dissertacao san
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Dissertação defendida no dcp-usp sobre feminismo globalTRANSCRIPT
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Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Cincia Poltica
O Ideal de Tolerncia Liberal sob uma tica Internacional
San Romanelli Assumpo So Paulo
2008
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SAN ROMANELLI ASSUMPO
O Ideal de Tolerncia Liberal sob uma tica Internacional
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Cincia Poltica pelo Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica da Universidade de So Paulo. Orientador: Prof. Dr. lvaro de Vita
So Paulo 2008
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Ficha de catalogao
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FOLHA DE APROVAO
San Romanelli Assumpo O ideal de tolerncia liberal sob uma tica internacional
Dissertao apresentada ao Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So Paulo
para obteno de ttulo de mestre. rea de concentrao: Teoria Poltica
Aprovado em
Banca examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio ______________________ Assinatura ______________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio ______________________ Assinatura ______________________________
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Aos meus pais, Fabio e Rosely
E aos meus irmos, Flora, Tauana, Rafael e Clara
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Agradecimentos
A lvaro de Vita, que, desde 2003, orienta minhas pesquisas de modo atento e
generoso, debatendo comigo cada argumento, conversando sobre cada dvida,
instigando novas questes, permitindo que eu tome caminhos arriscados e abrindo
novas perspectivas sobre a reflexo poltica terico-normativo sempre que eu me perco.
Tenho certeza de que esta dissertao deve muito a ele.
A Andrei Koerner, que me iniciou nos afazeres cotidianos da reflexo sobre a
justia, ensinou-me a leitura, a escrita e o debate sistemticos e estimulou meu gosto
pela teoria poltica normativa.
A Christian Barry e Ricardo Terra pela leitura atenta de minha qualificao e
pelas valiosas sugestes e comentrios, que muito me ajudaram a concluir esta
dissertao.
minha me, Rosely, minha irm Flora e querida amiga Glenda por terem
me ajudado a tornar este texto menos confuso e por terem debatido comigo sempre.
Aos amigos Adele, Andr, Camila, Cludia, Cristiane, Fernando, Juliana,
Leandro, Lucas, Marcelo, Rafael, Rodrigo, Silvana e Uvanderson, por terem discutido
esta pesquisa em todos os momentos em que precisei.
Aos meus pais e irmos, avs e tios, pelas conversas, apoio e cuidado sempre.
Minha atividade de pesquisa seria impossvel sem a convivncia com eles.
equipe da secretaria do departamento, em especial Rai e Vvian, por sua
ajuda indispensvel com prazos e procedimentos.
Ao CNPq e FAPESP, cujo financiamento, em momentos distintos, tornou
possvel minha dedicao integral ao mestrado.
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ASSUMPO, S. R. O ideal de tolerncia liberal sob uma perspectiva internacional.
2008. Dissertao (mestrado). Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So
Paulo, So Paulo, 2008.
Resumo
Esta dissertao apresenta uma reflexo de teoria poltica normativa a respeito
da tolerncia no plano mundial adotando uma perspectiva tributria do individualismo
tico e dos contratualismos rawlsiano e kantiano.
Sua argumentao defende uma interpretao individualista e universalista da
tolerncia enquanto virtude poltica institucional. Justificar-se- a idia de que a
tolerncia requer uma lista ampla de direitos humanos e que um critrio normativo de
legitimidade poltica frente s comunidades internas e global.
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ASSUMPO, S. R. The liberal ideal on toleration in world plan. 2008. Dissertation
(Master Degree). Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2008.
Abstract
This dissertation presents a reflection of Political Theory about toleration in
world plan adopting a perspective of ethical individualism and Rawlsian and Kantian
contractualism.
Its argumentation defends an individualist and universalist interpretation of
toleration while institutional and political virtue. The idea will be justified as toleration
requires an extensive list of human rights and that it is a moral criterion of politics
legitimacy in front of internal and global communities.
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SUMRIO
Captulo 1. Introduo questo da tolerncia sob a perspectiva do
individualismo tico .................................................................................................... 14
1.1. Pressupostos e pontos de partida........................................................................... 14
1.1.1. A igualdade moral ............................................................................................. 15
1.1.2. O princpio de legitimidade liberal e o contratualismo .................................... 16
1.1.3. O argumento da arbitrariedade moral ................................................................. 17
1.1.4. A idia de neutralidade liberal ........................................................................... 18
1.1.5. O horizonte de justificao ................................................................................ 19
1.1.6. O Direito dos Povos rawlsiano .......................................................................... 20
1.2. Introduo ao problema da tolerncia ................................................................... 21
1.2.1. Advertncia ....................................................................................................... 21
1.2.2. Caractersticas gerais da tolerncia .................................................................... 22
1.2.3. Linhas gerais do debate ..................................................................................... 24
1.2.4. A controvrsia entre liberais e comunitaristas a respeito da tolerncia
e do problema do pertencimento a comunidades .......................................................... 25
1.2.5. Tolerncia: virtude poltica e virtude social ................................................ 33
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1.2.6. A relao entre autonomia individual e tolerncia e a possibilidade de
uma concepo de tolerncia global ............................................................................ 40
1.3. A questo da tolerncia global reformulada .......................................................... 47
Captulo 2. A tolerncia e o modelo rawlsiano de justia como eqidade e
de Direito dos Povos ................................................................................................... 52
2.1. Sobre a justia interna em Rawls .......................................................................... 53
2.1.1. Sobre as circunstncias e o objeto da justia como eqidade .......................... 53
2.1.2. Sobre os dois princpios da justia como eqidade ......................................... 58
2.1.3. Sobre os mecanismos de justificao dos princpios de justia
rawlsianos ................................................................................................................... 61
2.1.3.1. Sobre o argumento da posio original ........................................................... 61
2.1.3.2. Sobre o argumento do equilbrio reflexivo ...................................................... 67
2.1.3.3. Sobre algumas categorias rawlsianas diretamente ligadas ao
pluralismo moral ......................................................................................................... 69
2.1.3.4. Pensando tolerncia a partir da justia interna rawlsiana ................................. 73
2.2. O Direito dos Povos rawlsiano ............................................................................. 74
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Captulo 3. Interdependncia mundial: uma justificao da tolerncia global............... 79
3.1. Para uma crtica do modelo rawlsiano de representao da realidade
global .......................................................................................................................... 79
3.2. Exemplos empricos de interdependncia global e de interdependncia
entre diferentes esferas ................................................................................................ 87
3.2.1. Ponto 1: inter-relao entre economia e poltica em mbito global ..................... 87
3.2.2. Ponto 2: inter-relao entre meio-ambiente, pobreza e conflito entre
comunidades em mbito global ................................................................................... 92
3.2.3. Ponto 3: inter-relao entre conflitos societais e a poltica, a economia
e a intolerncia em mbito global ................................................................................ 93
3.2.3. Sobre os trs pontos acima ................................................................................ 98
3.3. A interdependncia global, as trocas de influncia e a estrutura bsica ................. 99
Captulo 4. O pluralismo moral global e suas implicaes normativas ....................... 103
4.1. A tolerncia e os povos como sujeitos de direito ................................................. 104
4.2. A crtica neo-hegeliana neutralidade liberal e categoria do
poltico .................................................................................................................... 109
4.2.1. Crtica concepo neo-hegeliana de cultura e identidade ........................... 112
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4.2.2. A inveno e si e do outro e a compatibilidade com os direitos
humanos ................................................................................................................... 118
4.3. A tolerncia e os indivduos como sujeitos de direito no plano global ................. 120
Captulo 5. Para uma crtica kantiana da tolerncia no Direito dos Povos
rawlsiano .................................................................................................................. 126
5.1. Sobre a relao entre os conceitos de Moral e Direito ......................................... 126
5.2. Sobre as relaes entre as Idias de estado de natureza, contrato
originrio e Direito .................................................................................................... 129
5.3. Sobre a moralidade do Direito em seus trs nveis .............................................. 132
5.3.1. Sobre os artigos preliminares para a paz perptua entre os Estados .................. 132
5.3.2. Sobre os trs nveis kantianos do Direito ......................................................... 136
5.3.2.1. Sobre a necessidade moral das constituies serem republicanas .................. 136
5.3.2.2. Sobre o ideal de federao mundial de repblicas ......................................... 138
5.3.2.3. Sobre o significado do cosmopolitismo ........................................................ 140
5.4. Sobre a razo pblica como fundamentao moral em Kant ............................... 141
5.5. As vantagens normativas dos trs nveis kantianos do Direito............................. 143
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Captulo 6. Consideraes finais: direitos humanos e tolerncia global em
uma perspectiva kantiana da legitimidade dos arranjos polticos................................ 145
6.1. Direitos humanos e crenas compartilhadas ........................................................ 146
6.2. Direitos humanos, tolerncia e legitimidade poltica ........................................... 154
Referncias bibliogrficas ......................................................................................... 160
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CAPTULO 1
INTRODUO QUESTO DA TOLERNCIA SOB A PERSPECTIVA
DO INDIVIDUALISMO TICO
1. 1. Pressupostos e pontos de partida
O presente trabalho discutir a maneira como deve ser interpretado o princpio
de tolerncia liberal no plano internacional e considera que esta questo passa pela
maneira como a igualdade moral entre todos os indivduos deve ser expressa atravs dos
princpios de justia global no que se refere (1) ao tipo de sujeito de direito que
devemos ter por valor, (2) o que depende de como concebemos a vinculao dos
sujeitos a suas comunidades culturais, econmicas, polticas e ao plano global e (3) de
qual o objeto dos princpios da justia global e de qual deve ser a lista de direitos
humanos.
O fato de que vivemos num mundo cada vez mais globalizado e interdependente,
com profundas desigualdades de poder e afluncia entre os pases, em que se
institucionalizam crescentemente instncias inter-estatais e transnacionais e no qual h
muitos padres de produo de desigualdade, torna-se muito necessrio pensar os
princpios de justia que devem regular as aes, abrangncias e escopos das polticas e
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jurisdiscizaes internacionais, assim como os limites para o pluralismo que
admissvel no plano global.
