de uma anlise exegtico-teolgica de Mt 5,17-20.

    Considerando as pesquisas mais recentes a respeito do Jesus histrico, nota-se que

    alguns aspectos do ministrio terreno de Jesus so mais verificveis em termos

    histricos do que outros. O papel de Jesus como mestre se enquadra numa anlise

    tanto histrica quanto teolgica. Historicamente, possvel perceber aspectos de

    Jesus como mestre que confluem com o cenrio judaico do sculo primeiro da era

    crist. Teologicamente, o ensino de Jesus tem muito a ver com o princpio de seu

    ministrio como aquele que veio anunciar o reino de Deus.

    verdade que no podemos fragmentar o ministrio de Jesus, com o risco

    de esvazi-lo e perdermos a viso ampla do seu alcance. Entretanto, em nossa

    pesquisa desejamos verificar esse corte para perceber melhor qual seria a relao

    de Jesus com os elementos constitutivos da f judaica. A pergunta subjacente : o

    quanto Jesus estava vinculado cultura e f do povo judeu? Teria ele desejado

    realmente romper com ela, ou queria de fato fazer uma reviso da prtica dessa

    f? De forma mais concreta nosso trabalho vai abordar o tema a partir da relao

    de Jesus com a Lei (Tor) e os Profetas (Nebim), procurando responder algumas

    questes bsicas:

    - Que atitudes Jesus teve em relao Lei e aos Profetas: ele alterou de

    forma significativa seus fundamentos, apesar de ter afirmado que veio para

    cumprir, e no para anular? Ou cumpriu com zelo conforme se esperava de um

    judeu piedoso?

    - O que Jesus ensinou aos seus seguidores em relao Lei, e como a

    comunidade de Mateus recebeu essa tradio? Que objetivo esse dito teve na

    realidade vivencial (Sitz im Leben) da comunidade mateana?

  • 11

    Para realizar a pesquisa, destacamos a percope de Mt 5,17-20 por entender

    que ela est estreitamente relacionada com o tema do cumprimento da Lei. Alm

    disso, est inserida por Mateus num bloco literrio (cap. 5-7) cujo tema principal

    a vida prtica da comunidade de discpulos, e como eles iriam praticar a justia

    superior. Esse conceito de justia superior, citada diversas vezes nesse bloco

    (5,6.10.20; 6,33) central para entender a forma como Jesus cumpriu a Lei,

    mesmo reinterpretando alguns aspectos, evidenciado pelas antteses de 5,21-48.

    A escolha do evangelho de Mateus para a pesquisa se d por alguns

    motivos: Mateus considerado o evangelho mais prximo da cultura judaica1,

    sendo que a percope escolhida faz parte do extrato prprio do autor, denominado

    proto-Mateus ou fonte M. Em segundo lugar, o evangelho de Mateus foi

    organizado de um modo em que sua comparao com a Tor mosaica inevitvel:

    tem cinco blocos de discursos, alternados por narrativas de milagres e disputas

    com os religiosos de seu tempo. Por ltimo, o evangelho de Mateus considerado

    o evangelho da Igreja, ao mesmo tempo em que demonstra essa proximidade

    com a cultura judaica palestinense. Isso indica tanto uma aproximao apologtica

    Jesus como Messias quanto dialogal Jesus judeu - em relao ao judasmo

    contemporneo ao Evangelho.

    Na pesquisa desejamos demonstrar como o evangelho de Mateus trabalhou a

    tradio a respeito de Jesus. Algumas hipteses do que se deseja alcanar podem

    ser apontadas:

    - A possibilidade de esse dito ter origem no prprio Jesus, mesmo que a

    comunidade o tenha retrabalhado. Para tanto, na anlise sinptica e histrica

    iremos verificar at que ponto essa fala pode ter sido desprezada pelas demais

    comunidades por aproximar Jesus demais do judasmo (mesmo que na prtica ele

    tenha demonstrado isso).

    - Sendo a percope exclusiva de Mt (ao menos os versos 17 e 20), apontar a

    possibilidade de que o texto tenha suas origens em categorias de pensamento

    judaico, at mesmo em aramaico. Ainda que haja um trabalho redacional nessa

    percope, conforme muitos autores constatam, procuraremos identificar o quanto

    Mateus trabalhou com as tradies da forma como os rabinos faziam, sendo seu

    evangelho um tipo de midrash messinico.

    1 Cf. W.G.KMMEL, Introduo ao Novo Testamento, pp.136ss.

  • 12

    - Verificar como Mateus entendeu a mensagem de Jesus a respeito do reino

    dos Cus, e da vontade de Deus para as pessoas, considerando o tipo de Mestre

    que Jesus foi. Seria esse ensino uma advertncia para uma prtica dirigida por

    uma tica superior, a compreenso de que a vida de Jesus realizava em si as

    profecias e cumpria toda a Lei, ou ainda uma dimenso escatolgica que

    fundamentasse o agir cotidiano?

    A abordagem metodolgica que adotaremos para a pesquisa ir utilizar em

    grande parte o mtodo histrico-crtico, alm da metodologia da pesquisa do Jesus

    Histrico, para verificar a autenticidade do dito, e a anlise semntica para uma

    compreenso maior do texto luz de seu contexto no evangelho de Mateus.

    No primeiro captulo vamos fazer um levantamento das informaes sobre o

    tema em geral, iniciando pela compreenso a respeito da Lei e dos Profetas desde

    o Antigo Israel at o Ps-Exlio. Buscam-se a aspectos histricos que tenham

    influenciado o conceito sobre a Lei e os Profetas no imaginrio religioso popular

    da poca, sem, no entanto, nos atermos ao processo de formao do texto escrito

    em si, posto que no essa a proposta da presente pesquisa. Depois vamos

    analisar alguns aspectos gerais do evangelho de Mateus, e o lugar contextual da

    percope de Mt 5,17-20 dentro do livro. Esse passo importante para situar-nos

    no universo literrio, mas tambm histrico da comunidade de Mateus, que se

    reporta ao ambiente judaico do primeiro sculo.

    No segundo captulo, passaremos ao estudo efetivo da percope de Mt 5,17-

    20, analisando o texto grego crtico. Para tanto, ser necessria fazer a crtica

    textual, que possibilitar uma proposta de traduo. Em seguida, ser o momento

    da anlise literria e redacional, atravs da qual faremos o levantamento das

    fontes, a comparao sinptica com Lc 16,17, o nico texto com o qual Mt tem

    relao direta. Essa anlise importante para perceber que Mateus agiu como

    redator consciente, utilizando suas fontes de maneira precisa, de acordo com seus

    objetivos.

    Ao analisar a percope em termos literrios levanta-se a questo da

    autenticidade, importante para o estudo teolgico do texto. Por isso, passaremos

    ao estado da questo da percope, mais precisamente com respeito autenticidade

    do dito. H duas posies bem claras: muitos autores aceitam o dito como

    autntico, segundo critrios mais ou menos precisos. Por outro lado, um grupo de

    autores afirma o dito como uma construo da comunidade de Mateus, em funo

  • 13

    do contexto histrico concreto vivido por ela. Para sermos mais precisos na

    concluso a respeito da autenticidade, ser utilizada a metodologia elaborada pela

    third quest, a qual nos auxiliar na anlise da historicidade.

    No terceiro captulo se proceder a uma anlise mais aprofundada, a partir

    de cada versculo, em si e em conjunto com os demais. Instrumentos importantes

    para essa anlise sero os aspectos semnticos dos principais termos do dito, alm

    do estudo exegtico, para perceber como Mt trata cada tema ou termo em sua

    obra, e qual o sentido teolgico desses elementos dentro do conjunto da percope.

    Nosso objetivo aqui ser pensar na idia corrente acerca da Lei e como Jesus se

    relacionou com ela, em contraposio a outros grupos contemporneos,

    notadamente os escribas e fariseus. Alm disso, percebe-se a necessidade de

    investigar o nvel de escatologia presente na percope, e como ela se relaciona

    com o todo do ensino de Jesus.

    Para que a pesquisa possa ser levada a efeito, ser utilizado o texto crtico

    em grego, de acordo com a organizao de Nestl-Aland, 27 ed., com traduo

    apoiada em dicionrios, livros tcnicos, alm de autores que estejam mais

    diretamente ligados ao estudo do evangelho de Mateus, de preferncia no bloco

    literrio denominado sermo do monte. Alguns autores se destacam na pesquisa

    sobre o Jesus Histrico e particularmente na relao dele com a Lei, por isso no

    se pode afirmar um autor como referencial terico isoladamente. Mas h uma

    tendncia na pesquisa de se trabalhar com o princpio da contraposio. Em geral,

    para isso, comearemos com opinies clssicas, oriundas da metade do sculo

    vinte, como as de R. Bultmann, J. Jeremias, L. Goppelt. G. Barth, G. Bornkamm,

    G. Kmmel, W. Trilling, dentre outros. Como contraponto, trabalharemos com

    autores com pesquisas mais recentes, muitos ligados third quest, mas com

    nomes bastante respeitados no meio acadmico com relao ao tema, como D.

    Flusser, G. Vermes, J. P. Meier. J. D. Crossan, G. Theissen, F. Vouga, D.

    Marguerat, e outros.

    Nossa pesquisa considera especialmente o ambiente histrico social no qual

    o respeito Lei e aos Profetas se enquadrava no mundo palestino do primeiro

    sculo. Procuraremos verificar se a literatura judaica do primeiro sculo trazia

    algo semelhante ou diametralmente oposto ao que Jesus afirmou. Se vamos

    chegar ao Jesus Histrico ou no, a prpria pesquisa tem deixado em aberto essa

    questo.

  • 14

    2 O tema geral da pesquisa 2.1. A compreenso sobre Lei e Profecia no Judasmo

    A afirmao de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas em Mateus est de

    acordo com uma compreenso geral que o judasmo do primeiro sculo tinha a

    respeito do assunto. O texto de Mt 5,17-20 trata da questo de forma mais

    pontual, e mesmo que essa passagem seja mais da comunidade de Mateus, que do

    prprio Jesus, no tira do texto seu carter contemporneo ao judasmo do

    primeiro sculo, no que tange compreenso da Lei e dos Profetas.

