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    UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM POLTICA SOCIAL

    Maisa Gonalves Cardoso

    ESTRANHOS NO QUINTAL DE MIGUILIM:A LGICA DO AGRONEGCIO NO VALE DO JEQUITINHONHA

    Braslia2015

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    Maisa Gonalves Cardoso

    ESTRANHOS NO QUINTAL DE MIGUILIM:A LGICA DO AGRONEGCIO NO VALE DO JEQUITINHONHA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Poltica Social da Universidadede Braslia como requisito parcial paraobteno do grau de Mestra em Poltica Social.Orientador: Newton Narciso Gomes Junior

    Braslia2015

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    Maisa Gonalves Cardoso

    ESTRANHOS NO QUINTAL DE MIGUILIM:A LGICA DO AGRONEGCIO NO VALE DO JEQUITINHONHA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Poltica Social da Universidadede Braslia como requisito parcial paraobteno do grau de Mestra em Poltica Social.

    Banca examinadora

    Prof. Dr. Newton Narciso Gomes Junior (orientador)Departamento de Servio SocialUnB

    Prof. Dr. Fernando Gaiger SilveiraInstituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA)

    Prof. Dr. Perci CoelhoDepartamento de Servio SocialUnB

    Prof. Dr. Carlos Lima (suplente)Membro vinculado ao ProgramaUnB

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    AGRADECIMENTO

    Cursar um mestrado, distanciar-me do meu lugar e das pequenas lutas travadas at ali

    no foram tarefas fceis. No entanto, a presena, o carinho e a amizade foram pontos

    essenciais de equilbrio neste trajeto marcado por momentos de angstia, s vezes medo, mas

    tambm risos e alegrias compartilhados.

    Preciso agradecer principalmente a Mainha e Paim, Miraci e Francisco Gonalves,

    fontes inesgotveis de amor, aconchego e fora. Ainda que muito distantes, acompanharam

    essa trajetria, estando presentes em todos os momentos de elaborao deste trabalho.

    Pacientes, sempre compreenderam minha ausncia, muito antes do perodo desta dissertao.

    A Iago, Mariana, Alan e Bernardo, crianas lindas, fontes de luz que sempre adoaram

    minha vida.

    A tia Nalda, tio Gra, tia Maria, tia Mira, v Miralda, v Dezinha, tia Dina, tio Mauri,

    a todos sempre muito preocupados comigo, me ajudando com palavras e lindas

    demonstraes de afeto, primordiais neste momento de tantas mudanas.

    Aos companheiros de estrada, alguns que deixei h muito, ainda em Araua, Aline,

    Viviane e Cludia, ainda presentes em minha vida. Agradeo tambm linda famlia quedeixei em Tefilo Otoni, as irms verdadeiras Cynthya, Nayara e Cris. Cris, em especial,

    companheira de convices, fonte de fora, luta e esperana num outro Vale, numa outra

    sociedade. A voc, amiga, que pacientemente leu e muito contribuiu neste trabalho final com

    grandes sugestes.

    minha famlia de Braslia, maravilhosas companhias nestes dois anos: Acio, Gilda,

    Laura, Vivi, Dani, Pedrinho, Ligia, Flavinha e Arlindo. T-los por perto tornou essa jornada

    muito mais leve e tranquila. S tenho a agradecer todos os risos e alegrias de todos que meacolheram e fizeram desta cidade tambm minha cidade, carrego lindas lembranas.

    Agradeo aos companheiros das Brigadas Populares DF, Pedro, Igor, Vincius e

    Alane, e a todos que socializaram comigo, neste curto perodo, ideais e lutas.

    Ao professor Newton, meu orientador, pela liberdade e pelo respeito concedidos na

    construo deste estudo, mostrando caminhos em momentos de muita indeciso.

    mestra Roberta Traspadini, exemplo verdadeiro de uma intelectual orgnica sempre

    vinculada s lutas de classe dos trabalhadores. Uma amiga que prontamente leu esta

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    dissertao, contribuindo com sugestes incorporadas neste trabalho e outras que sero

    incorporadas em trabalhos futuros.

    Agradeo ao CNPq, pelo incentivo e financiamento desta pesquisa em 2013-2014 na

    Universidade de Braslia. Este estudo resultado tambm de estudos iniciados na

    Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), qual sou muito grata.

    Por fim, agradeo ao Vale do Jequitinhonha, linda terra, e ao povo desse lugar,

    resistentes guerreiros, fontes de fora e indignao.

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    RESUMO

    Neste trabalho, fazemos uma anlise da questo agrria no Vale do Jequitinhonha (MG) apartir dos anos 2000, destacando a imerso da regio no processo de expanso do capitalfinanceiro em sua fase de predominncia fictcia, nos marcos da economia do agronegciovigente na periferia capitalista. A violncia estrutural sobre a terra e a histricasuperexplorao da fora de trabalho, inerentes s condies de dependncia, determinaramno Jequitinhonha o subdesenvolvimento rural no qual se encontra na atualidade, por meio deuma estratgia fundada na exacerbada captura de renda da terra. Foi para responder aomercado mundial de commodities que se acirrou a saga por commoditiesagrcolas e mineraisno Brasil, e estas tm exaurido os recursos naturais, expropriado campesinos e acirrado aquesto agrria. Sem terra e trabalho, esses camponeses vagam pelo serto mineiro e para fora

    dele. Nossas concluses remetem imperiosa necessidade de discusso da questo agrria,evidenciando a insustentabilidade desse contraditrio modelo de desenvolvimento capitalista,tanto do ponto de vista da reproduo social da fora de trabalho quanto dos recursos naturais.

    Palavras-chave: Questo agrria. Agronegcio. Vale do Jequitinhonha. Subdesenvolvimento.Dependncia.

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    ABSTRACT

    In this paper, we analyze the agrarian question in the Jequitinhonha Valley (MG) since the2000s, highlighting the immersion of the region in the financial capital expansion process inits phase of fictional predominance, within the framework of the existing agribusinesseconomy in the capitalist periphery. Structural violence over land and the historical over-exploitation of the labor force, which are inherent to the conditions of dependency,determined Jequitinhonhas rural underdevelopment, by means of a strategy based onexacerbated capture of land rent. It was to respond to the global commodities market that thesaga of agricultural and mineral commodities in Brazil was incited, and these have exhaustednatural resources, dispossessed peasants and strained the agrarian question. Deprived of landand labor, these peasants roam Minas Gerais backlands and beyond. Our conclusions suggest

    the urgent need for discussion of the agrarian question, showing the unsustainability of thiscontradictory model of capitalist development, both from the social reproduction and the laborforce and natural resources points of view.

    Keywords: Agrarian question. Agribusiness. Jequitinhonha Valley. Underdevelopment.Dependence.

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    SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................... 8

    1QUESTO AGRRIA:UMA FACE DO SUBDESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO.................. 12

    1.1 O subdesenvolvimento desde as estranhas da dependncia latino-americana ............ 12

    1.2 A questo agrria no Vale do Jequitinhonha ............................................................... 18

    1.3 Agronegcio: uma estratgia de desenvolvimento no sculo XXI? ............................ 22

    1.4 Os novos nmades da terra nos grandes sertes e veredas .......................................... 25

    1.5 Alguns apontamentos sobre a poltica social: um horizonte necessrio...................... 28

    2OVALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A RESISTNCIA E A SUPEREXPLORAO.......................... 32

    2.1 Dos geraes, das veredas e das grotas ........................................................................... 34

    2.2 O incio do mau encontro: invaso do estranhoxresistncia camponesa ................... 38

    2.3 As inesgotveis minas de sofrimento .......................................................................... 45

    2.4 A invaso das florestas mortas: o eucalipto ................................................................ 47

    2.5 O rio vai virar mar ....................................................................................................... 49

    2.6 A extrao de riqueza e a produo de misria no Jequitinhonha ............................... 50

    3ALGICA DO AGRONEGCIO EM TERRAS DO SERTO MINEIRO............................................... 53

    3.1 Estranhos no quintal de Miguilim ............................................................................... 54

    3.2 A reconfigurao da questo agrria atual no Jequitinhonha ...................................... 62

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................................................ 68

    REFERNCIAS ............................................................................................................................ 76

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    INTRODUO

    Este trabalho constitui-se na ltima etapa de um processo de investigao iniciado a

    partir de uma percepo emprica, imediata e prtica da realidade. Abordaremos uma regio

    tida como historicamente subdesenvolvida, o Vale do Jequitinhonha, cuja realidade marcada

    pela misria estrutural e cuja populao, sobretudo a campesina, continua, nos limiares do

    sculo XXI, vivenciando o amargo dessabor da expropriao de suas terras, perdendo seus

    meios de produo e reproduo da vida e sendo obrigada a deixar seu lugar em busca de

    sobrevivncia.