Esta dissertao tentar realizar esta tarefa tomando seis pontos de partida como
vlidos.
1.1.1. A igualdade moral
O primeiro e mais fundamental o axioma da igualdade moral entre todos os
indivduos, segundo o qual todos os seres humanos possuem igual direito de escolher
que concepo de boa vida seguir.
Este ideal coloca a discusso na perspectiva do individualismo tico e de uma
compreenso neo-kantiana da igualdade e da liberdade1.
O individualismo tico tem como valor e unidade ltima de preocupao moral
os indivduos e no qualquer tipo de coletividade cultural, nacional, tnica, poltica
etc.
E o que estou chamando aqui de uma compreenso neo-kantiana da igualdade e
da liberdade uma postura frente ao pluralismo moral que, dada a impossibilidade de
se definir racionalmente uma concepo de bem correta, leva prescrio de um
sistema de justia global (mundial) que prega a prioridade da liberdade como limitao
1 Digo uma compreenso porque a maneira como a igualdade e a liberdade individuais so aqui
interpretadas e defendidas so apenas uma entre vrias concepes possveis e tributrias de Kant.
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recproca2 ou a prioridade da justia3 sobre as concepes de bem como a soluo
possibilitadora do convvio livre e pacfico do diverso4.
A prioridade da justia e da liberdade como limitao recproca essencial
ao cumprimento da exigncia normativa rawlsiana de que a justia crie uma esfera de
inviolabilidade individual5 e da exigncia moral kantiana de que os seres humanos so
fins em si mesmos6. Estas idias reguladoras so indissociveis do axioma da igualdade
moral.
Tudo isso possui conseqncias profundas sobre as reflexes a respeito da
tolerncia e da justia no plano global.
1.1.2. O princpio de legitimidade liberal e o contratualismo
O segundo ponto de partida a suposio da validade normativa do princpio
de legitimidade liberal, formulado por Rawls para o mbito domstico em Uma Teoria
da Justia. De acordo com este princpio, o exerccio do poder poltico s plenamente
justificado quando exercido em consonncia com princpios de justia que se pode
2 Termo de Kant.
3 Termo de Rawls.
4 Dito de outro modo, trata-se de conceitos que se constroem em conjunto. Somada a igualdade entre os
seres humanos impossibilidade de se descobrir racionalmente qual a melhor concepo de boa vida, deve-se reconhecer sua igualdade moral que o igual direito de escolher que concepo de boa vida praticar e perseguir, desde que respeitado o igual direito do outro seja este diverso de si e/ou concorrente pelos mesmos recursos escassos. A expresso convvio livre e pacfico do diverso foi inspirada no termo convvio do diverso, de Abdul-Nour (1999). Creio que acrescentar as palavras pacfico e livre no altera o sentido da argumentao normativa da autora, pois o convvio do diverso existe e sempre existiu, o que os neo-kantianos querem que ele se d segundo a Idia (conceito racional) kantiana de paz, que conforme a Idia kantiana de liberdade. Todos estes conceitos sero trabalhados ao longo desta dissertao. 5 Isso ser melhor trabalhado no captulo 2.
6 Isso ser melhor trabalhado no captulo 5.
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esperar razoavelmente que fossem aceitos por todos os que vivem sob eles, inclusive os
que se situam nas piores posies da estrutura bsica da sociedade7.
Em relao ao problema da tolerncia, isso implica que os princpios devem
poder ser justificados (1) queles que se encontram em uma minoria cujas convices
religiosas, polticas, morais ou de outro tipo divergem daquelas da maioria e (2) queles
que possuem convices excntricas dentro do grupo minoritrio ou majoritrio em que
nasceram. importante lembrar que minorias religiosas, culturais, tnicas, nacionais e
polticas no so, necessariamente, grupos scio-economicamente desfavorecidos8.
Neste trabalho, supe-se que o princpio de legitimidade liberal tambm
aplicvel justia global, o que significa que devemos pensar na aceitabilidade das
diversas interpretaes do princpio de tolerncia liberal para os indivduos pior
posicionados na estrutura bsica global, sendo que o que torna estas posies menos
favorecidas em relao a outras podem ser motivos religiosos, culturais, nacionais,
polticos, tnicos, scio-econmicos, de gnero e sexualidade etc. e podem ocorrer em
conjunto ou separadamente.
1.1.3. O argumento da arbitrariedade moral
Segundo Rawls, socialmente, produz-se bens que no seriam alcanados por
indivduos isolados e, portanto, a distribuio dos benefcios e encargos da cooperao
social deve ser conforme princpios de justia que todos incluindo os que esto em
7 Este conceito ser trabalhado adiante.
8 Por exemplo, na Indonsia, a minoria chinesa discriminada e, freqentemente, vtima de perseguies
e, no entanto, economicamente muito bem sucedida.
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pior situao poderiam aceitar voluntariamente, o que acontece se os termos propostos
forem razoveis. Isto depende de que os princpios de justia propostos no sejam
influenciados por aspectos da realidade social que sejam arbitrrios do ponto de vista
moral. Algo arbitrrio do ponto de vista moral quando fruto dos acasos da
distribuio natural de qualidades e de contingncias sociais. Isto , as arbitrariedades
morais geram vantagens que no foram merecidas, porque so fruto dessa distribuio
natural de qualidades e das contingncias sociais. Assim, moralmente arbitrrio que
algum consiga um maior acesso a vantagens sociais porque nasceu em uma
determinada classe, etnia, gnero ou com determinadas caractersticas fsicas ou
talentos9.
Seguindo Rawls, considerarei que no justo que as perspectivas de xito dos
indivduos sejam limitadas por arbitrariedades morais. E, de acordo com autores que
pretendem fazer uma crtica rawlsiana10 ao Direito dos Povos de Rawls, defenderei que
o nascimento em um determinado pas ou regio do mundo tambm uma
arbitrariedade moral.
1.1.4. A idia de neutralidade liberal
O quinto ponto de partida mais uma explicao do uso de uma expresso do
que um ponto de partida. A idia liberal de que os princpios de justia e os direitos
humanos devem ser neutros diante das diversas concepes de bem recorrente em
9 Rawls, 1993, pp. 35-36.
10 Isto , uma crtica ao Direito dos Povos de Rawls inspirada no liberalismo igualitrio de Rawls.
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vrios autores aqui utilizados e freqentemente criticada por multiculturalistas e
comunitaristas.
Nesta dissertao assim como em vrios autores a neutralidade liberal
entendida apenas como o no uso do aparato coercitivo estatal para implementao de
doutrinas abrangentes11 especficas, prprio de uma perspectiva normativa da justia
conforme a liberdade como limitao recproca, a prioridade da justia e o
individualismo tico.
1.1.5. O horizonte de justificao
O quinto ponto que, seguindo Onora ONeill, usarei o modo e os referenciais
de fundamentao liberais neo-kantianos sejam eles aplicados aos mbitos nacionais
ou no para pensar a justia global em sua especificidade12. Sendo que o que estou
considerando como especificamente liberal e neo-kantiano a conjuno dos valores da
igualdade moral, do universalismo moral, do individualismo tico, da prioridade da
justia e da liberdade como limitao recproca.
Como a autora acima, acredito que seja legtimo dar esse salto, porque o
horizonte de legitimao liberal no se pretende ancorado a nenhum universo cultural e
11 Este termo ser explicado adiante.
12Ela o faz tanto em ONeill (1988), quanto em ONeill (2003). Ela pode faz-lo sem interpretar de maneira infiel os autores a que se refere porque trabalha mais os mtodos e pressupostos de fundamentao do que os princpios de justia universais e alm fronteiras nacionais em si mesmos. Estes so atingidos e formulados via discusso dos mtodos e pressupostos de sua justificao moral.
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nem cercado por fronteiras nacionais ou ideolgicas13, visando princpios que devem ser
neutros frente s culturas e comunidades e a qualquer arbitrariedade moral.
Alm disso, os documentos de direitos humanos dos organismos multilaterais
como a Organizao das Naes Unidas afirmam internacionalmente direitos que se
pretendem aplicveis a todas as realidades nacionais existentes e que devem ser
respeitados por todos os Estados do mundo.
1.1.6. O Direito dos Povos rawlsiano
O texto usa freqentemente a teoria rawlsiana da justia como eqidade e do
Direito dos Povos como referencial em torno do qual a exposio do debate
organizada. Isso se deve em grande parte enorme importncia da perspectiva
rawlsiana para as teorias normativas produzidas contemporaneamente. A maioria dos
autores, em um momento ou outro, discute o modelo rawlsiano, seja para endoss-lo,
seja para critic-lo. Aqui, o Direito dos Povos ser uma referncia norteadora porque
apresenta duas objees formulao de um ideal de justia global universalista e
individualista que so muitssimo presentes e importantes nos debates de filosofia da
justia. Estas objees so (1) a de que no existe uma sociedade global e uma estrutura
bsica da sociedade global anlogas s existentes no plano domstico e, (2) iria contra o
esprito de tolerncia liberal obrigar povos no-liberais decentes a adotarem
concepes liberais de justia e direitos humanos, pois os indivduos pertencentes a
13ONeill, 1988, p. 714.
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estas sociedades tm o direito de terem a sua filiao cultural respeitada14. Considero
que a reflexo sobre estas duas objees fundamental para a construo de uma
interpretao do ideal de tolerncia liberal normativamente adequada ao plano global e,
portanto, vou utiliz-las como motivo principal do modo de pensar e expor presente
neste trabalho15.
1.2. Introduo ao problema da tolerncia
Como este trabalho pretende ser uma investigao terica a respeito da
interpretao do ideal de tolerncia liberal a partir da perspectiva da justia global, faz-
se necessrio iniciar explicitando o que ser aqui entendido como questo de
tolerncia e qual ser a abordagem aqui utilizada.