    Para entender, ento, como Jesus se posicionou, ou de que maneira a

    comunidade de Mateus respondeu questo da Lei diante de um judasmo em

    crise e reconstruo, preciso analisar como a Lei e a Profecia eram

    compreendidas dentro do imaginrio religioso comum do judasmo do sculo

    primeiro. Faremos a seguir uma exposio panormica a respeito dessa

    compreenso sobre a Lei e a Profecia desde o Antigo Israel at o perodo da

    dominao romana.

    2.1.1. A Compreenso sobre a Lei

    A compreenso de Israel sobre a Lei vital para existncia dele como povo.

    Parte de um conceito geral, que a coloca como a realizao da vontade de Deus.

    Se Deus um s, e Israel expresso dessa grandeza, ento toda a coletividade, e

    no apenas o indivduo, chamada a viver segundo a vontade Deus. Essa deciso

    atinge tanto a vida privada quanto a pblica, e no se restringe ao culto.2

    O vocabulrio relativo Lei bastante extenso, como demonstra o Salmo

    119, e mesmo as tradues apontam para essa pluralidade, em termos como: leis,

    ordenanas, mandamentos, estatutos, palavras, sentenas, preceitos, caminhos,

    etc. Nossa pesquisa no nos permite tratar de todos os termos, mas dois deles se

    2 Cf. OTTO, E., Lei, In: BAUER, Dicionrio Bblico-Teolgico, p.229.

  • 15

    destacam: (1) jP;v.mi do verbo jpv, julgar, decidir que tem o sentido

    estrito de sentena arbitral, arbtrio, deciso legal, e que no plural pode significar

    julgamento, juzes, direito e at justia, principalmente no direito

    consuetudinrio.3 (2) hr;)wOT do verbo hry, cujo sentido mais usual instruir,

    ensinar.4 No entanto, o sentido da Lei que nos interessa. O termo se aplica

    instruo recebida de autoridade superior, servindo de regra de conduta em

    determinado caso particular.5 Tambm pode indicar toda espcie de

    determinaes, no necessariamente jurdicas, dadas por Jav pela boca de

    sacerdotes ou profetas.6 Depois passou a identificar o grupo de Lei relacionadas a

    Moiss (cf. Js 1,7; Ed 3,2; Ml 3,22), quando os rolos da Lei foram designados

    como Tor.7 Crsemann define o conceito em linhas gerais: A palavra torah designa, em linguagem coloquial da poca do Antigo

    Testamento, o ensinamento da me (Pr 1,8; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,12) para introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das ciladas da morte. Nisso, como em todos os demais usos, a palavra abrange informao e orientao, instruo e estabelecimento de normas, e, com isso, tambm promessa e desafio. Expressa igualmente o mandamento e a histria da instruo, da qual emerge. A partir da, o conceito Tor torna-se um termo tcnico para a instruo dos sacerdotes aos leigos (Jr 18,18; Ez 7,26), mas designa tambm as palavras dos mestres da sabedoria (Pr 7,2; 13,14) ou do profeta (Is 8,16.20; 30,9) para os discpulos. No Deuteronmio, por fim, Tor transforma-se no conceito mais importante da vontade de Deus universal e literariamente fixada (p.ex. Dt 4,44s; 30,10; 31,9). Aqui Tor abrange tanto narraes (esp. Dt 1,5) quanto leis (cf. esp. Sl 78, 1.5.10). Mais tarde, esse conceito deuteronmico designa a lei de Esdras (p.ex. Ne 8,1), todo o Pentateuco, mas tambm a palavra proftico-escatolgica de Deus para os povos (Is 2,3 par. Mq 4,2; Is 42,4).8

    Os diferentes aspectos apontados no conceito de Tor apontam para uma

    idia que vai desde o estabelecimento de Israel como nao, passando pela grande

    mudana de mentalidade ocorrida no perodo do Exlio e a posterior elaborao do

    judasmo tardio, que ficou conhecida como judasmo rabnico.

    Nos tpicos a seguir vamos analisar de forma panormica essas fases. 3 Cf. V.V.A.A., Dicionrio Hebraico-Portugus & Aramaico-Portugus, p.146; 259. 4 Idem, p.265; 94. Segundo o dicionrio, no QAL o verbo hry tem o sentido de lanar, atirar; no Hifil dar de beber ou instruir. O sentido depender do contexto, mas esse ltimo que nos interessa estudar. Cf. VAUX, R. de, Instituies de Israel no Antigo Testamento, p.392 et.seq. Ele acrescenta que a funo sacerdotal de dar orientao, como num orculo, pode derivar do assrio tertu, que significa orculo. 5 MICHAELI, F., Lei, Vocabulrio Bblico von Allmen, p.223 et.seq. 6 FRAINE, J. de, Lei de Moiss, Dicionrio Enciclopdico da Bblia, p.878. 7 WIGODER, G., Dicttionnaire Encyclopdique du Judisme, p.1124. 8 CRSEMANN, F., A Tor, p.12. F. SCHMIDT distingui trs grandes aspectos para a Tor: a Lei como revelao, cujo depsito a tradio confia grande Assemblia; a Torah como cdigo legislativo; a lei escrita ou oral cujos intrpretes e guardies (sic) so os sacerdotes e escribas. O Pensamento do Templo de Jerusalm a Qumran, p.24.

  • 16

    2.1.1.1.

    A Lei no Antigo Israel

    a. Nas origens (sc. XXI-VIII a.C.)

    O perodo mais antigo da histria de Israel traz dificuldades com relao ao

    entendimento sobre a Lei, considerando a conexo dessa histria com o direito

    dos povos vizinhos nao israelita. Enquanto Israel ainda no existia como

    nao, povos vizinhos j tinham colees de leis, como o cdigo Ur-Nammon e

    Lipit-Ishtar (do fim do terceiro milnio a.C.), o cdigo de Hammurabi e o de

    Eshnuna, (da primeira metade do segundo milnio).9

    Por outro lado, a prpria consistncia de Israel como nao at o sculo X

    muito discutida pelos pesquisadores do Antigo Testamento.10 Nesse sentido, deve-

    se pensar que no Antigo Israel a Lei (Tor) devia ser concebida mais nos aspectos

    de uma orientao familiar, e de leis consuetudinrias, voltadas para o bem-estar

    do cl e da tribo, do que numa esfera nacional centralizada em determinado lugar

    (como se tornou Jerusalm posteriormente).11

    Alm disso, deve-se considerar a importncia da Tradio Oral no processo

    de estabelecimento da Lei em Israel. A mesma tradio oral que passou as antigas

    histrias dos patriarcas, bem como as narrativas da histria das origens (Gn 1-11),

    foi responsvel pelo processo de transmisso de normas e leis de convivncia, que

    acabaram por alcanar o status de Tor. A tradio rabnica posterior aponta para

    isso, como se pode ver no tratado Pirqe Abot (tica dos Pais), da quarta ordem

    da Mishn:

    Mosh recebeu a Tor no Sinai, e a entregou para Yehoshua, e Yehoshua para os ancies, e os ancies para os profetas, e os profetas a entregaram para os homens da grande assemblia. Eles disseram trs palavras: sede

    9 Cf. OTTO, E., Lei, In: BAUER, Dicionrio Bblico-Teolgico, p.229. 10 O conceito de Confederao de Tribos vem sendo questionada desde a metade do sculo XX Pela maioria dos exegetas. Alguns, porm, mantiveram a concordncia sobre o assunto, como Gunneweg, von Rad, Albright, e outros. O grande problema a falta de evidncias arqueolgicas do perodo que confirmem a informao de que Israel tenha uma identidade nacional j no sculo XI a.C., antes da ascenso da dinastia davdica e da separao de Israel e Jud. 11 VAUX, R. de, Instituies de Israel no Antigo Testamento, p.23 passim. Para ele o vnculo entre as pessoas, antes de ser jurdico ou poltico, era, acima de tudo, de sangue, por se considerarem todos irmos a partir de uma linhagem comum. a vinculao prpria das tribos nmades. P.23 Sobre Jerusalm como centro de culto nacional, p.347 et.seq.

  • 17

    ponderados no julgamento, levanteis muitos dscipulos e faais uma cerca em torno da Tor.12

    b. A Lei nos reinos de Israel e Jud (sc. VIII a.C.)

    A partir do sculo VIII a.C. Israel e Jud, e posteriormente somente este,

    iniciaro um grande processo de juntar colees de leis, normas e narrativas, as

    quais faro parte da Lei como unidade literria posterior. Reconstituir essa

    histria, porm, elemento de uma pesquisa a qual no teremos espao para tratar

    aqui.13

    A Lei no Israel Antigo era, antes de tudo, a instruo dos pais aos filhos, a

    partir de normas ticas e cultuais bsicas, que na convivncia entre as tribos

    mostrou-se ser capaz de integrar os grupos que agiam com as mesmas normas. As

    colees de leis civis, rituais, e de ordem cltica s se deram a partir do sculo VII

    a.C., por conta da organizao de uma estrutura palaciana, tanto no norte quanto

    no sul, este ltimo at o sculo VI, quando Jerusalm foi tomada e sua elite levada

    cativa para o exlio babilnico.14

    2.1.1.2.

    A Lei no Exlio e Ps-Exlio

    a. A Lei no perodo exlico (586-538 a.C.)

    O Exlio representou uma grande mudana na mentalidade israelita. Dentre

    os muitos conceitos que foram revistos est o da Lei, que comea a representar

    um conjunto literrio mais fechado. Segundo Zenger, a formao da Tor

    acontece no processo da reconstruo da identidade judaica depois de desfeita sua

    condio de estado autnomo.15

    J no exlio, o grupo deuteronomista l a histria passada como programa

    para um novo Israel, juntando diferentes tradies tambm com o grupo

    sacerdotal para pensar num grande projeto de nao.16

    12 cf. MURRAY, M. Et.all. (Trad.) Mishn, essncia do judasmo talmdico, p.9; COOLIN, M; LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.14. 13 O prprio Crsemann, em sua obra de larga anlise, entende que a pergunta pelo que significa entender a Tor de forma histrica logo nos leva ao problema bsico da exegese atual e sobretudo da pesquisa do Pentateuco: a pergunta pelas fontes e pelo texto na sua forma final, a pergunta pela anlise sincrnica e diacrnica. A Tor, p.18. 14 Cf. CRSEMANN, F., A Tor, p. 22ss.; ZENGER, E., Introduo ao Antigo Testamento, p.91ss. 15 ZENGER, E., op.cit., p.52. 16 Cf. OTTO, E., Lei, In: op.cit., p.230.

