dissertacao silvana olivieri parte 4 seg

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138 3 UMA EXPERIÊNCIA: “QUANDO A RUA VIRA CASA” 3.1 O urbanismo cristalino de Carlos Nelson Ferreira dos Santos É como se você fosse andando, muito decidido, por um caminho reto e, aos poucos, fosse percebendo que ele ia se estreitando, mudando de características e virando um beco. Aí você acabava dando de cara com uma parede. As suas opções seriam: 1) – ficar parado, olhando para o obstáculo sem entender nada, desesperado e desanimado; 2) – esmurrá-lo na esperança de derrubá-lo a socos; 3) - declarar que só continuaria a andar quando chegasse o dia certo em que todas as barreiras cairiam e todos os caminhos passariam a ser livres e sem empecilhos e consolar-se coma idéia; finalmente, você poderia 4) – dar meia-volta, olhar na direção oposta e pensar – aqui começa tudo de novo. A última alternativa parece a mais simples. De fato não o é. Todos os fins trazem, implícito e embutido, um começo. Só que, para reconhecê-lo, é preciso dar uma virada completa com a cabeça. Carlos Nelson Ferreira dos Santos, “Como e quando pode um arquiteto virar antropólogo?”, p.37. Carlos Nelson Ferreira dos Santos é uma figura pioneira e marginal no urbanismo brasileiro. Combatendo, quase solitariamente e com grande contundência, a tradição autoritária dominante no campo 1 , como também os niilismos e as “utópicos futurismos salvadores da pátria”, buscou transformá-lo em uma prática participativa, dialógica, micrológica e auto-reflexiva, um “cultivar no sentido primeiro da palavra; acompanhar o dia- a-dia, intervir dia-a-dia na escala do dia-a-dia” (SANTOS e VOGEL, 1981: 142). Para agir sobre a cidade, o urbanista deveria abandonar os moldes e modelos, recusar qualquer totalização, generalização ou idealização, para vivenciá-la em seu cotidiano. Só se poderia 1 Lina Bo Bardi foi uma das raras vozes no Brasil que, antes de Carlos Nelson, criticaram o urbanismo funcionalista, rumo a uma abordagem cristalina - e que, como ele, percebeu a riqueza criativa das manifestações populares e nas artes de modo geral. No primeiro editorial da sua página dominical “Olho sobre a Bahia”, publicado em 07/09/1958 no jornal soteropolitano “Diário de Notícias”, ela escrevia: “Planificar, sanear, antes que a especulação imobiliária, fantasiada de filantropia, transforme as casas humildes, as ruas, as praças, o ambiente onde se desenvolve uma vida pobre, mas rica de fermentos vivos, de realidades pulsantes, em uma massa amorfa, mortificada e mortificante, o que obriga uma humanidade disvirilizada pela incompetência, pela sub-cultura, pelo desconhecimento dos valores humanos, a esquecer-se de si mesma, no desânimo de uma realidade fictícia, imposta por pseudo técnicos, pseudo urbanistas, pseudo arquitetos. Arquitetos, urbanistas, precisamos defender-nos da invasão do Qualquer. (...) Acreditamos nos técnicos, nos urbanistas, nos arquitetos, mas é dever fundamental dos técnicos, dos urbanistas, dos arquitetos, estudar e compreender, no seu profundo sentido espiritual, aqui o que se poderia chamar a alma de uma cidade: sem essas premissas, uma planificação, um plano de urbanização serão um esforço estéril e pior uma colaboração com o rolo compressor da especulação”. In FERRAZ, 1993:130.

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Esta parte trata da experiência e da teoria de Carlos Nelson Ferreira dos Santos

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    3 UMA EXPERINCIA: QUANDO A RUA VIRA CASA

    3.1 O urbanismo cristalino de Carlos Nelson Ferreira dos Santos

    como se voc fosse andando, muito decidido, por um caminho reto e, aos poucos, fosse percebendo que ele ia se estreitando, mudando de caractersticas e virando um beco. A voc acabava dando de cara com uma parede. As suas opes seriam: 1) ficar parado, olhando para o obstculo sem entender nada, desesperado e desanimado; 2) esmurr-lo na esperana de derrub-lo a socos; 3) - declarar que s continuaria a andar quando chegasse o dia certo em que todas as barreiras cairiam e todos os caminhos passariam a ser livres e sem empecilhos e consolar-se coma idia; finalmente, voc poderia 4) dar meia-volta, olhar na direo oposta e pensar aqui comea tudo de novo. A ltima alternativa parece a mais simples. De fato no o . Todos os fins trazem, implcito e embutido, um comeo. S que, para reconhec-lo, preciso dar uma virada completa com a cabea.

    Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Como e quando pode um arquiteto virar antroplogo?, p.37.

    Carlos Nelson Ferreira dos Santos uma figura pioneira e marginal no urbanismo

    brasileiro. Combatendo, quase solitariamente e com grande contundncia, a tradio

    autoritria dominante no campo1, como tambm os niilismos e as utpicos futurismos

    salvadores da ptria, buscou transform-lo em uma prtica participativa, dialgica,

    microlgica e auto-reflexiva, um cultivar no sentido primeiro da palavra; acompanhar o dia-

    a-dia, intervir dia-a-dia na escala do dia-a-dia (SANTOS e VOGEL, 1981: 142). Para agir

    sobre a cidade, o urbanista deveria abandonar os moldes e modelos, recusar qualquer

    totalizao, generalizao ou idealizao, para vivenci-la em seu cotidiano. S se poderia

    1 Lina Bo Bardi foi uma das raras vozes no Brasil que, antes de Carlos Nelson, criticaram o urbanismo funcionalista, rumo a uma abordagem cristalina - e que, como ele, percebeu a riqueza criativa das manifestaes populares e nas artes de modo geral. No primeiro editorial da sua pgina dominical Olho sobre a Bahia, publicado em 07/09/1958 no jornal soteropolitano Dirio de Notcias, ela escrevia: Planificar, sanear, antes que a especulao imobiliria, fantasiada de filantropia, transforme as casas humildes, as ruas, as praas, o ambiente onde se desenvolve uma vida pobre, mas rica de fermentos vivos, de realidades pulsantes, em uma massa amorfa, mortificada e mortificante, o que obriga uma humanidade disvirilizada pela incompetncia, pela sub-cultura, pelo desconhecimento dos valores humanos, a esquecer-se de si mesma, no desnimo de uma realidade fictcia, imposta por pseudo tcnicos, pseudo urbanistas, pseudo arquitetos. Arquitetos, urbanistas, precisamos defender-nos da invaso do Qualquer. (...) Acreditamos nos tcnicos, nos urbanistas, nos arquitetos, mas dever fundamental dos tcnicos, dos urbanistas, dos arquitetos, estudar e compreender, no seu profundo sentido espiritual, aqui o que se poderia chamar a alma de uma cidade: sem essas premissas, uma planificao, um plano de urbanizao sero um esforo estril e pior uma colaborao com o rolo compressor da especulao. In FERRAZ, 1993:130.

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    conhecer um meio urbano de perto e de dentro - envolvido -, estabelecendo interaes com os

    habitantes, colocando-se sempre em dvida, em questo.

    Tratar-se-ia, segundo o prprio Carlos Nelson, de um caso extremo de observao

    realmente participante (1981:27), ou seja, de uma relao sempre em mo-dupla com o

    fenmeno ou com o outro observado, construda por idas e vindas - mesmo se esse outro

    for, em alguns momentos, ns mesmos. Por esse carter de reciprocidade e reversibilidade da

    relao entre o urbanista e os elementos do meio urbano onde ele estivesse atuando,

    poderamos chamar essa abordagem de compartilhada, seguindo Jean Rouch, e cristalina,

    seguindo Gilles Deleuze.

    A base do pensamento e da prtica urbanstica de Carlos Nelson se construiu

    principalmente atravs de sua experincia na favela de Brs de Pina, no Rio de Janeiro,

    durante a 2a metade da dcada de 1960, num momento complicado da ditadura, quando a

    regra era a remoo dos favelados para reas distantes. Realizada pela Quadra Arquitetos

    Associados grupo formado por Carlos Nelson e seus colegas Sylvia Wanderley, Rogrio

    Aroeira Neves e Sueli de Azevedo -, a urbanizao de Brs de Pina foi uma experincia

    duplamente pioneira: era tanto a primeira urbanizao de favela como o primeiro caso de

    participao de moradores em arquitetura e urbanismo no Brasil.

    Carlos Nelson havia ingressado no curso de arquitetura em 1962 (concludo em 1966),

    apenas dois anos depois da inaugurao de Braslia, sntese e clmax do pensamento

    racionalista ou funcionalista no pas, voltado para o progresso e a modernizao das

    cidades. O arquiteto-tipo nesse momento era um profissional liberal, individualista e

    onipotente nas suas intuies, afinal, fazamos algo to bom que ramos convocados, na

    pessoa dos mais destacados entre ns, a desenhar o espao de uma cidade que resumiria o que

    o Brasil queria e podia ser. Os jovens arquitetos-urbanistas brasileiros se formavam

    aspirando genialidade, gerando toda uma carga de expectativas e frustraes, pois ramos

    os consolidadores de utopias que no sabiam enfrentar as prticas mais elementares do campo

    de ao que pretendiam empolgar e orientar (1980: 38).

    A inquietao por descobertas, associada insatisfao com a formao profissional e

    ao atordoamento causado pela deflagrao do golpe militar acabariam por lev-lo ao encontro

    de um pequeno grupo que j andava cavando um campo novo para o exerccio da

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    arquitetura, uma prtica com p no cho. Em vez das idealizaes do real, buscavam

    aproximar-se da realidade cotidiana, compreender as coisas como eram de fato, onde elas

    estavam acontecendo. E as favelas eram um assunto oportuno naquele momento, sobretudo

    porque comeavam os grandes planos de remoo, despertando a mobilizao popular2.