1.2.1. Advertncia
Existem muitas definies distintas de tolerncia, sendo que vrias delas se
opem entre si. Alm disso, a histria do conceito de tolerncia bastante vasta.
Comumente, narra-se esta histria a partir dos conflitos religiosos da poca da Reforma
e da Contra-Reforma e dos escritos de Locke e Voltaire, passando por John Stuart Mill
e sua preocupao com a tirania social exercida pelas maiorias e chegando at autores
14 Ambas as objees sero explicadas e discutidas adiante.
15 Isso ficar mais claro ao longo do texto.
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contemporneos. No entanto, pensadores cristos, judeus e muulmanos comearam a
discutir o problema da coexistncia entre as diferentes crenas religiosas bem antes do
surgimento do protestantismo, como pode ser visto nos escritos de Averroes,
Maimnides e Agostinho. Esta dissertao no pretende construir um panorama de toda
esta discusso ou ter uma abordagem histrica dos diversos autores que trataram do
problema da tolerncia, pois esta tarefa estaria acima das minhas foras. Esforar-me-ei
para ser fiel aos conceitos e argumentos dos autores que utilizar, no entanto, este
trabalho restringe-se ao problema da interpretao do ideal de tolerncia numa
perspectiva contratualista de justia global e direitos humanos e no trata o problema da
interpretao correta e da coerncia interna destes autores. Abstraindo de uma histria
do debate sobre a tolerncia, o conceito de tolerncia que ser construdo e defendido
neste trabalho uma interpretao que pretende ser ancorada no individualismo tico,
coerente com o axioma da igualdade moral e fundada no pensamento contratualista
contemporneo.
Feita esta advertncia, tentemos cercar o problema da tolerncia a partir de
alguns elementos sempre presentes no debate.
1.2.2. Caractersticas gerais da tolerncia
Uma caracterstica central das questes de tolerncia que existem nos conflitos
entre diferentes concepes do bem, da boa-vida e do dever ser, sendo que vrios
autores consideram que estas divergncias so uma caracterstica permanente da vida
social, podendo ou no eclodir em atos de intolerncia. Catriona McKinnon chama esta
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situao permanente de circunstncias da tolerncia16, numa aluso clara s
circunstncias da justia de Rawls, que incluem o fato do pluralismo moral como
circunstncia subjetiva da justia.
Dentro destas circunstncias de pluralismo, as crenas, prticas, condutas e
atributos tolerados so considerados moralmente objetveis por aqueles que os toleram.
Nas palavras de Bernard Williams,
We need to tolerate other people and their ways of life only in situations that make it very difficult to do so. Toleration, we may say, is required only for the intolerable. That is it basic problem17.
A partir da relao entre pluralismo moral e caractersticas e atributos
considerados moralmente objetveis, constroem-se vrias descries do problema da
tolerncia. No entanto, apesar das diferenas de abordagem, Catriona McKinnon afirma
que a tolerncia sempre possui seis caractersticas essenciais que a estruturam:
1. Diferena: o que tolerado difere da concepo de dever ser daquele que
tolera,
2. Importncia: as questes que so objeto de tolerncia no so triviais,
3. Oposio: aquele que tolera desaprova e desgosta fortemente do que
tolerado, a ponto de se dispor a alterar ou suprimir o que tolerado,
4. Poder: aquele que tolera acredita possuir poder o suficiente para alterar ou
suprimir ainda que paulatinamente aquilo tolera,
5. No-rejeio [non-rejection]: aquele que tolera no exerce o poder que
acredita possuir para alterar ou suprimir aquilo que desaprova ou desgosta
fortemente,
16 McKinnon, 2005, p. 6.
17 Williams, 2000, p. 65.
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24
6. Exigncia [requirement]: a tolerncia um direito e aquele que tolera
virtuoso, e/ou justo, e/ou prudente18.
As caractersticas 1 a 4 fazem parte do que McKinnon considera serem as
circunstncias da tolerncia e as caractersticas 5 e 6 referem-se atitude tomada por
aquele que tolera (absteno de interferncia) e sua justificao (pela moralidade ou
pela prudncia)19.
1.2.3. Linhas gerais do debate
A partir destas seis caractersticas estruturais, h vrias formulaes diferentes
do conceito e do problema da tolerncia. Sendo que podemos considerar, em um
primeiro momento, que as duas vertentes mais importantes de reflexo sobre a
tolerncia so a liberal e a multicultural ou comunitarista. Ao longo desta dissertao,
apresentarei este debate a partir dos seguintes pontos de divergncia terica:
Quais diferenas devem ser includas nas teorias sobre a tolerncia:
gnero, sexualidade, raa, etnia, nacionalidade, religio, cultura,
ideologia cultural. E como o liberalismo e o comunitarismo pensam essas
diferenas e pertencimentos.
Se a tolerncia requer sujeitos de direitos individuais ou coletivos.
Dentro disso, questiona-se se o modelo liberal de neutralidade tolerante
18 McKinnon, 2005, p. 14.
19 McKinnon, 2005, pp. 14-16.
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25
ou se a tolerncia exige polticas de reconhecimento e valorizao da
diversidade.
Se, na formulao de princpios de justia e direitos humanos, a
tolerncia deve ser pensada enquanto virtude institucional ou social.
Se a idia e o valor da autonomia individual so indispensveis
justificao da tolerncia.
Se a justificao moral da tolerncia requer a existncia de uma
moralidade compartilhada.
1.2.4. A controvrsia entre liberais e comunitaristas a respeito da tolerncia e do
problema do pertencimento a coletividades
Comecemos pela apresentao do cerne do debate entre liberais e comunitaristas
a respeito da tolerncia.
De acordo com Anna Elisabetta Galeotti, a concepo de tolerncia mais
largamente difundida a que a v como o princpio liberal que prescreve que cada
pessoa deve ser livre para seguir seus ideais e estilo de vida na medida em que no
prejudica o outro, sendo o princpio do dano de Mill [harm principle] o que d o limite
da tolerncia20.
Segundo a autora, essa concepo tem como pano de fundo a idia de que as
circunstncias que geram problemas de tolerncia so aquelas em que grupos ou
20 Galeotti, 1993, p. 587.
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indivduos com diferenas importantes so desaprovados por grupos que possuem o
poder de interferir sobre essas diferenas21 e a maneira do liberalismo lidar com isso
costuma ser a construo de algum tipo neutralidade estatal frente certas prticas e
esferas sociais, como a religio, concepes de bem e preferncias culturais22. Assim,
segundo Galeotti, a tolerncia poltica liberal23 a virtude das ordens polticas que
constroem a coexistncia pacfica entre as diferenas que no se harmonizam
espontaneamente24, por meio de uma neutralidade estatal frente a diferenas que se
situam na esfera privada, sendo reservado a todos um tratamento igual na esfera
pblica25. Nas palavras de Bernard Williams, no modelo liberal, as pessoas pertencem
a comunidades unidas por convices compartilhadas sobretudo religiosas e a
tolerncia construda a partir da distino entre essas comunidades e o Estado. O
Estado no se identifica com nenhum corpo especfico de crenas e no os pratica ou
fortalece; ao mesmo tempo, o Estado no permite que nenhum grupo imponha suas
crenas sobre outros26:
This is the model of liberal pluralism. It can be seen as enacting toleration. It expresses tolerations peculiar combination of conviction and acceptance, by finding a home for peoples various convictions in groups or communities less than the state, while the acceptance of diversity is located in the structure of the state27.
Ainda segundo Williams, trata-se de um modelo em que a sociedade se mantm
unida por uma estrutura de direitos e pela aspirao por igual respeito, mais do que por
21 Galeotti, 1993, p. 587.
22 Galeotti, 1993, p. 588.
23 Advirto que no tenho o pretenso de criar um conceito ou uma categoria do que o liberalismo e do
que a concepo liberal do pluralismo e da tolerncia. E, em particular, neste primeiro captulo, os trechos em que eu utilizar os termos liberal, liberalismo e tolerncia liberal sero pargrafos que remetem a crticas a posturas normativas liberais e no podemos nos esquecer que o liberalismo no uma corrente ideolgica coesa e homognea, como muitos de seus crticos supem. O liberalismo que defendo nesta dissertao possui um teor liberal igualitrio baseado em John Rawls e filiado a verses kantianas do contratualismo liberal. 24
Galeotti, 1993, p. 588. 25
Galeotti, 1993, p. 589. 26
Williams, 2000, p. 69. 27
Williams, 2000. p. 70.
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um corpo amplo e especfico de convices substantivas compartilhadas. E isso requer
um ideal de cidadania informado pela idia de autonomia individual28. Isso se conecta
com o problema apontado por Galeotti de que o pluralismo concebido como um
pluralismo de concepes de bem que poderiam ser reduzidas a preferncias e escolhas
individuais situadas na esfera privada:
Pluralism is basically conceived of as pluralism of the conceptions of the good. In this way, all relevant differences, that is, all differences that create problems of toleration, can be conceptualized and reduced to individual claims and demands. Two consequences follow: first, relevant differences are basically treated as if they were matters of choice, which implies that ascriptive differences as such are not recognized as germane to the problem. Second, public actions and omissions prescribed by the neutrality principle concern rights and liberties of individuals. The problems arising from social differences, including ethnic, linguistic, and sexual, are thus ignored29.
Ainda segundo Galeotti, esse modelo no d conta do fato de que os problemas
de tolerncia genunos no surgem quando h indivduos excntricos e sim quando h
grupos diferentes percebidos como ameaa e esses grupos incluem diferenas religiosas,
culturais, de concepo de bem, tnicas, lingsticas e de gnero que nem sempre pode
ser reduzidas a reivindicaes e direitos individuais30.