    Os estranhos1no quintal de Miguilim2so as novas-velhas formas de apropriao de

    riqueza pelo capital e suas contraditrias facetas expressas na relao dialtica entre riqueza e

    pobreza. No Vale do Jequitinhonha, tal contradio diz respeito no s produo e

    expropriao da riqueza que arranca da terra os recursos naturais, deixando-a devastada e

    pobre, mas tambm no extirpar da terra o povo, seus costumes, seu modo de vida e, muitas

    vezes, sua vida, jogando-o ao vento e sorte dos desterrados.

    Tal cenrio exacerba uma contradio pulsante no campo hoje: se, por um lado, os

    novos nichos de acumulao capitalista, centrados na captura de renda da terra, vm seexpandindo sobre novos territrios, como no Vale do Jequitinhonha, por outro lado, deixam

    rastros e indcios da insustentabilidade desse projeto, tanto do ponto de vista da reproduo

    humana quanto dos recursos naturais. Ao expropriar terra e trabalho, colocam em risco no

    apenas o campesinato, mas as condies objetivas e subjetivas da sobrevivncia humana.

    Muitos so os estudos sobre o Vale do Jequitinhonha, feitos, principalmente, a partir

    da dcada de 1970, perodo da chamada modernizao conservadora. Vrios deles relatam a

    sada de milhares de trabalhadores da regio, principalmente para o trabalho no monocultivoda cana-de-acar no estado de So Paulo. Esses trabalhadores, mesmo tendo conhecimento,

    por experincias pregressas de seus pares, de que viveriam em condies precrias, no

    tinham outra opo a no ser deixar suas famlias e suas tradies, mas nunca a esperana de

    voltar definitivamente para sua terra de origem.

    Ainda que no tenha iniciado nesse perodo, o xodo rural foi sempre uma varivel

    presente no Jequitinhonha e, a partir da dcada de 1970, passou a ser tensionado diretamente

    1 Referncia chegada de novas formas de produo e explorao da riqueza que entram em conflitocom as que j existiam, como o monocultivo de eucalipto e a extrao de pedras ornamentais.2 Referncia obra de Joo Guimares Rosa de 1956, Campo geral, na qual a personagem Miguilimexpressa a realidade vivida no serto mineiro.

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    pelos avanos do capital na regio. Por pelo menos trs ou quatro dcadas, a sada dos

    trabalhadores garantiu o abastecimento de mo de obra no monocultivo paulista. Iniciado o

    sculo XXI, porm, o avano do capital no campo apresentou novas facetas. As formas de

    expropriao da terra e trabalho no Vale do Jequitinhonha assumiram novas e mais cruis

    caractersticas, e as mudanas na composio orgnica do capital no centro do agronegcio

    brasileiro impuseram, cada vez mais, a mudana de rota desses fluxos migratrios.

    Evidentemente, essas percepes que instigaram as primeiras inquietaes,

    materializadas posteriormente neste estudo, resultaram de uma longa experincia na regio, e

    desse lugar que falo, como filha do Vale do Jequitinhonha, com a voz de um povo que

    agoniza ao ver sua cultura, seus costumes e sua identidade serem destrudos. Foi com o intuito

    de compreender as causas estruturais do subdesenvolvimento histrico que assola a populaodessa regio, sobremaneira a populao rural, que iniciei este estudo.

    Para uma aproximao que desvelasse a essncia do processo que fez o Jequitinhonha

    sucumbir ao subdesenvolvimento atual, foi necessria uma reflexo com base no universo

    terico que se tinha sobre o tema. Foi apenas aps o delineamento do campo terico que a

    pesquisa de fato se iniciou, orientada pelo intuito de avaliar a relevncia do tema para a

    problemtica mais geral no mundo atual. Em outras palavras, examinou-se como o Vale do

    Jequitinhonha expressa um campo estratgico de anlises acerca do modelo dedesenvolvimento ditado s economias dependentes pelo sistema global de acumulao de

    capital a partir dos anos 2000.

    Este trabalho foi desenvolvido luz do mtodo dialtico como base de investigao e

    anlise. Nesse mtodo, submete-se a anlise toda interpretao que j existe sobre o objeto de

    estudo, pois, segundo Netto (2011), o conhecimento concreto de um objeto o conhecimento

    de suas mltiplas determinaes, de modo que, quanto mais se reproduzem as mltiplas

    determinaes de um objeto, mais o pensamento reproduz a sua riqueza (concreo) real.Trata-se de uma reflexo crtica na medida em que se pressupe a abstrao do real para o

    pensamento. O desvendamento do real e a apreenso de sua essncia residem em

    aproximaes sucessivas e no lineares, uma vez que a realidade social histrica, dinmica e

    contraditria.

    Conforme ressalta Lucks (1989, p. 22), trata-se, pois, por um lado de destacar os

    fenmenos da sua forma dada como imediata, de encontrar as mediaes pelas quais podem

    ser referidos seu ncleo e a sua essncia na sua prpria essncia e, por outro lado, atingir a

    compreenso deste carter fenomenal. Este se constitui como um processo reflexivo, pois

    reconstri o movimento do real para depois retornar realidade, j num caminho muito mais

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    rico, pois carrega as mltiplas mediaes e reflexes.3Com esse intuito, coloquei-me a

    pesquisar essa regio a partir de uma questo norteadora: qual a essncia do processo que

    impulsiona a expropriao dos camponeses no Vale do Jequitinhonha no sculo XXI? Para

    responder a essa pergunta, este estudo encontra-se divido em trs partes: o primeiro captulo

    traz o cenrio em que a periferia capitalista consolida sua funo subalterna de insero na

    produo e acumulao global de capital, nos marcos da expanso do capital financeiro. Tal

    insero subjaz a dois elementos inerentes ao capitalismo sui generis que aqui se formou,

    impondo uma dupla dimenso na realizao deste capital: a superexplorao da fora de

    trabalho e a exacerbada expropriao/espoliao dos recursos naturais. Essa estratgia de

    acumulao de capital acirrou a questo agrria pulsante na sociedade brasileira desde nossa

    colonizao, mas, no sculo XXI, adquiriu novas roupagens o que, segundo Delgado(2012), impe questo agrria a forma mais desenvolvida da dependncia e do

    subdesenvolvimento: o agronegcio. a reproduo dessa estratgia no Vale do

    Jequitinhonha a essncia do segundo captulo. Nele, destacado como a propagao do

    capital sobre os territrios rurais no Vale do Jequitinhonha refletiu na consolidao do

    processo de expropriao dos campesinos na regio. Para tanto, foram revisadas pesquisas,

    relatos e experincias de diversos autores entre 2000 e 2010, que ressaltaram os conflitos

    rurais oriundos do avano do capital e, consequentemente, a monopolizao da terra e dotrabalho fatores histricos no Vale do Jequitinhonha, mas que, a partir dos anos 2000,

    adquiriram outros determinantes. Utilizou-se como fonte secundria o jornalGeraes, um dos

    raros meios de comunicao que expressavam a realidade desde o Vale do Jequitinhonha nas

    ltimas dcadas do sculo XX. Essa fonte registrou os relatos daqueles que serviram de mo

    de obra barata aos canaviais paulistas: superexplorados que amarguravam o xodo, a

    separao e a solido, errantes dos grotes e das veredas.

