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UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM POLTICA SOCIAL
Maisa Gonalves Cardoso
ESTRANHOS NO QUINTAL DE MIGUILIM:A LGICA DO AGRONEGCIO NO VALE DO JEQUITINHONHA
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Maisa Gonalves Cardoso
ESTRANHOS NO QUINTAL DE MIGUILIM:A LGICA DO AGRONEGCIO NO VALE DO JEQUITINHONHA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Poltica Social da Universidadede Braslia como requisito parcial paraobteno do grau de Mestra em Poltica Social.Orientador: Newton Narciso Gomes Junior
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Maisa Gonalves Cardoso
ESTRANHOS NO QUINTAL DE MIGUILIM:A LGICA DO AGRONEGCIO NO VALE DO JEQUITINHONHA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Poltica Social da Universidadede Braslia como requisito parcial paraobteno do grau de Mestra em Poltica Social.
Banca examinadora
Prof. Dr. Newton Narciso Gomes Junior (orientador)Departamento de Servio SocialUnB
Prof. Dr. Fernando Gaiger SilveiraInstituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA)
Prof. Dr. Perci CoelhoDepartamento de Servio SocialUnB
Prof. Dr. Carlos Lima (suplente)Membro vinculado ao ProgramaUnB
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AGRADECIMENTO
Cursar um mestrado, distanciar-me do meu lugar e das pequenas lutas travadas at ali
no foram tarefas fceis. No entanto, a presena, o carinho e a amizade foram pontos
essenciais de equilbrio neste trajeto marcado por momentos de angstia, s vezes medo, mas
tambm risos e alegrias compartilhados.
Preciso agradecer principalmente a Mainha e Paim, Miraci e Francisco Gonalves,
fontes inesgotveis de amor, aconchego e fora. Ainda que muito distantes, acompanharam
essa trajetria, estando presentes em todos os momentos de elaborao deste trabalho.
Pacientes, sempre compreenderam minha ausncia, muito antes do perodo desta dissertao.
A Iago, Mariana, Alan e Bernardo, crianas lindas, fontes de luz que sempre adoaram
minha vida.
A tia Nalda, tio Gra, tia Maria, tia Mira, v Miralda, v Dezinha, tia Dina, tio Mauri,
a todos sempre muito preocupados comigo, me ajudando com palavras e lindas
demonstraes de afeto, primordiais neste momento de tantas mudanas.
Aos companheiros de estrada, alguns que deixei h muito, ainda em Araua, Aline,
Viviane e Cludia, ainda presentes em minha vida. Agradeo tambm linda famlia quedeixei em Tefilo Otoni, as irms verdadeiras Cynthya, Nayara e Cris. Cris, em especial,
companheira de convices, fonte de fora, luta e esperana num outro Vale, numa outra
sociedade. A voc, amiga, que pacientemente leu e muito contribuiu neste trabalho final com
grandes sugestes.
minha famlia de Braslia, maravilhosas companhias nestes dois anos: Acio, Gilda,
Laura, Vivi, Dani, Pedrinho, Ligia, Flavinha e Arlindo. T-los por perto tornou essa jornada
muito mais leve e tranquila. S tenho a agradecer todos os risos e alegrias de todos que meacolheram e fizeram desta cidade tambm minha cidade, carrego lindas lembranas.
Agradeo aos companheiros das Brigadas Populares DF, Pedro, Igor, Vincius e
Alane, e a todos que socializaram comigo, neste curto perodo, ideais e lutas.
Ao professor Newton, meu orientador, pela liberdade e pelo respeito concedidos na
construo deste estudo, mostrando caminhos em momentos de muita indeciso.
mestra Roberta Traspadini, exemplo verdadeiro de uma intelectual orgnica sempre
vinculada s lutas de classe dos trabalhadores. Uma amiga que prontamente leu esta
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dissertao, contribuindo com sugestes incorporadas neste trabalho e outras que sero
incorporadas em trabalhos futuros.
Agradeo ao CNPq, pelo incentivo e financiamento desta pesquisa em 2013-2014 na
Universidade de Braslia. Este estudo resultado tambm de estudos iniciados na
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), qual sou muito grata.
Por fim, agradeo ao Vale do Jequitinhonha, linda terra, e ao povo desse lugar,
resistentes guerreiros, fontes de fora e indignao.
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RESUMO
Neste trabalho, fazemos uma anlise da questo agrria no Vale do Jequitinhonha (MG) apartir dos anos 2000, destacando a imerso da regio no processo de expanso do capitalfinanceiro em sua fase de predominncia fictcia, nos marcos da economia do agronegciovigente na periferia capitalista. A violncia estrutural sobre a terra e a histricasuperexplorao da fora de trabalho, inerentes s condies de dependncia, determinaramno Jequitinhonha o subdesenvolvimento rural no qual se encontra na atualidade, por meio deuma estratgia fundada na exacerbada captura de renda da terra. Foi para responder aomercado mundial de commodities que se acirrou a saga por commoditiesagrcolas e mineraisno Brasil, e estas tm exaurido os recursos naturais, expropriado campesinos e acirrado aquesto agrria. Sem terra e trabalho, esses camponeses vagam pelo serto mineiro e para fora
dele. Nossas concluses remetem imperiosa necessidade de discusso da questo agrria,evidenciando a insustentabilidade desse contraditrio modelo de desenvolvimento capitalista,tanto do ponto de vista da reproduo social da fora de trabalho quanto dos recursos naturais.
Palavras-chave: Questo agrria. Agronegcio. Vale do Jequitinhonha. Subdesenvolvimento.Dependncia.
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ABSTRACT
In this paper, we analyze the agrarian question in the Jequitinhonha Valley (MG) since the2000s, highlighting the immersion of the region in the financial capital expansion process inits phase of fictional predominance, within the framework of the existing agribusinesseconomy in the capitalist periphery. Structural violence over land and the historical over-exploitation of the labor force, which are inherent to the conditions of dependency,determined Jequitinhonhas rural underdevelopment, by means of a strategy based onexacerbated capture of land rent. It was to respond to the global commodities market that thesaga of agricultural and mineral commodities in Brazil was incited, and these have exhaustednatural resources, dispossessed peasants and strained the agrarian question. Deprived of landand labor, these peasants roam Minas Gerais backlands and beyond. Our conclusions suggest
the urgent need for discussion of the agrarian question, showing the unsustainability of thiscontradictory model of capitalist development, both from the social reproduction and the laborforce and natural resources points of view.
Keywords: Agrarian question. Agribusiness. Jequitinhonha Valley. Underdevelopment.Dependence.
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................................... 8
1QUESTO AGRRIA:UMA FACE DO SUBDESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO.................. 12
1.1 O subdesenvolvimento desde as estranhas da dependncia latino-americana ............ 12
1.2 A questo agrria no Vale do Jequitinhonha ............................................................... 18
1.3 Agronegcio: uma estratgia de desenvolvimento no sculo XXI? ............................ 22
1.4 Os novos nmades da terra nos grandes sertes e veredas .......................................... 25
1.5 Alguns apontamentos sobre a poltica social: um horizonte necessrio...................... 28
2OVALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A RESISTNCIA E A SUPEREXPLORAO.......................... 32
2.1 Dos geraes, das veredas e das grotas ........................................................................... 34
2.2 O incio do mau encontro: invaso do estranhoxresistncia camponesa ................... 38
2.3 As inesgotveis minas de sofrimento .......................................................................... 45
2.4 A invaso das florestas mortas: o eucalipto ................................................................ 47
2.5 O rio vai virar mar ....................................................................................................... 49
2.6 A extrao de riqueza e a produo de misria no Jequitinhonha ............................... 50
3ALGICA DO AGRONEGCIO EM TERRAS DO SERTO MINEIRO............................................... 53
3.1 Estranhos no quintal de Miguilim ............................................................................... 54
3.2 A reconfigurao da questo agrria atual no Jequitinhonha ...................................... 62
CONSIDERAES FINAIS............................................................................................................ 68
REFERNCIAS ............................................................................................................................ 76
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INTRODUO
Este trabalho constitui-se na ltima etapa de um processo de investigao iniciado a
partir de uma percepo emprica, imediata e prtica da realidade. Abordaremos uma regio
tida como historicamente subdesenvolvida, o Vale do Jequitinhonha, cuja realidade marcada
pela misria estrutural e cuja populao, sobretudo a campesina, continua, nos limiares do
sculo XXI, vivenciando o amargo dessabor da expropriao de suas terras, perdendo seus
meios de produo e reproduo da vida e sendo obrigada a deixar seu lugar em busca de
sobrevivncia.
Os estranhos1no quintal de Miguilim2so as novas-velhas formas de apropriao de
riqueza pelo capital e suas contraditrias facetas expressas na relao dialtica entre riqueza e
pobreza. No Vale do Jequitinhonha, tal contradio diz respeito no s produo e
expropriao da riqueza que arranca da terra os recursos naturais, deixando-a devastada e
pobre, mas tambm no extirpar da terra o povo, seus costumes, seu modo de vida e, muitas
vezes, sua vida, jogando-o ao vento e sorte dos desterrados.
Tal cenrio exacerba uma contradio pulsante no campo hoje: se, por um lado, os
novos nichos de acumulao capitalista, centrados na captura de renda da terra, vm seexpandindo sobre novos territrios, como no Vale do Jequitinhonha, por outro lado, deixam
rastros e indcios da insustentabilidade desse projeto, tanto do ponto de vista da reproduo
humana quanto dos recursos naturais. Ao expropriar terra e trabalho, colocam em risco no
apenas o campesinato, mas as condies objetivas e subjetivas da sobrevivncia humana.
Muitos so os estudos sobre o Vale do Jequitinhonha, feitos, principalmente, a partir
da dcada de 1970, perodo da chamada modernizao conservadora. Vrios deles relatam a
sada de milhares de trabalhadores da regio, principalmente para o trabalho no monocultivoda cana-de-acar no estado de So Paulo. Esses trabalhadores, mesmo tendo conhecimento,
por experincias pregressas de seus pares, de que viveriam em condies precrias, no
tinham outra opo a no ser deixar suas famlias e suas tradies, mas nunca a esperana de
voltar definitivamente para sua terra de origem.