Para esta autora, devemos construir uma concepo de tolerncia em que o
respeito igual por diferentes grupos humanos seja reconhecido como indispensvel ao
respeito pelos indivduos. Essa concepo amplamente difundida entre aqueles que se
auto-denominam liberais multiculturais, multiculturalistas e comunitaristas e tambm
entre antroplogos, como mostram Karen Engle, Ellen Messer e Ann-Belinda Preis31.
Essa concepo de tolerncia vinculada idia de que h um direito humano cultura
28 Williams, 2000, p. 71.
29 Galeotti, 1993, p. 590.
30 Galeotti, 1993, p. 590.
31 Messer, 1993. Engle, 2001. Preiss, 1996.
-
28
que se expressa em direitos culturais. Isso est no Statement on Human Rights
elaborado pela American Anthopological Association em 1947 e aparece com a mesma
fora na Declaration on Anthropolgy and Human Rights produzida pela AAA em 1999.
Segundo Engle, o cerne desses dois documentos a advertncia contra declaraes de
direitos humanos e concepes de tolerncia que no do o devido valor s
particularidades culturais e isso domina amplamente o modo como o antroplogos
pensavam e pensam a tolerncia e os direitos humanos:
Todays pro-rights anthropologists continue to struggle with the same issues that the 1947 AAA Board confronted regarding the limits of tolerance. In particular, the question of how one might be a cultural relativist and still make overt political judgments guides todays Human Rights Committee in much the same way it guided the 1947 Board. () Neither the AAAs substantive political commitments nor its understandings of culture have changed significantly since the 1947 Statement32.
Como Galeotti, os antroplogos defendem que a tolerncia deve ser concebida
como o respeito a diferenas que pertencem ao grupo e que no so escolhas
individuais. Mas, diferentemente de Galeotti, o vocabulrio antropolgico a respeito da
tolerncia se estrutura em torno das diferenas culturais. Sobre isso necessrio
salientar dois pontos.
O primeiro que os conceitos de cultura construdos pela Antropologia incluem
um nmero muito maior de instituies, prticas e idias do que o conceito coloquial e
senso comum da cultura. Como mostra Amelie Rorty, muitos antroplogos culturalistas
tratam a cultura como um modo de vida abrangente, que inclui raa, etnia, gnero,
classe, idade, lngua e os campos comumente separados da natureza, da polis e da
cultura [categorial distinctions between nature, polis, and culture]. Assim,
quando um antroplogo advoga direitos culturais e uma tolerncia s culturas diferentes,
32Engle, 2001, p. 537.
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29
pode estar falando de um mundo mais amplo do que o das concepes de bem e boa
vida. A crtica de Galeotti tolerncia liberal diz que o problema que esta concepo
atrela demais as diferenas a questes culturais entendidas como escolha de concepo
de bem e boa vida.
O segundo ponto que gostaria de realar que a crtica que fala que a concepo
liberal de tolerncia v a cultura como uma questo de escolha individual aposta demais
na ingenuidade liberal frente ao conceito e funcionamento da cultura. Os liberais sabem
que a cultura e a sociedade do o horizonte semntico e a viso de mundo dos
indivduos e que as escolhas individuais so formadas social e culturalmente. Os liberais
percebem que a cultura forma a viso de mundo e que, nas experincias subjetivas, isso
pode ser tanto confortvel como para a maioria quanto desconfortvel no caso
das minorias internas aos grupos (os excntricos de que falam Galeotti e Kautz33) e dos
grupos minoritrios que carregam estigmas. E a maneira como isso se constri
cotidianamente profundamente coercitiva, pois tolhe as alternativas semnticas
possveis e tolhe as escolhas possveis de serem endossadas dentro do leque de
alternativas semnticas. Ou seja, a cultura tanto constri significados e alternativas
quanto impede significados e alternativas de serem formados e escolhidos. este um
dos motivos pelos quais os liberais procuram elaborar regimes institucionais de
tolerncia nos quais os indivduos no sejam obrigados a seguir as escolhas abraadas
pela maioria. E porque a igualdade moral deve englobar a todos igualmente, que dar
direitos aos excntricos pode ser to importante quanto dar direitos s pessoas
pertencentes s minorias.
33 Galeotti, 1993. Kautz, 1993.
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30
por isso que Galeotti subestima o problema dos indivduos excntricos ao
afirmar que eles nunca criaram problemas genunos de tolerncia e, ao mesmo tempo,
apresenta um insight interessante ao dizer que no se trata apenas de prover tolerncia
aos indivduos que formulam escolhas que no so ortodoxas:
What is demanded is not simply to leave people free to believe and express unorthodox views and to behave eccentrically. Indeed, the eccentric, the snob, and even the libertine have never created genuine problems of political toleration. What is at stake is the contrasted recognition of collective rights for the different groups34.
O problema da concepo de tolerncia de Galeotti considerar que o fato de
que a tolerncia no pode se reduzir a questes de escolhas individuais implica que sua
soluo se d via direitos coletivos que possibilitem reconhecimento35.
Assim como Anna Elisabetta Galeotti, Thomas Scanlon tambm reala o fato de
que o problema da tolerncia no pode ser reduzido intelectualmente a questes de
escolhas e preferncias individuais, citando em particular o fato de que as pessoas no
podem escolher sua raa e seu gnero36. E Walzer, em On Toleration, tambm inclui a
diferena tnica e racial, a diferena de gnero, a diferena de classe scio-econmica e
a diferena de grupo nacional como questes de tolerncia tanto quanto a diversidade
religiosa, poltica e de concepo de bem37.
Seguindo estes trs autores, parece-me importante considerar que a abordagem
da tolerncia que a reduz intelectualmente a escolhas individuais realmente no d conta
da intolerncia surgida do pertencimento a grupos. E a contribuio terica prestada por
autores que mostram que classe, gnero e etnia tambm podem ser formulados
34 Galeotti, 1993, p. 590.
35 Isso ser discutido mais detidamente posteriormente.
36 Scanlon, 2003, p. 188 e p. 191.
37 Walzer, 1997.
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31
socialmente e intelectualmente como geradores de intolerncia no deve ser
negligenciada. Pois, por exemplo, o fato de uma pessoa no ter acesso a um direito por
ser negra uma prtica intolerante to grave para quem a sofre quanto no ter acesso a
um direito por no ser catlica, ainda que uma pessoa possa se tornar catlica, mas
nunca deixar de ser negra. E, indo alm, ser obrigada a deixar sua religio e se converter
ao catolicismo para conseguir acesso a um direito tambm uma violao de direito.
Por tudo isso, a formulao de Scanlon, segundo a qual
the advocacy of tolerance denies no one their rightful place in society. It grants to each person and group as much standing as they can claim while granting the same to others38,
parece-me uma exigncia normativa que d conta da interpretao do ideal de
tolerncia de um modo superior, pois leva a uma concepo de tolerncia que, em sua
noo de rightful place in society engloba a exigncia de que as pessoas devem ser
amplamente toleradas mesmo carregando diferenas dos mais diversos tipos (religiosa,
de concepo de bem, cultural, social, econmica, tnica e de gnero). Vejamos o que
isso significa.
Para este autor, a tolerncia requer que aceitemos como iguais as pessoas cujas
prticas desaprovamos fortemente. Assim, do ponto de vista das instituies polticas, a
tolerncia exige que as pessoas cujas diferenas reprovamos possam exercer seus
direitos morais liberdade de expresso, ao voto, a candidatar-se a cargos pblicos,
proteo do sistema legal, ao acesso aos bens pblicos e educao e sade. E, por trs
de tudo isso, exige que o Estado, ao distribuir direitos e obrigaes, no d tratamento
preferencial a um ou alguns grupos e indivduos em detrimento de outros39.
38Scanlon, 2003, p. 197. 39
Scanlon, 2003, pp. 187-189.
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32
E Scanlon acrescenta que, para que uma sociedade seja verdadeiramente
tolerante, o direito s liberdades acima mencionadas no deve ser apenas formal, sendo
necessrio que os indivduos e grupos tenham meios efetivos para trazer suas opinies a
pblico e para influenciar os rumos da sociedade poltica de que fazem parte40.
Trata-se de uma concepo de tolerncia bastante exigente, como se pode
verificar nas prpria palavras do autor:
I have said that toleration involves accepting as equals those who differ from us. In what I have said so far, this equality has meant equal possession of fundamental legal and political rights, but the ideal of equality that toleration involves goes beyond these particular rights. It might be stated as follow: all members of society are equally entitled to be taken into account in defining what our society is and equally entitled to participate in determinating what it will become in the future. This idea is unavoidably vague and difficult to accept. It is difficult to accept insofar as it applies to those who differ from us or disagree with us, and who would make our society something other than what we want it to be41.
Segundo Scanlon, justamente o desejo de que aqueles de quem discordamos
no influenciem os rumos da sociedade em que nascemos que produz restries legais e
polticas para que certas formas de comportamento e atitude no sejam disseminadas e
at mesmo para que sejam criminalizadas42. Assim, voltamos idia defendida por
Galeotti de que os problemas de tolerncia surgem quando uma parcela da sociedade se
sente ameaada pelas diferenas que percebe em outros grupos. Isso nos leva a uma
outra questo, a de que a tolerncia uma virtude que pertence a pelo menos duas
dimenses da vida em sociedade: a das interaes entre as pessoas e grupos e a das
instituies e arranjos polticos.
40 Scanlon, 2003, pp. 189-191.
41 Scanlon, 2003, p. 190.
42 Scanlon, 2003, p. 191.
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33
1.2.5. Tolerncia: virtude poltica e virtude social
Estas duas dimenses aparecem tanto nos trabalhos de Galeotti quanto nos de
Scanlon.