    Esses nmades continuam a sair do Vale do Jequitinhonha neste sculo, agoraexpulsos sob um novo ciclo de apropriao da terra na regio, que, resultado do

    encarceramento da renda fundiria, tem impulsionado a busca pelo sobrevalor extrado no

    campo. No Jequitinhonha, tal ciclo materializa-se conforme dois principais nichos de

    acumulao de capital: 1) a busca por commodities minerais, expressa na expanso brutal de

    empresas mineradoras; e 2) a saga por commodities agrcolas, expressa no monocultivo

    expansivo de eucalipto. A chegada desses estranhos tem aprofundado o

    3 Marx (1982) chama a ateno para no perdermos do nosso horizonte de anlise a tradeuniversalidade-particularidade-singularidade. Esse caminho nos permite desvendar a aparncia fenomnica darealidade, colocando a nu a essncia dos fenmenos.

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    subdesenvolvimento rural na regio e consolidado um perverso ciclo de migrao, uma vez

    que destri quaisquer condies de regresso terra.

    J no terceiro captulo, so apresentados dados de diversos estudos que abordam a

    expropriao e espoliao da terra. Foram utilizados dados de pesquisas do Departamento

    Nacional de Explorao Mineral, do Ministrio de Minas e Energia, para mostrar o avano de

    diversas empresas sob o territrio do Vale do Jequitinhonha, sobretudo a partir dos anos 2000.

    Outra fonte de dados adotada para demonstrar a predominncia do agronegcio sobre a

    pequena produo camponesa foi o Censo Agropecurio de 2006, organizado pelo Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). E, para mostrar essa sobreposio na regio

    pesquisada, foram recuperados os dados de uma pesquisa elaborada pela Secretaria de Estado

    de Agricultura, Pecuria e Abastecimento (Seapa) de Minas em 2014, intitulada Perfil daAgricultura Familiar de Minas Gerais. Por fim, o avano do monocultivo de eucalipto foi

    demonstrado com dados de uma pesquisa elaborada pela Subsecretaria do Agronegcio da

    Seapa, intitulada Perfil do Agronegcio Mineiro 2013. Nesse captulo, portanto, mostra-se a

    entrada massiva dos estranhos no Vale do Jequitinhonha, o que sacralizou o processo de

    expulso dos camponeses da terra e a destruio dos recursos naturais e da capacidade

    produtiva dessas terras. O efeito disso foi impossibilitar o regresso dos camponeses.

    Nas consideraes finais, retomam-se alguns pontos que demonstram como o Vale doJequitinhonha foi historicamente saqueado, e seu povo, superexplorado e marginalizado.

    nos trilhos do atual modelo de desenvolvimento capitalista na periferia global, como no

    Brasil, que o Vale do Jequitinhonha expressa uma regio estratgica para a extrao de

    sobrevalor, sobretudo no campo, ainda que sob pena de condenar milhares de camponeses

    misria e pobreza, mutilando sua identidade e arrancando-os definitivamente da terra.

    Finalizam esta dissertao algumas imagens que refletem parte do cenrio de devastao da

    regio causado por esse modelo de desenvolvimento no campo.

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    1 QUESTO AGRRIA: UMA FACE DO SUBDESENVOLVIMENTO LATINO-

    AMERICANO

    1.1 O subdesenvolvimento desde as entranhas da dependncia latino-americana

    A histria do desenvolvimento capitalista sui generis da Amrica Latina fomentou e

    foi fomentada pela dinmica geral de desenvolvimento deste particular modo de produo.

    Fundamento da acumulao primitiva, a anexao colonial poltica-econmica-cultural do que

    antes era prprio, autnomo, explicitou a centralidade externa nas decises internas,

    conformando uma apropriao indevida de solos, corpos e territrios fecundos para a

    dominao europeia.

    Os desdobramentos do capitalismo latino-americano esto fundados sobre bases

    firmes de apropriao privada daquilo que por muitos anos foi definido como propriedade

    coletiva: a terra e o trabalho vinculado a ela. A terra constitutiva da funo social da

    Amrica Latina ontem e hoje. Da real riqueza de recursos deste territrio, emana sua situao

    histrica de veias abertas. Caminhos condicionados pelos descaminhos do capital.

    O debate da histria do capitalismo na Amrica Latina tem profundas implicaes

    polticas nas reflexes e aes sobre limites e possibilidades inerentes condio de ser do

    particular dentro da dinmica geral do capital. As cincias sociais aplicadas se dedicam h

    dcadas compreenso desse movimento. Mas foi na dcada de 1960 que este debate ganhou

    fora a partir da relao dialgica-dialtica apresentada pelo desenvolvimento e sua contra-

    face: a dependncia.

    Ruy Mauro Marini em seu texto Dialtica da dependncia escrito em 1973 (2011) aoressaltar os determinantes da produo e reproduo do capital em escala ampliada, revela o

    importante cenrio no qual as relaes da Amrica Latina com os centros capitalistas

    condicionaram-na a inserir-se em uma estrutura definida como diviso internacional do

    trabalho, cuja centralidade era a de ser coadjuvante no cenrio protagonizado pelo capital das

    economias centrais.

    Essa estrutura determinaria o desenvolvimento dessa regio, marcado pelo desigual

    intercmbio e desenvolvimento capitalista na questionvel caracterizao da (in)dependnciana Amrica Latina. A dependncia emerge, nesse contexto de desenvolvimento do

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    subdesenvolvimento, como mecanismo central de subordinao, na Amrica Latina, do

    territrio e dos sujeitos; emerge, ainda, como forma de propagao do poder, de reproduo

    do capitalismo em sua dinmica internacional. Fica enraizada, na regio, a histrica violncia

    estrutural sobre terra e trabalho.

    Para Gunder Frank (1969), a funo cumprida pela Amrica Latina no

    desenvolvimento do capitalismo industrial europeu vinculava-se sua capacidade de criar

    uma oferta mundial de alimentos, alm de matrias-primas. Logo, a dependncia e o

    subdesenvolvimento foram e ainda so gerados pelo mesmo processo histrico que levou ao

    desenvolvimento econmico na periferia capitalista: o desenvolvimento do capital. Para o

    desnudamento desse processo, Marini (1990) e Frank (1969) so importantes intelectuais a

    serem resgatados. Suas anlises decifram a particular combinao da subordinao econmicareal dos pases perifricos aos pases centrais origem da dependncia, o

    subdesenvolvimento medular nas economias da Amrica Latina e da superexplorao da fora

    de trabalho, sob o espectro do capitalismo dependente.4

    De acordo com Marini (2011), a debilidade dos mecanismos de manejo e apropriao

    do excedente econmico produzido pelos trabalhadores na periferia resulta do fato de a

    produo ser sujeitada relao exportao-importao para o comrcio internacional. Isso

    faz com que a mais-valia produzida nas economias dependentes se realize no mercadoexterno, mediante a exportao, o que gera uma separao entre a esfera de produo e a

    esfera de circulao da mercadoria. Esse mecanismo apresenta-se inicialmente vinculado

    fase primria exportadora da Amrica Latina. No entanto, ressurge com o processo de

    reprimarizao das exportaes na era neoliberal, configurando uma situao interna dbil

    perante o cenrio internacional, controlado pelo grande capital monopolista.

    Entretanto, importa considerar que a funo que cumpre a Amrica Latina na

    economia capitalista mundial transcende em muito meras respostas aos requisitos fsicosinduzidos pela acumulao nos pases industriais. Talvez sua mais importante funo seja

    contribuir para que a acumulao capitalista nas economias centrais resulte antes do aumento

    da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da maior explorao da fora de

    trabalho, ou seja, para que, na economia capitalista central, o eixo de acumulao de mais-

    4 A categoria da superexplorao da fora de trabalho, desenvolvida por Ruy Mauro Marini,

    principalmente em sua obraDialtica da dependncia(1973), foi erigida para explicar a particularidade histrica

    que cumpre a Amrica Latina no mbito geral de reproduo do capital, como algo prprio do capitaldependente. Se a explorao da fora de trabalho um mecanismo de criao de valor na sociedade capitalista

    baseada no trabalho assalariado e apropriado pelos capitalistas, a superexplorao , sobretudo, o mecanismoutilizado pelos capitalistas da periferia para compensar suas perdas nas relaes econmicas internacionais.