Ainda que no tenha iniciado nesse perodo, o xodo rural foi sempre uma varivel
presente no Jequitinhonha e, a partir da dcada de 1970, passou a ser tensionado diretamente
1 Referncia chegada de novas formas de produo e explorao da riqueza que entram em conflitocom as que j existiam, como o monocultivo de eucalipto e a extrao de pedras ornamentais.2 Referncia obra de Joo Guimares Rosa de 1956, Campo geral, na qual a personagem Miguilimexpressa a realidade vivida no serto mineiro.
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pelos avanos do capital na regio. Por pelo menos trs ou quatro dcadas, a sada dos
trabalhadores garantiu o abastecimento de mo de obra no monocultivo paulista. Iniciado o
sculo XXI, porm, o avano do capital no campo apresentou novas facetas. As formas de
expropriao da terra e trabalho no Vale do Jequitinhonha assumiram novas e mais cruis
caractersticas, e as mudanas na composio orgnica do capital no centro do agronegcio
brasileiro impuseram, cada vez mais, a mudana de rota desses fluxos migratrios.
Evidentemente, essas percepes que instigaram as primeiras inquietaes,
materializadas posteriormente neste estudo, resultaram de uma longa experincia na regio, e
desse lugar que falo, como filha do Vale do Jequitinhonha, com a voz de um povo que
agoniza ao ver sua cultura, seus costumes e sua identidade serem destrudos. Foi com o intuito
de compreender as causas estruturais do subdesenvolvimento histrico que assola a populaodessa regio, sobremaneira a populao rural, que iniciei este estudo.
Para uma aproximao que desvelasse a essncia do processo que fez o Jequitinhonha
sucumbir ao subdesenvolvimento atual, foi necessria uma reflexo com base no universo
terico que se tinha sobre o tema. Foi apenas aps o delineamento do campo terico que a
pesquisa de fato se iniciou, orientada pelo intuito de avaliar a relevncia do tema para a
problemtica mais geral no mundo atual. Em outras palavras, examinou-se como o Vale do
Jequitinhonha expressa um campo estratgico de anlises acerca do modelo dedesenvolvimento ditado s economias dependentes pelo sistema global de acumulao de
capital a partir dos anos 2000.
Este trabalho foi desenvolvido luz do mtodo dialtico como base de investigao e
anlise. Nesse mtodo, submete-se a anlise toda interpretao que j existe sobre o objeto de
estudo, pois, segundo Netto (2011), o conhecimento concreto de um objeto o conhecimento
de suas mltiplas determinaes, de modo que, quanto mais se reproduzem as mltiplas
determinaes de um objeto, mais o pensamento reproduz a sua riqueza (concreo) real.Trata-se de uma reflexo crtica na medida em que se pressupe a abstrao do real para o
pensamento. O desvendamento do real e a apreenso de sua essncia residem em
aproximaes sucessivas e no lineares, uma vez que a realidade social histrica, dinmica e
contraditria.
Conforme ressalta Lucks (1989, p. 22), trata-se, pois, por um lado de destacar os
fenmenos da sua forma dada como imediata, de encontrar as mediaes pelas quais podem
ser referidos seu ncleo e a sua essncia na sua prpria essncia e, por outro lado, atingir a
compreenso deste carter fenomenal. Este se constitui como um processo reflexivo, pois
reconstri o movimento do real para depois retornar realidade, j num caminho muito mais
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rico, pois carrega as mltiplas mediaes e reflexes.3Com esse intuito, coloquei-me a
pesquisar essa regio a partir de uma questo norteadora: qual a essncia do processo que
impulsiona a expropriao dos camponeses no Vale do Jequitinhonha no sculo XXI? Para
responder a essa pergunta, este estudo encontra-se divido em trs partes: o primeiro captulo
traz o cenrio em que a periferia capitalista consolida sua funo subalterna de insero na
produo e acumulao global de capital, nos marcos da expanso do capital financeiro. Tal
insero subjaz a dois elementos inerentes ao capitalismo sui generis que aqui se formou,
impondo uma dupla dimenso na realizao deste capital: a superexplorao da fora de
trabalho e a exacerbada expropriao/espoliao dos recursos naturais. Essa estratgia de
acumulao de capital acirrou a questo agrria pulsante na sociedade brasileira desde nossa
colonizao, mas, no sculo XXI, adquiriu novas roupagens o que, segundo Delgado(2012), impe questo agrria a forma mais desenvolvida da dependncia e do
subdesenvolvimento: o agronegcio. a reproduo dessa estratgia no Vale do
Jequitinhonha a essncia do segundo captulo. Nele, destacado como a propagao do
capital sobre os territrios rurais no Vale do Jequitinhonha refletiu na consolidao do
processo de expropriao dos campesinos na regio. Para tanto, foram revisadas pesquisas,
relatos e experincias de diversos autores entre 2000 e 2010, que ressaltaram os conflitos
rurais oriundos do avano do capital e, consequentemente, a monopolizao da terra e dotrabalho fatores histricos no Vale do Jequitinhonha, mas que, a partir dos anos 2000,
adquiriram outros determinantes. Utilizou-se como fonte secundria o jornalGeraes, um dos
raros meios de comunicao que expressavam a realidade desde o Vale do Jequitinhonha nas
ltimas dcadas do sculo XX. Essa fonte registrou os relatos daqueles que serviram de mo
de obra barata aos canaviais paulistas: superexplorados que amarguravam o xodo, a
separao e a solido, errantes dos grotes e das veredas.
Esses nmades continuam a sair do Vale do Jequitinhonha neste sculo, agoraexpulsos sob um novo ciclo de apropriao da terra na regio, que, resultado do
encarceramento da renda fundiria, tem impulsionado a busca pelo sobrevalor extrado no
campo. No Jequitinhonha, tal ciclo materializa-se conforme dois principais nichos de
acumulao de capital: 1) a busca por commodities minerais, expressa na expanso brutal de
empresas mineradoras; e 2) a saga por commodities agrcolas, expressa no monocultivo
expansivo de eucalipto. A chegada desses estranhos tem aprofundado o
3 Marx (1982) chama a ateno para no perdermos do nosso horizonte de anlise a tradeuniversalidade-particularidade-singularidade. Esse caminho nos permite desvendar a aparncia fenomnica darealidade, colocando a nu a essncia dos fenmenos.
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subdesenvolvimento rural na regio e consolidado um perverso ciclo de migrao, uma vez
que destri quaisquer condies de regresso terra.
J no terceiro captulo, so apresentados dados de diversos estudos que abordam a
expropriao e espoliao da terra. Foram utilizados dados de pesquisas do Departamento
Nacional de Explorao Mineral, do Ministrio de Minas e Energia, para mostrar o avano de
diversas empresas sob o territrio do Vale do Jequitinhonha, sobretudo a partir dos anos 2000.
Outra fonte de dados adotada para demonstrar a predominncia do agronegcio sobre a
pequena produo camponesa foi o Censo Agropecurio de 2006, organizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). E, para mostrar essa sobreposio na regio
pesquisada, foram recuperados os dados de uma pesquisa elaborada pela Secretaria de Estado
de Agricultura, Pecuria e Abastecimento (Seapa) de Minas em 2014, intitulada Perfil daAgricultura Familiar de Minas Gerais. Por fim, o avano do monocultivo de eucalipto foi
demonstrado com dados de uma pesquisa elaborada pela Subsecretaria do Agronegcio da
Seapa, intitulada Perfil do Agronegcio Mineiro 2013. Nesse captulo, portanto, mostra-se a
entrada massiva dos estranhos no Vale do Jequitinhonha, o que sacralizou o processo de
expulso dos camponeses da terra e a destruio dos recursos naturais e da capacidade
produtiva dessas terras. O efeito disso foi impossibilitar o regresso dos camponeses.
Nas consideraes finais, retomam-se alguns pontos que demonstram como o Vale doJequitinhonha foi historicamente saqueado, e seu povo, superexplorado e marginalizado.
nos trilhos do atual modelo de desenvolvimento capitalista na periferia global, como no
Brasil, que o Vale do Jequitinhonha expressa uma regio estratgica para a extrao de
sobrevalor, sobretudo no campo, ainda que sob pena de condenar milhares de camponeses
misria e pobreza, mutilando sua identidade e arrancando-os definitivamente da terra.
Finalizam esta dissertao algumas imagens que refletem parte do cenrio de devastao da
regio causado por esse modelo de desenvolvimento no campo.
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1 QUESTO AGRRIA: UMA FACE DO SUBDESENVOLVIMENTO LATINO-
AMERICANO
1.1 O subdesenvolvimento desde as entranhas da dependncia latino-americana
A histria do desenvolvimento capitalista sui generis da Amrica Latina fomentou e
foi fomentada pela dinmica geral de desenvolvimento deste particular modo de produo.
Fundamento da acumulao primitiva, a anexao colonial poltica-econmica-cultural do que
antes era prprio, autnomo, explicitou a centralidade externa nas decises internas,
conformando uma apropriao indevida de solos, corpos e territrios fecundos para a
dominao europeia.
Os desdobramentos do capitalismo latino-americano esto fundados sobre bases
firmes de apropriao privada daquilo que por muitos anos foi definido como propriedade
coletiva: a terra e o trabalho vinculado a ela. A terra constitutiva da funo social da
Amrica Latina ontem e hoje. Da real riqueza de recursos deste territrio, emana sua situao
histrica de veias abertas. Caminhos condicionados pelos descaminhos do capital.
O debate da histria do capitalismo na Amrica Latina tem profundas implicaes
polticas nas reflexes e aes sobre limites e possibilidades inerentes condio de ser do
particular dentro da dinmica geral do capital. As cincias sociais aplicadas se dedicam h
dcadas compreenso desse movimento. Mas foi na dcada de 1960 que este debate ganhou
fora a partir da relao dialgica-dialtica apresentada pelo desenvolvimento e sua contra-
face: a dependncia.
Ruy Mauro Marini em seu texto Dialtica da dependncia escrito em 1973 (2011) aoressaltar os determinantes da produo e reproduo do capital em escala ampliada, revela o
importante cenrio no qual as relaes da Amrica Latina com os centros capitalistas
condicionaram-na a inserir-se em uma estrutura definida como diviso internacional do
trabalho, cuja centralidade era a de ser coadjuvante no cenrio protagonizado pelo capital das
economias centrais.