  • 18

    b. A Lei no perodo persa (538-333 a.C.)

    Com o fim do exlio, o grupo de judeus que retornou para a terra de Israel

    estabeleceu uma reorganizao religiosa, cuja principal marca a centralizao da

    religio judaica em Jerusalm, em que todas as prescries da lei, cultuais ou

    no, eram determinadas pelos sacerdotes.17 Como a administrao era dirigida

    pelos persas, eram eles quem supervisionavam as reformas na legislao e no

    culto. Esdras e Neemias tiveram sua atividade delimitada nesse contexto (cf. Ed

    1,1ss; 7,8-26; Ne 2,1ss).

    Paralelamente, o perodo ps-exlico testemunha o crescimento de uma

    Teologia da Sabedoria, que em uma de suas correntes, considera a Tor de Israel

    como a maior e verdadeira ddiva divina da sabedoria.18 Dt 4,4-6 prepara uma

    identificao entre a Tor e a Sabedoria, tema que ser melhor trabalhado pelo

    Sircida (Sr 24).19

    c. A Lei no perodo helenstico (333 a 63 a.C.)

    O perodo helenstico no trouxe mudana no cenrio poltico-religioso,

    conforme informa Koester:

    Durante a dominao de Jerusalm pelos Ptolomeus no sculo III e pelos Selucidas no incio do sculo II a.C., o sumo sacerdote em exerccio estava sujeito autoridade do rei e tinha de cumprir suas ordens. No mbito da jurisdio do Estado-templo, porm, no havia autoridade poltica superior do templo e de sua hierarquia sacerdotal.20

    As tradies sobre a arca da aliana, a conquista da cidade de Jerusalm por

    Davi, e Salomo, seu filho como construtor da casa de Deus so teolgica e

    ideologicamente justificadas para sustentar a posio do templo como centro

    gravitacional da f israelita, pelo menos de acordo com a proposta cronista.21 Fica

    exposto, por outro lado, que a Tor foi entregue por Moiss, e com ela agora

    apresentada por Esdras talvez j o Pentateuco recm encerrado torna-se o

    centro da vida do povo, como ideal dos judeus piedosos.22

    A partir da se d um duplo fenmeno: por um lado, a Lei se torna mais

    concreta, tendo a vontade de YHWH explicitada para o povo, orientada pelos 17 KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento 1, p.230. Tambm cf. GRELOT, A esperana judaica no tempo de Jesus, p.32ss. 18 ZENGER, op.cit., p.287. 19 OTTO, E., Lei, in: op.cit., p.230; ZENGER, E., op.cit., p.287; LNDEZ, Sabedoria e sbios em Israel, p.54. 20 KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento 1, p.230. 21 Cf. ZENGER, E., Introduo ao Antigo Testamento, p.221. 22 Cf. o relato de Esd 7,12-26, que trs o contedo de uma carta enviada por Artaxerxes a Esdras, promulgando a lei de Deus como lei oficial dos judeus. Ibid., p.54.

  • 19

    sacerdotes23; por outro, a dinmica da Tor oral permanece, como base para

    interpretao da Tor escrita. Lenhardt atribui Tor oral um alcance que engloba

    a Tor escrita. Para ele, os problemas postos pela Escritura, a Torah escrita, so secundrios em relao aos apresentados pela Tradio, a Torah oral. Esta, efetivamente, marcada pelas divises que desfiguraram o judasmo antes da destruio do Templo, foi enfraquecida, mutilada pelos massacres da guerra, pela morte de muitos mestres e discpulos, transmissores da Torah Oral.24

    d. A Lei a partir da dominao romana (63 a.C.)

    Apesar da considervel mudana que representou a dominao romana na

    Palestina, desde 63 a.C., a religio judaica manteve sua independncia, no tocante

    aos costumes e obrigaes provenientes da Lei. A exceo ficou por conta das leis

    que previam pena de morte, pois esses casos s podiam ser decididos pelo prprio

    prefeito romano (o administrador da Judia, desde a deposio de Arquelau em 6

    d.C.). Alm disso, foram institudas onze toparquias, governadas cada uma por um

    sindrio, sendo o mais importante o de Jerusalm. Todos tinham uma jurisdio

    sobre causas relativas lei judaica, mas com os limites impostos pelos romanos.

    Era o sindrio que, em ltima anlise, tinha o papel de julgar questes que

    envolvessem supostos casos de violao da Lei.25

    Para o povo simples, no entanto, a Lei no estava circunscrita a um tribunal.

    Um judeu do primeiro sculo considerava que a Lei representava o ideal de vida a

    ser seguido: junto com o templo formava os dois centros do judasmo na poca

    do segundo templo.26

    A forma como a Lei era estudada fora do contexto do templo se dava,

    primordialmente, por meio das sinagogas. A origem das sinagogas est vinculada

    dispora judaica exlica e ps-exlica. Eram instituies de agregao dos

    judeus, para a realizao de tarefas pblicas, mas tambm para tarefas religiosas.27

    Identificadas como associaes no estilo grego, segundo Koester, como no caso de outros grupos tnicos ou religiosos emigrados, estas eram associaes de estrangeiros residentes, que haviam recebido certos privilgios

    23 De acordo com SCHMIDT, F., entre o puro e o impuro, o sagrado e o profano, a funo dos sacerdotes distinguir, bdal. O pensamento do templo de Jerusalm a Qumran, p.77. 24 COLLIN, M; LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.13. O termo tradio traduo de para,dosij aparece sete vezes nos sinticos (Mateus e Marcos) e trs nos demais escritos (Colossenses, 2 Tessalonicenses e 1 Pedro) do Novo Testamento. 25 KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento I, p.396; NELIS, J., Sindrio, Dicionrio Enciclopdico Bblico, p.1443 et.seq. 26 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus histrico, p.386. 27 Cf. HTTENMEISTER, Synagoge, in KOCH, Begegnungen zwischen Christentum und Judentum in Antike und Mitteralter, p.164.

  • 20

    pertinentes incorporao e prtica do seu ofcio ou profisso, ou associaes de culto, como as organizadas por seguidores de outros cultos nacionais.28 e. A Lei no cotidiano da Palestina

    Na Palestina, as sinagogas j existiam antes de 70 d.C., porm, em pequeno

    nmero. De acordo com Charlesworth, hoje h provas de pelo menos trs

    sinagogas anteriores a 70 na Judia e na Galilia, a saber, Massada, o Herodium e

    Gamla (na Galilia, a leste do lago de Genesar).29 As duas primeiras eram

    sales de reunio usados para muitos fins, inclusive a orao comum e a leitura da

    Escritura.30

    A sinagoga de Gamla demonstra que a Galilia compartilhava dos mesmos

    ideais com relao Lei. De acordo com Roloff, de fato em torno da virada do

    sculo II para o I foi promovida a rejudaizao sistemtica mediante a imigrao

    de judeus fiis Lei. O objetivo era recuperar o territrio original da terra de

    Israel para o povo de Israel.31

    Por outro lado, a famlia israelita em toda a Palestina - d destaque Lei

    no seu dia-a-dia, pois o cotidiano estava determinado de muitas maneiras pela

    Tor e seus regulamentos. Por conta de todos os aspectos da Lei que ditavam a

    vida particular (questes relativas a casamento, alimentao, festas, separao do

    sbado, etc.), desde muito o judasmo desenvolveu essa prtica piedosa, que os

    Salmos atestam (especialmente 1,19,119).32

    Mesmo com a pouca evidncia arqueolgica, alm do fato de ser o Templo

    o centro gravitacional da f judaica at 70 d.C., pode-se perceber uma dinmica de

    descentralizao da transmisso da Tor.33 Jesus, porm, viveu toda a intensidade

    da Lei de acordo com os princpios judaicos palestinenses, em especial dos

    habitantes da Galilia.

    2.1.2. A Compreenso sobre a Profecia

    28 KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento 1, p.227. 29 CHARLESWORTH, J.H., Jesus dentro do Judasmo, p.118. 30 SALDARINI, A., Fariseus, Escribas e Saduceus, p.67. 31 ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.19. 32 STEGEMANN, E., G.,Histria social do protocristianismo, p.169s. 33 Essa descentralizao foi ampliada aps a destruio do templo e de Jerusalm pelo general Tito, em 70 d.C. Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o Judasmo Formativo, p.47 et.seq.

  • 21

    Ao falarmos da profecia, nos referimos aos profetas, feita por Jesus em Mt

    5,17. O termo tem sua origem no hebraico ~yaybn, ou o singular aybn, traduzido

    pela LXX como profh,thj.34 Para o israelita, esse termo vincula um carisma e uma

    importante parte da produo literria que testemunhou esse carisma,

    especialmente no perodo da monarquia at o exlio.

    De um modo geral, a compreenso israelita a respeito da profecia est

    vinculada forma como a Bblia Hebraica foi organizada: aps o

    Pentateuco/Tor, encontramos a grande seo dos profetas anteriores e

    posteriores que continuam a pregao do profeta ideal, incomparvel, que foi

    Moiss.35 Isso demonstra a importncia e o papel da profecia no imaginrio de

    Israel.

    Considerando que os profetas anteriores so os livros que narram a histria

    desde a conquista da terra (Js) at o exlio (2 Rs), e os profetas posteriores

    envolvem os escritos dos profetas desde o sculo VIII a V a.C., temos uma

    continuidade histrica desde a entrega da Lei a Israel at o ps-exlio, quando a

    nao assumiu uma prtica de f consistente, especialmente no aspecto do

    monotesmo. Assim, a profecia um elemento presente em toda a histria de

    Israel, que vai ter importantes ressonncias no perodo do judasmo

    contemporneo a Jesus.36

    Por outro lado, o termo os Profetas passou a designar o segundo bloco

    considerado cannico ou sagrado pelos judeus j no incio do sculo

    primeiro.37 A afirmao de Jesus em diversos momentos, em que afirma to.n

    no,mon h' tou.j profh,taj (a Lei e os Profetas) est situada nesse contexto, de um

    grupo literrio que fazia parte da dinmica da religio judaica. Mas, em que

    sentido esse grupo literrio era importante? E por que Jesus se reporta a ele?

    Vamos analisar de forma panormica as principais fases concernentes

    compreenso a respeito da profecia, pensando no seu entrelaamento com a Lei.

    2.1.2.1.