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    valia absoluta se desloque para o eixo de acumulao de mais-valia relativa. 5 Mas se a

    perseguio de mais-valia relativa uma caracterstica geral e estrutural do processo de

    desenvolvimento capitalista, qual a peculiaridade latino-americana?

    Essa mudana no eixo de acumulao de capital nos pases centrais foi alavancada

    pela participao, no sem coero, da Amrica Latina no desenvolvimento das foras

    produtivas nesses pases, com a exploraosui generis da fora de milhares de trabalhadores:

    a superexplorao. Eis o principal aspecto do desenvolvimento dependente latino-americano:

    a superexplorao da fora de trabalho.

    Segundo Marini (2011), para que o capitalista da periferia compense as perdas durante

    a troca desigual entre naes centrais e naes perifricas, dever aumentar no prprio

    processo produtivo que coordena, tanto a massa de valor produzida quanto a apropriao domesmo. Isso implica o pagamento de um salrio com valor abaixo do necessrio para a

    reproduo da fora de trabalho. Alm de significar a no necessidade de potencializar um

    mercado interno para circulao de mercadorias dado o baixo dinamismo econmico

    vinculado aos baixos salrios. Essa prtica desnuda o mecanismo particular da

    superexplorao da fora de trabalho no desenvolvimento do capitalismo na Amrica Latina,

    seja mediante o aumento do ritmo do trabalho, seja pelo prolongamento da jornada de

    trabalho, ou, o que mais comum, combinando-se os dois procedimentos. Assim, namalograda tentativa de compensao da perda de parte da mais-valia, oriunda do desequilbrio

    entre preo e valor das mercadorias exportadas, o capitalista da periferia adota prticas

    perversas de explorao, condenando parte expressiva da classe trabalhadora a viver na

    misria.

    Em suma, os pases latinos, ao ingressarem no circuito capitalista internacional em

    condies de inferioridade, reproduzem essa lgica, que permanece inalterada at os dias de

    hoje no somente pela modernizao tardia e consequentemente pelo reduzido alcance nodesenvolvimento das foras produtivas, mas sobretudo pela posio que a Amrica Latina

    ocupa no mercado mundial. A superexplorao da fora de trabalho para ns uma categoria

    central para compreender a funo histrica cumprida pela Amrica Latina no mbito geral de

    reproduo do capital e, principalmente, para compreender nosso objeto de estudo nessa

    5 A mais-valia relativa est conectada diretamente desvalorizao dos bens-salrio (mercadorias

    necessrias para a (re)produo da fora de trabalho), o que contribui via de regra, mas no necessariamente,para a capacidade produtiva da fora de trabalho. Com sua integrao ao mercado mundial de bens-salrio, aAmrica Latina desempenha papel significativo na acumulao da mais-valia relativa nos pases centrais(MARINI, 2011).

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    dinmica: o processo de expropriao rural no sculo XXI no Jequitinhonha, que impe

    condies extremas de pauperizao aos novos nmades da terra no nordeste mineiro.

    da superexplorao da fora de trabalho que a dependncia ganha materialidade e

    explicita a real condio de ser do capitalismo na periferia. Ser o aviltamento de tais

    relaes, sob a gide do capital financeiro, que colocar a questo agrria nos trilhos da

    discusso da dependncia. A dependncia, por sua vez, nos instiga a analisar outras questes

    conectadas diretamente a ela, tal como a questo agrria. Roberta Traspadini (2014) chama a

    ateno para dois importantes questionamentos: 1) nesta atual fase de expanso do capital,

    qual a funo social da terra na dinmica geral do capital? E 2) em um contexto em que,

    majoritariamente, os trabalhadores se concentram nas grandes cidades, qual o papel do

    trabalho no campo?Se mirarmos a estrutura econmica dos setores que crescem frente dos demais, como

    minerao e agronegcio, logo veremos que eles so cadeias produtivas que operam com base

    no monoplio e na expropriao dos recursos naturais.6 Nessa dinmica, a funo social da

    terra, na lgica da produo de bens de subsistncia, sucumbiu-se arena especulativa, com

    expressivo encarceramento de crdito e dos lotes (TRASPADINI, 2014, p. 32). Desse modo,

    o capital, em sua fase de predominncia fictcia, aglutina anlise da questo agrria uma

    necessria reformulao dos processos que a engendram no limiar do sculo XXI,constituindo uma estratgia de acumulao de capital que conforma um padro de

    crescimento econmico perseguido, nesta dcada, pelo agronegcio.

    Segundo Jos Graziano da Silva (1981, p. 22), um dos mais destacados estudiosos da

    questo agrria destaca, em sua tese de doutorado, que a questo da terra na periferia

    capitalista passa pela compreenso de que a propriedade da terra a base de extrao do

    excedente dos trabalhadores rurais. O capitalista agrrio ir, concomitantemente, realizar

    aes que consolidem tanto seu poder socioeconmico monopolista quanto os elementosfundantes de uma estrutura agrria dependente, em que a produo camponesa subsumida a

    essa funo monopolista.

    esta fase atual da dependncia que coloca como um dos elementos centrais de

    dominao a naturalizao do endividamento pblico e individual dos trabalhadores, atrelada

    a um tipo de conduta dos Estados latino-americanos que aprofunda o aprisionamento dos

    6 Segundo dados da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), da Universidade de SoPaulo (USP), minrio e agronegcio, juntos, foram responsveis por 68% do valor total exportado pelo pas em2012.

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    governos aos interesses do capital financeiro:7 so os novos condicionantes da prxis do

    capital que reforam o carter histrico da atualidade da dependncia sob a consigna da

    superexplorao e do superendividamento (TRASPADINI, 2014, p. 32). Na mesma linha

    argumentativa Nildo Ouriques (2001, p. 36), reitera que principalmente a partir desses

    problemas de acumulao que esses governos tm a capacidade de avanar ainda mais na

    transformao da profunda crise social como uma necessidade de Estado.

    Assim, em cada tentativa de estabilizar a economia, novas dvidas so contradas

    pelo Estado, aprofundando a dependncia. A exacerbada valorizao da renda fundiria nesse

    processo e a consequente superexplorao da fora de trabalho e espoliao dos recursos

    naturais integram-se num todo articulado e constituem a contraditria, antagnica e

    complementar estratgia de acumulao de capital. Conforme Guilherme Delgado (2012), talsituaoexpressa o prprio padro de crescimento econmico perseguido na primeira dcada

    do sculo XXI pelo agronegcio. Atualmente, tal configurao histrico-social impe

    economia exportadora brasileira uma dupla dimenso na realizao do capital financeiro: a

    superexplorao da fora de trabalho e a extrao/espoliao dos recursos naturais. As

    consequncias desse projeto aprofundam as manifestaes mais agudas da misria pulsante na

    realidade social do campo e da cidade, acirrando a questo social na atualidade.8

    Nesse sentido, imprescindvel reiterar que entendemos a questo agrria como umaparticularidade da questo social, constituda, segundo Santana (2012, p. 14), a partir de

    embates estabelecidos devido posse da terra e/ou s relaes de trabalho em meiorural; no atual modelo de desenvolvimento agrrio, e uma de suas principaisexpresses ocorre pelo embate na relao capital x trabalho que ocorre no campo ena cidade, mas que decorrncia do avano das relaes capitalistas no campo.