Essa estrutura determinaria o desenvolvimento dessa regio, marcado pelo desigual
intercmbio e desenvolvimento capitalista na questionvel caracterizao da (in)dependnciana Amrica Latina. A dependncia emerge, nesse contexto de desenvolvimento do
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subdesenvolvimento, como mecanismo central de subordinao, na Amrica Latina, do
territrio e dos sujeitos; emerge, ainda, como forma de propagao do poder, de reproduo
do capitalismo em sua dinmica internacional. Fica enraizada, na regio, a histrica violncia
estrutural sobre terra e trabalho.
Para Gunder Frank (1969), a funo cumprida pela Amrica Latina no
desenvolvimento do capitalismo industrial europeu vinculava-se sua capacidade de criar
uma oferta mundial de alimentos, alm de matrias-primas. Logo, a dependncia e o
subdesenvolvimento foram e ainda so gerados pelo mesmo processo histrico que levou ao
desenvolvimento econmico na periferia capitalista: o desenvolvimento do capital. Para o
desnudamento desse processo, Marini (1990) e Frank (1969) so importantes intelectuais a
serem resgatados. Suas anlises decifram a particular combinao da subordinao econmicareal dos pases perifricos aos pases centrais origem da dependncia, o
subdesenvolvimento medular nas economias da Amrica Latina e da superexplorao da fora
de trabalho, sob o espectro do capitalismo dependente.4
De acordo com Marini (2011), a debilidade dos mecanismos de manejo e apropriao
do excedente econmico produzido pelos trabalhadores na periferia resulta do fato de a
produo ser sujeitada relao exportao-importao para o comrcio internacional. Isso
faz com que a mais-valia produzida nas economias dependentes se realize no mercadoexterno, mediante a exportao, o que gera uma separao entre a esfera de produo e a
esfera de circulao da mercadoria. Esse mecanismo apresenta-se inicialmente vinculado
fase primria exportadora da Amrica Latina. No entanto, ressurge com o processo de
reprimarizao das exportaes na era neoliberal, configurando uma situao interna dbil
perante o cenrio internacional, controlado pelo grande capital monopolista.
Entretanto, importa considerar que a funo que cumpre a Amrica Latina na
economia capitalista mundial transcende em muito meras respostas aos requisitos fsicosinduzidos pela acumulao nos pases industriais. Talvez sua mais importante funo seja
contribuir para que a acumulao capitalista nas economias centrais resulte antes do aumento
da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da maior explorao da fora de
trabalho, ou seja, para que, na economia capitalista central, o eixo de acumulao de mais-
4 A categoria da superexplorao da fora de trabalho, desenvolvida por Ruy Mauro Marini,
principalmente em sua obraDialtica da dependncia(1973), foi erigida para explicar a particularidade histrica
que cumpre a Amrica Latina no mbito geral de reproduo do capital, como algo prprio do capitaldependente. Se a explorao da fora de trabalho um mecanismo de criao de valor na sociedade capitalista
baseada no trabalho assalariado e apropriado pelos capitalistas, a superexplorao , sobretudo, o mecanismoutilizado pelos capitalistas da periferia para compensar suas perdas nas relaes econmicas internacionais.
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valia absoluta se desloque para o eixo de acumulao de mais-valia relativa. 5 Mas se a
perseguio de mais-valia relativa uma caracterstica geral e estrutural do processo de
desenvolvimento capitalista, qual a peculiaridade latino-americana?
Essa mudana no eixo de acumulao de capital nos pases centrais foi alavancada
pela participao, no sem coero, da Amrica Latina no desenvolvimento das foras
produtivas nesses pases, com a exploraosui generis da fora de milhares de trabalhadores:
a superexplorao. Eis o principal aspecto do desenvolvimento dependente latino-americano:
a superexplorao da fora de trabalho.
Segundo Marini (2011), para que o capitalista da periferia compense as perdas durante
a troca desigual entre naes centrais e naes perifricas, dever aumentar no prprio
processo produtivo que coordena, tanto a massa de valor produzida quanto a apropriao domesmo. Isso implica o pagamento de um salrio com valor abaixo do necessrio para a
reproduo da fora de trabalho. Alm de significar a no necessidade de potencializar um
mercado interno para circulao de mercadorias dado o baixo dinamismo econmico
vinculado aos baixos salrios. Essa prtica desnuda o mecanismo particular da
superexplorao da fora de trabalho no desenvolvimento do capitalismo na Amrica Latina,
seja mediante o aumento do ritmo do trabalho, seja pelo prolongamento da jornada de
trabalho, ou, o que mais comum, combinando-se os dois procedimentos. Assim, namalograda tentativa de compensao da perda de parte da mais-valia, oriunda do desequilbrio
entre preo e valor das mercadorias exportadas, o capitalista da periferia adota prticas
perversas de explorao, condenando parte expressiva da classe trabalhadora a viver na
misria.
Em suma, os pases latinos, ao ingressarem no circuito capitalista internacional em
condies de inferioridade, reproduzem essa lgica, que permanece inalterada at os dias de
hoje no somente pela modernizao tardia e consequentemente pelo reduzido alcance nodesenvolvimento das foras produtivas, mas sobretudo pela posio que a Amrica Latina
ocupa no mercado mundial. A superexplorao da fora de trabalho para ns uma categoria
central para compreender a funo histrica cumprida pela Amrica Latina no mbito geral de
reproduo do capital e, principalmente, para compreender nosso objeto de estudo nessa
5 A mais-valia relativa est conectada diretamente desvalorizao dos bens-salrio (mercadorias
necessrias para a (re)produo da fora de trabalho), o que contribui via de regra, mas no necessariamente,para a capacidade produtiva da fora de trabalho. Com sua integrao ao mercado mundial de bens-salrio, aAmrica Latina desempenha papel significativo na acumulao da mais-valia relativa nos pases centrais(MARINI, 2011).
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dinmica: o processo de expropriao rural no sculo XXI no Jequitinhonha, que impe
condies extremas de pauperizao aos novos nmades da terra no nordeste mineiro.
da superexplorao da fora de trabalho que a dependncia ganha materialidade e
explicita a real condio de ser do capitalismo na periferia. Ser o aviltamento de tais
relaes, sob a gide do capital financeiro, que colocar a questo agrria nos trilhos da
discusso da dependncia. A dependncia, por sua vez, nos instiga a analisar outras questes
conectadas diretamente a ela, tal como a questo agrria. Roberta Traspadini (2014) chama a
ateno para dois importantes questionamentos: 1) nesta atual fase de expanso do capital,
qual a funo social da terra na dinmica geral do capital? E 2) em um contexto em que,
majoritariamente, os trabalhadores se concentram nas grandes cidades, qual o papel do
trabalho no campo?Se mirarmos a estrutura econmica dos setores que crescem frente dos demais, como
minerao e agronegcio, logo veremos que eles so cadeias produtivas que operam com base
no monoplio e na expropriao dos recursos naturais.6 Nessa dinmica, a funo social da
terra, na lgica da produo de bens de subsistncia, sucumbiu-se arena especulativa, com
expressivo encarceramento de crdito e dos lotes (TRASPADINI, 2014, p. 32). Desse modo,
o capital, em sua fase de predominncia fictcia, aglutina anlise da questo agrria uma
necessria reformulao dos processos que a engendram no limiar do sculo XXI,constituindo uma estratgia de acumulao de capital que conforma um padro de
crescimento econmico perseguido, nesta dcada, pelo agronegcio.
Segundo Jos Graziano da Silva (1981, p. 22), um dos mais destacados estudiosos da
questo agrria destaca, em sua tese de doutorado, que a questo da terra na periferia
capitalista passa pela compreenso de que a propriedade da terra a base de extrao do
excedente dos trabalhadores rurais. O capitalista agrrio ir, concomitantemente, realizar
aes que consolidem tanto seu poder socioeconmico monopolista quanto os elementosfundantes de uma estrutura agrria dependente, em que a produo camponesa subsumida a
essa funo monopolista.
esta fase atual da dependncia que coloca como um dos elementos centrais de
dominao a naturalizao do endividamento pblico e individual dos trabalhadores, atrelada
a um tipo de conduta dos Estados latino-americanos que aprofunda o aprisionamento dos
6 Segundo dados da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), da Universidade de SoPaulo (USP), minrio e agronegcio, juntos, foram responsveis por 68% do valor total exportado pelo pas em2012.
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governos aos interesses do capital financeiro:7 so os novos condicionantes da prxis do
capital que reforam o carter histrico da atualidade da dependncia sob a consigna da
superexplorao e do superendividamento (TRASPADINI, 2014, p. 32). Na mesma linha
argumentativa Nildo Ouriques (2001, p. 36), reitera que principalmente a partir desses
problemas de acumulao que esses governos tm a capacidade de avanar ainda mais na
transformao da profunda crise social como uma necessidade de Estado.
Assim, em cada tentativa de estabilizar a economia, novas dvidas so contradas
pelo Estado, aprofundando a dependncia. A exacerbada valorizao da renda fundiria nesse
processo e a consequente superexplorao da fora de trabalho e espoliao dos recursos
naturais integram-se num todo articulado e constituem a contraditria, antagnica e
complementar estratgia de acumulao de capital. Conforme Guilherme Delgado (2012), talsituaoexpressa o prprio padro de crescimento econmico perseguido na primeira dcada
do sculo XXI pelo agronegcio. Atualmente, tal configurao histrico-social impe
economia exportadora brasileira uma dupla dimenso na realizao do capital financeiro: a
superexplorao da fora de trabalho e a extrao/espoliao dos recursos naturais. As
consequncias desse projeto aprofundam as manifestaes mais agudas da misria pulsante na
realidade social do campo e da cidade, acirrando a questo social na atualidade.8
Nesse sentido, imprescindvel reiterar que entendemos a questo agrria como umaparticularidade da questo social, constituda, segundo Santana (2012, p. 14), a partir de
embates estabelecidos devido posse da terra e/ou s relaes de trabalho em meiorural; no atual modelo de desenvolvimento agrrio, e uma de suas principaisexpresses ocorre pelo embate na relao capital x trabalho que ocorre no campo ena cidade, mas que decorrncia do avano das relaes capitalistas no campo.