    Enquanto a maioria ficava discutindo, preparando manifestos e propondo polticas, o grupo

    decidiu, para espanto de muitos colegas, partir para outra: trabalhar diretamente com a

    populao favelada.

    Ainda em 1964, o grupo procura a Federao das Associaes dos Favelados do Estado

    da Guanabara - FAFEG e, em pouqussimo tempo, aqueles estudantes que estavam tentando

    entender alguma coisa, recebiam o titulo de assessores para assuntos urbansticos e

    habitacionais (FERREIRA DOS SANTOS, 1980: 40-41). Mais decepes, e quando iam

    desesperar e desistir, recebem um pedido de socorro da Associao de Moradores de Brs

    de Pina, para elaborar um plano de urbanizao da favela, um instrumento com carter

    reivindicatrio e demonstrativo, com o qual podiam discutir com o governo estadual nos

    mesmos termos. O comeo foi promissor:

    Como urbanista nunca tive melhor experincia profissional do que a esse tempo em que trabalhamos to diretamente com os nossos clientes. Ainda que parecesse lgico o contrrio, muito raro que urbanistas tenham contatos face a face com as pessoas para quem fazem planos. Vivamos com o escritrio cheio de favelados que invadiam para ver o que fazamos e ficavam para discusses que varavam a noite. Era emocionante ir recebendo aqueles pedaos dos mais diversos papis e ir vendo um trabalho que surgia aos poucos (FERREIRA DOS SANTOS, 1981:45).

    O plano, desenvolvido inicialmente pelos favelados com a assessoria da Quadra, acaba

    sendo encampado pelo governo estadual3, que cria um Grupo de Trabalho para coordenar e

    2 No final de 1964, as favelas passaram a ocupar grande espao na midia, no apenas pelos enormes estragos causados pelas fortes chuvas, chamando a ateno para as suas precrias condies, mas pela resistncia de uma favela tentativa de remoo pelo ento governador, Carlos Lacerda, para as vilas construdas com financiamento da Aliana para o Progresso (Vila Aliana e Vila Kennedy). A favela em questo era, justamente, Brs de Pina. Um pouco antes, os cariocas haviam assistido ao espetculo de uma favela queimando em chamas por uma noite inteira, o morro do Pasmado, em Copacabana, a primeira a ser removida. O incndio seria o smbolo de uma nova era que se pretendia inaugurar: Lacerda, lembrando as idias de Mattos Pimenta na dcada de 1920, prometia a extino de todas as favelas do Rio, oferecendo a seus moradores casas seguras, modernas (e muito distantes dos locais aonde moravam, a valiosa Zona Sul), das quais seriam proprietrios (FERREIRA DOS SANTOS, 1981:32-33). 3 Em 1966, Lacerda substitudo por Negro de Lima - ltimo governador eleito por voto popular e direto -, que, durante a campanha, havia explorado a truculncia e o autoritarismo de Lacerda contra as favelas, comprometendo-se a parar com as remoes e buscar alternativas. Entretanto, no s Negro se viu obrigado a no fazer nada pela ditadura militar, como esta retomaria as remoes, atravs da CHISAM. Entre 1968 e 1971, cerca de 28% da populao favelada tinha sido retirada do Rio para a Cidade de Deus.

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    desenvolver o programa de recuperao das favelas que incluiria, numa primeira etapa,

    tambm as comunidades de Morro Unio, Mata Machado e Guararapes, procurando trabalhar

    em cooperao com as comunidades e integr-las ao bairro onde se inseriam4. Em 1968, o GT

    transformado na Companhia de Desenvolvimento de Comunidades CODESCO, com a

    tarefa de implementar, primeiramente em Brs de Pina, um plano urbanstico, composto,

    basicamente, por obras virias e de saneamento, regularizao fundiria e financiamento para

    aquisio de materiais de construo, contando, tanto na fase de projeto como na de execuo,

    com a assessoria tcnica da Quadra5.

    Durante o processo de urbanizao da favela conduzido por Carlos Nelson e seus colegas -

    sob influncia do trabalho realizado por John Turner no Peru6 e seguindo os princpios do

    advogacy planning7 -, vrias decises foram tomadas pelos habitantes, como o uso de espaos

    livres e localizao de servios, demonstraes formais do democratismo que se pretendia

    imprimir no plano. Os projetos das casas eram desenhados e executados pelos prprios

    moradores, que recebiam sugestes dos arquitetos, sem entretanto interferirem na deciso de

    fachadas, materiais de construo e acabamentos. Com o tempo, percebeu-se que essa

    participao tinha sido algo artificial, forado, pois se tratavam de espaos e de atividades

    que s tinham sentido na cabea dos planejadores. A verdadeira participao s iria ocorrer

    de maneiras inimaginveis e todas inventadas e sob o controle dos interessados diretos, os

    moradores(1981:64).

    Das primeiras idas do grupo favela, em 1965, s ltimas visitas regulares, em 1971,

    longos enredos se passaram naquele cenrio, tendo por personagens principais a Associao

    de Moradores, o padre, a CODESCO e eles prprios, e, como extra-campo, uma grande

    represso. Foram tempos de profundas divergncias, dificuldades e aprendizados. Ao final, a

    favela se transformou (deixando mesmo de ser favela, e mais tarde mesmo esquecendo que 4 Esta iniciativa foi precursora do Programa Favela-Bairro, implementado pela prefeitura carioca na dcada de 1990. 5 At sua extino, em 1975, a CODESCO havia conseguido realizar o plano de urbanizao em Brs de Pina, outro executado pela metade em Morro Unio, um projeto para Mata Machado, e estudos preliminaries para outras dez favelas. Como mencionamos na PARTE 2.3 (129), o projeto para Guararapes no foi levado adiante, alegando-se problemas insolveis de geotecnia. 6 Em visita ao Rio de Janeiro em 1968, Turner faz um comentrio que teve grande repercusso, tornando-se uma bandeira na luta contra a erradicao de favelas: Mostraram-me solues que so problemas, e problemas que so solues. 7 Tipo de urbanismo participativo surgido nos pases anglo-saxes no incio dos anos 1960, que tinha entre seus princpios a compreenso do espao a partir de como ele vivido e apreendido pelos seus usurios, de forma a subsidiar as propostas urbansticas, e o compartilhamento de decises entre especialistas e habitantes. A descrio e a critica dessa prtica est em GOODMAN, 1977.

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    um dia foi favela) tanto pela interferncia dos urbanistas como pela apropriao desviante e

    imprevista na maior parte das vezes - dos habitantes, aes que se misturaram de tal maneira

    que tornaram-se indiscernveis. Reciprocamente, os urbanistas foram transformados pela

    vivncia da favela. Carlos Nelson vira uma espcie de antroplogo ad hoc - um antropoteto,

    como costumava brincar, mesmo confessando que o processo houvera sido traumtico8:

    Comecei cuidando do que pode ser considerado, convencionalmente, do interesse primordial de um arquiteto ou urbanista: casas; sistemas virios; solues de esgoto e de abastecimento de gua; redes de distribuio de energia; formas de ocupao do solo. medida em que ia me familiarizando com aquele ambiente, a principio to estranho, fui percebendo que estava cheio de ordens e de cdigos. Foram se amontoando dvidas e se dissolvendo idias feitas, trazidas de longe, de lugares que no pertenciam a outro mundo seno o das formulaes racionais e abrangentes, as tais que pretendiam dar conta de realidade. Fui descobrindo que havia muitas diferenas dentro do que, simplesmente, designava por um s nome. Era como se estivesse ajustando o foco de uma cmera e comeando a distinguir detalhes no que, visto distncia, podia ser descrito com o recurso a uma s cor, a uma s forma e a uma s textura.

    Algumas aes e maneiras de ser e de entender as coisas, que eu usava qualificar, com muita rapidez, como alienadas, olhadas assim de perto, adquiriram outro sentido. Passaram a se referenciar a seus prprios campos e arenas, apareceram como elementos de dramas particularizados, frente aos quais, por no saber como me comportar, o alienado era eu. De observador de padres e arranjos dos espaos pblicos e privados e de candidato a interventor nas suas formas de produo e consumo, fui me transmutando em observador das inter-relaes sociais e das redes de significados. Com a prtica, eu e meus colegas fomos notando que isto parecia contar mais para os favelados do que as razes materiais ou prticas, em cujo inconteste predomnio acreditvamos ao entrar nas favelas como nefitos. De fato, fomos vendo que o mais fascinante resultado do que fazamos era o que acontecia a partir da e totalmente fora de nosso controle. Quanto mais inventvamos sofisticadas maquinaes sobre o espao, a economia e os comportamentos sociais, mais ramos superados pelos processos do dia-a-dia individual e coletivo dos moradores (1980:42-43).9

    Os becos fechados viraram pontos de partida: dessa experincia, surge um novo olhar

    para os pobres e favelados: estes passaram de objeto a sujeitos da ao, reconhecendo-se que

    sabiam o que queriam, tinham suas prioridades, e que no apenas faziam parte da sociedade

    urbana capitalista como partilhavam valores dessa sociedade, reproduzindo-na segundo

    lgicas prprias (o que, pelo menos at aquele momento, muitos estudiosos no queriam ver).