    Esse debate situa-se no bojo da discusso da perspectiva de totalidade, cujo trabalho

    apresenta-se como eixo fundante das relaes sociais. Essa compreenso da questo agrria s

    se d ao apreender a questo social em suas mediaes concretas com a universalidade postapela sociabilidade burguesa, das quais fazem parte as particularidades e configuraes geradas

    7 A categoria capital financeiro, presente nesta anlise, parte da conceituao clssica cunhada porVladimir Lnin (1987): a concentrao da produo tendo como consequncia a formao dos monoplios; ouainda, a fuso ou interpenetrao dos bancos com a indstria, determinando e definindo o capitalismo atual,onde reinam os monoplios e a exportao de capitais.8 Segundo Z Paulo Netto (2013), a expresso questo social surge no sculo XIX, num contexto deindustrializao capitalista na Europa Ocidental, para explicar o fenmeno que assolava grande parte da

    populao: o pauperismo. Ainda que a pobreza e a misria datassem de muito na histria, era inovadora adinmica sob a qual a pobreza se generalizava: pela primeira vez na histria registrada, a pobreza crescia na

    razo direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas (NETTO, 2013, p. 20). A designaoquesto social est relacionada aos desdobramentos sociopolticos dessa generalizao da pobreza. luzdesse referencial terico que entendemos a questo agrria como particularidade da questo social, imersa no

    bojo da discusso da perspectiva de totalidade inerente ao referencial marxiano.

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    em distintos locais, mas sempre oriundos do enfrentamento entre os segmentos de classe, bem

    como suas relaes de trabalho no meio rural.

    Sendo assim, a questo agrria constitui-se como expresso dos distintos conflitos

    decorrentes do uso da terra, e ainda da relao capital/trabalho aprofundada no atual modelo

    de desenvolvimento agrrio. Na realidade, as particularidades da questo social resultante do

    embate de classes que advm do desenvolvimento do capitalismo na agricultura compem a

    questo agrria; entretanto, a no apreenso das mediaes que a constituem inviabiliza uma

    anlise a partir do mundo trabalho.

    Santana (2012), ao analisar a aproximao entre o servio social, como uma categoria

    profissional que lida diretamente com as expresses da questo social, e com os trabalhadores

    superexplorados reitera que o cotidiano dos mesmos que impulsiona o seu encontro com apoltica social e com o servio social. Nesse encontro, a identidade de classe tende a ser

    negada e subsumida de cidado usurio da poltica de assistncia social. Para Carmelita

    Yazbek (2012), esse um encontro marcado pela dificuldade do servio social, como

    categoria profissional, de apreender a questo agrria como particularidade da questo social.

    A autora ressalta que esse um dos maiores desafios postos profisso na materializao de

    seu projeto tico-poltico. Nesse sentido, Santana (2012, p. 177) destaca:

    medida que o Assistente Social no capta o trabalho como eixo fundante dasociabilidade, ele no reconhece o seu usurio como membro de uma classe cujosembates na relao com o capital tm se configurado de maneira tal que estasituao manifesta no universo singular a mais genuna expresso da questosocial [...]. O servio social tem dificuldade para captar a questo agrria como

    particularidade da questo social porque a sua percepo de realidade no apreendeo trabalho como eixo fundante na constituio das relaes sociais; isto faz com queo prprio conceito de questo social reduza-se s suas manifestaes singulares.

    Isso ocorre principalmente nos municpios de pequeno porte, em que pesem suas

    caractersticas eminentemente rurais. O embate de classes nesses municpios perpassa, em

    grande medida, pelo modelo de desenvolvimento agrrio.Nesse sentido constatamos, por meio de esforos coletivos de reflexo do

    conhecimento existente e de pesquisa exploratria, que o Vale do Jequitinhonha representa

    um universo estratgico para anlise das mudanas que vm ocorrendo no espao rural

    decorrentes da expanso do agronegcio nos marcos do capital financeiro no campo. Tal

    expanso recoloca na ordem do dia a discusso da questo agrria nos pases

    subdesenvolvidos da Amrica Latina.

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    1.2 A questo agrria no Vale do Jequitinhonha

    Gunder Frank (1969), em seu livro Sociologa del desarrollo y desarrollo de la

    sociologia expe que mesmo dentro de pases subdesenvolvidos, como no Brasil, existem

    regies subalternas, com desigualdades de renda e diferenas culturais, devido a fatores

    especficos, mas que de maneira alguma caracterizam uma economia dual; pelo contrrio,

    essas regies tm uma histria, estrutura e dinmica independente. Basta revisitar seu passado

    econmico e sua histria social, que deu origem ao subdesenvolvimento atual, para esclarecer

    que este no original ou tradicional, e que nem o passado nem o presente desses pases se

    parecem com o passado dos pases desenvolvidos.Para Margarida Moura (1988), Maria Aparecida Silva (1998) e Eduardo Ribeiro

    (1994), o Vale do Jequitinhonha uma dessas regies brasileiras tornadas historicamente

    subdesenvolvidas. Esses autores defendem a tese de que o subdesenvolvimento rural do

    Jequitinhonha remonta a uma simbiose que , ao mesmo tempo, agrria e agrcola. Ela emana

    tanto da fragmentao da terra em fins do sculo XIX, at o ponto em que a limitou a reas

    insuficientes para o sustento das famlias camponesas, quanto dos entraves, oriundos do

    manejo dos recursos naturais, efetivao da produo diante da articulao com a economianacional, o que se acirrou neste sculo com a expanso das fronteiras agrcolas e minerais.

    O subdesenvolvimento no interior da economia brasileira deve ser pensado como

    subproduto necessrio da acumulao capitalista em escala mundial. De modo que a raiz do

    subdesenvolvimento , em grande parte, produto histrico da economia passada e atual e de

    outras relaes entre os satlites9 subdesenvolvidos e os atuais pases metropolitanos

    desenvolvidos (FRANK, 1969, p.93).

    Ora, segundo Caio Prado Jr. (1979), ao resgatar os processos inerentes formaosocial e histrica colonial, reitera que, o que ocorreu nas relaes de trabalho que permearam

    a agropecuria brasileira, ranos, para o autor do subdesenvolvimento, que proprietrios e

    trabalhadores necessitavam, em suas respectivas posies, comprar e vender a fora de

    trabalho. Com base nessa relao, foram estipuladas as condies em que se faria a cesso ou

    compra e venda da mercadoria fora de trabalho. Se a transao no se d em bases

    puramente monetrias, com pagamento em dinheiro, isso no ocorre por nenhuma restrio de

    ordem institucional ou jurdica, mas sim por questes prticas e circunstanciais. Nas palavras

    9 O autor refere-se ao fato de que a expanso do sistema capitalista ancorou-se historicamente na relaode interdependncia entre metrpole e colnia/satlite.

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    do autor, [...] no Brasil o que tivemos como organizao econmica, desde o incio da

    colonizao, foi a escravido servindo de base a uma economia mercantil (PRADO Jr, 1979,

    p. 68).

    Seguindo a mesma linha de pensamento, Frank (1969) ressalta que o Brasil expressa

    um claro caso de desenvolvimento do subdesenvolvimento, tanto nacional quanto regional. A

    expanso da economia mundial, desde o comeo do sculo XVI, converteu o Nordeste, o

    interior de Minas Gerais (a regio produtora de pedras preciosas, que hoje onde se localiza o

    Vale do Jequitinhonha), o Norte e, por ltimo, o Centro-Sul (Rio de Janeiro, So Paulo e

    Paran) em economias de exportao, visando atender s demandas do desenvolvimento do

    sistema capitalista mundial, que incorporou essas regies.

    Dessa forma, cada uma dessas regies sofreu o desenvolvimento econmico no seurespectivo perodo de produtividade. O autor afirma que o subdesenvolvimento dessas regies

    , em si, uma caracterstica de nascena determinada por vrios fatores. Mas no podemos

    confundir:

    o subdesenvolvimento no causado pela coexistncia de instituies arcaicas, ou aexistncia de pouco capital nessas regies que se tm mantido isoladas do topo dahistria do mundo. Pelo contrrio, o subdesenvolvimento tem sido e ainda gerado,

    pelo mesmo processo histrico que gera tambm o desenvolvimento econmico: odesenvolvimento do prprio capitalismo (FRANK, 1969, p. 109, traduo nossa).

    Essas definies so necessrias na medida em que revelam o papel cumprido pela

    regio que ora analisamos, o Jequitinhonha. A reflexo sobre a complexidade presente

    atualiza as anlises de Marini (2011) e Frank (1969), especialmente em se tratando da

    reconfigurao da estratgia de reproduo e acumulao de capital que subjaz exacerbada

    valorizao da renda fundiria.