Esse debate situa-se no bojo da discusso da perspectiva de totalidade, cujo trabalho
apresenta-se como eixo fundante das relaes sociais. Essa compreenso da questo agrria s
se d ao apreender a questo social em suas mediaes concretas com a universalidade postapela sociabilidade burguesa, das quais fazem parte as particularidades e configuraes geradas
7 A categoria capital financeiro, presente nesta anlise, parte da conceituao clssica cunhada porVladimir Lnin (1987): a concentrao da produo tendo como consequncia a formao dos monoplios; ouainda, a fuso ou interpenetrao dos bancos com a indstria, determinando e definindo o capitalismo atual,onde reinam os monoplios e a exportao de capitais.8 Segundo Z Paulo Netto (2013), a expresso questo social surge no sculo XIX, num contexto deindustrializao capitalista na Europa Ocidental, para explicar o fenmeno que assolava grande parte da
populao: o pauperismo. Ainda que a pobreza e a misria datassem de muito na histria, era inovadora adinmica sob a qual a pobreza se generalizava: pela primeira vez na histria registrada, a pobreza crescia na
razo direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas (NETTO, 2013, p. 20). A designaoquesto social est relacionada aos desdobramentos sociopolticos dessa generalizao da pobreza. luzdesse referencial terico que entendemos a questo agrria como particularidade da questo social, imersa no
bojo da discusso da perspectiva de totalidade inerente ao referencial marxiano.
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em distintos locais, mas sempre oriundos do enfrentamento entre os segmentos de classe, bem
como suas relaes de trabalho no meio rural.
Sendo assim, a questo agrria constitui-se como expresso dos distintos conflitos
decorrentes do uso da terra, e ainda da relao capital/trabalho aprofundada no atual modelo
de desenvolvimento agrrio. Na realidade, as particularidades da questo social resultante do
embate de classes que advm do desenvolvimento do capitalismo na agricultura compem a
questo agrria; entretanto, a no apreenso das mediaes que a constituem inviabiliza uma
anlise a partir do mundo trabalho.
Santana (2012), ao analisar a aproximao entre o servio social, como uma categoria
profissional que lida diretamente com as expresses da questo social, e com os trabalhadores
superexplorados reitera que o cotidiano dos mesmos que impulsiona o seu encontro com apoltica social e com o servio social. Nesse encontro, a identidade de classe tende a ser
negada e subsumida de cidado usurio da poltica de assistncia social. Para Carmelita
Yazbek (2012), esse um encontro marcado pela dificuldade do servio social, como
categoria profissional, de apreender a questo agrria como particularidade da questo social.
A autora ressalta que esse um dos maiores desafios postos profisso na materializao de
seu projeto tico-poltico. Nesse sentido, Santana (2012, p. 177) destaca:
medida que o Assistente Social no capta o trabalho como eixo fundante dasociabilidade, ele no reconhece o seu usurio como membro de uma classe cujosembates na relao com o capital tm se configurado de maneira tal que estasituao manifesta no universo singular a mais genuna expresso da questosocial [...]. O servio social tem dificuldade para captar a questo agrria como
particularidade da questo social porque a sua percepo de realidade no apreendeo trabalho como eixo fundante na constituio das relaes sociais; isto faz com queo prprio conceito de questo social reduza-se s suas manifestaes singulares.
Isso ocorre principalmente nos municpios de pequeno porte, em que pesem suas
caractersticas eminentemente rurais. O embate de classes nesses municpios perpassa, em
grande medida, pelo modelo de desenvolvimento agrrio.Nesse sentido constatamos, por meio de esforos coletivos de reflexo do
conhecimento existente e de pesquisa exploratria, que o Vale do Jequitinhonha representa
um universo estratgico para anlise das mudanas que vm ocorrendo no espao rural
decorrentes da expanso do agronegcio nos marcos do capital financeiro no campo. Tal
expanso recoloca na ordem do dia a discusso da questo agrria nos pases
subdesenvolvidos da Amrica Latina.
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1.2 A questo agrria no Vale do Jequitinhonha
Gunder Frank (1969), em seu livro Sociologa del desarrollo y desarrollo de la
sociologia expe que mesmo dentro de pases subdesenvolvidos, como no Brasil, existem
regies subalternas, com desigualdades de renda e diferenas culturais, devido a fatores
especficos, mas que de maneira alguma caracterizam uma economia dual; pelo contrrio,
essas regies tm uma histria, estrutura e dinmica independente. Basta revisitar seu passado
econmico e sua histria social, que deu origem ao subdesenvolvimento atual, para esclarecer
que este no original ou tradicional, e que nem o passado nem o presente desses pases se
parecem com o passado dos pases desenvolvidos.Para Margarida Moura (1988), Maria Aparecida Silva (1998) e Eduardo Ribeiro
(1994), o Vale do Jequitinhonha uma dessas regies brasileiras tornadas historicamente
subdesenvolvidas. Esses autores defendem a tese de que o subdesenvolvimento rural do
Jequitinhonha remonta a uma simbiose que , ao mesmo tempo, agrria e agrcola. Ela emana
tanto da fragmentao da terra em fins do sculo XIX, at o ponto em que a limitou a reas
insuficientes para o sustento das famlias camponesas, quanto dos entraves, oriundos do
manejo dos recursos naturais, efetivao da produo diante da articulao com a economianacional, o que se acirrou neste sculo com a expanso das fronteiras agrcolas e minerais.
O subdesenvolvimento no interior da economia brasileira deve ser pensado como
subproduto necessrio da acumulao capitalista em escala mundial. De modo que a raiz do
subdesenvolvimento , em grande parte, produto histrico da economia passada e atual e de
outras relaes entre os satlites9 subdesenvolvidos e os atuais pases metropolitanos
desenvolvidos (FRANK, 1969, p.93).
Ora, segundo Caio Prado Jr. (1979), ao resgatar os processos inerentes formaosocial e histrica colonial, reitera que, o que ocorreu nas relaes de trabalho que permearam
a agropecuria brasileira, ranos, para o autor do subdesenvolvimento, que proprietrios e
trabalhadores necessitavam, em suas respectivas posies, comprar e vender a fora de
trabalho. Com base nessa relao, foram estipuladas as condies em que se faria a cesso ou
compra e venda da mercadoria fora de trabalho. Se a transao no se d em bases
puramente monetrias, com pagamento em dinheiro, isso no ocorre por nenhuma restrio de
ordem institucional ou jurdica, mas sim por questes prticas e circunstanciais. Nas palavras
9 O autor refere-se ao fato de que a expanso do sistema capitalista ancorou-se historicamente na relaode interdependncia entre metrpole e colnia/satlite.
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do autor, [...] no Brasil o que tivemos como organizao econmica, desde o incio da
colonizao, foi a escravido servindo de base a uma economia mercantil (PRADO Jr, 1979,
p. 68).
Seguindo a mesma linha de pensamento, Frank (1969) ressalta que o Brasil expressa
um claro caso de desenvolvimento do subdesenvolvimento, tanto nacional quanto regional. A
expanso da economia mundial, desde o comeo do sculo XVI, converteu o Nordeste, o
interior de Minas Gerais (a regio produtora de pedras preciosas, que hoje onde se localiza o
Vale do Jequitinhonha), o Norte e, por ltimo, o Centro-Sul (Rio de Janeiro, So Paulo e
Paran) em economias de exportao, visando atender s demandas do desenvolvimento do
sistema capitalista mundial, que incorporou essas regies.
Dessa forma, cada uma dessas regies sofreu o desenvolvimento econmico no seurespectivo perodo de produtividade. O autor afirma que o subdesenvolvimento dessas regies
, em si, uma caracterstica de nascena determinada por vrios fatores. Mas no podemos
confundir:
o subdesenvolvimento no causado pela coexistncia de instituies arcaicas, ou aexistncia de pouco capital nessas regies que se tm mantido isoladas do topo dahistria do mundo. Pelo contrrio, o subdesenvolvimento tem sido e ainda gerado,
pelo mesmo processo histrico que gera tambm o desenvolvimento econmico: odesenvolvimento do prprio capitalismo (FRANK, 1969, p. 109, traduo nossa).
Essas definies so necessrias na medida em que revelam o papel cumprido pela
regio que ora analisamos, o Jequitinhonha. A reflexo sobre a complexidade presente
atualiza as anlises de Marini (2011) e Frank (1969), especialmente em se tratando da
reconfigurao da estratgia de reproduo e acumulao de capital que subjaz exacerbada
valorizao da renda fundiria.
Uma combinao perversa entre concentrao e centralizao da riqueza e da renda,
nas mos de poucos donos de capital, vinculada superexplorao da fora de trabalho de
parte expressiva dos trabalhadores sem terra, sem dinheiro, concomitantemente com a
extrao/espoliao dos recursos naturais: eis a forma-contedo do processo de
desenvolvimento da economia brasileira no sculo XXI. Os impactos dessa combinao para
a reproduo da fora de trabalho na periferia capitalista conformam a particularidade da
questo social na Amrica Latina, oriunda da relao capital/trabalho no modo de produo
capitalista, que engendra contradies prprias do desenvolvimento perifrico. Essa questo ,
portanto, caudatria da dinmica que assume a economia capitalista na periferia do sistema
mundial, inegavelmente agravada com a superexplorao do trabalhador.
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Delgado (2012) destaca que a expanso do capital financeiro transformou no apenas a
realidade rural, mas tambm o entendimento terico e poltico dos problemas do
desenvolvimento econmico e da forma como ele espraia-se no campo. Com base nessas
novas-velhas formas de apropriao privada para a valorizao do capital no meio rural que
as contribuies de Prado Jr. (1979) apresentam-se como essenciais nesta anlise. Segundo
esse autor, a estrutura agrria que se constituiu no Brasil, forjada sobre as bases do capital
mercantil-monopolista, expe desde o perodo colonial uma economia agroexportadora,
sustentada pela monocultura, pela fora do trabalho escravo e pela diviso do territrio em
grandes lotes, com um nico objetivo: atender as necessidades de acumulao capitalista da
Coroa Portuguesa, produzindo mercadorias para exportao.