    Passava-se, tambm, a analisar a questo pelo ngulo do consumo ou do uso, no da

    produo: da a importncia em observar as intervenes e apropriaes que faziam

    8 A rendio antropologia mostrou-se inevitvel: em 1974, Carlos Nelson acaba ingressando no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, sendo sua dissertao de mestrado a base do livro Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. 9 Praticamente no mesmo momento em que acontecia a urbanizao de Brs de Pina, iniciava-se, em Bruxelas, um projeto igualmente radical e inovador contando com participao de moradores, o da Faculdade de Medicina da Universidade de Louvain, a Mem, conduzido por Lucien Kroll.

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    espontaneamente em seus ambientes. Em 1971, Carlos Nelson constatava que em vez de

    problemas, as favelas eram portadoras de respostas: a inventividade popular que nelas se

    manifestava deveria ser uma fonte de ensinamento para as futuras intervenes urbansticas10:

    O que est acontecendo em subrbios, favelas e reas perifricas nas cidades brasileiras o processo arquitetnico e urbanstico mais interessante em todo o pas: a se desenvolvem respostas que so formas novas, nascidas do encontro da pobreza, subdesenvolvimento e cultura tradicional com a dominao de um mundo moderno, industrializado e tecnolgico. As respostas teriam por papel servir de ponte entre as duas coisas. Por essa razo, necessrio comear a trabalhar sobre elas e tentar compreender as suas regras (1981:24).

    Outra inverso de olhar foi em relao ao papel do arquiteto-urbanista, revelando que

    este ocupava na sociedade uma posio hierrquica e tinha uma funo privilegiada, nunca

    sendo neutro ou isento, consistindo essa numa postura cnica e desonesta. Fazer uma anlise

    do Outro implicaria, portanto, em tambm se auto-analisar atravs do Outro, uma vez que era

    uma entre tantas outras personagens na arena urbana, cujas inter-relaes se fundamentariam

    em trocas recprocas, materiais e simblicas, racionais e emocionais responsveis por

    modificar os desempenhos em cada situao (1981:29). So essas trocas, viabilizadas e

    potencializadas pela cidade, que acabariam misturando tudo, coisas, lugares e indivduos,

    borrando suas fronteiras, tornando-os ambguos, indistinguveis, indiscernveis.

    Quando vou entrevistar um favelado ou um morador de loteamentos na periferia estou querendo conhec-lo melhor e a seus problemas, visando testar hipteses e validar teorias. Os meus interesses so, em princpio, limitados e especficos (profissionais, cientficos, com muito favor, polticos). Tudo situvel em uma esfera mais idealizada e menos prtica em relao s necessidades materiais mais imediatas. E o entrevistado, por que consente na conversa e concorda em me dar informaes? primeira vista s eu ganho e ele perde...A troca parece assimtrica a meu favor.

    Os pobres aceitam ser pesquisados por uma questo de respeito autoridade do doutor (...). Mas isto s o comeo. Da interao podem sair coisas teis ao cotidiano, basicamente informaes. O pesquisador vai explicar o que est fazendo e, o que o melhor, vai deixar passar algo das misteriosas e quase intangveis decises do Governo (...). O pesquisador, nas imagens do entrevistado, pode dizer se a favela vai ser mesmo removida, se o loteamento poder ser legalizado, se pretendem trazer gua e luz, se vai haver fiscalizao nas construes, como conseguir financiamento, etc. comum haver um verdadeiro inqurito, com inverso dos papeis, vencidos os embaraos e a timidez do primeiro contato. Os cdigos de respeito fazem com que a inverso se d atravs de obliqidades, o morador fazendo afirmaes capciosas, falando de boatos e lanando iscas. (...)

    10 Como dissemos antes, essa reflexo de Carlos Nelson se aproxima do pensamento de Turner, e tambm do de Lina Bo Bardi sobre as manifestaes populares do Brasil, que no apenas deveriam ser respeitadas como servir de referncia para um novo fazer artstico.

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    Durante todos esses jogos que obedecem a etiquetas precisas e a desempenhos mais ou menos aperfeioados, conforme os recursos e talentos do ator, o pesquisador decodificado, observado e analisado todo o tempo. Talvez mesmo com mais ateno do que a que ele dedica a seu objeto. O que no de admirar: mais provvel que o morador afine melhor razo e emoo, j que suas motivaes so mais prticas (no sentido de mais ligadas ao dia-a-dia) e mais vitais. Quem pode ser muito mais afetado pela visita ele, sabedor disto, capricha na atuao dramtica. Se o que o doutor quer saber desgraa, ele logo percebe e procura gratific-lo com isto: conta como a vida dura, como faz sacrifcios e como injustiado. Se o que deseja protesto, h sempre contra o que reclamar e se queixar. Se valoriza os esforos de quem trabalhador, logo escuta relatos orgulhosos de como foi feito isto ou conseguido aquilo. Em suma, estratgias para conseguir um aliado, elas mesmas muito ilustrativas e esclarecedoras, pois permearo todos os dilogos (FERREIRA DOS SANTOS, 1980, 52-54).

    O habitante pobre e ordinrio da cidade seria, portanto, um tipo de falsrio que, atravs

    de suas inmeras tticas cotidianas, maneiras desviantes de fazer algo - de caminhar, de

    habitar, de falar, de dialogar, de trabalhar, de usar, etc. , engana, burla ou sabota at as mais

    rgidas estratgias de disciplinarizao, uniformizao, represso e controle que os grupos

    ditos hegemnicos tentam lhe impor, fazendo dos espaos urbanos lugares prprios, ou seja,

    distintos, visveis e objetivveis, como indicou Michel de Certeau (1993: 97-102)11. A ttica

    aproveita as ocasies e delas depende, utilizando as falhas que as conjunturas particulares

    vo abrindo na vigilncia do poder proprietrio para engendrar movimentos contraditrios

    que, pela imprevisibilidade e inventividade, fazem-se impossveis de gerir. assim que tudo

    aquilo que arquitetos, urbanistas e outros experts em cidades - a servio das ideologias

    dominantes - teimam em separar e fixar, juntado, misturado e mexido pela cultura urbana

    ordinria, praticada num corpo-a-corpo sem distncia e na vivncia do dia-a-dia (FERREIRA

    DOS SANTOS, 1988: 45).

    Esses intrincados jogos de poder e contra-poder, combates entre Davi e Golias

    travados cotidianamente nos espaos urbanos um entendimento reforado e amplificado

    pela leitura de Certeau vo inspirar o ltimo livro publicado de Carlos Nelson, A cidade

    como um jogo de cartas(1985), realizado com a finalidade de estabelecer as diretrizes de

    ao urbanstica em seis novas cidades do Estado de Roraima. O jogo de cartas, com seus

    11 Em A inveno do cotidiano (1996), Certeau havia definido essas prticas desviantes dos habitantes ordinrios descritas por Carlos Nelson - que s podem ser percebidas numa anlise microscpica de cada situao (da a importncia da antropologia, com todo seu interesse no detalhe, no particular) - como tticas, artes e astcias do fraco contra o forte, enquanto a estratgia seria a prtica do urbanista, normalmente de poder.

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    padres e estruturas, transforma-se aqui num jogo urbano, pelo qual os habitantes

    participariam efetivamente da produo da sua cidade, comeariam a ser cidados12.

    A cidade-jogo de Carlos Nelson cristalina: tanto um lugar de mltiplos encontros,

    interaes, combinaes e trocas, como tambm de disputas e conflitos que, alm de

    inevitveis, seriam, para ele, altamente desejveis: o meio urbano e tem de ser

    contraditrio; a tenso, nele, condio necessria e suficiente e, sobretudo, desejvel de

    existncia (1985:67)13. Entretanto, aqueles que, mais ou menos conscientemente, buscam

    preservar e reproduzir as ordens e valores dominantes na sociedade costumam responder a

    essa tenso caracterstica da vida - seja coletiva ou pessoal -, que ameaa qualquer pretenso

    de identidade, segurana ou estabilidade, com o falso equilbrio do que est para sempre

    resolvido, isto , morto (1981a:27). Negando suas tenses, ambigidades e contradies,

    fechada a mudanas, a vida urbana, em todos dos seus nveis, s pode se degradar, numa

    escalada que, se no for desviada, a levar destruio e morte.

    A residiria, ao meu ver, uma das crticas mais profundas feitas tradio dominante do

    urbanismo praticado no Brasil, traduzida e simbolizada no projeto de Braslia. As cidades

    brasileiras e, dentro delas, sobretudo as reas ocupadas pelos pobres - eram acusadas,

    historicamente, de muitos males seriam caticas, misturadas e confusas demais, mal

    urbanizadas e pouco eficientes, colocando-se como empecilhos ao desenvolvimento e ao

    12 Para jogar a cidade, os habitantes ou agentes do desenvolvimento urbano, divididos em trs grupos - o governo (polticos, tcnicos e funcionrios), as empresas (indstria, comrcio, servios) e a populao (grupos de vizinhana, filiao poltica e religiosa, profisso, parentesco, afinidades, etc.), deveriam dominar as regras estruturais e se acertarem quanto sua aplicao: governo propondo e fazendo cumprir as leis, as empresas ou grupos de capital investindo recursos, e a populao exercendo presses por seus direitos. Carlos Nelson acreditava que a democracia das cidades dependeria tanto do conhecimento dos princpios atravs dos quais os espaos se formam e so ocupados pela populao, como pela capacidade desta participar de forma ativa nas decises, negociando direitos e vantagens. Em suma, s poderia haver um jogo limpo se cada um souber o que so suas cartas, o quanto valem e tiver domnio sobre as prprias jogadas. S assim os habitantes se vero realmente envolvidos, desejaro participar e tero prazer de se sentirem responsveis pela sua cidade. Quanto ao arquiteto-urbanista, caberia acompanhar cada partida com interesse, e, no papel de mediador, procuraria esclarecer dvidas e, medida que constatasse a superao de estatutos e modos de agir, aconselharia a atualizao dos mesmos. (1988:50-51;55). 13 Essa afirmao uma chave para entender o prprio Carlos Nelson, que, segundo contam Maria Las Pereira da Silva e Isabel Cristina Eiras, suas amigas e colaboradoras, tinha, contraditoriamente, uma personalidade muito forte e exibia, em diversas situaes, uma tendncia autoritria; extremamente vaidoso, gostava de polmicas e embates, s vezes bastante acalorados. Maria Las: O Carlos Nelson era uma pessoa muitas vezes autoritria, tinha essa contradio: um grande feeling democrtico e de justia com um vis que se mostrava autoritrio. No Centro (de Pesquisas Urbanas, do IBAM, que chefiava), todos os trabalhos eram lidos e discutidos por ele, no saa nada sem sua leitura senti uma grande diferena depois de sua morte, em 1989. Ele era o interlocutor terico e prtico de todo mundo, sugeria alteraes de redao, perguntava, criticava. Obsessivo, fazia controle de qualidade; se achava bom, divulgava, mesmo sem concordar muito. Fazia parte de suas contradies. Acabou formando as pessoas, deixando uma marca. (FREIRE e OLIVEIRA, 2002: 111;113;124).