Nos termos da primeira, a tolerncia uma virtude social, no sentido de que
socialmente praticada nas interaes entre os atores, e uma virtude poltica quando
est impressa nas instituies e arranjos polticos43. Nas palavras de Scanlon, a
tolerncia faz parte da poltica formal [formal politics], ou seja, dos arranjos
institucionais que vem os cidados como iguais, e da poltica informal [informal
politics], isto , do plano atitudinal [a matter of attitude]44.
Parece-me indubitvel que ambas as dimenses existem e que ambas so
importantes para a convivncia pacfica e livre em uma realidade de pluralismo moral.
O modelo que Bernard Williams chama de liberal, em que a aceitao da
diversidade se situa na estrutura do Estado e em que a diversidade pertence aos grupos e
comunidades, um modelo que pensa a tolerncia enquanto virtude poltica. A defesa
dessa abordagem no nega que seja necessria a existncia da tolerncia no plano das
virtudes sociais, como mostra o fato de que, Kant e Rawls autores fundamentais
para a corrente normativa liberal e que defenderam amplamente que o Estado deve ser
tolerante compreendem que a tolerncia tambm importante na poltica informal.
Tanto que Kant se deteve profundamente sobre questes de tica individual, como pode
ser verificado em A Doutrina da Virtude45 e Rawls criou conceitos para lidar com
43 Galeotti, 1993, p. 588.
44 Scanlon, 2003, p. 190.
45 Kant, 2004b.
-
34
caractersticas sociais do pluralismo moral, como os de razoabilidade e doutrinas
abrangentes razoveis46.
No entanto, apesar de ambas as dimenses da tolerncia serem importantes, este
texto se insere no campo da filosofia da justia dos arranjos institucionais e procura
lidar com o problema de como a tolerncia melhor realizada nos arranjos polticos e
melhor incorporada pelos princpios de justia e de direitos humanos. Essa reduo de
escopo se justifica, principalmente, pelo fato de que este o plano sobre o qual incide a
ao estatal. A tolerncia enquanto problema de virtude social e de poltica
informal um problema muito mais espinhoso e difcil de resolver e que depende
muito mais das crenas cultivadas pelos diversos grupos que vivem sob um mesmo
Estado.
Nesta dissertao, como ficar claro ao longo do texto e como ser justificado
em diversos momentos, considerar-se- que a tolerncia deve ser entendida como uma
caracterstica dos arranjos institucionais que possibilite que cada um ocupe seu lugar de
direito na sociedade [their rightful place in society] de acordo com uma norma de
liberdade como limitao recproca e de prioridade da justia. E este lugar de
direito inclui o direito efetivo de que cada um persiga os seus ideais de boa-vida
independentemente de suas caractersticas e diferenas culturais, sociais, religiosas,
polticas, econmicas, tnicas, de gnero etc., tendo como nico limite o igual direito do
outro. Se considerarmos esta interpretao do ideal de tolerncia vlida para o plano
global, a concepo de justia global da derivada estar ancorada no individualismo
tico e no axioma da igualdade moral universal.
46 Estes conceitos sero discutidos adiante.
-
35
No entanto, preciso salientar que nem todos os pensadores que olharam a
tolerncia do ponto de vista institucional defendem este vis individualista, universalista
e liberal.
Vale lembrar que Walzer tambm analisa a tolerncia dos regimes polticos, mas
de um modo bastante distinto do exposto no pargrafo acima. Em On Toleration47,
Walzer afirma que a tolerncia no um entitlement mnimo e que ela pode tomar
muitas formas distintas e ser praticada atravs de arranjos muito diferentes, existindo
regimes de tolerncia muito diversos48. Para ele, a tolerncia e a coexistncia pacfica
podem tomar formas polticas diferentes, com implicaes diferentes para as interaes
entre pessoas e os grupos. E nenhuma dessas formas universalmente vlida: no h
princpios que governem todos os regimes de tolerncia ou se apliquem a todas as
pocas e lugares. Walzer afirma que argumentos proceduralistas e contratualistas como
o de Rawls no nos ajudam a pensar o problema da tolerncia porque no so
circunstanciais, isto , no se diferenciam conforme o tempo e o local. E defende a
construo de uma abordagem histrica e contextual da tolerncia e da coexistncia49.
Nesta linha, este autor descreve e discute cinco tipos de regimes de tolerncia: os
imprios multinacionais, a sociedade internacional, as consociaes, os Estados
nacionais e as sociedades de imigrantes. Esses cinco tipos endeream sua tolerncia
diferentemente. Os imprios multinacionais toleram comunidades com diferentes modos
de vida, podem implementar a tolerncia entre comunidades de modo mais ou menos
repressivo e deixam a cargo das comunidades a maneira como elas tratam seus
membros50. A sociedade internacional composta por Estados soberanos que no
47Walzer, 1997. 48
Walzer, 1997, p. xii. 49
Walzer, 1997, pp. 2-3. 50
Walzer, 1997, pp. 14-19.
-
36
intervm nas polticas internas um do outro51. Nas consociaes, grupos diferentes
convivem e so tolerantes entre si, deixando a cargo de cada grupo a deciso de como
seus membros so tratados e podendo ou no haver igualdade poltica entre os grupos52.
Nos Estados nacionais, um grupo dominante organiza a vida comum de uma maneira
que reflete a sua prpria histria e cultura e que pretende reproduzir esta cultura para as
prximas geraes; os Estados nacionais no so neutros entre histrias e culturas, pois
seu aparato estatal um engenho de reproduo nacional; pode haver tolerncia para
com as minorias, mas estas no recebem a autonomia que tm nos imprios
multinacionais e nas consociaes; os Estados nacionais dirigem sua tolerncia para os
cidados e, ao mesmo tempo em que os Estados-nao so menos tolerantes com os
grupos, obrigam os grupos a serem mais tolerantes com os indivduos53. O ltimo
regime de tolerncia descrito por Walzer so as sociedades de imigrantes, nas quais os
grupos tnicos e religiosos sustentam-se a si prprios na forma de associaes
voluntrias [as purely voluntary associations], o Estado pretende-se neutro e tolerante
frente a todos estes grupos, e pretende-se portador de uma identidade poltica, mas no
de uma identidade nacional54. Apesar das formas bastante diferentes de tolerncia e
tratamento da diferena nesses cinco regimes, Walzer considera que o melhor arranjo
poltico para um povo depende da histria e da cultura deste povo. Isso no aplica a
defesa de um relativismo completo, pois uma determinada caracterstica de um arranjo
s se torna uma opo moral se possibilitar coexistncia pacfica e respeito a direitos
humanos bsicos55. A moralidade internacional possvel, segundo Walzer, apenas uma
51 Walzer, 1997, pp. 19-21.
52 Walzer, 1997, pp. 22-24.
53 Walzer, 1997, pp. 25-30.
54 Walzer, 997, pp. 30-33.
55 Walzer, 1997, p. 5.
-
37
moralidade fina [thin], pois noes cheias [thick] da justia dependem de entendimentos
e interpretaes compartilhadas que existem em sociedade, mas no entre sociedades56.
Esta no ser a interpretao do ideal de tolerncia utilizada neste trabalho por
vrios motivos j explicados. O que h em comum entre a perspectiva walzeriana e a
que adotarei neste trabalho apenas o foco na tolerncia prpria dos arranjos polticos,
isto , na tolerncia enquanto virtude poltica, pois Walzer combina a tolerncia como
virtude poltica com a defesa dos direitos coletivos e culturais e com a exigncia de que
a moralidade dos arranjos de justia se assentem sobre entendimentos compartilhados.
Ao se afastar do individualismo tico entendido como adoo dos indivduos como
unidade ltima de valor moral e defender regimes de tolerncia que toleram
comunidades e grupos, Walzer deixa as pessoas merc de arbitrariedades morais em
nome da tolerncia s diferenas culturais. E ao considerar que uma abordagem
histrica e contextual da tolerncia a mais adequada para se pensar normativamente a
tolerncia e que a interpretao mais adequada do ideal de tolerncia precisa se ancorar
em valores mundialmente compartilhados, Walzer constri um modo de pensar a
tolerncia que no permite a afirmao de uma lista de direitos humanos
suficientemente protetora contra as arbitrariedades morais. Se considerarmos necessrio
uma moralidade universalmente compartilhada para que princpios de tolerncia sejam
normativamente vlidos, nem mesmo uma moralidade mnima como a que condena
genocdios, limpeza tnica, colonizao de um pas por outro e tortura seria justificvel,
pois, no mnimo aqueles que praticam estes atos no compartilham os valores morais
que reivindicam a extino destas prticas. Vejamos alguns exemplos particulares
bastante graves:
56 Walzer, 1994.
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38
O direito de ir e vir no pode ser justificado por entendimentos
mundialmente compartilhados, dado que h culturas em que no se concebe
que as mulheres possam ir e vir sem o consentimento do pai, marido ou
irmo. Citando apenas um caso, em 2007, na Cisjordnia, B. A. matou sua
irm casada de 29 anos a tiros, sob alegao de que esta saa de casa sem o
consentimento do marido e falava com outros homens por celular, o que
constitua conduta imoral. O ru no foi condenado aos 15 anos de priso
que o seu pas reserva ao crime de assassinato com base em artigo do Cdigo
Penal que estabelece que, em crimes cometidos em lampejo de fria devido
a um ato ilegtimo ou perigoso da vtima, o ru tem pena reduzida. Este
artigo se aplica de forma discriminatria em casos de violncia contra
mulheres, majoritariamente, para desculpar homicdios de mulheres
cometidos por homens57.
O direito de livre exerccio da sexualidade tambm no passaria pelo texto
da moralidade compartilhada, pois h pases em que a homossexualidade
entendida como crime a ser reprimido. Lembremos do caso dos dois jovens
iranianos que, em julho de 2005, receberam 228 chibatadas e foram
enforcados em julho de 2005 por prtica de sexo homossexual58.