A centralidade da produo para fora, desde o perodo colonial, conformou uma matrizde desenvolvimento dbil para dentro, em que a funo do trabalho no se centrou como
prioridade na circulao interna das mercadorias (MARINI, 2011). A questo agrria
brasileira pode ento ser definida, em termos gerais, como a relao dialtica entre a misria
da populao rural e a estrutura agrria que se consolidou no pas, cujo elemento essencial
consiste na concentrao da propriedade fundiria. Em outras palavras, a questo agrria
aqui entendida como a concentrao de poder econmico, poltico e cultural no campo, que se
sobrepe vida de milhes de trabalhadores rurais, dinmica do capital oprimindo-os esubordinando-os.
essa a essncia da questo agrria que se consolida no pas, resultado do fato de que
a quase totalidade da populao rural no possui a quantidade de terra necessria, nem as
condies objetivas de produo, para assegurar sua subsistncia, dada a concentrao e
centralizao da riqueza e da terra nas mos dos proprietrios de terra e gestores do
agronegcio. Tal situao deu lugar aos minifndios, onde o padro de vida, na maioria dos
casos, se aproxima daquele dos trabalhadores sem terra, ou empregados nas grandespropriedades: quando no so espoliados pelo comrcio intermedirio, resta-lhe vegetar
completamente margem da vida econmica do pas, lutando por uma sobrevivncia
miservel e precria(PRADO JR., 1979, p. 76). Os minifndios resultam do fracionamento
da grande propriedade nos locais onde a grande explorao no vingou, seja porque no
logrou tomar p, seja porque no resistiu a situaes mais graves da conjuntura econmica,
entrando em decadncia e decomposio. Resultam tambm das sucessivas divises de um
pequeno terreno de uma famlia camponesa, com seus descendentes diretos.
Essa a estrutura agrria de subdiviso de terras difundida em grande parte do serto
mineiro. No perodo de modernizao do campo ou modernizao trgica, em meados de
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1960, tal estrutura significou para o Vale do Jequitinhonha o acirramento do processo de
desapropriao das terras devolutas, resultando no desaparecimento do que Maria Moraes
Silva (1998) denomina como direito costumeiro dos ento ocupantes daquela terra: negros,
mestios que sobraram da minerao e quilombolas. A substituio da terra do trabalho auto-
organizado pela terra de negcio provocou um intenso processo de migrao camponesa,
culminando na consolidao dos milhares de deserdados, dos errantes da terra.
H outro aspecto que sofreu profundas transformaes nas dcadas de 1960 e 1970, a
pequena agricultura familiar no Vale do Jequitinhonha. Esse tem sido um objeto de diversas
pesquisas nas ltimas trs dcadas. Resguardadas as diferenas em histria, recursos,
povoamento, uso dos solos e perfis agrrios do Alto, Mdio e Baixo Jequitinhonha,10h algo
em comum e consensual entre tais pesquisas o papel central que jogaram astransformaes em curso no Brasil na dcada de 1970, com o processo de modernizao
agrcola e seus impactos, e com a integrao regional economia nacional na nova
dinmica de produo de vida no campo.
A questo agrria brasileira das dcadas de 1960 e 1970 apresentava uma proposta de
reestruturao da propriedade distinta da proposta vigente hoje, uma vez que o contexto
histrico e terico hegemnico na esquerda partidria era diferente. Pensava-se, pelas mais
diversas perspectivas de interpretao, desenvolver o capitalismo no campo expropriandoterras no utilizadas de proprietrios rurais tidos como pr-capitalistas. Essa abordagem
guiou estudos que defendiam a coexistncia de restos feudais na agricultura brasileira e de
estruturas econmicas dualistas, ideia amplamente difundida por Celso Furtado (1983) e
veemente combatida por Prado Jr. (1979), Frank (1969) e Marini (2011).
Na atualidade, a questo da propriedade fundiria tem uma dimenso diversa dessa
colocada pelo contexto histrico dos anos de 1960 e 1970, ainda que a apropriao e a
formao do preo da terra, seja pblica, seja privada, sigam constitudas com base no augeda expanso agrcola. Apesar de manter essencialmente o mesmo sentido, a questo aparece
com novas roupagens (DELGADO, 2012). Estas nada mais so que expresso de um peculiar
projeto de acumulao de capital, centrado essencialmente na captura da renda da terra e
atrelado lucratividade do complexo de outros capitais advindos do agronegcio.
10 Sobre o sistema de lavouras na regio, ver Dayrell (1998) e Saint-Hilaire (1975), para quem as lavourasdo Jequitinhonha devem ser entendidas com base nas condies de cultivo, solo e objetivos segundo as quais as
tcnicas empreitadas na agricultura variam. As culturas so selecionadas em funo dos solos onde se adaptammelhora terra prpria para o feijo, para a mandioca, para a cana , e cada uma exige manejo e avaliaoespecficos, pois precisa de roada, cultivo e fogo diferentes. Os solos so classificados pela umidade, pelatextura e pelo tempo de descanso. Ser essa classificao que definir a cultura prpria daquele solo.
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Se de um lado esses elementos fazem parte do processo histrico que, em ltima
instncia, resultou na expropriao e expulso dos camponeses de todo o serto mineiro, por
outro lado, no plano macroeconmico, expressam uma dinmica imposta agricultura
brasileira e ditada pelo movimento geral do capital internacional. Tal dinmica caracterizou-
se em economias dependentes pela rearticulao dos complexos agroindustriais a fim de
garantir as substanciais taxas de crescimento, ainda que sob pena de acirramento das
desigualdades regionais, no ento projeto de desenvolvimento econmico para o pas: o
agronegcio.
1.3 Agronegcio: uma estratgia de desenvolvimento no sculo XXI?
Nessa conjectura, a questo agrria adquire novos contornos no sculo XXI, o que, de
acordo com Delgado, assumir a forma mais desenvolvida da dependncia e do
subdesenvolvimento brasileiro: o agronegcio.11Este se destaca entre os novos elementos
que compem a questo agrria e torna-se o carro-chefe da poltica hegemnica de produo
agrcola e do modelo de desenvolvimento assumido pelo pas. Mas se de fato essa umaestratgia de desenvolvimento, quais segmentos de classe tm sido beneficiados? Para
responder a essa pergunta, necessrio precisar o que estamos chamando de agronegcio,
pois do contrrio, segundo Delgado (2012), correremos o risco de investigar uma infinita
gama de fenmenos empricos sob a denominao genrica que encobre as dimenses
essenciais dessa estrutura e de seu movimento.
De acordo com Delgado (2012), o agronegcio na acepo brasileira do termo
uma articulao do grande capital com a grande propriedade fundiria, na qual ambosrealizam um arranjo econmico sobre as bases do capital financeiro, perseguindo o lucro e a
renda da terra, subsidiados pelas polticas de Estado. Tal dinmica agrava o processo de
superexplorao da fora de trabalho e apropriao dos recursos naturais, j que a essncia
dessa poltica a produo de commoditiesprimrias com vistas exportao, sob a lgica do
mercado mundializado, em que a apropriao privada oligopolista da produo tambm a
11 Esse foi um pequeno trecho da fala de Guilherme Delgado no VI Congresso Nacional do Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Braslia (Distrito Federal) em 2014. Para o autor, nossa insero
na diviso internacional do trabalho deu-se como exportadores de commoditiesagrcolas e minerais, sendo essauma medida conjuntural para enfrentar a crise cambial de 1999, apesar de no oferecer condies de gerarequilbrio externo na conta-corrente; pelo contrrio, em mdio prazo, aprofunda o desequilbrio externo daeconomia brasileira, ou seja, nossa dependncia estrutural.
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apropriao privada das terras. Para Franois Chesnais (1999), a lgica desse mercado,
propagado no atual estgio de acumulao capitalista na periferia, assenta-se sobre a
mundializao financeira.
De acordo com Chesnais (1999, p. 17), a mundializao financeira deve ser
compreendida num contexto [...] de ressurgimento das contradies clssicas do modo de
produo capitalista mundial, que haviam sido abandonadas entre 1950 e a recesso de 1974.
Esse contexto acompanhado do processo de retirada do Estado nas economias centrais que
tiveram o Welfare Statecomo estratgia poltica, culminando em novas formas de pobreza,
manifestas nas mais diversas expresses da questo social, esta por sua vez agravada pelo
desmonte dos sistemas de proteo social.
Pierre Salama (1999), ao analisar a repercusso do processo de financeirizao naseconomias da Amrica Latina, ressalta como as transformaes no mundo do trabalho foram
intensificadas rumo maior precarizao das condies de vida da classe trabalhadoraarcos
do neoliberalismo. Tais transformaes foram aprofundadas no final dos anos de 1980 e 1990
e se arrastam at os dias de hoje. Nas palavras de Salama,
[...] nas economias latino-americanas a taxa de cmbio se valoriza, o dficit doEstado financiado de forma crescente pelas entradas de capitais e as taxas de juros
permanecem altas. As desigualdades de renda se reforam, o emprego se torna maisraro e a excluso se aprofunda. Sem forar o paradoxo, o que est presente de forma
implcita em muitos pases desenvolvidos aparece com mais clareza nas economiassemi-industrializadas latino-americanas (1999, p. 86).
Nos trilhos desse modelo, h em curso na economia brasileira uma estratgia estatal-
privada baseada essencialmente na busca pela renda fundiria como carro-chefe da
acumulao de capital. Ao ser reproduzida em regies subdesenvolvidas, como o
Jequitinhonha, essa dinmica provocar graves consequncias econmicas e sociais.
A renda fundiria cumpre um importante papel no processo recente de expanso do
preo da terra,12 uma vez que so redefinidas diversas ferramentas de poltica pblicaincidentes sobre a terra. Para Graziano da Silva (1981), a propriedade privada da terra
constitui condio necessria, mas no suficiente para a existncia de renda da terra. Ela
parte da mais-valia, que, em vez de ficar com o capitalistaarrendatrio que a extorquiu dos
trabalhadores , transferida para os grandes proprietrios rurais. So esses ltimos os
12 Por no se tratar do nosso objetivo, no nos deteremos nessa categoria. Ver melhor em Sauer e Leite(2012).
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capitalistas da terra, grandes proprietrios rurais que ficam com a renda fundiria, sendo esta
nada mais que trabalho excedente apropriado acima do lucro mdio.13
Desse modo, a mera existncia da propriedade privada da terra no garante a
existncia da renda fundiria especfica no capitalismo. A propriedade privada apenas
possibilita ao dono da terra apropriar-se de parte do trabalho social excedente produzido pelo
trabalhador e materializado em mercadorias. A propriedade privada no gera esse excedente,
portanto, no seria mais a terra que possibilitaria ao seu proprietrio apossar-se dele.