    Uma combinao perversa entre concentrao e centralizao da riqueza e da renda,

    nas mos de poucos donos de capital, vinculada superexplorao da fora de trabalho de

    parte expressiva dos trabalhadores sem terra, sem dinheiro, concomitantemente com a

    extrao/espoliao dos recursos naturais: eis a forma-contedo do processo de

    desenvolvimento da economia brasileira no sculo XXI. Os impactos dessa combinao para

    a reproduo da fora de trabalho na periferia capitalista conformam a particularidade da

    questo social na Amrica Latina, oriunda da relao capital/trabalho no modo de produo

    capitalista, que engendra contradies prprias do desenvolvimento perifrico. Essa questo ,

    portanto, caudatria da dinmica que assume a economia capitalista na periferia do sistema

    mundial, inegavelmente agravada com a superexplorao do trabalhador.

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    Delgado (2012) destaca que a expanso do capital financeiro transformou no apenas a

    realidade rural, mas tambm o entendimento terico e poltico dos problemas do

    desenvolvimento econmico e da forma como ele espraia-se no campo. Com base nessas

    novas-velhas formas de apropriao privada para a valorizao do capital no meio rural que

    as contribuies de Prado Jr. (1979) apresentam-se como essenciais nesta anlise. Segundo

    esse autor, a estrutura agrria que se constituiu no Brasil, forjada sobre as bases do capital

    mercantil-monopolista, expe desde o perodo colonial uma economia agroexportadora,

    sustentada pela monocultura, pela fora do trabalho escravo e pela diviso do territrio em

    grandes lotes, com um nico objetivo: atender as necessidades de acumulao capitalista da

    Coroa Portuguesa, produzindo mercadorias para exportao.

    A centralidade da produo para fora, desde o perodo colonial, conformou uma matrizde desenvolvimento dbil para dentro, em que a funo do trabalho no se centrou como

    prioridade na circulao interna das mercadorias (MARINI, 2011). A questo agrria

    brasileira pode ento ser definida, em termos gerais, como a relao dialtica entre a misria

    da populao rural e a estrutura agrria que se consolidou no pas, cujo elemento essencial

    consiste na concentrao da propriedade fundiria. Em outras palavras, a questo agrria

    aqui entendida como a concentrao de poder econmico, poltico e cultural no campo, que se

    sobrepe vida de milhes de trabalhadores rurais, dinmica do capital oprimindo-os esubordinando-os.

    essa a essncia da questo agrria que se consolida no pas, resultado do fato de que

    a quase totalidade da populao rural no possui a quantidade de terra necessria, nem as

    condies objetivas de produo, para assegurar sua subsistncia, dada a concentrao e

    centralizao da riqueza e da terra nas mos dos proprietrios de terra e gestores do

    agronegcio. Tal situao deu lugar aos minifndios, onde o padro de vida, na maioria dos

    casos, se aproxima daquele dos trabalhadores sem terra, ou empregados nas grandespropriedades: quando no so espoliados pelo comrcio intermedirio, resta-lhe vegetar

    completamente margem da vida econmica do pas, lutando por uma sobrevivncia

    miservel e precria(PRADO JR., 1979, p. 76). Os minifndios resultam do fracionamento

    da grande propriedade nos locais onde a grande explorao no vingou, seja porque no

    logrou tomar p, seja porque no resistiu a situaes mais graves da conjuntura econmica,

    entrando em decadncia e decomposio. Resultam tambm das sucessivas divises de um

    pequeno terreno de uma famlia camponesa, com seus descendentes diretos.

    Essa a estrutura agrria de subdiviso de terras difundida em grande parte do serto

    mineiro. No perodo de modernizao do campo ou modernizao trgica, em meados de

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    1960, tal estrutura significou para o Vale do Jequitinhonha o acirramento do processo de

    desapropriao das terras devolutas, resultando no desaparecimento do que Maria Moraes

    Silva (1998) denomina como direito costumeiro dos ento ocupantes daquela terra: negros,

    mestios que sobraram da minerao e quilombolas. A substituio da terra do trabalho auto-

    organizado pela terra de negcio provocou um intenso processo de migrao camponesa,

    culminando na consolidao dos milhares de deserdados, dos errantes da terra.

    H outro aspecto que sofreu profundas transformaes nas dcadas de 1960 e 1970, a

    pequena agricultura familiar no Vale do Jequitinhonha. Esse tem sido um objeto de diversas

    pesquisas nas ltimas trs dcadas. Resguardadas as diferenas em histria, recursos,

    povoamento, uso dos solos e perfis agrrios do Alto, Mdio e Baixo Jequitinhonha,10h algo

    em comum e consensual entre tais pesquisas o papel central que jogaram astransformaes em curso no Brasil na dcada de 1970, com o processo de modernizao

    agrcola e seus impactos, e com a integrao regional economia nacional na nova

    dinmica de produo de vida no campo.

    A questo agrria brasileira das dcadas de 1960 e 1970 apresentava uma proposta de

    reestruturao da propriedade distinta da proposta vigente hoje, uma vez que o contexto

    histrico e terico hegemnico na esquerda partidria era diferente. Pensava-se, pelas mais

    diversas perspectivas de interpretao, desenvolver o capitalismo no campo expropriandoterras no utilizadas de proprietrios rurais tidos como pr-capitalistas. Essa abordagem

    guiou estudos que defendiam a coexistncia de restos feudais na agricultura brasileira e de

    estruturas econmicas dualistas, ideia amplamente difundida por Celso Furtado (1983) e

    veemente combatida por Prado Jr. (1979), Frank (1969) e Marini (2011).

    Na atualidade, a questo da propriedade fundiria tem uma dimenso diversa dessa

    colocada pelo contexto histrico dos anos de 1960 e 1970, ainda que a apropriao e a

    formao do preo da terra, seja pblica, seja privada, sigam constitudas com base no augeda expanso agrcola. Apesar de manter essencialmente o mesmo sentido, a questo aparece

    com novas roupagens (DELGADO, 2012). Estas nada mais so que expresso de um peculiar

    projeto de acumulao de capital, centrado essencialmente na captura da renda da terra e

    atrelado lucratividade do complexo de outros capitais advindos do agronegcio.

    10 Sobre o sistema de lavouras na regio, ver Dayrell (1998) e Saint-Hilaire (1975), para quem as lavourasdo Jequitinhonha devem ser entendidas com base nas condies de cultivo, solo e objetivos segundo as quais as

    tcnicas empreitadas na agricultura variam. As culturas so selecionadas em funo dos solos onde se adaptammelhora terra prpria para o feijo, para a mandioca, para a cana , e cada uma exige manejo e avaliaoespecficos, pois precisa de roada, cultivo e fogo diferentes. Os solos so classificados pela umidade, pelatextura e pelo tempo de descanso. Ser essa classificao que definir a cultura prpria daquele solo.

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    Se de um lado esses elementos fazem parte do processo histrico que, em ltima

    instncia, resultou na expropriao e expulso dos camponeses de todo o serto mineiro, por

    outro lado, no plano macroeconmico, expressam uma dinmica imposta agricultura

    brasileira e ditada pelo movimento geral do capital internacional. Tal dinmica caracterizou-

    se em economias dependentes pela rearticulao dos complexos agroindustriais a fim de

    garantir as substanciais taxas de crescimento, ainda que sob pena de acirramento das

    desigualdades regionais, no ento projeto de desenvolvimento econmico para o pas: o

    agronegcio.

    1.3 Agronegcio: uma estratgia de desenvolvimento no sculo XXI?

    Nessa conjectura, a questo agrria adquire novos contornos no sculo XXI, o que, de

    acordo com Delgado, assumir a forma mais desenvolvida da dependncia e do

    subdesenvolvimento brasileiro: o agronegcio.11Este se destaca entre os novos elementos

    que compem a questo agrria e torna-se o carro-chefe da poltica hegemnica de produo

    agrcola e do modelo de desenvolvimento assumido pelo pas. Mas se de fato essa umaestratgia de desenvolvimento, quais segmentos de classe tm sido beneficiados? Para

    responder a essa pergunta, necessrio precisar o que estamos chamando de agronegcio,

    pois do contrrio, segundo Delgado (2012), correremos o risco de investigar uma infinita

    gama de fenmenos empricos sob a denominao genrica que encobre as dimenses

    essenciais dessa estrutura e de seu movimento.