O direito liberdade de expresso tambm no faz parte de uma moralidade
compartilhada. Em um caso ocorrido em 2008, Sayed Perwiz Kambakhsh foi
encarcerado e condenado morte em Mazar-e-Charif, por, supostamente, ter
publicado um texto sobre os direitos das mulheres no Coro. Seus familiares
e conhecidos alegam que o jovem nunca escreveu ou publicou este texto e
57 http://www.br.amnesty.org/index_noticias.shtml?sh_itm=05077fc7a286403c926836ad9108d72d
(01/05/2008). 58www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=103228&grupo=196186&topico=2749886&pag=1 (01/05/2008).
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39
que a condenao uma represlia ao seu irmo, o reprter Sabed Yagub
Ibrahimi, refugiado em Paris. O julgamento ocorreu secretamente e sem
respeito ao devido processo legal59.
Estes so apenas trs exemplos, mas, basta lermos atentamente os jornais para
colecionarmos casos de graves violaes de direitos humanos ligadas a questes de
tolerncia. Os trs casos citados acima envolvem intolerncia tanto no plano das
formal politics, pois as condenaes foram cometidas pelos Estados, e tambm no
mbito das informal politics. As sociedades destes pases, mesmo que de maneira
heterognea, possuem e atualizam relaes e significados sociais e culturais que
permitem a efetivao destes casos de intolerncia grave.
essa relao estreita entre as dimenses formal e informal das polticas de
tolerncia que levam vrios autores a defender que a tolerncia enquanto virtude poltica
exige polticas de reconhecimento. Autores como Galeotti, Sandel, Rorty e Taylor
consideram que no h tolerncia sem reconhecimento e que o reconhecimento um
direito coletivo. E isso transparece na concepo de direitos humanos formulada por
Charles Taylor em A World Consensus on Human Rights? 60, que traz o problema dos
direitos culturais para as discusses de justia e tolerncia internacionais.
59 http://www.rsf.org/article.php3?id_article=26178 (01/05/2008).
60 Taylor, 2001.
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40
1.2.6. A relao entre autonomia individual e tolerncia e a possibilidade de uma
concepo de tolerncia global
Uma outra questo importante a respeito da possibilidade de uma tolerncia
global conforme o individualismo tico a relao entre o ideal de tolerncia e o ideal
de autonomia individual. Vrios autores consideram que o ideal de tolerncia requer a
validade de alguma interpretao do ideal de autonomia individual para sua justificao
normativa e para sua efetivao no mundo real. Se isso for realmente indispensvel, a
defesa de uma perspectiva universalista e individualista da tolerncia carrega um ideal
de boa vida excessivamente cheio61 e incompatvel com uma realidade mundial plena de
pluralismo moral.
Vejamos brevemente dois autores que tratam do problema da relao entre a
autonomia individual e a tolerncia e que a utilizam para pensar a possibilidade e a
impossibilidade da tolerncia: Bernard Williams62 e Michael Ignatieff63.
Tratemos primeiramente de Bernard Williams, que coloca explicitamente a
questo da indispensabilidade do ideal de autonomia individual para a justificao
liberal da tolerncia. Olhando para a realidade, o autor afirma que, em muitas reas de
conflito, a intolerncia cessou porque aumentou a indiferena em relao aos
comportamentos anteriormente considerados ofensivos. Esse foi o caso da maior
tolerncia em relao ao comportamento sexual e da menor tenso religiosa entre os
61 Uma doutrina abrangente, nas palavras de Rawls. Este conceito ser explicado e trabalhado
detidamente adiante. 62
Williams, 2000. 63
Ignatieff, 2000.
-
41
grupos religiosos cristos. Assim, de um modo geral, as fontes da tolerncia so o
ceticismo, a indiferena, vises religiosas mais tolerantes para com o que as Igrejas
consideram moralmente errado e equilbrios hobbesianos entre os grupos que
convivem64.
No modelo liberal, representa-se a situao de tolerncia situando-se as
diferenas nos grupos e comunidades e idealizando-se um Estado neutro que aceita a
diversidade. Para Williams, isso requer um modelo de sociedade que se mantm unida
por uma estrutura de direitos e aspiraes por respeito igual, mais do que por um corpo
de convices substantivas compartilhadas. Ou seja, este modelo de sociedade demanda
um ideal de cidadania especfico, sem o qual o modelo do pluralismo liberal no se
sustenta. E este ideal de cidadania se baseia no ideal de autonomia individual65. O
problema, segundo Williams, que defender o modelo liberal de tolerncia atravs de
argumentos de princpio requer um valor que no amplamente compartilhado. O autor
questiona a possibilidade de se encontrar um argumento de princpio que satisfaa as
exigncias normativas da tolerncia liberal, j que esta no se assenta nem sobre o
ceticismo moral e nem sobre contingncias de poder e ainda precisa por princpio
explicar para pessoas racionais com convices profundas contra a autonomia
individual, porque devem apoiar um Estado que pode levar seus valores ao declnio
social. Para que a prtica da tolerncia seja devidamente defendida como valor, faz-se
necessrio apelar para opinies substantivas sobre o bem e, se as nicas concepes de
bem capazes de dar lastro para a tolerncia so aquelas baseadas na autonomia
individual, o ideal de tolerncia pode ser visto como inaceitvel:
The practice of toleration cannot be based on a value such as that of individual autonomy, and also hope to escape from
64Williams, 2000, pp. 67-69. 65
Williams, 2000, pp. 70-71.
-
42
substantive disagreements about the good. This really is a contradiction because it is only a substantive view of goods such autonomy that could yield the value that is expressed by the practices of toleration66.
Isso leva Bernard Williams na impossibilidade ou extrema dificuldade da
tolerncia:
We can now better understand the impossibility or extreme difficulty that was seemingly presented by the personal virtue or attitude of toleration. It appeared impossible because it seemingly required someone to think that a certain belief or practice was thoroughly wrong or bad, and at the same time that there was some intrinsic good to be found in its being allowed to flourish. This does not involve a contradiction, if the other good is found not in that beliefs continuing, but in the other believers autonomy67.
Resumindo ainda mais, o argumento de Williams afirma que aquilo que chama
de modelo liberal da tolerncia no se sustenta normativamente sem o ideal de
autonomia individual, j que apenas a valorizao da autonomia pode justificar
moralmente a aceitao de que outras pessoas cultivem crenas, prticas e atributos que
consideramos condenveis. Antes de passarmos crtica desta linha argumentativa,
vejamos brevemente a forma como Michael Ignatieff formula a relao entre autonomia
e tolerncia e a questo da impossibilidade ou extrema dificuldade da tolerncia.
Michael Ignatieff tenta compreender a psicologia da intolerncia entre grupos
nacionais, tnicos e raciais, vinculando a intolerncia ao narcisismo. Seguindo Freud,
Ignatieff considera que a identidade construda por meio de processos de diferenciao
que possuem um carter intrinsecamente antittico e agressivo68. Nestes processos,
atributos como religio, etnia e territrio so transformados em atributos gloriosos e em
66 Williams, 2000, p. 73.
6767Williams, 2000, pp. 72-73. 68
Ignatieff, 2000, pp. 77-78.
-
43
motivo de orgulho. Um grupo narcisista aquele que mantm a sua coeso canalizando
sua agresso e hostilidade para outros e a intolerncia um circuito auto-referencial no
qual os narcisistas usam o mundo externo apenas para confirmar suas prprias crenas.
Ainda segundo Ignatieff, Freud no explica exatamente porque, mas, quanto maior e
mais sistemtica a super-valorizao de si, maior a desvalorizao dos estrangeiros e
outsiders69.
Ao olhar para os outros grupos, os povos intolerantes olham apenas para
caractersticas que confirmam seus preconceitos e negam a individualidade dos
membros do grupo discriminado, reforando a dicotomia ns/eles. A intolerncia
depende (1) da forma como as pessoas percebem a si prprias, (2) de sua relao com a
identidade coletiva a que pertencem e (3) de suas atitudes em relao ao outro70. Se as
pessoas se auto-valorizam predominantemente atravs de seu pertencimento coletivo, se
os grupos vem seu valor atravs da desvalorizao de outras coletividades e se
consideram os membros dos demais grupos de maneira muito despersonalizada e
excessivamente derivada da identidade coletiva, provavelmente haver conflitos de
tolerncia graves. Assim, uma cultura que considera que a identidade individual
depende menos do pertencimento e nascimento em grupos do que das construes
individuais de si teria menos possibilidade de criar conflitos de tolerncia do que
culturas que consideram que as fontes do valor individual esto nas coletividades:
The habits of mind necessary to toleration may have just as much to do with how persons view themselves and their relation to their own collective identity as they do with their attitudes towards others. The essential tasking in teaching toleration is to help people see themselves as individuals, and then to see others as such. ()
69 Ignatieff, 2000, p. 79-80.
70 Ignatieff, 2000, p. 103.
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For racism and intolerance are, at a conceptual level, procedures of abstraction in which actual, real individuals in all their specificity are despersonalised and turned into ciphers or carriers of hated group characteristics. Often indeed such processes of abstraction have to struggle against the obdurate likeableness of the individual71.
Para Ignatieff, a utopia das sociedades modernas liberais formula um mundo
ideal em que as diferenas coletivas so ignoradas, em que pertencimento tnico, racial,
religioso, de gnero e de orientao sexual no so discriminadas, um mundo de
tolerncia completa. No entanto, dado carter essencialmente antittico das construes
identitrias e a necessidade dos grupos para a formao da identidade individual, surge a
dvida a respeito da plausibilidade psicolgica de uma sociedade e de um mundo
tolerantes. Seria necessrio haver algum grau de intolerncia coletiva para que se
mantivessem fronteiras coletivas indispensveis formao da identidade humana?
Ignatieff diz que Freud no fornece uma resposta a esta pergunta e que resta a esperana
de que a negociao das diferenas na construo das identidades se torne menos
assassina e que os indivduos pensem a si e aos outros de modo menos ds-
individualizado72.