    A Profecia no Antigo Israel

    34 BROWN, Profeta, in: Dicionrio Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879ss. 35 FISCHER, Profeta (AT). In: BAUER, op. cit., p.345. 36 MARTIN-ACHARD, Profecia, Vocabulrio Bblico, p.338 et.seq. 37 Cf. BILLERBECK I, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240.

  • 22

    a. A profecia nas origens (sc. XI a VIII a.C.)

    O surgimento da profecia na vida do povo de Israel no fenmeno nico,

    como atestam vrios estudos realizados a respeito da questo junto aos povos

    vizinhos.38 De acordo com a notcia de Osias 12,14, havia no reino do norte,

    desde muito tempo, tradies que associavam a origem do profetismo a Moiss.39

    Mas ela de fato aconteceu em Israel apenas a partir do sculo IX, especialmente

    com as figuras de Elias e Eliseu.40

    Nesse primeiro momento, a profecia se caracteriza e confunde com

    elementos extticos, presentes em alguns grupos e situaes (cf. 1 Sm 10,5ss).

    Para esses grupos antigos utilizava-se o termo ~yaiybin> - do singular aybin: - que

    usualmente considerada uma palavra derivada do verbo acdico nab,

    chamar, proclamar.41 O termo utilizado tem um sentido passivo, situando o

    profeta como algum que chamado. Isso se confirma pelas narrativas de vocao

    de alguns dos profetas que tem registro literrio (ex. Jr 1,1-10; Os 1,1-11; Is 6,1-

    13, etc.), bem como pela frmula hy'h' rv

  • 23

    Nessa concepo Wilson delimita o movimento proftico em pelo menos

    duas grandes tradies: a tradio efraimita do norte, mais coesa e registrada

    literariamente, e as tradies de Jud, no sul. Estas tendem a ser menos

    delimitadas, registradas e mais fragmentadas, da inclusive a denominao de

    tradies, ao invs de tradio.

    Do ponto de vista da motivao ideolgica dos profetas, pode-se afirmar

    que, mesmo no sendo uniformes em sua abordagem, os profetas tinham como

    foco o pecado da incredulidade de Israel, ou seja, a no-confiana em Jav na

    situao concreta e, ao invs, confiar em si prprio.43 De modo especfico, os

    profetas atacam as diferentes manifestaes dessa incredulidade, que so o

    orgulho, a idolatria, as estruturas monrquicas, assim como as sacerdotais.

    c. Tipologia da profecia no Israel Antigo (sc. VIII a.C.)

    Zenger descreve sumariamente uma tipologia no tocante condio social

    do multifacetado profetismo do Israel Antigo: (a) Os profetas de congregaes ou

    irmandades denominados ~yaiybiN>h; ynEB. [filhos de profetas/discpulos de

    profetas] (1Rs 20,35; 2Rs 2,3.5.7.15) formam comunidades de profetas, que

    costumavam atender s demandas populares por orientao; (b) Os profetas do

    templo, cujas atividades incluem interceder e anunciar em nome de Deus no

    contexto do culto. Em Jerusalm so subordinados aos sacerdotes. A narrativa do

    chamado de Samuel, em 1Sm 3, transparece um pouco o processo para o

    surgimento de um profeta ligado ao templo; (c) Os profetas da corte, que servem

    ao rei e ao seu propsito, e anunciam a palavra de Deus no tocante s situaes de

    guerras e catstrofes, bem como participam das celebraes de entronizao,

    npcias do prncipe herdeiro, e outras. Desses profetas era esperado o ~wOlv;44,

    conforme o texto paradigmtico de 1Rs 22; (d) Os profetas independentes, que

    formam o grupo menor numericamente, e menos respeitado no perodo em que

    atuaram. No entanto exerceram um ministrio de oposio, e por isso mesmo

    tornaram-se historicamente os mais importantes. A maioria dos profetas

    escritores faz parte desse grupo.45

    43 GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.249. 44 Paz, no num sentido meramente metafsico ou existencial, mas com implicaes sociais, polticas e que atinjam a coletividade. 45 ZENGER, E., Introduo ao Antigo Testamento, pp.370ss. O autor considera ainda que nenhum livro de profeta da autoria do profeta, cujo nome lhe foi dado. p.372, e afirma que os livros relacionados a esses profetas surgiram, de fato, das mos de crculos de alunos e discpulos

  • 24

    Essa atividade proftica se tornou fortalecida e respeitada a partir do exlio,

    quando os orculos sobre a destruio de Jud se confirmaram. Como lembra

    Gunneweg, nessa poca da runa chegam ao pice a proclamao de Jeremias e o

    profetismo de Israel em geral.46

    2.1.2.2.

    A Profecia no Exlio e Ps-Exlio

    a. A nova compreenso sobre Profecia (sc. VI a.C.)

    O exlio representou uma mudana na forma de ser e de se compreender a

    profecia em Israel, da mesma forma como se deu com a Lei. Para aqueles que

    foram deportados para a Babilnia em 597 a.C., o passar do tempo no cativeiro

    formou no corao dos judeus um dio que se aninhou (cf. Jr 51,34-35), e junto

    com o dio, os desejos de vingana, a saudade da terra prometida, as nsias de

    libertao.47

    Com esses sentimentos, o povo teve sua f e esperana abaladas. Mas

    nesse momento que a palavra proftica se levanta para consolar o povo (cf. Is

    40ss), a ponto de dar um salto teolgico em torno da figura do Servo sofredor.48 A

    partir da a profecia ganhou um cunho cada vez mais escatolgico e universal, em

    face do novo cenrio que os profetas esto vivendo.49

    Segundo von Rad, uma marca da profecia desse perodo que so

    individualidades religiosas e literrias.50 H um direcionamento maior para a

    pessoa, e sua deciso pessoal diante de Deus. A novidade nesses profetas, do

    ponto de vista formal, o alargamento da base da sua pregao, em comparao

    com os profetas mais antigos.51

    b. O surgimento do apocaliptismo (sc. IV a.C.) deles que coletaram e elaboraram essas obras. Mas no se pode pensar nisso sem grandes reservas. Ver tambm IMSCHOOT, Profeta, Dicionrio Enciclopdico da Bblia, p.1221. 46 GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.278. 47 SICRE, J.L., Profetismo em Israel, p.311. 48 Essa controvertida figura, que tem suscitado amplo debate sobre seu significado histrico, foi adotada muito cedo pelos cristos como uma representao de Cristo, o messias que sofre pelo povo. Cf. SICRE, J.L., op.cit., p.312s; GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p. 292s; von RAD, op.cit., p.672-681. 49 Essa idia no tem consenso entre os autores. Para muitos, mesmo antes do exlio j existia profecia com cunho escatolgico, enquanto outros defendem que a escatologia nasce realmente depois. Para uma discusso sobre o assunto, ver CORRA LIMA, M. de L., Salvao entre juzo, converso e graa, pp. 15-63. 50 RAD, G. von, op.cit., p.683. 51 Ibid., p.683. Von Rad avalia que essa mudana se d no estilo literrio, principalmente, que se abre a diferentes formas, bem como na estruturao da proclamao.

  • 25

    Simultaneamente, o perodo ps-exlico viu surgir um movimento, a partir

    do perodo helenstico (sc IV a.C.), que teve sua origem na profecia, e marcou

    profundamente o imaginrio popular judaico: o apocaliptismo, cujo nico

    representante no Antigo Testamento o livro de Daniel52. De acordo com

    Koester, Os incios do pensamento apocalptico so anteriores ao perodo helenstico: suas origens esto intimamente relacionadas com uma mudana fundamental no pensamento teolgico de Israel, que aconteceu no tempo do exlio. A decadncia do reino de Jud e a destruio de Jerusalm no incio do sculo VI a.C. suscitaram dvidas profundas sobre o conceito de teodicia histrica.53

    Toda essa situao provocou mudanas no enfoque da profecia, adquirindo

    elementos universalistas, at mesmo com aluses mitolgicas.54 De acordo com

    Sicre, se uma parte da profecia trabalhou com a idia da monarquia, e mesmo da

    aceitao do imprio aps o exlio nunca de forma acrtica, verdade no

    entanto, outra parte dela se colocou frontalmente contra o domnio imperial

    estrangeiro, sempre com um colorido nacionalista.55

    Toda a transformao social que marcou a vida e a histria do povo de

    Israel, no s mudou sua concepo da sua identidade, como da forma que Deus

    passou a falar com o povo. Agora a nao uma realidade que no est vinculada

    somente a um espao geogrfico, mas a uma eleio e aliana, baseadas na Lei,

    que tem nos profetas os mensageiros que tornam essa esperana palpvel, por

    meio de sua mensagem.

    Podemos afirmar que essa marca da profecia ps-exlica influenciou o

    imaginrio popular, como realmente aconteceu na revolta macabaica e nos

    movimentos de dissidncia56 que surgiram a partir do perodo helenstico. Jesus

    certamente respirou desses ares proftico-apocalpticos.

    c. A canonizao da profecia (sc. II a.C.)

    A profecia tinha vrios desdobramentos nos primeiros anos do sculo I d.C.,

    especialmente por conta da canonizao dos textos profticos da antiga tradio

    52 De fato, no Antigo Testamento, o nico exemplo literrio que podemos afirmar como Apocalipse Daniel. Alguns outros trechos apocalpticos so encontrados em Isaas (24-27; 33). Pequenos elementos pr-apocalpticos podem ser percebidos em outros profetas, mas que no configuram as mesmas caractersticas de Daniel. Ver discusso em ZENGER, Introduo ao Antigo Testamento, p.449s. 53 KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento 1, p.233. 54 Ibid., p.233. 55 SICRE, J.L. Profetismo em Israel, p.447s. 56 Especialmente o grupo dos hassidim, que deu origem aos fariseus, bem como a comunidade de Qumran e a reao samaritana ao governo judaico de Jerusalm. Cf. KOESTER, op.cit. p.235-248.

  • 26

    judaica, bem como pelo contato que a cultura judaica tivera com o helenismo

    desde o sculo IV a.C. Por outro lado, diversos movimentos profticos se

    levantaram na Palestina nesse perodo, tanto antes como depois da destruio de

    Jerusalm, em 70 d.C. De forma sinttica vamos analisar esses aspectos.