Assim, a questo central : se, na atual fase financeira especulativa, o capital engajado
na terra extrai do trabalhador no apenas os frutos do seu trabalho, mas tambm o seu tempo
de trabalho excedente, necessrio para a reproduo da fora de trabalho, essa mais-valia
gerada no processo produtivo no campo brasileiro e extorquida dos trabalhadores destina-se aquem aos capitalistas arrendatrios ou aos capitalistas produtivos? A esse respeito, Silva
(1981, p. 22, grifo do autor) esclarece: a renda da terra especfica do modo de produo
capitalista um sobrelucro, um lucro extraordinrio do prprio capital. A propriedade privada
apenas permite que seu dono a embolse.Mas a essncia da questo se essa renda ou no
extorquida pelo capital, entendido como uma relao social; se ou no o capital que
comanda o processo produtivo, e que permite extrair um excedente do trabalhador. Se ocorre
separao entre o proprietrio da terra e o dirigente do processo produtivo.As possveis respostas, ainda em aberto, apontam para as condies histricas e
particulares nas quais se constituiu o sistema capitalista na agricultura brasileira, cuja matriz
subdesenvolvida e dependente. A anlise das relaes sociais e econmicas reproduzidas no
meio rural, no Vale do Jequitinhonha, clarifica algumas medies necessrias nesse processo.
De acordo com Graziano da Silva (1981), em regies onde o desenvolvimento econmico
encontra-se em patamares perifricos, como na que ora analisamos, as relaes estabelecidas
entre o proprietrio e o capitalista arrendatrio, no que tange ao que ser pago como renda seja dinheiro, seja trabalho, englobaro toda a mais-valia gerada no processo produtivo, ou
mesmo todo o trabalho excedente expropriado dos trabalhadores rurais.
O autor pondera ainda que, nos casos mais gerais, no necessariamente ser o
proprietrio da terra quem o embolsar, como vem ocorrendo com as pequenas propriedades
rurais do nordeste mineiro. A saga por produtos agrcolas e minerais tem determinado novas
relaes de expulso dos camponeses de suas terras nessa regio. Apesar de possuir a terra,
13 Silva (1981) ressalta que h outro aspecto que determina a renda da terra ser mais alta ou mais baixa,resultante da luta de classes que se trava naquele determinado momento, naquela sociedade.
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o campons no reside na sua propriedade, pois a entrega ao capitalista arrendatrio, que, em
troca, lhe paga uma renda fundiria.
Eis a a essncia dos fluxos do xodo rural no limiar do sculo XXI, que do origem a
uma massa de trabalhadores rurais condenados da terra na atualidade, definidos por Vergs
(2011) como os novos nmades da terra. Esses novos nmades so a outra face de uma
estratgia de acumulao de capital que a economia brasileira persegue, cujos reflexos
econmicos e sociais so sentidos por todos os trabalhadores, tanto no meio rural quanto no
meio urbano.
1.4 Os novos nmades da terra nos grandes sertes e veredas
esse o contexto que marca a lgica do processo de acumulao capitalista nacional.
Ao mesmo tempo em que se industrializa e mundializa a economia brasileira, soldando seu
lugar subordinado na economia capitalista globalizada, isso feito de modo a (re) produzir a
excluso dos pobres na cidade e no campo, determinando os novos-velhos fluxos migratrios
do campo para cidade no sculo XXI.Nessa sorte da globalizao plebeia, que o xodo, os novos nmades levam sua
identidade no embornal e se organizam, superando distncias e fronteiras. Assim os
camponeses do milnio tornam-se transterritoriais e onipresentes. Todavia, em sua essncia,
permanecem camponeses, pois, para essas comunidades entregadas ao relento, preservar a
identidade uma questo de vida ou morte (VERGS, 2011). Segundo Armando Vergs
(2011, p. 111), as classes no so constitudas apenas de economia, mas do calor do lar, da
socializao e da cultura. essa a condio que o campons carrega nas costas quando deixapara trs seu territrio de vida e migra forosamente em vaivm para a cidade.
A proletarizao do campons e a sazonalidade do trabalho agrcola, segundo Silva
(1981, p. 51), devem ser entendidas como resultantes de um mesmo processo: a mesma
evoluo que produz a necessidade de operrios assalariados no campo, cria tambm esses
operrios, dado que a venda temporria da fora de trabalho passa a ser agora ocupao
acessria da famlia camponesa. necessrio, nesse sentido, compreender a proletarizao
camponesa de maneira ampla, como resultado da subordinao direta do trabalho ao capital, e
no apenas como a expropriao completa dos meios de produo do campons. Na realidade,
a reproduo desses novos camponeses a reproduo do prprio capital.
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A expulso dos parceiros, arrendatrios, colonos e pequenos proprietrios da
agricultura no estado de Minas Gerais, principalmente a partir dos anos 1960, j foi
exaustivamente estudada por historiadores, socilogos, economistas, agrnomos. No
pretendemos, neste momento, levantar esses estudos. Queremos apenar reiterar que tal
modelo de produo desembocou no reforo dos latifndios, agora dominados pelas grandes
empresas privadas, historicamente sob a chancela do Estado, de maneira que a populao,
sem condies de concorrer econmica e politicamente com as mudanas nas relaes de
produo, se viu obrigada a abrir mo do usufruto da terra.
Sem a terra para produzir e sobreviver, grande parte dos camponeses da regio
tornaram-se populao sobrante, desempregados, pees de trecho, andarilhos e,
principalmente, boias-frias (MOURA 1988; SILVA, 1998).Tal metamorfose vinculou-se econtribuiu para o atendimento da demanda de mo-de-obra necessria expanso da
modernizao em outras regies do pas. Esse processo criou para os agricultores do Vale do
Jequitinhonha novas relaes sociais, impondo, cada vez mais, ao seu modo de vida e trabalho
elementos tpicos do modo burgus de dominao social.14
Nessa conjuntura, a migrao, sazonal ou definitiva, a face mais marcante das
contradies sociais geradas por tal mudana e significou para o Vale um contexto permeado
pelo sofrimento das vivas de marido vivo e seus rfo temporrios, pela perda daidentidade camponesa e da relao com a terra, pela degradao da sade e da vida dos
trabalhadores, pela submisso de milhares de pessoas fome e falta de alternativas dignas,
enfim, pela desumanizao das condies de produo e reproduo social da vida (MOURA,
1988; SILVA, 1998).
A partir de meados da dcada de 1960, quando o Estado instalado com o golpe militar,
em 1964, adotou um modelo de desenvolvimento conservador e subordinado aos interesses
das naes centrais, milhares de camponeses foram transformados em deserdados da terra(MOURA, 1988). Por quase trinta anos, o processo de produo capitalista na regio seria
pautado no agronegcio, tanto pela monocultura do eucalipto como pelo avano das empresas
de minrio.
No bojo dessas mudanas, o que estava em disputa no era apenas a perda das terras
dosgeraizeirosou lavradores, que outrora eram garantidas pelo direito costumeiro da terra,
14 Entre o alto, o mdio e o baixo Jequitinhonha, coexistem diferentes tcnicas de agricultura, de uso de
recursos, de apropriao fundiria e de produo que configuram um regime fundirio diverso. No entanto, hum aspecto singular e comum a todo o Jequitinhonha: trata-se do processo de expulso dos agricultoresfamiliares com a modernizao agrcola, em curso no pas em meados da dcada de 1970. esse o foco de nossaanlise.
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mas a reestruturao do modo de vida, de trabalho e das relaes sociais.15Isso traou para
muitos o destino da migrao temporria ou, na maioria das vezes, definitiva, produzindo o
que Silva (1998) chamou de uma multido de eternos errantes procura de um tempo e de um
lugar, perdidos nas antigas veredas e chapadas.
Com isso, recrudesceu a questo agrria na regio, na medida em que se ampliou o
monoplio de terras e se expropriaram milhares de agricultores familiares de suas terras. Esse
processo foi mediado e legitimado pela chancela do Estado, o qual sempre agiu no sentido de
garantir condies necessrias expanso do capital, algo que, na atualidade, mantm-se
inabalado.
A estrutura socioeconmica imperante no incio do sculo XXI expressa a dinmica
econmica consolidada anteriormente, mas atualiza-se com novos elementos estruturantes,ditados pela ento poltica hegemnica do agronegcio. Esta significou, para o Vale do
Jequitinhonha, o aprofundamento do processo de criao dos nmades da terra, que vagam
por todo o serto mineiro.
[...] Quando os conflitos pela terra foram se tornando mais frequentes nos corres dosltimos anos, isto no ocorreu somente porque a sociedade se abriu, tambm porquea velha ordem desabou. Pouca coisa ficou para colocar no seu lugar, a no ser sualembrana, resistente ao esforo de construir uma cidadania. to grande o seu pesoque o sindicalismo e movimentos populares organizaram-se em reas camponesas[...] agindo junto s multides de excludos da terra que perambulam nas cidades evilas do Norte e Nordeste de Minas (RIBEIRO, 1994, p. 40).
A anlise do processo de expropriao da terra nos permitir desnudar a atual
dinmica de subdesenvolvimento, vivenciado sobremaneira no campo. Sero desvendadas as
revoltas ora invisveis, ora silenciadas, individuais ou coletivas, que resultam na produo de
trabalhadores nus, desprovidos de suas condies objetivas prvias e negados pela lei como
possuidores de direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores.
Compreender o lugar socioeconmico que a questo agrria ocupa na atual fase de
acumulao de capital na periferia capitalista nos ajuda a desvendar o patamar da disputa,
entre as fraes das classes dominantes e o trabalho, pelo excedente econmico, exacerbando
a essncia da poltica social nos dias de hoje e, principalmente, seu papel na luta dos
trabalhadores e na dominao do capital. Com efeito, o alcance e o escopo das polticas
sociais so sensivelmente restringidos na configurao histrico-social em que se encontra a
economia exportadora da periferia capitalista a qual, porm, necessria sobrevivncia
de milhares de trabalhadores, sobremaneira em regies como o Vale do Jequitinhonha.
15 Estes so nomes pelos quais os camponeses se autodefinem, e aparecem em obras literrias comoGrande serto: veredas, de Guimares Rosa.