Sintetizando, Michael Ignatieff considera que a tolerncia depende da
possibilidade das pessoas verem a si prprias e aos outros de modo menos vinculado a
grupos de pertencimento e mais autnomo, ao mesmo tempo em que pergunta se isso
psicologicamente possvel, dado o fato de que identidades coletivas so importantes
para a construo dos indivduos.
71 Ignatieff, 2000, pp. 102-103.
72 Ignatieff, 2000, pp. 105-106.
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Muitas idias unem e separam o argumento de Williams e Ignatieff, o ponto que
mais interessa para os objetivos desta dissertao que, em ambos os autores, a
tolerncia exige a valorizao da autonomia porque est no registro das virtudes
sociais.
Conforme visto acima, segundo Bernard Williams, a intolerncia s diminui ou
cessa quando a crena, prtica ou atributo moralmente reprovado perde importncia na
viso de mundo daquele que tolera. Alm disso, o modelo liberal de tolerncia
exigiria, para sua justificao normativa, um modelo de pluralismo em que as
diferenas se restringissem ao plano privado e o ideal de cidadania fosse informado pelo
valor da autonomia individual, no entanto, isto no seria possvel dado o fato de que a
autonomia no uma crena moral amplamente compartilhada. Os exemplos que o
autor cita para demonstrar sua tese so (1) o fato de que os conflitos religiosos entre
diferentes grupos de cristos arrefeceram quando estas diferenciaes sociais perderam
importncia e (2) o fato de que os homossexuais passaram a ser mais tolerados no
ocidente quando o valor da heterossexualidade tornou-se menos essencial aos sistemas
de crenas europeus e norte-americanos. Em ambos os casos, a maior tolerncia nasceu
de transformaes sociais que tornaram certas crenas, prticas e atributos menos
reprovados social e culturalmente, ou seja, quando Williams fala da efetivao da
tolerncia, est olhando para a tolerncia prpria das polticas informais. E, em ambos
os casos, faz parte da prtica da tolerncia o fato de que passou a haver uma maior
aceitao das decises individuais a respeito de que religio seguir e do exerccio da
sexualidade. Novamente, isso fica no plano das crenas e prticas sociais e culturais.
Mas, como tambm discutimos acima, este mbito, no qual se realizam moralidades
compartilhadas, no o plano mais adequado para se pensar normativamente os
princpios de justia e tolerncia, pois isso solaparia a possibilidade de justificao de
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vrios direitos que temos fortes razes para prezar e que so advindos do axioma da
igualdade moral humana, como, por exemplo, a liberdade religiosa, a liberdade de
conscincia e, por que no?, a prpria liberdade de exerccio da sexualidade, apesar da
maior parte das doutrinas religiosas condenarem a homossexualidade. Considerar que a
justificao de princpios de justia e tolerncia exige uma moralidade compartilhada
seja ela a valorizao da autonomia ou qualquer outra contraria diretamente a idia de
que a justia deve criar uma esfera de inviolabilidade individual igualitria.
Em Ignatieff, o problema um pouco diferente, pois o autor no discute73 o
problema da justificao da tolerncia, mas apenas o de sua efetivao. Para ele como
para a maior parte dos autores das mais diversas filiaes ideolgicas a identidade
depende do pertencimento a grupos e da construo de diferenciaes entre
coletividades. O autor aventa para a possibilidade de que, talvez, a tolerncia no seja
possvel porque a formao identitria exige, psicologicamente, tenses e conflitos em
torno de diferenas. Isso tornaria necessrio que as sociedades e indivduos
transferissem o foco das tenses de diferenas sociais e culturais para diferenas
individuais entendidas conforme o ideal de autonomia individual. No entanto, olhando
para o mundo, vemos que, em muitos pases e regies, as pessoas vivem de modo
pacfico e compatvel com os direitos humanos mesmo sem endossar ideais ticos
individualistas pr autonomia individual. Alm disso, se atrelssemos nossa defesa dos
princpios de tolerncia a formas autnomas de pensar a si prprio e aos outros,
teramos que planejar uma transformao do plano social e cultural que, muito
provavelmente, impossvel. Afinal, no plano das crenas e prticas individuais e
coletivas, tolerar aquilo que consideramos moralmente condenvel exige sim uma
crena maior na importncia normativa da autonomia e essa crena nem sempre existe.
73 Pelo menos no nos textos aqui citados.
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No entanto, se pensarmos a reflexo terico-normativa no plano das instituies
e das polticas formais e de fundamentaes morais que no se reduzem justificao
via moralidades compartilhadas, podemos formular princpios de tolerncia conforme o
harm principle de John Stuart Mill sem que haja uma crena compartilhada na
autonomia individual. E isso no implausvel do ponto de vista das possibilidades de
estabilidade normativa das teorias e de efetivao dos princpios de justia e tolerncia
no mundo real. Afinal, h exemplos de implementao de liberdades individuais em
realidades sociais e culturais hostis. Por exemplo, o fim da segregao racial no sul dos
Estados Unidos no foi iniciado de modo pacfico e a partir de uma crena majoritria
na igualdade racial. Do mesmo modo, o desmantelamento paulatino da sociedade de
castas indiana no foi iniciado a partir de um consenso a respeito da igualdade humana
e, mesmo assim, os crimes de dio entre castas esto declinando, ainda que
vagarosamente. Sendo assim, no devemos esperar por uma crena forte e majoritria
na igualdade humana para justificarmos os direitos humanos, afinal, talvez esta crena
nunca surja em mbitos nacionais e, menos ainda, globalmente.
1.3. A questo da tolerncia global reformulada
Conforme exposto no incio desta introduo, esta dissertao investigar a
maneira como o princpio de tolerncia liberal deve ser interpretado ao ser aplicado ao
plano global. Toda a reflexo partir do axioma da igualdade moral humana, da
considerao dos seres humanos como fins em si mesmos e das pessoas como unidade
ltima de preocupao moral. Tendo isto em mente discutiremos a maneira como
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filosofia da justia deve conceber e representar normativamente a vinculao dos
sujeitos a suas comunidades culturais, sociais, econmicas, polticas e ao plano global; e
essas concepes e representaes ajudam a determinar o tipo de sujeitos de direito que
devemos ter por valor, o modo como a igualdade moral deve ser expressa nos princpios
globais de justia e tolerncia, o objeto dos princpios de justia e tolerncia global e a
lista de direitos humanos a ser defendida.
Acresce-se a esta delimitao da questo o fato de que o axioma da igualdade
moral exige que a influncia das arbitrariedades morais sobre as perspectivas de vida
das pessoas seja controlada e que se construa princpios de justia e tolerncia que no
firam o princpio de legitimidade liberal. Como este princpio de legitimidade
contratualista exige a aceitabilidade dos princpios de justia, de tolerncia e de direitos
humanos pelas posies menos privilegiadas das sociedades e do mundo,
perfeitamente concilivel com a reivindicao normativa de que estes princpios no se
restrinjam a moralidades compartilhadas que contrariem direitos e liberdades
individuais bsicos74.
Como o escopo desta dissertao se restringe a pensar a tolerncia enquanto
virtude poltica e poltica formal respeitadora do axioma da igualdade moral e do
princpio de legitimidade liberal, ser adotada uma perspectiva contratualista neo-
kantiana fortemente influenciada pelo liberalismo igualitrio de John Rawls75. Assim,
o prximo captulo tratar do modo como a tolerncia aparece na justia como
eqidade e no Direito dos Povos rawlsianos. Isso incluir explicaes breves a respeito
74 As relaes entre justia, tolerncia e direitos humanos sero tratadas no decorrer desta dissertao e
melhor esclarecidas nas consideraes finais. 75
Segundo descrio de lvaro de Vita, o liberalismo igualitrio a posio normativa que defende que uma sociedade justa deve garantir direitos bsicos iguais e uma parcela eqitativa dos recursos sociais escassos a todos os seus cidados, a partir de uma estrutura institucional capaz de propiciar direitos e oportunidades eqitativamente para todos os membros da sociedade e cabe a cada um decidir que uso fazer destes recursos institucionalmente garantidos (Vita, 2006, p. 126).
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do que so estes dois planos de moralidade poltica, das formas de justificao
normativa empregadas por Rawls e de como a tolerncia se relaciona com tudo isso
(Captulo 2).
Esta introduo filosofia da justia de Rawls necessria porque este autor
fornece um excelente arcabouo terico para se pensar a justia e a tolerncia enquanto
virtudes polticas e a principal referncia terica desta dissertao. Conforme dito no
sexto ponto de partida, o trabalho se estruturar em torno das duas objees rawlsianas
formulao de uma concepo de justia global cujos sujeitos sejam indivduos.
Estas duas objees justificam teoricamente o fato de que os aspectos
normativos da tolerncia e da justia que sero aqui discutidos dependem do modo
como pensamos a vinculao dos sujeitos (1) a suas comunidades culturais, tnicas,
religiosas etc., (2) ordem poltica, (3) ordem econmica e (4) ao plano global. Os
captulos 3 e 4 tratam destes aspectos.
O terceiro captulo debater a interdependncia global, o modo como os
indivduos so ligados ordem econmica e poltica mundiais e as implicaes
normativas dessa vinculao. A idia que ser trabalhada a de que existe
interdependncia mundial o suficiente para justificar a necessidade de uma interpretao
individualista e universalista da tolerncia no plano global e tambm para justificar que
os pases centrais no podem se isentar de responsabilidade por problemas de tolerncia
fora de suas fronteiras. Ser defendido que necessrio uma interpretao mais
kantiana e, possivelmente, mais rawlsiana da realidade e da justia inter-estatal e
global.