    A canonizao dos livros profticos se deu por volta do II sculo a.C. Antes

    disso no pode ter sido, pois os samaritanos realizaram o cisma nesse perodo e s

    aceitavam a Tor Pentateuco. Alm dessa poca tambm no provvel, tendo

    em vista a introduo grega da obra de Jesus Ben Sirac, pelo ano de 132 a.C.,

    que cita os Profetas ao lado da Lei (Pentateuco), bem como os demais escritos.57

    Como literatura cannica, os profetas so considerados comentrios

    Tor. Por isso mesmo cedo foram separadas leituras de profetas que

    acompanhavam a cada sbado um trecho da leitura da Tor. A prpria

    canonizao da Lei deu aos livros profticos o valor de cnon para a f judaica,

    considerando sempre Moiss superior a todos eles, como nos lembra Crsemann:

    Nesse contexto, a identificao de Moiss no fim do Pentateuco, em Dt 34, recebe uma importncia que dificilmente pode receber ateno suficiente. Ao contrrio, por exemplo, do Cdigo Deuteronmico sobre os profetas com sua promessa de haver sempre um profeta como Moiss (Dt 18,15ss), nesta passagem-chave, ele exaltado para a compreenso de toda a obra sobre profecia. (...) Moiss e, com ele, tambm sua Tor, so fundamentalmente superiores a toda a profecia posterior.58

    Como processo cultural, a profecia judaica foi matizada por seu contato com

    a profecia helenstica, especialmente os orculos sibilinos. Associados s Sibilas,

    figuras lendrias que exerciam sua atividade por meio de xtases, esses orculos

    podiam ser, inclusive, ex eventu, com forte cunho escatolgico. Os judeus

    aproveitaram esses textos para divulgar suas crenas apocalpticas, tanto de

    desgraa quanto de esperana de um mundo melhor.59

    d. Movimentos profticos a partir do perodo romano (sc. I a.C.)

    No perodo romano h diversos relatos testemunhando pelo menos dois

    tipos de profetas populares: o profeta oracular, cuja funo estava ligada ao

    juzo divino e redeno promovida por Deus; e o profeta de ao, que

    inspirava e guiava um movimento popular para antecipar a redeno divina.60

    57 Cf. ZENGER, E., op.cit., p.30s. 58 CRSEMANN, F., op.cit., p.472. 59 KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento 1, p.175; PRADO, A.M. Questionamentos acerca da Sibila Babilnica, p.3. Segundo o autor, o texto do Pastor de Hermas indica que tambm os cristos sofreram influncia desse tipo de orculo. 60 HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.125.

  • 27

    Esses movimentos profticos do sculo I d.C. mostram que o profetismo

    estava muito vivo entre o povo judeu. Horsley descreve ainda como se

    processava a adeso do povo: Numerosas pessoas, inspiradas e convencidas da iminncia da ao de Deus, abandonavam seu trabalho, suas casas e aldeias para seguir seus lderes carismticos no deserto. Elas sabiam pelas tradies sagradas que fora no deserto que Deus tinha manifestado sinais e prodgios de redeno em tempos antigos, e que o deserto era o lugar da purificao, preparao e renovao.61

    i. Os profetas de ao

    Flavio Josefo desprezava o chamado profeta de ao, conforme relatou:

    Impostores e demagogos, sob o pretexto de inspirao divina, provocaram aes

    revolucionrias e impeliam as massas a agir como loucos. Levavam-nas ao

    deserto onde Deus lhes mostraria sinais de iminente libertao.62

    Dos movimentos liderados por profetas de ao, Josefo narrou trs que se

    destacaram dos demais, cujas caractersticas apocalpticas estavam muito claras:

    um primeiro movimento se deu entre os samaritanos, no perodo de Pncio

    Pilatos. Segundo Josefo o lder anunciou ter descoberto vasos sagrados enterrados

    por Moiss no monte Garizim. Pilatos reprimiu violentamente o movimento,

    matando seus lderes.63 Outro movimento, agora na Judia, foi liderado por

    Tedas,64 cerca de 45 d.C. Ele afirmou que iria dividir o rio Jordo, como Josu.

    Fado, governador da Judia na poca, no permitiu e dizimou o grupo.65 Um

    terceiro movimento foi liderado por um judeu ligado ao Egito, na poca de Flix

    (c. 56 d.C.). Esse defendia uma nova conquista da terra prometida, pretendendo

    invadir Jerusalm para se tornar governador. Mas foi igualmente destrudo.66 Em

    todos esses casos houve franca participao dos camponeses, revoltados com a

    dominao romana e a conivncia das autoridades judaicas.

    ii. Os profetas oraculares

    Outro grupo de profetas do qual se tenha conhecimento no primeiro sculo

    so os profetas oraculares. Horsley comenta o seguinte sobre eles:

    61 HORSLEY, R.A., op.cit., p.146. 62 JOSEFO, F. Guerras Judaicas, 2.259. 63 JOSEFO, F., op.cit., 18.85-87. 64 Citado pelo fariseu Gamaliel, no discurso presente na narrativa de Atos dos Apstolos em 5,36. No relato de Atos parece que ele agiu antes de Judas Galileu (6 d.C.), mas isso confuso do autor. 65 JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 20.97-98. 66 Josefo cita o caso em dois textos: Antiguidades Judaicas, 20.169-171; Guerras Judaicas, II.261-63.

  • 28

    Transmitiam orculos, tanto de julgamento como de libertao, como o tinham feito os profetas oraculares clssicos, Ams ou Jeremias, sculos antes. Os profetas oraculares que anunciavam libertao iminente acham-se concentrados no perodo imediatamente antes e durante a grande revolta, quando as condies sociais e econmicas dos camponeses estavam-se deteriorando ao mesmo tempo que o comportamento oficial se tornava cada vez mais irregular e opressivo.67

    Vrios profetas desse tipo so citados por Josefo, inclusive Joo Batista,68 e

    esses profetas incomodaram as elites tanto quanto o outro tipo de profetas. Basta

    ver o destino de Joo Batista nas mos de Herodes.

    Como concluso dessa rpida anlise, percebe-se que o incio do sculo I

    testemunhou um florescer da profecia, nos moldes pr-exlicos, mas que carregava

    tambm um teor apocalptico ps-exlico. Isso demonstra uma releitura das

    tradies por parte dos judeus palestinos que sofriam debaixo da opresso

    estrangeira e dos desmandos do poder local.

    De alguma forma, todo esse panorama influenciou a mentalidade popular

    acerca dos profetas. Nos escritos do Novo Testamento, se observa um afastamento

    desse tipo de movimento proftico, tendo em vista que a pregao de Jesus no o

    levou para um confronto direto com o poder romano. Mas bastante razovel

    pensar que os discpulos dele partilharam desse tipo de convico e desejo de

    trazer o reino de Deus pela fora.69

    Ao mesmo tempo, essa profecia reafirmava o valor da Tor e dos Nebim,

    pois afirmava a busca de fidelidade a um, enquanto se inspirava no ministrio

    registrado no outro. Ser nesse cenrio que vamos encontrar Jesus e sua posio

    em relao s Escrituras Cannicas dos judeus do sculo I d.C., conforme

    veremos nos prximos captulos.

    Por outro lado, a comunidade de Mateus esteve mais perto desse Jesus que

    as demais comunidades crists? Ser que a afirmao de que ele veio para cumprir

    a Lei e os Profetas expressa um Jesus to arraigado nas tradies judaicas, que

    as demais comunidades diluram essa imagem? Ou ser que na verdade ele no

    teve essa atitude, e foi a comunidade de Mateus que a formulou, numa tentativa de

    salvaguardar sua identidade judaica? Para tentarmos responder a essa pergunta,

    vamos antes traar um quadro panormico do evangelho de Mateus e seu contexto

    de origem.

    67 HORLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.163. 68 JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 18.116-119. 69 Cf. GRELOT, P., A Esperana judaica no tempo de Jesus, p.109

  • 29

    2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto

    Na pesquisa a respeito do evangelho de Mateus h muitas convergncias

    entre os pesquisadores, assim como muitas divergncias. Antes de entrarmos no

    universo do texto escolhido para anlise, vamos fazer uma anlise geral sobre o

    Evangelho de Mateus em suas origens, a partir do seu Sitz im Leben.

    2.2.1. Objetivo e estrutura geral da obra

    Mateus costuma ser identificado como o evangelho mais eclesistico,70 ao

    mesmo tempo em que o mais prximo da cultura judaica, ou seja, uma obra

    crist num contexto judaico.71 Porm, ocorre uma diferena significativa quanto

    inteno da obra. Em Mateus Jesus o Messias Salvador, primeiro para o povo de

    Israel, mas tambm j apontando para uma universalidade.

    Ao mesmo tempo, em Mateus h um claro questionamento sobre a Lei, de

    como ela no tem mais valor diante da nova aliana iniciada em Cristo, mas que,

    ao mesmo tempo, continua a ter valor em sua essncia. Isso exemplificado

    largamente no Sermo do Monte. Como afirma Koester: O Sermo da Montanha no deixa dvidas de que Jesus no veio revogar a lei, mas para dar-lhe pleno cumprimento, e essa lei impe aos discpulos a obrigao de cumpri-la embora a justia deles deva ser superior dos fariseus (5,17-19). Para explicar essa justia superior, Mateus formulou as antteses do Sermo da Montanha (5,21-48), que contrapem o que foi dito aos antigos com as palavras do prprio Jesus: Eu, porm, vos digo. O que est em jogo em cada caso uma radicalizao das exigncias da lei.72

    Para alguns, o evangelho com maior contedo eclesiolgico. Mateus teria

    menos cristologia e mais questes referentes Igreja, que continuaria a atividade

    de Jesus, especialmente pelo discipulado. Pede-se aos seguidores, acima de tudo,

    obedincia incondicional em relao a tudo o que ele ordenou.73 Mas Jesus est

    70 Cf. SCHREINER; DAUTZENGERG, Forma e exigncias do NT, pp.274-294; ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.159ss. 71 KMMEL aponta alguns aspectos que explicam a relao de Mt com o AT: a) ele no explica os usos e costumes, os preceitos e as expresses judaicas (..); b)dispe as narrativas orientado-as para uma formulao especificamente rabnica de uma questo (...); c) Traz toda uma srie de ditos em apoio da validez incondicional da Lei (...); traz de preferncia os logia de Jesus que circunscrevem expressamente a atividade de Jesus a Israel (...); e) adapta a maneira de se exprimir de Jesus s expresses prprias dos judeus (...). Introduo ao NT, pp.135-137. 72 KOESTER, H., Introduo ao NT 2, p.191s. 73 ROLOFF, J., A Igreja no NT, p.160.