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1.5 Alguns apontamentos sobre a poltica social: um horizonte necessrio
A fase de acumulao do capital na periferia latino-americana no sculo XXI coloca
na ordem do dia a imperiosa necessidade das polticas sociais.16 Sobretudo, como um
mecanismo de socializao dos custos de reproduo da fora de trabalho para o conjunto da
sociedade, tornada no somente necessria, devido o acirramento da luta de classes, mas
possvel, com a expanso da extrao de mais-valia, fundamental para o aproveitamento
produtivo do excedente econmico a ser valorizado (PAIVA; OURIQUES, 2006, p. 168).Isso se d principalmente quando se pensa a Amrica Latina, regio em que o
desenvolvimento capitalista explicita as particularidades histricas e conforma a
superexplorao da fora de trabalho como modus operandido capitalismo dependente. Se a
natureza da dependncia latino-americana emana do fato de que foi incumbida a participar no
processo de acumulao em geral, alterando a capacidade produtiva do trabalho no exterior,
isto centrou-se em uma forma particular de extrao de sobretrabalho, dada a situao
perifrica dos capitais latino-americanos no mbito mundial: o pagamento de salrios abaixodas condies de sobrevivncia dos trabalhadores.
Imersas nesse processo de desvendamento da realidade social, que, segundo Marini
(2011), tem como elemento bsico a modernizao da Amrica Latina pautada na
contraditria relao de subordinao ao mercado externo, que se localizam as polticas
sociais. Essa perspectiva engendra tanto os limites quanto o potencial poltico-emancipatrio
dessas polticas. Da a importncia de compreender o lugar da questo agrria na atual fase de
acumulao do capital financeiro na periferia capitalista, uma vez que h, nessa regio, umfortalecimento da economia agroexportadora. Essa alternativa, adotada pelas classes
dominantes na Amrica Latina para compensar suas perdas nas relaes internacionais, s foi
possvel devido superexplorao da fora de trabalho. Da dialtica do desenvolvimento e da
dependncia na Amrica Latina, resulta um aspecto central para o entendimento da questo
16 Concordando com Beatriz Paiva (2009), entendemos a poltica social como uma dimenso constitutivado Estado capitalista, portanto, de sua interveno, desde a transio sua fase monoplica, nas dcadas iniciaisdo sculo XX, cujos primeiros vnculos transitam numa unidade contraditria entre as esferas da produo eda reproduo social.Isso porque as determinaes estruturais so tipificadas quando esclarecidas as funes
que assumem no financiamento de parte do capital varivel, socializando os custos econmicos de reproduo dafora de trabalho, seja pela regulao salarial, seja pela subveno de bens e servios necessrios satisfao dosmeios de vida. Mas so tambm produto da luta de classes, como parte do processo de disputa do excedenteeconmico expropriado das massas.
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social: qual o papel da superexplorao da fora de trabalho na compreenso das polticas
sociais na periferia capitalista? De acordo com Beatriz Paiva e Nildo Ouriques (2006), a
construo das polticas sociais na Amrica Latina encontra-se obstaculizada pela perpetuao
da dependncia.
Nesse sentido, h que se destacar outro determinante das polticas sociais,
dialeticamente contraditrio, cuja implementao resulta historicamente da luta da classe
trabalhadora por direitos sociais. Ora, se por um lado as polticas sociais foram financiadas
pelo excedente econmico do capital em seu estgio mais dilatado, por outro lado,
significaram respostas luta poltica dos trabalhadores; portanto, adquirem uma dimenso no
apenas econmica, mas tambm poltica.
Logo, quando o potencial poltico-emancipatrio das polticas sociais na AmricaLatina questionado, h que se pensar a crtica aos mecanismos de produo e extrao de
mais-valia no continente. a partir disso que podemos inferir as especificidades da poltica
social, delineadas nos marcos do subdesenvolvimento e de uma economia dependente. Assim,
as polticas sociais, de um lado, circunscrevem-se no processo de disputa poltica pela
redistribuio do excedente econmico real, historicamente expropriado das massas, uma vez
que no se limitam a amortizar os conflitos ou as manifestaes mais agudas da pobreza por
meio da oferta de servios bsicos. De outro, so tambm um instrumento de transformaosocial que organiza as massas segundo seus interesses essenciais, embora estes no portem,
por si ss, a capacidade de transformao societria.
Entretanto, ao confrontar o horizonte poltico-emancipatrio das polticas sociais com
a condio na qual elas se encontram assentadas na Amrica Latina, evidenciam-se seus
limites, mais que em qualquer outro contexto, em funo da natureza da extrao da mais-
valia, via superexplorao da fora de trabalho. Como trabalhado por Paiva e Ouriques (2006,
p. 172), a poltica social subordinada a essa lgica reproduz igualmente as situaes desdefora, e o esboo de proteo social permitido no vai alm de aes focalistas e pontuais,
somente ofertadas em situaes extremas.De modo que a expropriao de parte substantiva
do trabalho necessrio para o trabalhador repor sua fora de trabalho desde a apropriao
maior do trabalho excedente coloca as polticas sociais como horizonte necessrio
reproduo das massas exploradas (PAIVA; OURIQUES, 2006, p. 174).
Assim, ao aprofundar o pacto da economia do agronegcio, aviltado na atual fase de
acumulao de capital na periferia capitalista, a especificidade das polticas sociais na
Amrica Latina redimensionada como um mecanismo de socializao dos custos de
reproduo da fora de trabalho. Esse mecanismo essencial, na medida em que a explorao
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da fora de trabalho dos camponeses acentuada naquilo que constitui a particularidade
capitalista no continente: as condies desumanas de pagamento de um salrio incompatvel
com a sobrevivncia mnima dos trabalhadores. Isso se reflete tambm no direcionamento das
polticas pblicas agrcolas e agrrias, na perspectiva definida pelo mercado internacional de
commodities. Dessa forma, as polticas corroboram com o aumento da concentrao fundiria
e a expulso dos camponeses de suas terras.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2007), ao discutir dados referentes ao cadastro do
Instituto Nacional de Reforma Agrria (Incra), revela como a concentrao fundiria atual
reflete um processo histrico de apropriao e monoplio da terra por poucos. Tal
concentrao entendida no como excrescncia lgica do desenvolvimento capitalista, mas
ao contrrio, como parte constitutiva do capital que se desenvolveu no pas. Segundo dadosdo INCRA, em 1972, de um total de 3.387.175 imveis, 50.548 representavam a grande
propriedade, apenas 1,5% ocupando uma rea de 193.749.742 hectares, ou seja 51,4% de uma
rea total de 370.275.187 hectares. J em 1978, de um total de imveis de 3.071.085, 56.546
representavam a grande propriedade, equivalente a 1,8% dos imveis, ocupando uma rea de
246.023.591 hectares, ou seja, 57% de uma rea total de 419.901.870 hectares. No
contraponto, os pequenos produtores rurais detinham uma rea inferior a 100 hectares, que, no
mesmo perodo em 1972, representavam 2.905.416 ha, equivalente a 85,8% das terras,detendo apenas 17,5% da superfcie agricultvel. Em 1978, esses pequenos agricultores
representam 83,8% do total de imveis, equivalentes a 2.581.838 ha, ocupando uma superfcie
agricultvel de 14,8%: apenas 59.939.629 hectares.
Os dados acima revelam como a modernizao da agricultura veio acompanhada da
crescente concentrao fundiria, alterando o ndice de Gini, que passou de 0,836 em 1972
para 0,854 em 1978.17Porm, a cada nova conferncia de imveis, os dados sobre estrutura
fundiria se repetem. Os mais recentes so de 2003, presentes no II Plano Nacional deReforma Agrria, do governo Luiz Incio Lula da Silva (SAMPAIO, 2003). Nesse plano, a
grande propriedade representa 1,6% dos imveis rurais, ocupando 43,7% de um total de
420.345.382 hectares; enquanto isso, as pequenas propriedades representam 85,2%, ocupando
20,1% da rea. Ou seja, o crescimento abissal do latifndio continua vigente, porm
acompanhado de um tmido crescimento das pequenas propriedades, diferentemente do
processo de diminuio presente nas dcadas de 1970 e 1980. Oliveira (2007), ao lanar mo
desses dados, ressalta que a diminuio dos latifndios ocorreu em razo de medida
17 O ndice de Gini mede o grau de concentrao de renda e varia de 0, que significa sem desigualdade, a1, que significa plenamente desigual.
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administrativa do Incra, que cancelou e expurgou do cadastro 1.899 imveis, que ocupavam
uma rea de 62,7 milhes de hectares.
Mesmo assim, esses dados revelam a brutal concentrao fundiria na atualidade.
Ainda segundo dados do Incra, o Brasil possui uma rea territorial de 850 milhes de
hectares, sendo 420 milhes a rea dos imveis cadastrados no Incra, totalizando 4,2 milhes
de imveis; destes, a rea mdia nas grandes propriedades de 2.700 hectares, ao passo que,
nas pequenas propriedades, de apenas 25 hectares, mais de cem vezes menos. Essa excluso
leva misria parte expressiva dos camponeses e trabalhadores brasileiros. Vale ilustrar que,
como fruto desse processo de aprisionamento da terra pelo grande capital, havia em Minas,
segundo dados do MST, 415 mil famlias sem terra s na primeira dcada do sculo XXI.
Por fim, afirmamos que a atual fase de acumulao na periferia capitalista, comoocorre na subdesenvolvida economia brasileira, acirra a questo agrria e compele-nos a mirar
a base na qual tal acumulao est assentada: o agronegcio. Mas observar a reproduo de
tais relaes em um universo estratgico, o Vale do Jequitinhonha, coloca para ns um
paradoxo de anlise. Se por um lado a populao rural do Jequitinhonha viu suas condies de
vida serem pioradas historicamente, subordinando a fora de trabalho numa dinmica de
expropriao no apenas de suas terras, mas de suas condies subjetivas de reproduo,
dilacerando costumes tradicionais, na medida em que os deixou rfos de terra e trabalho; poroutro lado, esse processo s foi possvel devido atuao do Estado como sustentculo da
expanso do agronegcio no campo, expresso na ento poltica hegemnica de produo
agrcola no pas. Essa lgica, que se espraiou pela economia nacional, faz-se presente em
todos os grotes e veredas, subjugando toda e qualquer forma de reproduo social. sobre
esse frtil campo de pesquisa que nos debruamos no captulo a seguir.
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2OVALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A RESISTNCIA E A SUPEREXPLORAO
A ocupao populacional do territrio mineiro ocorreu com descontinuidadestemporais e geogrficas, atrelada disponibilidade de recursos e s alternativas econmicas
de cada poca. Entretanto, os vrios surtos de ocupao territorial estiveram sempre ligados
busca dos recursos minerais e posteriormente, agrcolas e pecurios, com a produo voltada
para a exportao (DINIZ, 1986).