  • 146

    progresso da nao. A partir de 1960, j se tinha o modelo adequado e, para nosso orgulho,

    de fabricao nacional - para corrigi-las, s bastava aplic-lo. Assim aos poucos, foram se

    brasilianizando os principais centros urbanos do pas, ou seja, depurando, reorganizando,

    segregando (FERREIRA DOS SANTOS,1981: 16), de diversas e articuladas maneiras:

    remoo de favelas, destruio de cortios, projetos de renovao ou revitalizao urbana,

    planos virios e de transportes, mudanas de desenho e de legislao urbanstica (gabarito e

    alinhamento das edificaes, zoneamento), etc.

    Essa histria desemboca, nos anos 1980 coincidindo com o fim da ditadura - num

    novo tipo de modelo de desenvolvimento urbano, hbrido, fruto de um novo tipo de

    entendimento entre a ao do poder pblico (de tradio funcionalista, racionalista ou

    progressista) e a do capital privado ou do mercado (de tradio culturalista): os

    condomnios, enclaves urbanos fortificados que oferecem proteo, conforto, tranqilidade

    e exclusividade aos que podem pagar por eles. O cidado se define agora, antes de tudo, como

    consumidor: quem no pode pagar, simplesmente, fica de fora (FERREIRA DOS SANTOS,

    1981:21-22).

    Representa extrema tentativa de anular a tenso inerente ao urbano, enquanto campo de trocas, disputas e interaes econmicas e sociais. Ao faz-lo, atravs de um esforo de congelamento, acaba por sublinhar ao mximo o que deseja eliminar. Define fronteira absoluta, que no permite ambigidades, nem se beneficia de membranas onde as comunicaes sejam possveis, mesmo entre grupos e objetivos muito diferentes. O espao da cidade perde a a caracterstica mais especfica: no tem significado coletivo, nem possibilita, por esta abertura, as mais diversas apropriaes. (...) O Condomnio fecha, sem deixar espao a dvidas ou contradies, pelo menos em seu interior. Em conseqncia, por falta de domnios sem dono definido, de significantes sem significado, no propicia nem promete mudanas.

    (...) No Brasil, o primeiro a compreender as vantagens da aplicao de tais idias aos meios urbanos foi o Estado. Delas se fez bom uso, relacionando-as diretamente ao poder e sua representao. As teorias progressistas se aplicaram maciamente na construo e no desenvolvimento de Braslia, e quando foi preciso colocar os pobres em seu lugar (Conjuntos Habitacionais). O Capital s acordou quase vinte anos depois. Em compensao, por seus compromissos sociais restritos, a idia da auto-suficincia pode ser levada at a conseqncias mais extremas, e o que est tentando fazer. (...) Para ambos, convm um espao sob controle, pouco recalcitrante sua dominao. S que esta situao ideal, a cidade sem tenses, a negao das cidades reais e de sua garantia de sobrevivncia (FERREIRA DOS SANTOS, 1981a:24-25).

    Carlos Nelson faz aqui uma anlise antecipatria da situao atual das grandes cidades

    brasileiras, alertando para aquilo que, pelo alto grau de homogeneizao, segregao e

    desagregao, apresentava-se como a maior ameaa j enfrentada por elas. De fato, assiste-

  • 147

    se hoje a um fenmeno generalizado de apartao ou condominizao urbana14,

    caracterizado pela proliferao de Alphavilles, Barras da Tijuca e seus similares, como

    tambm de shoppings centers, centros mdicos e empresariais, parques temticos, etc.,

    reproduzido at nos micro-condomnios das favelas. Combinada e conjugada a outras

    estratgias urbanas contemporneas - especialmente a espetacularizao -, a condominizao

    s acirra as tenses entre os habitantes (tanto de uns com os outros como consigo mesmos),

    fazendo com que se manifestem sob formas cada vez mais violentas e disruptivas. Se essas

    tenses no forem liberadas por outras vlvulas, de outras formas como atravs da arte15

    podero, num prazo no muito longo, tornar invivel a vida na cidade.

    Foi procurando instrumentos de luta contra esses processos nocivos ao que considerava

    o bom relacionamento entre as pessoas que Carlos Nelson chegou ao cinema, em particular

    ao documentrio. Mais uma vez de forma pioneira, pelo menos no Brasil, ele investigou e

    experimentou a possibilidade de utilizar o documentrio como uma ferramenta para a

    pesquisa em urbanismo e, na defesa de que as cidades so de fato da conta de todos os que

    nela habitam e que, portanto, merecem conhec-las e debat-las sempre que possvel

    (FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL, 1981: 9), tambm de democratizao do debate sobre

    a cidade.

    Supe-se que este meio de fcil circulao e poder de comunicao contribua para romper a viciosidade das pesquisas intangveis para a maioria interessada e levante questes para uma discusso e uma tomada de conscincia que, cada dia, parecem mais imprescindveis s prprias possibilidades de sobrevivncia dos valores positivos nas formas de vida urbana (1981:9).

    O levantamento e a catalogao dos filmes e vdeos - feito atravs das pesquisas

    Filmografia do Habitat (1982) e Videografia do habitat (1987) - serviu para mostrar que

    existia, no pas, um acervo audiovisual consistente e bastante diversificado tratando do meio

    urbano, sendo importante sua exibio e discusso entre profissionais e, principalmente, entre

    a populao. Essa circulao pretendida seria ainda uma maneira tambm de estimular a

    realizao de novas produes16.

    14 Fenmeno, entretanto, que no se reduz cidade, manifestando-se em outras esferas da sociedade urbana brasileira. Um dos sintomas disso a fora que vem ganhando, nas ltimas dcadas, o discurso identitrio no pas, utilizado no mais s pelos grupos dominantes, mas tambm pelas minorias. 15 No se trataria, entretanto, de uma arte tranqilizadora ou teraputica, como bem apontou Henri-Pierre Jeudy, mas de colocar a arte como uma arena de confronto, conflito e dilogo; uma arte que no busque solues ou consensos, mas faa vazar. 16 As duas pesquisas j foram comentadas na PARTE 2.3 (110-111).

  • 148

    Alm das duas pesquisas, Carlos Nelson promoveu a produo de alguns documentrios

    pelo Instituto Brasileiro de Administrao Municipal IBAM, mais especificamente pelo

    Centro de Pesquisas Urbanas - CPU (do qual foi chefe de 1976 a 1989, quando faleceu), como

    a srie de vdeos com a finalidade de capacitar tcnicos de prefeituras de municpios de

    pequeno e mdio porte: Feiras livres (Alfredo Grieco e Tom Job Azulay, 19,1983),

    Matadouros (Alfredo Grieco e Tom Job Azulay, 33,1983), Mercados (Letcia Parente e

    Flvio Ferreira, 1983) e Rodovirias (Alfredo Grieco e Tom Job Azulay, 30, 1983)

    orientavam como planejar, localizar, equipar e administrar esses equipamentos urbanos;

    Sistema virio (Letcia Parente e Flvio Ferreira, 26,1983) e Tcnicas de pavimentao

    (Letcia Parente e Flvio Ferreira, 27,1983) continham noes de organizao do sistema

    virio e tcnicas de pavimentao (FERREIRA DOS SANTOS, 1987: 29;31-32;37).

    J o documentrio Quando a rua vira casa (Tet Moraes, 21,1980), junto com o livro

    homnimo, foram os produtos finais de uma pesquisa coordenada por Carlos Nelson e pelo

    antroplogo Arno Vogel - intitulada Espao social e lazer, estudo antropolgico e

    arquitetnico do bairro do Catumbi-, realizada pelo CPU do IBAM com recursos do Fundo

    Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico obtidos atravs da FINEP

    Financiadora de Estudos e Projetos. O roteiro do documentrio foi escrito por Carlos Nelson e

    Vogel, em colaborao com o tambm antroplogo Marco Antnio Mello (os trs, como

    veremos, tambm atuam no filme).

    Embora no fosse a primeira vez que um arquiteto-urbanista brasileiro se implicava

    diretamente na realizao de um filme relacionado, de alguma maneira, a um trabalho no

    campo do urbanismo17, a singular importncia dessa experincia reside, principalmente, em

    possibilitar uma reflexo sobre os riscos que acompanham qualquer tentativa de expressar um

    pensamento ou discurso atravs de uma forma nova, ou pelo menos, de uma forma no-usual

    no caso, a expresso de um discurso prprio do campo do urbanismo atravs da forma

    documentria. Uma reflexo que, veremos, no pode ser de maneira alguma negligenciada por

    aqueles que pretendem se lanar na aventura de se colocarem na passagem entre esses dois

    campos.