  • 30

    presente para acompanhar a caminhada da Igreja, a partir da autoridade

    escatolgica que lhe foi conferida. Por isso, a Igreja supera Israel como

    testemunha de Deus aos povos, indo ao encontro dos gentios. Essa compreenso

    situa Mateus numa heilsgeschischte onde a ekklesia o novo povo de Deus.74

    Carter coloca em maior evidncia a situao da comunidade frente ao

    imprio romano, o que aproxima Mateus da tradio deuteronomista, a qual

    entende que os eventos histricos demonstram o juzo divino se concretizando. O

    imprio romano estaria nas mos de Deus na destruio de Jerusalm, mas teria

    extrapolado seu papel, cuja oposio no poderia ser pela violncia, e sim por

    uma viso da histria na qual Deus puniria Roma tambm por seus pecados.75

    A estrutura do evangelho tem por princpio diferenciar blocos narrativos e

    de discursos. As propostas clssicas para a estrutura de Mateus Bacon, com a

    estrutura dos cinco livros alternados por narrativas76; o sistema concntrico de

    Lohr, com seis narrativas e cinco discursos77, ou ainda na mesma linha a diviso

    em cinco partes (com narrativa e discurso em cada uma) de Rolland78 - apontam

    sempre para o mesmo processo, de se ter uma parte narrativa alternada por um

    bloco de discurso. Essa estrutura mostra uma inteno de colocar Jesus frente a

    Moiss e ao Pentateuco.79

    Uma caracterstica prpria em Mateus a de comentar as narrativas, no

    momento em que compara a situao com textos do Antigo Testamento. E Mateus

    v nisso no obra do acaso, mas o fato de que todas as coisas acontecem por

    vontade de Deus, que j tinha estabelecido essa histria, com conseqncias

    universais.80 Para Mateus, Jesus da mesma maneira como foi anunciado por

    Marcos aquele que veio para pregar o reino de Deus e o mestre. Mas a nfase

    74 ROLOFF um dos autores que defende essa interpretao. Cf. op.cit., pp.159-187. KOESTER concorda que o Sermo do Monte no est endereado a indivduos, mas a toda a Igreja. Por outro lado, destaca-se o fato de ser o nico evangelho a utilizar a palavra igreja [evkklhsi,a], em Mt 16,18 e 18,17, sempre relacionando comunidade de seguidores de Jesus. Cf. op.cit., p.192. 75 Cf. CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, pp.63-72. 76 BACON, The Five Books of Matthew Against the Jews, The Expositor VIII, 85, pp.56-66. 77 C.H. LOHR, Oral Techniques in the Gospel of Matthew, CBQ 23 (1961) 78 ROLLAND, From the Genesis to the End of the World. The Plan of Matthews Gospel, BT 2, p.156. 79 Outras estruturas, no entanto, podem ser identificadas, dependendo das referncias com que se trabalhe. Kmmel e Garcia preferiram por no adotar esse sistema de estrutura quntupla. Win J. C. Weren, que abordou a questo em artigo recente, aponta que os diversos estudos feitos a respeito mostram que no simples declarar se h uma estrutura bsica no evangelho. Cf. WEREN, The Macrostructure of Matthews Gospel, p.171-200. Em nossa pesquisa vamos considerar a estrutura clssica de narrativa-discurso. 80 Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (I), p.50.

  • 31

    mateana recai sobre a idia do mestre, como bem demonstra o Sermo do

    Monte.81 Por outro lado, Mateus enfatiza Jesus como o Messias Salvador

    enviado por Deus, o rei de Israel.82

    Um terceiro aspecto importante no objetivo de Mateus, alm da eclesiologia

    e da cristologia a escatologia.83 Em Mateus, a vinda do reino de Deus, seu juzo

    sobre o mundo e a recompensa final para os fiis no apenas aspectos do

    querigma, mas temas fundamentais, que perpassam toda a obra. Aparecem muito

    mais percopes com esse motivo do que em Mc e Lc juntos.84

    Esse texto, em que a comunidade considerada parte do projeto de Deus

    para o mundo, Cristo o Messias, e h uma mensagem escatolgica perpassando

    a pregao, reflete seu Sitz im Leben. Uma comunidade que precisa de orientao

    para a vida, mas que seguidora dos princpios de Jesus.85

    2.2.2. Fundo histrico do texto

    H um consenso bastante grande quanto ao tempo em que nasceu o

    evangelho de Mateus. Sendo ele dependente de Marcos, e tendo esse sido escrito

    entre os anos 64-70 d.C.86, Mateus no poderia ser anterior a 70. Por outro lado, a

    o fato de Incio conhec-lo tambm impede uma data posterior a 100. Alm disso,

    no deve ter sido escrito prximo aos anos 70, por realizar uma reviso bastante

    81 Ibid., p. 51. 82 CAMACHO, F.; MATEOS, J., O Evangelho de Mateus, p.8. No entanto, do ponto de vista dos antagonistas Jesus julgado por suas curas e milagres, pelo poder do maioral dos demnios, em 9,34, e como enganador, em 27,63s. Isso indica que o ministrio de Jesus em Mateus no pode ser resumido a faceta de mestre, mesmo que haja uma nfase nesse sentido. Cf. STANTON, G.N. A Gospel for a New people, p.171 passim. 83 De acordo com STANTON, G.N., Matthew writes with several Christological, ecclesiological and eschatological concerns. A Gospel for a New People, p.43. MARGUERAT, D., comps sua pesquisa exatamente considerando o julgamento escatolgico, como algo presente o tempo todo na obra de Mateus. Le jugement dans lvangile de Matthieu. KSEMANN realizou uma conferncia em 1960 a respeito da relao de Mt com a mensagem apocalptica crist, transcrita no artigo Os incios da Teologia Crist, Apocalipsismo, pp.231-254. A repercusso dessa pesquisa foi to grande que Bultmann respondeu a Ksemann atravs de um artigo, em 1964, na revista APOPHORETA, Festschrift fr E. Haenchen. 84 MARGUERAT comenta que os textos de Mt que tem esse acento so 60 em 148 percopes,e enquanto Mc so 10 em 92, e em Lc 28, em 146. Le jugement dans lvangile de Matthieu, p.13. 85 Stanton analisa a possibilidade do evangelho de Mateus ter atendido, na verdade, a vrias comunidades, e no somente a uma, como normalmente se pensa, tendo em vista que ele escreveu no gnero evangelho e no epstola. Cf. STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.45 et.seq. Mesmo concordando com essa possibilidade, vamos tratar aqui da comunidade (singular), como uma grandeza ideolgica. 86 Cf. KMMEL, W.G., Introduo ao Novo Testamento, p.117. De fato ele defende o ano 70 como a data da composio.

  • 32

    considervel do texto de Marcos. Considerando esses aspectos, mesmo no sendo

    muito conclusivos, vrios autores sugerem uma datao entre 80-90 d.C.87, a

    partir da qual vamos basear nossa pesquisa.

    Um aspecto importante para um trabalho que pense a autenticidade dos ditos

    de Jesus em Mateus e, por conseguinte, nos ajude a pensar a posio de Jesus

    frente Tor, a tradio a que o evangelista teve acesso. Koester comenta que

    h uma probabilidade do Evangelho dos Ditos (Q) j estar sob autoridade de

    Mateus mesmo antes da redao do evangelho, que teria reelaborado esse

    material, ao juntar o material de Marcos. E no s ele teria tido acesso a esse

    material, mas Tom tambm. Assim, Mateus e Tom teriam sido ento as duas

    autoridades apostlicas mais antigas para a transmisso dos ditos de Jesus.88

    A autoria de Mateus tambm cercada de incertezas e questionamentos.

    Apesar dos manuscritos no trazerem no corpus a identidade do autor, j no

    sculo II foram agregados cabealhos que afirmavam euagglion katta

    Maqqaion89 ou mesmo apenas kata Maqqaion90. Isso se deve aos textos de

    Papas, que no foram preservados, mas chegaram at ns numa clssica citao

    de Eusbio de Cesaria: Referente a Mateus, diz o seguinte: Mateus ordenou as

    sentenas em lngua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia.91 O

    fato de Papas usar o nome de Mateus, relacionando com o apstolo, no define

    realmente se ele seria o autor. Mateus passa a ser a identidade do autor, no

    sentido da comunidade de f relacionada ao apstolo Mateus.92

    87 KMMEL, W.G., op.cit. p.145 et.seq.; MAZZAROLLO, I., Evangelho de So Mateus, p.3 et.seq.; CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p.35 et.seq.; MATEOS e CAMACHO, O evangelho de Mateus, p.10 et.seq.; STEGEMANN, E., Histria social do protocristianismo, p.257 et.seq. 88 KOESTER, H., Introduo ao NT, p.188. Como confirmao dessa possibilidade, temos o estudo de KLOPPENBORG, J. S., The Formation of Q, a respeito da fonte Q, alm da posio de STANTON, A Gospel for a New People., que afirma o uso de Q por Mateus como uma reelaborao de gnero, ou seja, o evangelista j teria encontrado a fonte Q pronta e adaptado para seu gnero prprio, junto com Marcos. 89 Evangelho segundo Mateus de acordo com as unciais W e D, as minsculas da famlia 13, a verso boarica, ou seja especialmente no texto Cesareense, alm do texto Majoritrio, que indica a presena dessa forma no texto Bizantino. Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, pp.41-45. 90 Segundo Mateus, testemunhado pelas unciais a e B, nos melhores maisculos do Novo Testamento, segundo o texto Alexandrino. Cf. Ibid., pp 41-45. 91 FISCHER (Trad.), HE, III, 39, 16. Sobre a questo de Mateus ter sido escrito em grego, ver KOESTER, H., Introduo ao NT 2, p.188; KMMEL, Introduo ao NT, pp.146-148. 92 Cf. CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p.33s. Quanto afirmao de que Mateus no seria o autor citamos o prprio Koester, op.cit., p.187s, bem como Kmmel, que afirma que o autor de Mateus, cujo nome nos desconhecido, teria sido um cristo proveniente do judasmo e de fala grega, que provavelmente seria possuidor de erudio rabnica, op.cit., p.148. com quem concordam Mateos e Camacho, O Evangelho de Mateus, p. 11.