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O quarto captulo discutir as implicaes do pluralismo moral para a
interpretao do ideal de tolerncia em mbito internacional e o problema da
neutralidade tica e poltica, passando pelas crticas que podem ser apresentadas como
resposta s objees comunitaristas s concepes universalistas de tolerncia, justia e
direitos humanos. Isso tudo se refere, principalmente, vinculao dos sujeitos de
direito individuais a comunidades culturais, religiosas, tnicas, de gnero e polticas. A
funo argumentativa deste captulo mostrar que o pluralismo moral em escala
mundial no s no impede a formulao de uma concepo global de justia e
tolerncia como a exige, pois a neutralidade perante o emprego opressivo da coero
estatal moralmente injustificvel.
Como parte essencial da crtica ao Direito dos Povos rawlsiano que ser aqui
desenvolvida se refere ao fato de que Rawls no foi suficientemente kantiano ao pensar
a moralidade do direito no mbito mundial; passar-se-, ento, ao cotejamento do
modelo rawlsiano com o direito racional de Kant em seus trs nveis poltico, das
gentes e cosmopolita a fim de pensar criticamente o modo como o Direito dos Povos
de Rawls se distancia do individualismo tico e, conseqentemente, da valorizao das
pessoas como fins em si mesmas, da defesa de uma esfera de inviolabilidade individual
e da prioridade do justo (Captulo 5).
O sexto e ltimo captulo far consideraes finais a respeito do objeto da justia
global e tentar formular a partir das idias apresentadas nos captulos anteriores o
dever ser da tolerncia global, entendido como o que se pode exigir legitimamente do
Estado de qualquer pas. Defender-se- que o que se pode legitimamente exigir do
Estado de qualquer pas, do ponto de vista de uma concepo liberal de tolerncia, o
que est contido numa interpretao adequada do ideal de direitos humanos; isso
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converge com a afirmao de Scanlon segundo a qual os direitos humanos estabelecem
exigncias normativas a respeito de como as instituies polticas legtimas devem ser76.
E se completa na idia da estrutura bsica77 e das trocas de influncias recprocas78
como objeto da tolerncia global.
76 Scanlon. 2006, p. 117.
77 Rawls.
78 Kant.
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CAPTULO 2
A TOLERNCIA E O MODELO RAWLSIANO DE JUSTIA COMO
EQIDADE E DE DIREITO DOS POVOS
A teoria da justia como eqidade e o Direito dos Povos de Rawls so
importantes para esta investigao normativa a respeito da tolerncia por dois motivos
principais:
1. Porque Rawls formula uma teoria com enorme potencial de
universalizao dos direitos individuais, ainda que tenha abdicado do
individualismo tico e da prioridade da justia ao pensar a moralidade
poltica internacional.
2. E porque pensa a justia dos arranjos institucionais e, conforme
explicado no captulo inicial, esta dissertao aborda a tolerncia
enquanto virtude poltica e poltica formal.
Sendo assim, este captulo far uma breve introduo filosofia da justia de
Rawls, focando nas questes que sero teis abordagem da tolerncia aqui proposta.
importante que o leitor, ao se defrontar com o sistema rawlsiano de justia e Direito dos
Povos tenha sempre em mente que a tolerncia requer que as instituies aceitem como
iguais pessoas com profundas discordncias morais e que, como afirma Thomas
Scanlon,
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the advocacy of tolerance denies no one their rightful place in society. It grants to each person and group as much standing as they can claim while granting the same to others79.
Esta idia funciona como uma espcie de mantra deste trabalho.
2.1. Sobre a justia interna em Rawls
2.1.1. Sobre as circunstncias e o objeto da justia como eqidade
Em Uma Teoria da Justia, Rawls afirma que, em termos ideais, a justia deve
conferir aos indivduos de uma sociedade fechada um espao de inviolabilidade que
estabelece que a igualdade de liberdades e direitos entre os cidados no seja
dependente da negociao poltica ou do clculo dos interesses sociais80. Em termos
kantianos, isso significa que a justia deve assegurar que todos os seres humanos sejam
sempre tratados como fins em si mesmos.
A necessidade moral de se estabelecer idealmente um espao de inviolabilidade
individual que assegure igualdade de liberdades e direitos deriva da idia de igualdade
moral entre os indivduos cidados. Esta igualdade moral faz com que no exista
hierarquia entre concepes individuais razoveis81 de felicidade e boa vida, o que lhes
d a liberdade de praticarem aquela que for de sua preferncia, independentemente do
que motiva esta preferncia (que depende de inseres em grupos culturais).
79Scanlon, 2003, p. 197. 80
Rawls, 1993, p. 27. 81
A idia de razoabilidade ser explicada adiante.
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E para elaborar seu sistema terico sobre a justia, Rawls constri uma definio
de sociedade que no social ou antropolgica. Nela, a sociedade caracterizada como
uma associao mais ou menos auto-suficiente de pessoas que agem e se relacionam de
acordo com certas regras que reconhecem como vinculativas e que especificam um
sistema de cooperao que visa vantagens mtuas82.
Nas sociedades assim definidas, h identidade de interesses porque a cooperao
social possibilita benefcios que no se alcanam individualmente. H tambm conflito
de interesses uma vez que a realidade de escassez moderada e todos (ou a maioria)
preferem receber o maior quinho possvel dos benefcios que so acrescidos pela
cooperao social. Rawls denomina esta situao de circunstncias da justia83.
Dentro delas, o papel dos princpios da justia fornecer um critrio para a atribuio
de direitos e deveres nas instituies bsicas da sociedade e definir a distribuio
adequada dos encargos e benefcios da cooperao social84.
Alm disso, nas sociedades complexas, as pessoas esto divididas numa
multiplicidade de particularismos quanto s crenas sobre o que seja o bem ou a
felicidade e, devido sua j mencionada igualdade moral, devem poder exerc-las
livremente. Rawls chama essa diversidade de pluralismo moral e considera que o seu
limite deve estar na razoabilidade das concepes abrangentes de bem que os grupos
particulares cultivam85.
82 Rawls, 1993, p. 28.
83 Rawls, 1993, p. 115.
84 Rawls, 1993, p. 28.
85 Rawls (seguindo uma sugesto de J. Cohen) s introduziu essa idia de doutrinas abrangentes
"razoveis" e de "pluralismo moral razovel" em O Liberalismo Poltico. Em Uma Teoria da Justia, no h meno essa idia; neste livro os princpios de justia impem limites s concepes do bem que podem ser praticadas e forma de pratic-las, mas nada se diz sobre as doutrinas, elas prprias, serem ou no "razoveis". Pode-se dizer que a idia de razoabilidade j estivesse presente na justificao contratualista de princpios de justia e que estivesse embutida nas duas faculdades morais bsicas atribudas aos cidados de uma sociedade democrtica. Mas, neste ltimo caso, so os cidados eles
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Doutrinas abrangentes so aquelas que ditam os valores das vrias dimenses
da vida (poltica, religiosa, familiar etc), ligando-as entre si. Uma doutrina
parcialmente abrangente quando no engloba todas as dimenses normativas
existentes e permite uma certa margem de tolerncia diferena86.
A razoabilidade aquilo que caracteriza a motivao moral de uma
perspectiva contratualista de modo independente das circunstncias culturais. Enquanto
qualidade das doutrinas abrangentes, a razoabilidade uma caracterstica cultural das
sociedades democrticas liberais, em que os cidados so vistos como livres e iguais, a
sociedade entendida como um sistema imparcial [quanto aos indivduos e s
concepes de bem] de cooperao ao longo do tempo, as doutrinas so apenas
parcialmente abrangentes e a categoria do poltico pode ser pensada separadamente
das doutrinas abrangentes particulares. Este ltimo aspecto significa que h valores
morais exclusivamente polticos, independentes das doutrinas parcialmente abrangentes
em que se inserem87. Uma doutrina abrangente razovel quando no requer que o
poder coercitivo estatal seja exercido a seu favor e conforme seus valores no-polticos
(isto , pertencentes a outras esferas da vida, como a religiosa, por exemplo). Assim, a
razoabilidade implica tolerncia o suficiente para que seja possvel o convvio
respeitoso com diferenas com as quais no se concorda; tolerncia esta que comum
s vrias doutrinas abrangentes que convivem numa sociedade democrtica liberal88.
Como, numa sociedade liberal, h as circunstncias da justia e a pluralidade de
concepes de bem razoveis que no podem ser hierarquizadas pela razo, Rawls
prprios que deveriam revisar seu comprometimento com uma doutrina abrangente ou com determinados valores ou prticas culturais que entrassem em choque com as exigncias da justia. em O Liberalismo Poltico, com o argumento do consenso de sobreposio, que entra em cena a idia de que as doutrinas abrangentes elas prprias (e no seus adeptos) podem ser razoveis. 86
Rawls, 2000, pp. 82-101. 87
Rawls, 2000, p. 20 e Rawls, 1997, pp. 143-147. 88
Rawls, 2000, pp. 82-101.
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defende a prioridade da justia, isto , de uma esfera de igual liberdade e direito
individuais que no podem ser negociados eleitoralmente.
Pois bem, vejamos a que objeto a justia deve ser aplicada para que seja neutra
em relao s concepes de bem e qual deve ser o seu contedo.
Para o autor de que estamos tratando agora o objeto primrio da justia a
estrutura bsica da sociedade, que a forma como as principais instituies polticas,
econmicas e sociais distribuem os benefcios advindos da cooperao social. As
liberdades jurdicas, a concorrncia de mercado, a propriedade privada e a famlia
monogmica so exemplos dessas instituies. Elas definem os direitos, deveres e
expectativas de vida de cada um. A estrutura bsica da sociedade o objeto primrio
da justia porque as suas conseqncias so profundas e esto presentes desde o incio
nas vrias situaes sociais, favorecendo algumas posies em detrimento de outras,
de maneira a produzir desigualdades profundas. a essas desigualdades que os
princpios da justia devem se aplicar em primeiro lugar, presidindo a escolha das
instituies polticas, econmicas e sociais. A justia de um mod