    De acordo com Delgado (2012), o agronegcio na acepo brasileira do termo

    uma articulao do grande capital com a grande propriedade fundiria, na qual ambosrealizam um arranjo econmico sobre as bases do capital financeiro, perseguindo o lucro e a

    renda da terra, subsidiados pelas polticas de Estado. Tal dinmica agrava o processo de

    superexplorao da fora de trabalho e apropriao dos recursos naturais, j que a essncia

    dessa poltica a produo de commoditiesprimrias com vistas exportao, sob a lgica do

    mercado mundializado, em que a apropriao privada oligopolista da produo tambm a

    11 Esse foi um pequeno trecho da fala de Guilherme Delgado no VI Congresso Nacional do Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Braslia (Distrito Federal) em 2014. Para o autor, nossa insero

    na diviso internacional do trabalho deu-se como exportadores de commoditiesagrcolas e minerais, sendo essauma medida conjuntural para enfrentar a crise cambial de 1999, apesar de no oferecer condies de gerarequilbrio externo na conta-corrente; pelo contrrio, em mdio prazo, aprofunda o desequilbrio externo daeconomia brasileira, ou seja, nossa dependncia estrutural.

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    apropriao privada das terras. Para Franois Chesnais (1999), a lgica desse mercado,

    propagado no atual estgio de acumulao capitalista na periferia, assenta-se sobre a

    mundializao financeira.

    De acordo com Chesnais (1999, p. 17), a mundializao financeira deve ser

    compreendida num contexto [...] de ressurgimento das contradies clssicas do modo de

    produo capitalista mundial, que haviam sido abandonadas entre 1950 e a recesso de 1974.

    Esse contexto acompanhado do processo de retirada do Estado nas economias centrais que

    tiveram o Welfare Statecomo estratgia poltica, culminando em novas formas de pobreza,

    manifestas nas mais diversas expresses da questo social, esta por sua vez agravada pelo

    desmonte dos sistemas de proteo social.

    Pierre Salama (1999), ao analisar a repercusso do processo de financeirizao naseconomias da Amrica Latina, ressalta como as transformaes no mundo do trabalho foram

    intensificadas rumo maior precarizao das condies de vida da classe trabalhadoraarcos

    do neoliberalismo. Tais transformaes foram aprofundadas no final dos anos de 1980 e 1990

    e se arrastam at os dias de hoje. Nas palavras de Salama,

    [...] nas economias latino-americanas a taxa de cmbio se valoriza, o dficit doEstado financiado de forma crescente pelas entradas de capitais e as taxas de juros

    permanecem altas. As desigualdades de renda se reforam, o emprego se torna maisraro e a excluso se aprofunda. Sem forar o paradoxo, o que est presente de forma

    implcita em muitos pases desenvolvidos aparece com mais clareza nas economiassemi-industrializadas latino-americanas (1999, p. 86).

    Nos trilhos desse modelo, h em curso na economia brasileira uma estratgia estatal-

    privada baseada essencialmente na busca pela renda fundiria como carro-chefe da

    acumulao de capital. Ao ser reproduzida em regies subdesenvolvidas, como o

    Jequitinhonha, essa dinmica provocar graves consequncias econmicas e sociais.

    A renda fundiria cumpre um importante papel no processo recente de expanso do

    preo da terra,12 uma vez que so redefinidas diversas ferramentas de poltica pblicaincidentes sobre a terra. Para Graziano da Silva (1981), a propriedade privada da terra

    constitui condio necessria, mas no suficiente para a existncia de renda da terra. Ela

    parte da mais-valia, que, em vez de ficar com o capitalistaarrendatrio que a extorquiu dos

    trabalhadores , transferida para os grandes proprietrios rurais. So esses ltimos os

    12 Por no se tratar do nosso objetivo, no nos deteremos nessa categoria. Ver melhor em Sauer e Leite(2012).

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    capitalistas da terra, grandes proprietrios rurais que ficam com a renda fundiria, sendo esta

    nada mais que trabalho excedente apropriado acima do lucro mdio.13

    Desse modo, a mera existncia da propriedade privada da terra no garante a

    existncia da renda fundiria especfica no capitalismo. A propriedade privada apenas

    possibilita ao dono da terra apropriar-se de parte do trabalho social excedente produzido pelo

    trabalhador e materializado em mercadorias. A propriedade privada no gera esse excedente,

    portanto, no seria mais a terra que possibilitaria ao seu proprietrio apossar-se dele.

    Assim, a questo central : se, na atual fase financeira especulativa, o capital engajado

    na terra extrai do trabalhador no apenas os frutos do seu trabalho, mas tambm o seu tempo

    de trabalho excedente, necessrio para a reproduo da fora de trabalho, essa mais-valia

    gerada no processo produtivo no campo brasileiro e extorquida dos trabalhadores destina-se aquem aos capitalistas arrendatrios ou aos capitalistas produtivos? A esse respeito, Silva

    (1981, p. 22, grifo do autor) esclarece: a renda da terra especfica do modo de produo

    capitalista um sobrelucro, um lucro extraordinrio do prprio capital. A propriedade privada

    apenas permite que seu dono a embolse.Mas a essncia da questo se essa renda ou no

    extorquida pelo capital, entendido como uma relao social; se ou no o capital que

    comanda o processo produtivo, e que permite extrair um excedente do trabalhador. Se ocorre

    separao entre o proprietrio da terra e o dirigente do processo produtivo.As possveis respostas, ainda em aberto, apontam para as condies histricas e

    particulares nas quais se constituiu o sistema capitalista na agricultura brasileira, cuja matriz

    subdesenvolvida e dependente. A anlise das relaes sociais e econmicas reproduzidas no

    meio rural, no Vale do Jequitinhonha, clarifica algumas medies necessrias nesse processo.

    De acordo com Graziano da Silva (1981), em regies onde o desenvolvimento econmico

    encontra-se em patamares perifricos, como na que ora analisamos, as relaes estabelecidas

    entre o proprietrio e o capitalista arrendatrio, no que tange ao que ser pago como renda seja dinheiro, seja trabalho, englobaro toda a mais-valia gerada no processo produtivo, ou

    mesmo todo o trabalho excedente expropriado dos trabalhadores rurais.

    O autor pondera ainda que, nos casos mais gerais, no necessariamente ser o

    proprietrio da terra quem o embolsar, como vem ocorrendo com as pequenas propriedades

    rurais do nordeste mineiro. A saga por produtos agrcolas e minerais tem determinado novas

    relaes de expulso dos camponeses de suas terras nessa regio. Apesar de possuir a terra,

    13 Silva (1981) ressalta que h outro aspecto que determina a renda da terra ser mais alta ou mais baixa,resultante da luta de classes que se trava naquele determinado momento, naquela sociedade.

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    o campons no reside na sua propriedade, pois a entrega ao capitalista arrendatrio, que, em

    troca, lhe paga uma renda fundiria.

    Eis a a essncia dos fluxos do xodo rural no limiar do sculo XXI, que do origem a

    uma massa de trabalhadores rurais condenados da terra na atualidade, definidos por Vergs

    (2011) como os novos nmades da terra. Esses novos nmades so a outra face de uma

    estratgia de acumulao de capital que a economia brasileira persegue, cujos reflexos

    econmicos e sociais so sentidos por todos os trabalhadores, tanto no meio rural quanto no

    meio urbano.

    1.4 Os novos nmades da terra nos grandes sertes e veredas

    esse o contexto que marca a lgica do processo de acumulao capitalista nacional.