  • 33

    Quanto ao lugar de origem, as opinies se dividem. Alguns autores

    reafirmam a posio tradicional da exegese moderna de situar Mateus na Sria,

    provavelmente em Antioquia.93 Outros, mais recentemente, o situam na Palestina,

    seja em Sforis ou Tiberades.94 Para a atual pesquisa levou-se em conta uma

    proximidade do contexto palestino e Galileu, o que significa que concordamos

    com a segunda hiptese geogrfica. De fato, o embate entre crculos cristos e

    fariseus s pode ser plenamente compreendido a partir de uma anlise da situao

    ocorrida na Palestina, aps o ano 70 d.C. Mesmo que o texto final tenha sido

    escrito na Sria, transparece conflitos originrios da Palestina. Ou seja, em sua

    formao, a comunidade associada ao evangelho de Mateus tem fortes ligaes

    com o judasmo.95

    2.2.3. Caractersticas da comunidade a partir do movimento de Jesus

    O seguimento de Jesus em Israel se deu efetivamente na regio da Galilia,

    pelo que se constata em todos os evangelhos cannicos.96 Alguns identificam que

    o movimento dele tinha muito a ver com os movimentos populares

    contemporneos, especialmente com reis populares e expectativas messinicas.97

    93 Cf. KMMEL, W.G., Introduo ao NT, p.145s; MATEOS e CAMACHO, O Evangelho de Mateus, p.10; MAZZAROLO, I., Evangelho de So Mateus, p.5s; CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p. 34s.; KOESTER, H., Introduo ao NT, p.188.; RICHARD, P., A origem do cristianismo em Antioquia, p40 et.seq. 94 Cf. OVERMAN, O evangelho de Mateus e o judasmo formativo, p.27-29, seguido por GARCIA, O Sbado do Senhor Teu Deus, e STEGEMANN, Histria, p.257. Outro que expressa essa opinio SALDARINI, The Gospel of Matthew and Jewish-Cristian Conflicts, In: LEVINE, The Galilee in late Antiquity, pp.23-38. 95 CARTER, W. O Evangelho de Mateus, p.54 et.seq. 96 Sobre a questo do ministrio de Jesus na Galilia ver o estudo aprofundado de FREYNE, S. A Galilia, Jesus e os Evangelhos. Um dos aspectos que ele aborda o problema da descrio dos evangelhos como retratos no-histricos da situao. Ele chega mesmo a afirmar que entre as evidncias histricas do contexto galileu e as narrativas evanglicas h tal discrepncia que difcil ver como um ministrio carismtico/proftico, tal como o que Jesus realizou, pde desempenhar ali um papel significativo. P.189. Contra essa posio, porm, HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, que considera pertinente o que foi narrado por Josefo e outros a respeito de revoltas camponesas na Judia, bem como na Galilia. Ele cita, por exemplo, que a cidade de Sforis, que foi incendiada e cujos habitantes foram vendidos como escravos no ano 4 a.C., estava situada apenas algumas milhas ao norte da aldeia Nazar, a terra de Jesus. p.111. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histrico, p.190 et,seq, tambm defende que havia tenses de diversos tipos (entre judeus e gentios, entre cidade e campo, ricos e pobres, governantes e governados, na Galilia).; Tambm GARCIA, P.R., O Sbado do Senhor teu Deus, p.30 et.seq. 97 Cf. HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A. op.cit. 89 passim; Tambm HORSLEY, R.A., Jesus e o Imprio, p.80 passim; CROSSAN, J.D., O Jesus Histrico, p.340 passim; GRELOT, P., A esperana judaica no tempo de Jesus, p.109 passim.

  • 34

    De fato, era um movimento popular, de massa, com ensino em parbolas, e

    demonstrao da chegada do reino de Deus pela realizao de curas e milagres.98

    possvel fazer uma diferenciao entre trs fases para um estudo do

    fenmeno do seguimento de Jesus: uma primeira fase do seguimento

    propriamente dito, com uma relao discpulo-mestre; uma segunda fase da

    protocomunidade de Jerusalm, surgida logo aps a morte e ressurreio de

    Jesus; uma terceira fase, das comunidades messinicas, a partir de 70 d.C.,

    principalmente retratadas nos evangelhos de Mateus e Joo. Para um estudo a

    partir do evangelho de Mateus, por conseguinte, temos diante de ns essa ltima

    fase, o que est em concordncia com a datao anteriormente trabalhada.99

    Tendo por princpio que as comunidades palestinenses herdaram muito das

    caractersticas do seguimento original de Jesus com algumas modificaes

    institucionais necessrias , interessante levantar alguns dados que tem sua fonte

    ainda no prprio Jesus e seu movimento. Alguns aspectos que Stegemann aponta

    do seguimento de Jesus podem ter sido claramente continuados pela comunidade

    crist de Mateus. Esses aspectos se apresentam especialmente na desvincia

    genuna, mas sem ruptura com o judasmo, e mantm a relao com as

    instituies religiosas do judasmo, com os elementos bsicos da f judaica, e com

    a Tor.100

    Aplicado ao movimento de Jesus, Stegemann sugere que o carter

    carismtico do seguimento de Jesus implica certa desvincia genuna e uma

    concepo pr-poltica.101 A mensagem de Jesus, da irrupo do reino de Deus,

    98 Cf. GNILKA, J, Jesus de Nazar, p84 passim. THEISSEN, G. Sociologia do Cristianismo Primitivo, p.33 et.seq. Ele afirma que j em seus incios, o movimento de Jesus visava a integrao. 99 Cf. STEGEMANN, E.; W., Histria social do protocristianismo, p.217. 100 STEGEMANN, E.; W., Histria social do protocristianismo, pp.217 et. passim. Por desvincia Stegemann define uma nova abordagem para o termo hairesis usado por Josefo para falar dos grupos judeus no primeiro sculo. Por ser um conceito de origem grega partido padece do fato do grupo ter uma escola que trata apenas dele mesmo. O que aconteceu na Palestina do primeiro sculo que esses grupos pensaram a identidade do judasmo como um todo. Por outro lado, o conceito utilizado por Weber de seita (na obra Wirtschaft und Gesellschaft: Grundri der verstehenden Soziolage. 5.ed., 1976) , foi colocado em contraponto igreja. Esse conceito, de fato, no ajudou a perceber as diferenas especficas entre esses grupos. THEISSEN chama essa desvincia de radicalismo itinerante, a partir da transmisso das palavras de Jesus nos sinticos, Sociologia da cristandade primitiva, p.36. 101 STEGEMANN, E.; W., op.cit. p.238. Com isso, Stegemann prope uma nova abordagem, a partir da teoria da desvincia, que descreve o processo da formao de desvincia em conexo com situaes fundamentais de crises nas sociedades, bem como a formao de grupos como parte de uma carreira de desvincia em que a excluso inicial como divergente neutralizada. P.179. Decisivo para que isso acontea, de acordo com essa teoria, no a reao ao grupo desviante, nem tampouco que essa desvincia acontea numa sociedade altamente estruturada em termos

  • 35

    bem como a aceitao dos excludos da sociedade em seu movimento

    caracterizam bastante essa desvincia, mesmo que Jesus apresentasse certa

    expectativa compartilhada com outros grupos e movimentos. A temos uma

    ruptura implcita com o judasmo. Mas no se pode afirmar que a ruptura

    definitiva se deu j no movimento, pelo contrrio, deve ter se dado a partir de uma

    intensificao no processo de desvincia nas comunidades crists ps-70 d.C.

    Mas, evidente que essa autocompreenso escatolgico-carismtica do

    seguimento de Jesus marcou tambm sua relao com as instituies do judasmo

    e especialmente com a Tor.102

    Em relao aos aspectos gerais da f judaica, possvel ver em Jesus uma

    relao de prtica fiel, como os diversos relatos em que o mostram em reunies

    nas sinagogas aos sbados (Mc 1,21.39; 3,1; 6,2; Lc 4,15ss, etc.). Ali Jesus

    participa normalmente, questionando em alguns casos aos religiosos que

    freqentam ao local, no o processo em si.103 Com relao ao Templo, apesar da

    atitude marcante de Jesus contra os cambistas, no h da parte dele uma posio

    prvia contrria ao Templo. Outros grupos, inclusive os fariseus, tambm faziam

    crticas administrao sacerdotal.104 Por fim, Jesus tambm no teve uma atitude

    contrria famlia. Ainda que seu seguimento exigisse um afastamento da famlia

    terrena, ele foi a favor do sustento dos pais (Mc 7,10-13), do acolhimento de

    crianas rfs (Mc 9,37) e contra o divrcio (Mc 10,1-12). Jesus seguiu os

    princpios bsicos da f judaica, como o monotesmo e a teologia da aliana. Da

    mesma forma, sua relao com a Tor parte de um respeito e uma atitude positiva.

    ideolgicos, mas as circunstncias de crise que foram uma nova tomada de posio e uma nova orientao. 102 STEGEMANN, E.; W., op.cit., p.238. Para G. THEISSEN, realmente foi uma separao paulatina. Como ele afirma: aps a morte de Jesus, seu movimento de renovao intrajudaico transformou-se numa seita judaica. (...) A partir do ano 70 d.C. a seita se torna um cisma definitivo condicionado pela destruio do templo e por desenvolvimentos internos do judasmo e do cristianismo primitivo. O Jesus Histrico, p.167. No entanto, ele j afirmou que Mateus, por exemplo, formula certas ordenanas a partir de uma perspectiva intra-judaica. Cf. Sociologia da cristandade primitiva, p.104. 103 VERMES, A religio de Jesus, o judeu, p.21 et.seq. Entretanto, o autor aponta o curioso fato de no haver nessas passagens clara aluso a uma participao de Jesus em atos de culto nas sinagogas, com exceo da leitura do rolo em Lc 4,16-21. 104 THEISSEN lembra que a Galilia como um todo tinha uma marcada devoo ao templo por parte dos galileus e uma forte ligao dos habitantes da periferia com o centro do culto judeu e com as instituies afiliadas a ele, conforme demonstram as fontes. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histrico, p.198.