    17 Vimos na PARTE 2.3 (124-130), que, antes dele, outros j o haviam feito, como Maria Elisa Costa em Braslia, planejamento urbano (1964), Luis Saia em Braslia, contradies de uma cidade nova (1967), e Ermnia Maricato em Fim de semana (1976) e Loteamento Clandestino (1979).

  • 149

    3.2 A pesquisa

    O envolvimento de Carlos Nelson com o Catumbi remonta a 1964, numa curta e,

    segundo ele, desastrosa, experincia na favela do bairro, atravs da FAFEG18. Um pouco

    depois, no incio da dcada de 1970, a Quadra presta uma consultoria em arquitetura e

    urbanismo Associao de Moradores, que lutava, desde meados da dcada anterior, contra a

    implantao de um plano de renovao urbana que destruiria o bairro. Esse movimento

    social urbano do Catumbi - que se estenderia at o incio da dcada de 1980 - vai ser um

    dos trs casos analisados em sua dissertao de mestrado, defendida em 1979 junto ao

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional UFRJ, e

    publicada no livro Movimentos urbanos no Rio de Janeiro (1981).

    Situado nas bordas da regio central do Rio de Janeiro, ao p do morro de Santa Tereza,

    o Catumbi era habitado, nos anos 1960, por uma populao predominantemente de classe

    mdia baixa, - em substituio, desde as ltimas dcadas do sculo XIX, aos primeiros

    moradores, donos de quintas e chcaras -, que convivia com um pequeno e variado comrcio,

    fbricas e oficinas. O bairro se distinguia tambm pela expressiva diversidade scio-cultural,

    abrigando colnias de portugueses (aorianos), italianos, espanhis e ciganos, alm de ser um

    reduto tradicional de samba e de blocos carnavalescos.

    Sofrendo durante muito tempo com inundaes, no final dos anos 1950 j se encontrava

    saneado e, com a abertura, em 1961, do tnel Santa Brbara, perde a caracterstica de

    excentricidade e adquire uma localizao estratgica, na ligao entre o centro de negcios e a

    rea mais valiosa da cidade, a Zona Sul. Foi o suficiente para comearem a surgir presses de

    interesses financeiros e polticos sobre o bairro. Em 1965, um plano urbanstico para o Estado

    da Guanabara, conhecido como Plano Doxadis (que contou com a assessoria de renomados

    tcnicos em urbanismo, brasileiros e estrangeiros), indica o Catumbi como uma das reas a

    receber tratamento especial por parte do governo estadual, isto , propcia para sofrer um

    processo radical de renovao urbana.

    18 As primeiras investidas que fizemos na favela do Catumbi e nossa atuao na FAFEG davam sozinhas para elaborar outra etnografia. Basta dizer que, no Catumbi, tentvamos aplicar os mtodos de levantamento topogrfico que havamos aprendido na Universidade e levamos dois meses brigando com um teodolito para, ao final, conseguir mapear cinco barracos! Era desanimador (FERREIRA DOS SANTOS, 1980:43).

  • 150

    Elaborado j no incio da gesto de Negro de Lima, atravs da Superintendncia

    Executiva de Projetos Especiais SEPE, como parte do projeto da Cidade Nova, o plano de

    renovao urbana do Catumbi compreendia a construo de um complexo de viadutos

    (ligando o tnel Santa Brbara Avenida Brasil e ponte Rio-Niteri, os dois principais

    acessos virios cidade), exigindo uma ampla desapropriao de terrenos e destruio de um

    grande nmero de ruas e edifcaes do bairro, com expulso dos seus ocupantes, a maioria

    formada por inquilinos (o que facilitaria o processo)19. Nos terrenos fabricados pela tabula

    rasa feita no bairro, estava prevista a construo de conjuntos habitacionais com

    financiamento do BNH, destinados cooperativas de trabalhadores, no a quem estava sendo

    expulso. Um discurso urbanstico de carter tcnico-cientfico justificava a destruio imposta

    pelo governo ao Catumbi, com a argumentao da necessidade do projeto virio e tambm

    acusando o bairro de ser decadente e obsoleto, possuidor de qualidades urbansticas

    indesejveis20.

    Tudo o existia dentro dele, incluindo ruas, casas, equipamentos urbansticos, pessoas e suas atividades deveria desaparecer para dar lugar a estruturas e modos de vida mais modernos e, naturalmente, a novos moradores que tivessem o status adequado para consumi-las e pratic-los. Em suma, o Catumbi como modelo urbano era visto como superado, carregado de negatividades e indesejado (SANTOS e VOGEL,1981: 8-9)

    No incio de 1967, assim que tomam conhecimento das decises do governo sobre o

    futuro do bairro, os moradores se articulam e partem para a luta, fazendo manifestaes

    pblicas contra o plano que so amplamente divulgadas pela mdia local. O Catumbi virou

    notcia e ganhou apoio da opinio pblica, ajudando a reforar a solidariedade interna. A

    comisso de moradores acabou conseguindo que os primeiros despejados, organizados em

    uma cooperativa de moradores - a Cooperativa Habitacional Ferro de Engomar - fossem

    includos num dos conjuntos construdos atravs do BNH - destinados inicialmente apenas s

    cooperativas de profissionais21- situado no no53 da rua do Chichorro22.

    19 Paradoxalmente, o mesmo governo de Negro de Lima que tentava destruir o Catumbi e expulsar seus moradores, ao mesmo tempo esforava-se para garantir a permanncia da favela Brs de Pina. 20 Carlos Nelson mostra que o prprio Estado, j com intenes de fazer investimentos no bairro, tratou de impedir, atravs da legislao, melhorias e transformaes nos imveis, provocando ali uma decadncia artificial. Quando o plano ficou pronto, essa decadncia foi usada como pretexto para limpar o bairro (1980:155). 21 O reconhecimento da cooperativa pelo BNH, quebrando suas prprias diretrizes e aceitando as reivindicaes da populao foi considerada uma vitria pelos moradores do Catumbi, e abriu um precedente que resultou na modificao do estatuto do rgo sobre as Cooperativas Habitacionais para todo o pais, passando a incluir, tambm, as cooperativas de carter local (FERREIRA DOS SANTOS, 1980: 162-163). 22 Na rea conhecida como Ferro de Engomar, prxima sada do tnel e de onde haviam sado os despejados, foram construdos conjuntos para famlias de classe mdia (de bancrios, securitrios, militares, etc.). Embora

  • 151

    Animados, os moradores formam, em 1970, uma Associao, que logo comea a

    publicar um pequeno jornal de tiragem mensal, O Catumbi , tendo por finalidade divulgar

    idias com fins comunitrios, mantendo uma coluna livre para os que dela quiserem fazer uso,

    na transmisso de um pensamento, num direito reivindicatrio. Ser o arauto porta-voz dos

    catumbienses. O jornal, em formato tablide, era totalmente escrito pelos moradores,

    impresso no bairro e patrocinado pelo comrcio e indstria locais (FERREIRA DOS

    SANTOS, 1981:164)23. Outra iniciativa importante da Associao foi a realizao de um

    filme em 16 mm chamado Catumbi, histria de um bairro (Mrio Palmieri, 1972), fazendo

    um retrato do bairro, de seus moradores e de sua luta. Carlos Nelson comenta o filme:

    Nele se diz que Catumbi tem de tudo! Tem o que mostrar e tem o que pedir. Mostra o mximo. Pede o mnimo. O mnimo que se pede pedido ao governo. A pelcula se divide em trs partes. A primeira tenta reconstituir a histria do bairro de forma muito ufanista e ingnua, procurando valorizar o Catumbi atravs dos seus smbolos identificadores. A segunda mostra o preparo e a efetivao da luta. A terceira, a menos interessante, mostra como o governo atendeu ao que lhe foi pedido. Atravs de uma srie de situaes rituais (reunies, inauguraes), so demonstrados os contatos entre Associao, diretoria da Cooperativa Ferro de Engomar, autoridades do governo do Estado e do BNH. (...) Os rostos sorridentes, as flores, as faixas, as autoridades cumprimentando e abraando lideres e moradores, tudo faz crer que o importante reconhecer a diferena, mas perseguir a harmonia. At os padres esto l, distribuindo bnos sacramentalizadoras das novas situaes (novos edifcios para os moradores do Catumbi). O filme termina com um anti-clmax para a festa e uma exaltao ordem do cotidiano, frente qual os catumbienses tm de saber que s podem contar consigo mesmos: A vitria total est assegurada, mas tudo s vir com muita luta, muita abnegao e muita determinao! (...) Mudou o aspecto do bairro, mas no mudaram seus residentes nem o entusiasmo da gente humilde que venceu a batalha do pedacinho do cu. Esse um filme inacabado! Muita gente ainda espera a sua chave! (1981:189)24.