Assim ocorreu no nordeste do estado, o serto mineiro, como tambm conhecido o
Vale do Jequitinhonha.18 A regio possui uma diversificada e ampla histria de ocupao
territorial, que desde o incio atendeu aos anseios do projeto de desenvolvimento capitalistabrasileiro e internacional.
Neste captulo, iremos analisar as razes do subdesenvolvimento no Jequitinhonha,
sobretudo no campo, pois, dos 737.516 habitantes da regio, 276.704 vivem na rea rural.
Desses 37,5% da populao total, 72.729 pessoas, segundo o IBGE (2010), encontram-se em
situao de extrema pobreza.
Tecer reflexes sobre essa regio que viu seus filhos serem superexplorados nas
indstrias canavieiras e suas riquezas minerais serem saqueadas, s custas de um ditodesenvolvimento que se expressa na vida dos sertanejos justamente ao contrrio, no uma
tarefa fcil, pois tambm a histria daqueles que resistiram, que travaram lutas pela defesa
de suas terras e de seus costumes isto , da resistncia camponesa ao avano brutal do
capital.
Portanto, o que se encontrar neste captulo so relatos, vivncias, depoimentos sobre
a histria dos nmades da terra no serto mineiro, num contexto histrico de consolidao de
um projeto que ficou conhecido como a modernizao agrcola. Esse projeto, nas dcadas
de 1970 e 1980, marcou a ferro e fogo a carne e a memria dos camponeses que vivenciaram
as migraes e as constantes perdas.
Ainda que a qumica agrcola e a biologia industrial no tenham adentrado os
latifndios do Baixo Jequitinhonha, que preferiram seguir com a pecuria extensiva; e ainda
que a lgica de produo incutida na modernizao agrcola tenha encontrado entraves nas
18 H na literatura corrente uma concepo do serto impressa pela lente europeia, com claro sentido dedominao pretendido nessas reas por parte dos colonizadores. Esta perspectiva analtica, no mnimo
ahistrica, no percebe a paisagem sertaneja como produto no s de dois sculos de colonizao europia, mastambm de milhares de anos de interao de outros povos com o cerrado (RIBEIRO, 1997, p. 32). Neste texto,
partimos da perspectiva analtica do termo serto segundo as inter-relaes entre populao e cerrado, biomapredominante no serto, este como espao de (re)produo de prticas e tradies socioculturais.
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relaes sociais reproduzidas nas pequenas propriedades camponesas do Alto e Mdio
Jequitinhonha, todo o Vale sofreu severas transformaes.
Tal processo deixou cicatrizes que por um longo tempo sufocaram aquela populao,
mas nunca foram suficientes para cal-la. Seus ecos de resistncia e luta devem ser
propagados aos quatro cantos do pas, como forma de compor o universo da memria coletiva
sobre a historia das resistncias invisibilizada pela historia hegemnica dominante. A histria
das resistncias, desde sua prpria linguagem, significao e expresso, guarda em si nossos
anseios de classe, historicamente esmagados sufocados.
Conforme o Mapa abaixo, podemos visualizar os municpios que compem todo o
Vale do Jequitinhonha, vez que constitui-se de trs grandes micro-regies, facilitando a
compreenso espacial do territrio.
Figura 1Mapa do Vale do Jequitinhonha
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2.1 Dos geraes, das veredas e das grotas
O Vale do Jequitinhonha situa-se no nordeste de Minas Gerais e compreende duas
regies com caractersticas geogrficas e de colonizao bem particulares: a regio dos
Geraes e a regio conhecida como Veredas ou Grotes.19De acordo com Silva (2000), h no
mnimo um sculo de diferena entre a minerao no Alto Jequitinhonha e a pecuria (na
abertura das ltimas fronteiras regionais) no Baixo Jequitinhonha. Em larga medida, esse fato
determinou uma regio extremamente diversificada, tanto pela historicidade do povoamento
quanto pela caracterizao do quadro geogrfico e das atividades que ali se desenvolveram.
O Rio Jequitinhonha foi a principal via de migrao e fixao do povo: suas margensabrigavam pessoas que vinham de vrios lugares, especialmente a Bahia, o litoral e o
Nordeste do pas. Muitos desses migrantes fugiam da decadncia econmica da zona de
minerao no Distrito Diamantino, contrariando todas as interdies do trfego pelo rio, num
momento em que era proibido o assentamento de colonos nas regies diamantferas, impostas
pela demarcao do Distrito. Essas restries foram compiladas no temvel Regimento
Diamantino ou Livro da Capa Verde.
Foi apenas em meados de 1804 que o Rio Jequitinhonha teve sua abertura definitiva,ainda assim cercada de cuidados com bases militares em quase todo o seu curso, sendo este o
principal fator que dificultou e retardou o processo de colonizao do Mdio e Baixo
Jequitinhonha.
A regio do Alto Jequitinhonha, formada pelas terras irregulares do planalto, de
vegetao tpica do cerrado, conhecidas como Veredas ou Grotas e pelas chapadas, foi a
primeira a ser colonizada. Essa importante regio do sculo XVIII, marcada pela extrao
mineral, abrigou alguns dos principais pontos de extrao de ouro e diamante do pas.Eduardo Graziano e Francisco Graziano Neto (1983), ao estudar a agricultura no Alto
Jequitinhonha, pontuam como principal elemento de anlise a apropriao e o usufruto da
terra com base em um peculiar modo de produo agrcola camponesa. A agricultura de
subsistncia denominada de roa era predominante nessa regio, realizada nas partes planas e
midas, com o cultivo de diversas espcies destinadas alimentao da unidade familiar.
19 O Jequitinhonha foi delimitado oficialmente em 1966, para efeito de atuao da Codevale, rgo criado
com intuito de desenvolver economicamente a regio. Em 1990, o IBGE passou adotar o conceito demicrorregies geogrficas, que compem as mesorregies, que apresentam especificidades na organizao doespao segundo dois indicadores: a estrutura de produo e a interao regional (IBGE, 1991). Na mesorregiodo Vale do Jequitinhonha, h trs microrregies: Alto, Mdio e Baixo Jequitinhonha.
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Havia tambm as partes apropriadas individual ou familiarmente, conhecidas como as
mangas, destinadas solta do gado e dos animais de carga. Combinavam-se, assim, tanto
terras de uso privadoda lavoura e moradiacomo terras de uso comumpara a criao
de animais e colheita de frutos.
Portanto, ainda que utilizadas por indivduos isolados, essas reas permaneceram
coletivas ou comuns. O usufruto das terras da chapada era coletivo ou socializado, de modo
que qualquer chapada mais rica em frutas ou plantas medicinais era utilizada indistintamente
por indivduos de outra chapada e comunidade (GRAZIANO; GRAZIANO NETO, 1983). Da
necessidade de convivncia direta com a natureza emanam comportamentos culturais
essenciais para a reproduo social das comunidades. Destes, o uso social da gua torna-se o
mais expressivo e foi objeto de amplas pesquisas (GALIZONE, 2005; FREIRE, 2001). NoAlto Jequitinhonha, as cabeceiras ou nascentes dos rios, denominadas como capo, so reas
sagradas, devendo ser conservadas a qualquer custo, uma responsabilidade compartilhada por
todos. No por acaso, alguns conflitos levados Justia dizem respeito utilizao de
nascentes de gua, os minadouros.
O Baixo Jequitinhonha a regio conhecida como Geraes, marcada por terras planas e
baixas. Fica na margem direita do Rio Jequitinhonha e tem vegetao remanescente da Mata
Atlntica. A maior parte da margem esquerda est sob influncia do semirido, que seprolonga do serto baiano sobre uma parte de Minas, mas hoje j foi totalmente substituda
pelas pastagens nas grandes propriedades pecuaristas.
Desde o incio de sua ocupao, em meados do sculo XIX, o Baixo Jequitinhonha foi
marcado pela criao de gado com o objetivo de abastecer o ciclo da minerao. Durante o
final do sculo XIX e a primeira metade do sculo XX, houve a expanso das pequenas
cidades na regio, principalmente pela populao ribeirinha s margens do Jequitinhonha.
Concomitante s atividades de minerao e agropecuria voltadas para a exportao,foi se estabelecendo uma diversificada agricultura de subsistncia, necessria tanto para as
populaes envolvidas nas atividades de minerao, que j entrava em decadncia, quanto
para a pecuria, responsvel por um acentuado incremento populacional na primeira metade
do sculo XX no nordeste mineiro. Outro aspecto determinante no processo de povoamento
do Baixo Jequitinhonha foram os enfrentamentos entre brancos e ndios. Os relatos dos
viajantes que por ali passaram no incio do sculo XIX mostram as condies de vida da
populao indgena, sempre ressaltando suas caractersticas brbaras. Saint Hilaire(1975)
em seu livro Viagem pelas Provncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, assim define os
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ndios: desgraados, vivendo no presente, unicamente ocupados de suas necessidades
materiais, muito inferiores a ns, e dignos por isso mesmo, de toda nossa compaixo.
Essa compaixo, por vezes, se traduzia na catequese dos ndios pelos missionrios
religiosos que estavam nos aldeamentos. Estimulada pelo governo imperial, a catequese tinha
como tarefa adaptar os ndios ao mundo cultural dos brancos. A Dita poltica de civilizao
europria acabou por contribuir com sua dizimao como povo, etnia e nao. Mas no sem
resistncia. Os enfrentamentos entre os brancos e os ndios eram constantes, acelerando o
extermnio da populao indgena.
Os ndios habitavam as terras do que foi denominado de Mdio e Baixo Jequitinhonha;
eram eles povos originrios pertencentes a este territrio, muito antes da ocupao europeia
com fim mercantil a partir de 1.800. De acordo com a pesquisa de Luis Santiago (2010) haviatrs principais naes ali: a nao Borun os temidos botocudos, que estavam divididos
entre as famlias cracmuns ou craquims, naquenenuques, bakus e arans; a nao Maxacali,
a nica que no foi totalmente dizimada, que estava dividida em pataxs, cumanaxs,
monoxs, tocois, macunis, malalis e panhames; e os mongoi-camac. Houve uma guerra
declarada contra todas essas naes indgenas, acirrada com a vinda definitiva da corte
portuguesa ao Brasil, resultando na dizimao de seus povos e tomada de suas terras.
Nesse sentido, ao estudar o histrico processo de expropriao da terra no Vale doJequitinhonha, no h como no retomarmos, ainda que