  • 36

    Esses aspectos bsicos parecem se expressar tambm na comunidade de Mateus,

    caso se tenha a Palestina como lugar de origem.105

    Pelos aspectos levantados acima, entende-se que a comunidade de Mateus

    teria uma prtica semelhante de Jesus, sem a inteno de criar uma religio ou

    fechar-se ao judasmo. No entanto, o texto do evangelho e as pesquisas realizadas

    demonstram que, internamente, a comunidade vivia sob tenso.106 O principal

    motivo dessa tenso interna a questo a respeito da Lei e sua observncia.

    Enquanto um grupo defendia a Lei e sua validade (cf. 5,17-20; 10,5-6; 23,1-3),

    outro fazia uma releitura dela ou pelo menos da observncia judaica (5,17-48;

    23,1-36).107 A comunidade de Mateus seria, ento, formada por um grupo misto,

    composta por um setor judeu-cristo de rgidos observantes e de um estrato de

    cristos mais abertos.108

    Mateus no trabalha com diferentes nveis de crentes (a multido e os

    perfeitos), mas com a idia de discpulos, seguidores que devem buscar a

    perfeio, ou o ser perfeitos [te,leioj].109 Assim, o evangelho de Mateus

    expressaria uma oposio contra os antinomianos da comunidade (Mt cita aqueles

    que no praticam a Lei - avnomi,an - trs vezes: 7,23; 13,41; 24,12), os quais

    relativizavam as exigncias da perfeio. Para eles, o Antigo Testamento foi

    vlido at Jesus, mas agora no tinha mais sentido para a Igreja.110 Ao mesmo

    tempo, a comunidade de Mateus no era uniforme do ponto de vista social, e

    expressava um pouco da sociedade qual estava ligada.111

    105 Cf. FLUSSER, Jesus, p.37 et.passim; 106 Cf. CARTER, W. O Evangelho de So Mateus, p.54-63. Mesmo considerando que ele tome Antioquia como lugar de origem do evangelho de Mateus, os conflitos aos quais se refere so vlidos para uma anlise tendo por base a Palestina. Em ambos a polmica tem como foco o grupo dos judeus seguidores de Cristo contra os judeus no-seguidores, que tm o poder da sinagoga. 107 Cf. BROWN, R., An Introduction to the New Testament, p.213. 108 Cf. BARBAGLIO, G. Os Evangelhos 1, p.39 et.seq. 109 BARTH, G., Matthews understanding of the Law, p.96 et.seq. 110 Ibid., p.159. Alguns conjeturaram se esse grupo seria paulino, mas de fato deve se tratar de cristos gentlicos que comeam a pressionar os cristos judeus por uma atitude mais aberta em relao Lei, conforme se verifica nas discusses em Atos 15, e nas epstolas de Paulo e de Tiago. Para Stanton, no entanto, no possvel, de forma sumria, identificar que sejam esses oponentes internos. Ele afirma: Hypotheses based on a possible interpretation of one verse, or even of a cluster of verses, are likely to be insecure. The only opponents who are in view from the beginning to the end of Matthews gospel (form 2.1 to 28.15) are the Jewish leaders. STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.49. 111 Cf. CARTER, W. O Evangelho de So Mateus, p.48 et.seq. Partindo do pressuposto que o evangelho teria nascido em Antioquia, o autor analisou o estrato social daquela cidade. Ele aponta que em Mateus o grupo se identificar como pequeno, seja numericamente, seja na condio social. Segundo ele, dado a experincia comum de endividamento, perda de terras e perda de status e relaes de parentesco conforme o povo rural se mobilizava para a cidade procurando

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    Alm dos problemas internos (ou que estivessem ligados a outros grupos

    crentes em Cristo), a comunidade de Mateus igualmente esteve sob forte presso

    externa, que levou o grupo a uma ruptura completa com o judasmo de sua poca.

    O estudo dos grupos antagnicos fundamental para entender esse quadro.

    2.2.4. Os grupos antagnicos

    A destruio do Templo, como resultado de Guerra Judaica de 66-70 d.C.

    trouxe uma srie de mudanas significativas para os piedosos palestinenses, sejam

    eles judeus ou cristos.

    Acabaram o culto sacrifical e muitos atos e deveres religiosos ligados ao templo (...). As funes dos sacerdotes no templo tornaram-se obsoletas, assim como o cargo do sumo sacerdote. Terminaram as tarefas tradicionais do Sindrio, que tinha sua sede no templo.112

    Essa quebra exigiu novas respostas, que culminaram na formao de um

    judasmo mais voltado para observncia da Lei como princpio de vida, e menos

    dependente de preceitos rituais ligados ao templo. Importante para isso foi o papel

    dos sbios e dos mestres da lei, grupo que passou a se destacar a partir da. Esse

    perodo conhecido como o nascedouro do judasmo rabnico ou judasmo

    clssico. Ou no dizer de Overman, o judasmo formativo.113 O grupo de

    Mateus vai ter srias controvrsias com esse grupo, mesmo que cada um estivesse

    estabelecendo seu prprio projeto.114 possvel que o conflito de fato fosse bem

    mais amplo e at mais fragmentado, mas as narrativas que chegaram a ns, em

    especial no evangelho de Mateus, mostram uma pequena parte dele.115 Seja como

    algum meio para sobreviver, provvel que parte dessas pessoas fizesse parte da audincia de Mateus. P.50. Ento deveriam haver ricos, pobres, livres, escravos, comerciantes, etc. participando da comunidade. 112 STEGEMANN, Histria social do protocristianismo, p.254. 113 OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judasmo formativo, p.14s. Ele chega a afirmar que h uma substancial diferena entre dois: a evoluo do judasmo formativo para o rabnico foi um processo histrico prolongado e complexo que ocorreu ao longo de um perodo de vrias centenas de anos. 114 Cf. o comentrio de P. R. GARCIA: os essnios e os cristos abandonaram o Templo e estabeleceram seus prprios ritos de piedade e servio religioso; os fariseus ficaram numa posio intermediria, O Sbado do Senhor teu Deus, p.45. Tambm MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.5. Ele afirma: Os que aderiram ao cristianismo eram hostilizados pelos que os rejeitavam a e as perseguies eram constantes. 115 Como afirma J.A. OVERMAN: No conflito entre o judasmo formativo e o judasmo de Mateus, somos expostos a uma fatia bastante pequena do processo global de definio e consolidao judaica do perodo ps-70. O Evangelho de Mateus e o Judasmo formativo, p.15.

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    for, h uma tenso crescente entre esses diferentes grupos, diante do vcuo de

    referncia para a f judaica. Bonneau indica essa tenso:

    O Evangelho de Mateus d conta de diversos conflitos que permitem uma reconstruo plausvel da situao dos seus destinatrios. (...) Mateus luta contra os adversrios externos, judeus, fariseus com toda a evidncia, do meio dos quais sua comunidade e ele mesmo saram e aos quais ele ope uma nova compreenso da f judaica, luz do acontecimento Jesus. Uma profunda rivalidade se estabelece entre os dois grupos e conduz a uma violenta polmica, at mesmo a uma perseguio.116

    O Evangelho de Mateus cita vrios oponentes a Jesus fariseus, escribas,

    chefes de sinagoga, saduceus, sacerdotes, governantes judeus e romanos -. Alguns

    de fato no existiam ou pelo menos no tinham mais a mesma fora nos anos ps-

    70, como o saduceus117. Outros se fortaleceram nos processo de descentralizao

    da religio e busca de renovao da identidade, como os fariseus e os escribas,

    grupos centrais para o estudo em questo.

    2.2.4.1.

    Os fariseus

    O grupo dos fariseus um dos mais citados em Mateus como antagonista.118

    J. de Fraine descreve os fariseus como um partido religioso, no judasmo, que se

    aplicava a estudar profundamente a lei mosaica e as tradies dos antepassados, e

    propugnava a mais rigorosa observncia da sua interpretao da lei.119 Alm

    disso, so caracterizados como um movimento leigo originado da resistncia

    contra o esvaziamento dos ideais religiosos tradicionais do judasmo por parte da

    realeza sacerdotal secularizada (os saduceus).120 Entretanto, dependendo da fonte

    116 BONNEAU, Profetismo e Instituio no Cristianismo Primitivo, p.181. Overman trabalha a questo. Igreja e comunidade em crise o Evangelho segundo Mateus, esp. p.18. 117 Os saduceus surgiram de crculos sacerdotais favorveis ao governo hasmoneu, e tambm tinham o templo como centro da religio israelita. Como se consideravam sucessores do sumo sacerdote Sadoc, do tempo do rei Davi, entendiam que o sistema do Templo lhes assegurava poder e estabilidade. Alis, O Templo foi o principal motivo de sua rivalidade com os fariseus e porque no dizer dos essnios. Era um grupo conservador e ortodoxo em suas crenas e posturas. Acreditavam acima de tudo na unidade de culto, nao, terra e histria. Sua doutrina baseava-se na crena de que o ser humano faz o seu destino; a negao do alm, bem como da ressurreio dos mortos e prmio aps morte; atentavam apenas para a Torah escrita, rejeitando toda a Torah Oral. Estavam ligados s classe superiores. No entanto, a maior parte das informaes que temos a seu respeito de fonte indireta, o que pode carregar certas distores movidas por preconceito. Sobre eles ver SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.307-316; Em STEGEMANN, uma abordagem social em termos de movimento de desvincia, Histria social do protocristianismo, pp. 176-185; ROLOFF, A igreja no Novo Testamento, p.22s. 118 Mt 3,7; 5,20; 9,11.14.34; 12,2.14.24.38; 15,1.12; 16,1.6.11.12; 19,3; 21,45; 22,15.34.41; de forma especial as imprecaes do cap.23, onde inclui os escribas; 27, 41.62. 119 FRAINE, J de, Fariseus, Dicionrio Enciclopdico da Bblia, p.557. 120 Ibid., p.558. Tambm conforme a pesquisa de KOESTER, H., Introduo ao Novo Testamento 1, p.240s; ROLOFF, J., A igreja no Novo Testamento, p.20.

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    a qual consultamos, a configurao do grupo dos fariseus pode ter diferentes

    caractersticas. Flvio Josefo os designa como grupo de interesse poltico, que

    teria surgido como tal por volta do final do sculo 2 a.C., na poca de Joo

    Hircano.121 Na literatura rabnica que surgiu a partir do sculo 3 d.C. os fariseus

    so indicados como mestres, a partir das escolas de Hillel e Shammai, dois

    fariseus notveis do primeiro sculo, o que dificulta a interpretao das

    descries.

    De um modo geral, no entanto, h evidncia