    A Quadra entra nesse campo de batalha em 1971, contratada pela Associao de

    Moradores para estudar os planos em execuo pelo governo do Estado e propor uma

    alternativa vivel e compatvel ao mximo com as aspiraes dos moradores (FERREIRA

    DOS SANTOS, 1981:168-169). Carlos Nelson e seus colegas eram, aqui, de fato,

    planejadores-advogados dos moradores, que lhes pediam ao mesmo tempo que uma

    opinio tcnica, o fornecimento de argumentos para enfrentarem as decises oficiais numa

    fossem forasteiros e estranhos ao Catumbi, esses novos moradores, provenientes de outros bairros, no eram vistos de forma negativa ou estigmatizada pelos moradores antigos, como acontecia com os favelados que ocuparam os imveis abandonados, tratados como intrusos ou invasores. 23 O jornal foi um veiculo importante para manter a mobilizao dos moradores at 1975, quando sua publicao foi interrompida, aps 51 edies. 24 Em 2001, Marco Antnio Mello apresentou e discutiu o filme (que havia sido recuperado por ele) com membros da Associao dos Moradores do Catumbi. Carlos Nelson menciona ainda que foi realizado, tambm na dcada de 1970, um outro filme sobre a luta dos moradores do Catumbi, feito por mestrandos do curso de Planejamento Urbano da COPPE/UFRJ (1981:190).

  • 152

    mesa de conferncias (CASRIO apud FERREIRA DOS SANTOS, 1981:169)25. Durante

    cerca de um ano em que trabalhou no Catumbi, a Quadra realizou basicamente duas

    consultorias sobre as possibilidades de uso de reas do bairro para instalao de moradia para

    os desalojados. Entretanto, desta vez, as tentativas no resultaram em conquistas para os

    moradores:

    Contribumos duas vezes para fornecer subsdios tcnicos a um processo que todos os implicados sabiam ser essencialmente poltico. O governo do Estado e a Associao se envolveram em um jogo de promessas, de ganhar tempo e de esperanas frustradas que vai durar de 1971 at agora. O mvel essencial desse jogo era o empenho desesperado da Associao em conquistas alguns terrenos comprveis pelos antigos moradores, enquanto o Estado os cozinhava em banho-maria sem nunca resolver nada. Enquanto isso, o planejamento original da SEPE iria sendo aplicado a conta-gotas e o Catumbi aos poucos mudava de imagem fsica e era invadido por gente de fora (FERREIRA DOS SANTOS, 1980:169).

    A atmosfera de cidade pequena que marcava o Catumbi - onde todos se conhecem

    mas, por outro lado, regida pela moralidade e patrulhamento da vida comum - contrastava

    com o carter transicional que foi imposto violentamente ao bairro pelo governo, servindo,

    assim, para aumentar tambm os conflitos internos. Estes resultavam sobretudo da no-

    aceitao dos novos moradores, em particular da populao pobre e marginalizada,

    proveniente dos morros adjacentes (alm de muitos favelados, havia tambm algumas

    prostitutas e travestis), que passou a ocupar os imveis que restaram nos trechos das

    demolies. Eram vistos como invasores pelos antigos moradores, que os tratavam com

    desconfiana e hostilidade, acusando-os de degradarem ainda mais o bairro.

    Aos poucos, a resistncia dos moradores foi se enfraquecendo, enquanto, do outro lado,

    a construo do complexo virio elevado progredia. Em 1978, depois de mais de dez anos de

    luta, finalmente a Linha Lils como era oficialmente chamado o viaduto - ficou pronto,

    mutilando o bairro, deixando-o cheio de runas como se tivesse sido bombardeado e,

    esmagado entre um vitorioso viaduto cercado por gramados e a Passarela do Samba, vendo-

    se reduzido a cerca de um tero do seu tamanho original (SANTOS e VOGEL, 1981:191).

    Foi num Catumbi devastado e tenso porm ainda vivo - que Carlos Nelson, Vogel e

    Mello iniciaram a pesquisa Espao social e lazer, estudo antropolgico e arquitetnico do

    25 Diferentemente de Brs de Pina, Carlos Nelson teve, nesse trabalho, um papel secundrio - estava nas vsperas de viajar para os EUA. Quem se ocupou dele foram principalmente Sylvia Wanderley e Fernando Casrio de Almeida, que, voltando a morar no Rio, havia se integrado Quadra.

  • 153

    bairro do Catumbi, em 1979. Ainda sob ameaa de novas demolies pelo governo, pairava

    entre os moradores um clima de apreenso e desesperana, como se esperassem um golpe

    de misericrdia acabando com o que havia restado do bairro.

    Quando chegamos a campo, o Catumbi parecia estar vivendo seus ltimos dias. () O bairro, que havia sofrido uma escalada de desapropriaes e demolies que possibilitaram estas obras de vulto, estava espera do assalto final. Mais uma vez a Associao de Moradores mobilizava a populao. Era preciso sustar a derrubada definitiva. Impedir que os ltimos quarteires fossem postos abaixo, expulsando os seus habitantes para Deus sabe que lugar distante. Caso esta possibilidade se efetivasse, acabavam as suas chances de retorno, assim como as dos que j tinham sido expulsos antes (SANTOS e VOGEL, 1981:21).26

    A pesquisa tinha por objetivo mais amplo questionar a validade de grandes postulados

    da teoria urbanstica, tidos por cientficos, que levaram depreciao e, conseqentemente,

    destruio do Catumbi, condenado como anacrnico, ineficiente e disfuncional, atravs da

    observao do cotidiano do bairro, mais especificamente, das formas e processos de

    apropriao de espaos (tanto pblicos como privados) de uso coletivo para o lazer ali

    existentes, comparando ao que acontecia num caso exemplar daquilo que, num extremo

    oposto, era apresentado por tcnicos e governantes como lgico, desejvel e modelar.

    Assim, como contraponto ao Catumbi, foi escolhida a Selva de Pedra, um conjunto

    situado na Zona Sul carioca, entre o Leblon e a Lagoa Rodrigo de Freitas, formado por

    quarenta torres residenciais dispostas em torno de uma grande praa central, destinada ao

    lazer e recreao de seus moradores, todos membros da classe mdia basicamente,

    famlias de professores, funcionrios de empresas estatais e militares. A Selva de Pedra fora

    concebida pelo governo estadual, financiada pelo BNH e construda pelo capital privado no

    26 Em 1980, as opinies de tcnicos e especialistas, os filmes, as teses, a coleo do jornal, a tarimbada diretoria, a assistncia de vrios amigos, alguns dos quais dentro do prprio governo, tudo foi usado pelos moradores para ganhar o apoio do novo prefeito, Israel Klabin, que mostrava-se desejoso de colaborar com os movimentos populares. E, assim, conseguiram uma decisiva vitria: atravs de um decreto municipal, datado de 13/03/1980, o Catumbi foi transformado em rea de Preservao Ambiental (usando, pela 1a vez, o dispositivo criado pelo Plano Urbanstico Bsico do Rio de Janeiro, de 1977), garantindo a preservao do que ainda restava do bairro. Logo depois do decreto, Klabin renunciou por atritos com o governo federal, mas Julio Coutinho, que assumiu a prefeitura com sua sada, manteve sua deciso (1981:191;197).

  • 154

    incio da dcada de 1970, bem no lugar aonde ficava a favela da Praia do Pinto27. Tratava-se,

    portanto, de um plano de renovao urbana plenamente realizado28,

    Ao Catumbi correspondia um espao urbano mais espontneo, produzido lenta e

    gradativamente pela prtica compartilhada e dialgica da negociao cotidiana.

    Caracterizava-se por um traado irregular, quadras pequenas, casario de arquitetura modesta e

    vernacular, tudo na escala do pedestre, mas com grande diversidade, variabilidade e mistura

    de usos e atividades. A Selva de Pedra, ao contrrio, planejada seguindo risca os parmetros

    e concepes funcionalistas, era um ambiente onde predominava a uniformidade, a

    impessoalidade, a rigidez, o controle e a separao.

    preciso saber quais os verdadeiros efeitos de determinadas aes sobre o meio urbano. Cidades no so objetos idealizveis abstratamente e nunca se comportam de acordo com as fantasias de quem as trata desta forma. So concretizaes de modelos culturais, materializam momentos histricos e se desempenham como podem, tendo de comportar conflitos e conjugaes que se armam e se desarmam sem parar e em muitos nveis.

    Em geral, os resultados reais da atividade do cientista, do planejador, do administrador, do tcnico, do poltico sobre as cidades comeam quando toda esta gente sai de cena. Quando os seus projetos deixam de ser mapas, memoriais, oramentos, leis, decretos ou planos financeiros e se transformam em uma linguagem fsica decodificvel no dia-a-dia. Infelizmente, nesse momento crtico de inicio e de estria que os trabalhos urbansticos so dados como terminados. Na verdade esto comeando, passando das abstraes estticas s prticas sociais contaminadoras e cambiantes que caracterizam o que urbano. Verificar os seus resultados essencial prpria manuteno da idia do urbanismo como rea especial do saber que merece os foros de disciplina acadmica e do domnio profissional erudito (FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL,1981:7).

    Nos dois casos (mas com bem menos intensidade na Selva de Pedra), foi utilizado como

    mtodo a etnografia29 e sua tcnica de observao participante, praticada ao longo de

    caminhadas nas quais se levantava o mximo de informao e se vasculhavam os mnimos

    detalhes dos espaos percorridos. Muitas dessas incansveis caminhadas realizadas no

    Catumbi foram feitas na companhia dos antigos moradores que, ao recriarem ambientes,

    personagens, acontecimentos, relaes, at mesmo cheiros e gostos que haviam desaparecido

    27 A favela foi uma das muitas removidas pela CHISAM, no final da dcada de 1960, sendo destruda por um incndio. Entretanto, bem antes da erradicao, uma parte dos moradores havia sido relocada para a Cruzada de So Sebastio, um conjunto habitacional localizado ao lado da Selva de Pedra. 28 Embora a Selva de Pedra atendesse a todos os requisitos, os autores confessam terem percebido, ao final da pesquisa, que os novos empreendimentos surgidos com a urbanizao da Barra da Tijuca seriam mais indicados comparao com o Catumbi, correspondendo melhor definio de condomnio exclusivo (1981:110-111). 29 Uma etnografia de uma rua, de uma praa, ou de qualquer outro espao urbano -, seria no apenas a descrio densa de um ambiente scio-fsico, como indicaria Clifford Geertz, mas tambm a identificao dos comportamentos residentes e utentes a partir de um determinado suporte espacial (FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL, 1981:23).

  • 155

    com as demolies, conduziam os pesquisadores por uma geografia fantstica do bairro,

    fazendo surgir, diante deles, uma paisagem cristalina:

    Durante todo o perodo da pesquisa de campo percorremos o bairro em inmeras caminhadas. Andamos at que soubssemos de cor, no s os limites consensuais do seu territrio, os nomes e localizao de suas vilas, ruas e logradouros pblicos, mas ainda toda sorte de informaes a respeito de suas realidade arquitetnica, da evoluo urbana que tinha experimentado a partir do sculo XIX, bem como dos modos de vida que haviam caracterizado a comunidade de moradores nas diferentes pocas de sua existncia.

    Boa parte dessas exploraes tiveram o carter de visitas guiadas. Isso era uma decorrncia do prprio estilo de trabalho, pois desejvamos escrever uma etnografia que levasse em conta a verso dos prprios atores. Queramos aprender. Tnhamos nossas teorias e sabamos que eles tinham as deles. O problema era como juntar todas elas em uma verso abrangente capaz de explicar mais completamente as perguntas que nos ocupavam. Por isso nos deixamos guiar, ouvindo e registrando com ateno tudo que nos era contado a respeito do que consideravam relevante mostrar-nos. (...)

    O assunto do bairro eram as demolies. Todos sabiam que de acordo com os planos de renovao urbana tudo viria abaixo. Por causa disso, pouco se importavam com o tema apropriao de espaos coletivos para fins de lazer. Andando pelas pistas recm-asfaltadas do complexo virio da Linha Lils, nossos cicerones falavam com veemncia e gesticulavam muito. Indignados apontavam as partes destrudas do casario. Na extremidade de cada uma das ruas que o novo eixo virio tinha seccionado as runas sugeriam uma outrora continuidade do tecido urbano.

    De repente, um deles estanca no meio do asfalto e comea a recordar: Aqui era a casa da minha me. Com o olhar fixo na superfcie para ns vazia de significados, agita os braos. Traa linhas e descreve ngulos, projetando no cho o risco de uma casa, cuja planta mal e mal conseguamos visualizar. Este era o meu quarto; a cozinha ficava ali atrs, do lado do quarto do meu irmo. Mais alguns passos e com as mo estendida indica outra poro indiferenciada da rua. Mesmo a morava a Dona Maria, nossa vizinha. Gente boa. Cansava de nos emprestar ovos, uma xcara de acar, essas coisas.

    Seguimos o fluxo dessa narrativa sem ousar interromp-la. Vez que outras interjeies de admirao incentivam nosso interlocutor a prosseguir com sua descrio que, retrospectivamente, resolvemos chamar de geografia fantstica do Catumbi. Em ocasies subseqentes fomos brindados com outros relatos parecidos. E, atravs deles, descobrimos uma forma peculiar do exerccio da memria que tomava como objeto a prpria materialidade dos espaos urbanos, restabelecendo continuidades e evocando lugares l onde, para ns, no existia nada alm de pistas de asfalto, montes de escombros e terrenos baldios.

    Era como se estivssemos assistindo a uma escavao. Sem os instrumentos que esse tipo de prtica costuma utilizar, mas nem por isso menos vvida e convincente. Quem resolvesse prestar ateno ao relato, veria aparecer diante de si soleiras, portas e janelas, salas, quartos de dormir, corredores e quintais, E quem tivesse dificuldade para imaginar o que lhe estava sendo apresentado, poderia resolver o problema com um simples movimento de cabea. Bastaria que levantasse os olhos, voltando-os para o que restava do bairro e compreenderia imediatamente do que se tratava (MELLO e VOGEL,1984:46-48).30

    30 A partir dessa experincia definida como curiosa e inusitada - surgiu a proposta de uma Arqueologia Urbana, ou seja, uma investigao sobre o meio urbano segundo uma perspectiva arqueolgica. Considerando as cidades como verdadeiros sistemas de memria, em incessante tenso e transformao -sem resultado definitivo para esse devir, a no ser que ele seja bruscamente interrompido -, Mello e Vogel pretendem voltar a

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    Arqueologia Urbana no apenas para o registro curioso de uma realidade urbana cambiante, mas para a apreenso das correlaes sociolgicas que, em cada poca, articularam a totalidade urbana, preocupando-se com o levantamento historicamente escalonado de conjuntos do sistema construdo das cidades e de sua alocao funcional em diferentes momentos de sua existncia. A Arqueologia Urbana, acreditam, pode nos ensinar muito, no s a respeito das prticas do dia-a-dia, mas tambm a respeito dos sonhos e da imaginao, das artes do fazer e do viver de uma sociedade (1984:49-50).

    1.Tnel Sta Brbara 2.Garotos soltando pipa 3.Brincadeira na rvore 4.Escadaria para Santa. Tereza 5.Ambulantes na passagem

    subterrnea 6.Antiga chamin 7.Futebol no viaduto 8.Baloeiros 9.Reunio do pessoal do Bafo de

    Ona 10.Tnel para a Lapa 11.Encontros 12.Formas de apropriao do

    estacionamento 13.Campo de pelada do pessoal da

    Frei Caneca 14.Instalaes da Light 15.Presdio

    MAPA DE REFERNCIAS DO CATUMBI

    16.Travestis na porta de casa ocupada 17.Meninos invasores jogando bola 18.Bar-Armazm Brasil 19.Conversa na porta de D.Leonor 20.tica do Slvio 21.Bar Mulambo 22.Oficina Rio-Neiva 23.Oficina do Santos 24.Operrios das oficinas jogam bola 25.Bar do Garrincha 26.Bicheiros 27.Bar do Amaral 28.Igreja da Salete 29.Lava a jato 30.Feira da rua Emlia Guimares 31.Bar e Armazm So Jos 32.Cadeiras na Calada 33.Quitanda em frente 34.Jogo de bola

    35.Jogo de sueca 36. Chcara do Chichorro 37.Garagem Presidente 38.Jogo de Raquete 39.Skate na rua 40.Venda ambulante na subida do

    morro 41.Jogo de bola no campo da Mineira 42.Capela do Cemitrio 43.Garotos soltando pipa 44.Porta do Cemitrio 45.Esquina das ruas do Chichorro e

    do Catumbi 46.Jogo de bola em frente da oficina 47.tica do talo 48.Conjunto da Cooperativa 49.Conjunto Ferro de Engomar 50.Casa da festa de Cosme e Damio Fonte: FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL (1981).

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    No decorrer da pesquisa que durou cerca de oito meses, sendo concluda em janeiro

    de 198031 -, foram mapeadas e apreendidas singularidades, hbitos, tradies, locais e

    situaes de encontro e convvio, de jogos e brincadeiras, e tambm de conflitos entre os

    habitantes, observados em suas prticas materiais e simblicas. Procurou-se mostrar, ainda,

    no apenas como estes usam seus espaos, mas como tambm o vem, dando oportunidade ao

    outro lado de revelar as suas razes e ordens (FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL,

    1981:7;9). Deste modo, a vivncia cotidiana de um microcosmo dentro de uma metrpole

    fornecia os subsdios, os testemunhos e as provas para se contestar as idealizaes abstratas e

    utpicas sobre o urbano, questionando a natureza do prprio saber-fazer urbanstico.

    Trata-se de falar da cidade a partir do usurio, e no a partir da perspectiva de quem, curvado sobre uma prancheta, pretende estabelecer as normas, valores, usos e traados que a cidade deveria ter se quisesse, realmente, ser uma cidade comme il faut. Por esse motivo, o cotidiano, com sua inevitvel mistura, com suas combinaes complexas, variveis e cambiantes, devia ser a verdadeira fonte e o foco do conhecimento urbano (FERREIRA DOS SANTOS E VOGEL, 1981:79).

    Para captar a desejada fala da realidade, foram combinados procedimentos de

    pesquisa em etnografia e em urbanismo. Assim, nos trabalhos de campo, foram feitas

    entrevistas com moradores e usurios dos espaos, mapas, fotografias (e, a partir delas,

    desenhos), alm de algo at aquele momento pouco comum em se tratando de um estudo de

    espaos urbanos no Brasil, seja no campo do urbanismo, da sociologia ou antropologia

    urbanas: um registro audiovisual, feito em pelcula de 16 mm.

    A linguagem do cinema se revelou imprescindvel para captar a dinmica dos processos de usos do espao. Melhor do que qualquer outra tcnica, ela pode executar, de forma sinttica e profunda, a proposta de percepo contextual dos lugares, personagens e atividades (FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL, 1981:9).

    31 O texto do livro - um relatrio constitudo pela descrio do processo de pesquisa seguida da anlise terica dos levantamentos -, ficaria pronto cinco meses depois, em junho de 1980.

    Filmagens no Catumbi. Fonte: FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL (1981).

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    Esse processo, entretanto, revelou-se problemtico. Foi realizado um primeiro filme,

    dirigido por Srgio Po, intitulado Contradies urbanas, com durao de cerca de 30

    minutos. Po, ex-estudante de arquitetura e urbanismo e amigo de Carlos Nelson, na poca, j

    era um cineasta conhecido no Rio de Janeiro, tendo dirigido, fazia pouco tempo, dois filmes

    tratando da questo das favelas, Rocinha-Brasil 77 e Associao de moradores de

    Guararapes32. Desta vez, porm, o resultado no agradou a Carlos Nelson, que acabou no

    aceitando o filme, sob alegao de que Po havia fugido da proposta da pesquisa e feito um

    outro filme, de cunho autoral33.

    Como, pelo projeto apresentado FINEP, havia o compromisso de haver um filme entre

    os produtos finais da pesquisa, Carlos Nelson ento convida sua amiga jornalista Maria

    Tereza Porcincula de Moraes - mais conhecida como Tet Moraes -, recm-chegada ao

    Brasil aps cerca de dez anos de exlio nos EUA e na Europa, para fazer um segundo filme,

    que seria a sua estria no cinema34. Embora considere essa experincia muito especial,

    marcando sua volta ao pas como tambm inaugurando uma nova fase em sua vida, como

    cineasta, Tet reconhece as limitaes de filmar por uma encomenda institucional:

    Ento, se uma instituio contrata para voc fazer um filme sobre ela, ou sobre algum tema muito claro, existe um relacionamento de um filme institucional, que at certo ponto autoral, at certo ponto no . autoral porque tem a viso de algum trabalhando, no ? Determinado tema, determinado roteiro, determinado argumento. E era essa pesquisa (depoimento autora, em 13/06/2006).

    Assim, para evitar que ocorresse com ela o mesmo tipo de problema, Tet fez questo

    de trabalhar em conjunto com os coordenadores da pesquisa, solicitando com que o roteiro do

    filme fosse elaborado e assinado por eles (e ainda os colocando diante da cmera), e ela

    apenas dirigisse. Mesmo tendo pouqussimos recursos (a verba que havia sido reservada para

    o filme fora quase toda gasta na primeira produo35), Tet se recusou a simplesmente fazer

    uma remontagem das filmagens de Po, preferindo voltar a filmar nos locais da pesquisa -

    num momento em que o trabalho de campo j havia sido finalizado -, e apenas aproveitou

    32 Ver PARTE 2.2 (96) e PARTE 2.3 (130). 33 O grande desentendimento em torno desse filme acaba sendo resolvido atravs de um acordo jurdico entre as partes. Ficou acertado que os negativos ficariam com o IBAM, enquanto Po receberia uma cpia. Resultou que vrias tomadas foram reutilizadas em Quando a rua vira casa, ao passo que Contradies urbanas permanece at hoje indito. 34 Tet conta que havia estudado cinema durante o exlio, e dirigido, de forma experimental, alguns filmes educativos. Aps Quando a rua vira casa, realizou vrios outros documentrios, como Terra para Rose(1987) e o recente O Sol - Caminhando contra o vento (2006). 35 Tet acaba conseguindo recursos complementares para finalizar o filme junto Embrafilme.

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    algumas sobras do filme de Po, consideradas como material de arquivo do IBAM. A

    cineasta conta como foi a experincia de trabalhar com Carlos Nelson:

    O Carlos Nelson era uma pessoa muito brilhante, muito maravilhosa, muito querida, mas ele era tambm uma pessoa muito centralizadora. Ento, sempre queria dar palpite: faz assim, faz assado. A eu disse, pera, Carlos, agora j tem o roteiro, deixa eu fazer o filme do jeito que deve ser. E ele ficou l na dele. Eu no deixei ele ficar muito dentro da filmagem. E da montagem tambm. Ele s viu umas duas vezes (...). Como existia um afeto, uma amizade, uma confiana, aconteceu. Uma vez ele foi na montagem, comeou a ver e a dar muito palpite, e eu falei chega, tchau (depoimento autora, em 13/06/2006).

    Esse processo de filmagem e de montagem que, segundo Tet, teve de ser realizado

    num prazo muito curto36 -, resultou no documentrio Quando a rua vira casa37, um curta-

    metragem de aproximadamente 21 minutos, exibido pela 1a vez no IBAM38. Com o passar do

    tempo, e em particular aps a morte de Carlos Nelson, esse filme acabou sendo praticamente

    esquecido, ao contrrio do livro, que cada vez mais teve sua importncia reconhecida no meio

    acadmico e profissional39.

    3.3 O documentrio

    Os primeiros instantes do filme Quando a rua vira casa so uma seqncia de tomadas

    panormicas do Catumbi, nas quais so mostradas as favelas circunvizinhas, seus conjuntos

    habitacionais, a Igreja da Salette, o complexo de viadutos, o tnel Santa Brbara e os edifcios

    do centro da cidade ao longe, ao som de um chorinho40. Durante um travelling feito de carro

    diante dos imveis demolidos, essa msica brevemente substituda por um som ruidoso de

    36 Alm de Tet na direo, a equipe tcnica principal do filme contava com Fernando Duarte na direo de fotografia, Cristiano Maciel no som e Dominique Paris na montagem. 37 Segundo Tet Moraes, Carlos Nelson queria que o filme, assim como o livro, se chamassem A apropriao de espaos de uso coletivo em um centro de bairro. Achando que este titulo ficaria horrvel para um filme, Tet sugeriu como alternativa Quando a rua vira casa, que Carlos Nelson gostou e acabou adotando tambm para o livro. Depoimento autora, em 13/06/2006. 38 Foram feitas duas cpias do filme em 16 mm, uma para o IBAM, a outra para a Embrafilme. Um pouco depois, foi feita uma cpia em VHS, atravs do IPPUC Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba. 39 Em 2001, em uma de suas raras exibies ao longo desses anos, o filme foi apresentado no 12o Festival Internacional de Curta -Metragens de So Paulo. 40 Tempo de criana, de autoria de Dilermando Reis, interpretado por Turbio Santos e conjunto Choros do Brasil.

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    trnsito de veculos, para voltar no momento em que a cmera, mais prxima, registra o

    movimento do bairro e o encontro entre dois homens (Carlos Nelson e Vogel, no

    identificados) com o dono de um estabelecimento comercial (provavelmente um membro da

    Associao de Moradores), que lhes entrega um documento.

    Surgem os crditos iniciais, acompanhados de uma seqncia de fotos antigas do

    Catumbi, comentadas por vozes off que, numa situao de conversa entre si, fazem uma breve

    retrospectiva dos principais episdios da histria do bairro ao longo do sculo XX, at as

    recentes demolies causadas pelo plano de renovao urbana. A cena seguinte revela quem

    est falando: trs homens sentados em torno de uma mesa coberta por fotografias, num

    ambiente de escritrio. No so plenamente identificados, mas, pelos crditos, sabe-se que so

    os autores do roteiro do filme e que esto, tambm, sendo suas personagens. Carlos Nelson,

    Arno e Mello especulam sobre as razes que levaram o poder pblico a promover a

    interveno urbanstica no Catumbi, e explicam os motivos, premissas e intenes da

    pesquisa. Carlos Nelson tem a palavra:

    O que a gente queria mesmo era avaliar certas teorias urbansticas sobre um tema bastante atual, as formas de praticar o lazer nas grandes cidades. O Catumbi interessava particularmente porque era julgado irrecupervel. O Catumbi teria to pouco valor urbanstico que a soluo era acabar com ele. Um lugar que, pro governo, valia muito pouco, e que pros moradores valia tanto, que eles estavam dispostos a brigar pela sua manuteno. Foi a que ns decidimos ver como que num lugar assim o lazer era praticado. (...) Valia a pena comparar com outros casos onde foi tudo certinho e planejado. Eu acho que a nica maneira de testar a validade das teorias urbansticas procurar observar como funcionam na prtica.

    Algumas imagens iniciais do Catumbi: uma favela, a igreja, o viaduto, a passagem subterrnea sob o viaduto com a antiga chamin ao fundo, uma casa demolida, uma cena de rua, e o encontro entre Carlos Nelson, Vogel e um comerciante membro da Associao de Moradores.

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    Mas o Catumbi tambm tem reas planejadas, observou Mello. A conversa entre os trs

    volta a ficar off para mostrar o conjunto habitacional Ferro de Engomar, inspirado nos

    princpios do urbanismo racionalista e progressista. No so os mesmos conceitos usados

    em Braslia?, pergunta Vogel a Carlos Nelson, que responde afirmativamente, completando

    que toda a produo urbanstica e arquitetnica brasileira dos anos 50 e 60 se inspira que

    nesse tipo de postulado. s imagens do Ferro de Engomar, seguem-se vrias panormicas da

    Selva de Pedra. O comentrio-conversa tendo ao fundo uma trilha de rock instrumental

    pesado - indica que ali foram aplicados os mesmos princpios, tratando-se de uma verso

    sofisticada do mesmo modelo.

    Na Selva de Pedra, feita a primeira entrevista do documentrio, tomada em som

    direto, com rudos do ambiente ao fundo (como aconteceria com todas as outras entrevistas e

    depoimentos). Uma moradora do conjunto (que no aparece nem identificada, assim como o

    entrevistador) responde s perguntas, falando dos problemas de segurana ali existentes e

    demonstra no querer nenhuma aproximao ou contato com seus vizinhos, sugerindo ser essa

    uma coisa para gente desocupada: Olha, eu no sou muito chegada vizinhana no, sabe?

    Que eu trabalho, e.... Ao final, revela o desejo de mudar-se para o Recreio dos Bandeirantes

    ou para a Barra da Tijuca, aonde tem mais espao.

    Os crditos iniciais, e os trs comentaristas, com Carlos Nelson em destaque (atrs dele, colados na parede, os desenhos das crianas).

    Carlos Nelson e Mello comentando sobre o Ferro de Engomar, imagens panormicas e internas do conjunto, e a associao com a Selva de Pedra.