    Ao mesmo tempo em que se industrializa e mundializa a economia brasileira, soldando seu

    lugar subordinado na economia capitalista globalizada, isso feito de modo a (re) produzir a

    excluso dos pobres na cidade e no campo, determinando os novos-velhos fluxos migratrios

    do campo para cidade no sculo XXI.Nessa sorte da globalizao plebeia, que o xodo, os novos nmades levam sua

    identidade no embornal e se organizam, superando distncias e fronteiras. Assim os

    camponeses do milnio tornam-se transterritoriais e onipresentes. Todavia, em sua essncia,

    permanecem camponeses, pois, para essas comunidades entregadas ao relento, preservar a

    identidade uma questo de vida ou morte (VERGS, 2011). Segundo Armando Vergs

    (2011, p. 111), as classes no so constitudas apenas de economia, mas do calor do lar, da

    socializao e da cultura. essa a condio que o campons carrega nas costas quando deixapara trs seu territrio de vida e migra forosamente em vaivm para a cidade.

    A proletarizao do campons e a sazonalidade do trabalho agrcola, segundo Silva

    (1981, p. 51), devem ser entendidas como resultantes de um mesmo processo: a mesma

    evoluo que produz a necessidade de operrios assalariados no campo, cria tambm esses

    operrios, dado que a venda temporria da fora de trabalho passa a ser agora ocupao

    acessria da famlia camponesa. necessrio, nesse sentido, compreender a proletarizao

    camponesa de maneira ampla, como resultado da subordinao direta do trabalho ao capital, e

    no apenas como a expropriao completa dos meios de produo do campons. Na realidade,

    a reproduo desses novos camponeses a reproduo do prprio capital.

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    A expulso dos parceiros, arrendatrios, colonos e pequenos proprietrios da

    agricultura no estado de Minas Gerais, principalmente a partir dos anos 1960, j foi

    exaustivamente estudada por historiadores, socilogos, economistas, agrnomos. No

    pretendemos, neste momento, levantar esses estudos. Queremos apenar reiterar que tal

    modelo de produo desembocou no reforo dos latifndios, agora dominados pelas grandes

    empresas privadas, historicamente sob a chancela do Estado, de maneira que a populao,

    sem condies de concorrer econmica e politicamente com as mudanas nas relaes de

    produo, se viu obrigada a abrir mo do usufruto da terra.

    Sem a terra para produzir e sobreviver, grande parte dos camponeses da regio

    tornaram-se populao sobrante, desempregados, pees de trecho, andarilhos e,

    principalmente, boias-frias (MOURA 1988; SILVA, 1998).Tal metamorfose vinculou-se econtribuiu para o atendimento da demanda de mo-de-obra necessria expanso da

    modernizao em outras regies do pas. Esse processo criou para os agricultores do Vale do

    Jequitinhonha novas relaes sociais, impondo, cada vez mais, ao seu modo de vida e trabalho

    elementos tpicos do modo burgus de dominao social.14

    Nessa conjuntura, a migrao, sazonal ou definitiva, a face mais marcante das

    contradies sociais geradas por tal mudana e significou para o Vale um contexto permeado

    pelo sofrimento das vivas de marido vivo e seus rfo temporrios, pela perda daidentidade camponesa e da relao com a terra, pela degradao da sade e da vida dos

    trabalhadores, pela submisso de milhares de pessoas fome e falta de alternativas dignas,

    enfim, pela desumanizao das condies de produo e reproduo social da vida (MOURA,

    1988; SILVA, 1998).

    A partir de meados da dcada de 1960, quando o Estado instalado com o golpe militar,

    em 1964, adotou um modelo de desenvolvimento conservador e subordinado aos interesses

    das naes centrais, milhares de camponeses foram transformados em deserdados da terra(MOURA, 1988). Por quase trinta anos, o processo de produo capitalista na regio seria

    pautado no agronegcio, tanto pela monocultura do eucalipto como pelo avano das empresas

    de minrio.

    No bojo dessas mudanas, o que estava em disputa no era apenas a perda das terras

    dosgeraizeirosou lavradores, que outrora eram garantidas pelo direito costumeiro da terra,

    14 Entre o alto, o mdio e o baixo Jequitinhonha, coexistem diferentes tcnicas de agricultura, de uso de

    recursos, de apropriao fundiria e de produo que configuram um regime fundirio diverso. No entanto, hum aspecto singular e comum a todo o Jequitinhonha: trata-se do processo de expulso dos agricultoresfamiliares com a modernizao agrcola, em curso no pas em meados da dcada de 1970. esse o foco de nossaanlise.

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    mas a reestruturao do modo de vida, de trabalho e das relaes sociais.15Isso traou para

    muitos o destino da migrao temporria ou, na maioria das vezes, definitiva, produzindo o

    que Silva (1998) chamou de uma multido de eternos errantes procura de um tempo e de um

    lugar, perdidos nas antigas veredas e chapadas.

    Com isso, recrudesceu a questo agrria na regio, na medida em que se ampliou o

    monoplio de terras e se expropriaram milhares de agricultores familiares de suas terras. Esse

    processo foi mediado e legitimado pela chancela do Estado, o qual sempre agiu no sentido de

    garantir condies necessrias expanso do capital, algo que, na atualidade, mantm-se

    inabalado.

    A estrutura socioeconmica imperante no incio do sculo XXI expressa a dinmica

    econmica consolidada anteriormente, mas atualiza-se com novos elementos estruturantes,ditados pela ento poltica hegemnica do agronegcio. Esta significou, para o Vale do

    Jequitinhonha, o aprofundamento do processo de criao dos nmades da terra, que vagam

    por todo o serto mineiro.

    [...] Quando os conflitos pela terra foram se tornando mais frequentes nos corres dosltimos anos, isto no ocorreu somente porque a sociedade se abriu, tambm porquea velha ordem desabou. Pouca coisa ficou para colocar no seu lugar, a no ser sualembrana, resistente ao esforo de construir uma cidadania. to grande o seu pesoque o sindicalismo e movimentos populares organizaram-se em reas camponesas[...] agindo junto s multides de excludos da terra que perambulam nas cidades evilas do Norte e Nordeste de Minas (RIBEIRO, 1994, p. 40).

    A anlise do processo de expropriao da terra nos permitir desnudar a atual

    dinmica de subdesenvolvimento, vivenciado sobremaneira no campo. Sero desvendadas as

    revoltas ora invisveis, ora silenciadas, individuais ou coletivas, que resultam na produo de

    trabalhadores nus, desprovidos de suas condies objetivas prvias e negados pela lei como

    possuidores de direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores.

    Compreender o lugar socioeconmico que a questo agrria ocupa na atual fase de

    acumulao de capital na periferia capitalista nos ajuda a desvendar o patamar da disputa,

    entre as fraes das classes dominantes e o trabalho, pelo excedente econmico, exacerbando

    a essncia da poltica social nos dias de hoje e, principalmente, seu papel na luta dos

    trabalhadores e na dominao do capital. Com efeito, o alcance e o escopo das polticas

    sociais so sensivelmente restringidos na configurao histrico-social em que se encontra a

    economia exportadora da periferia capitalista a qual, porm, necessria sobrevivncia

    de milhares de trabalhadores, sobremaneira em regies como o Vale do Jequitinhonha.

    15 Estes so nomes pelos quais os camponeses se autodefinem, e aparecem em obras literrias comoGrande serto: veredas, de Guimares Rosa.

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    1.5 Alguns apontamentos sobre a poltica social: um horizonte necessrio

    A fase de acumulao do capital na periferia latino-americana no sculo XXI coloca

    na ordem do dia a imperiosa necessidade das polticas sociais.16 Sobretudo, como um

    mecanismo de socializao dos custos de reproduo da fora de trabalho para o conjunto da

    sociedade, tornada no somente necessria, devido o acirramento da luta de classes, mas

    possvel, com a expanso da extrao de mais-valia, fundamental para o aproveitamento

    produtivo do excedente econmico a ser valorizado (PAIVA; OURIQUES, 2006, p. 168).Isso se d principalmente quando se pensa a Amrica Latina, regio em que o

    desenvolvimento capitalista explicita as particularidades histricas e conforma a

    superexplorao da fora de trabalho como modus operandido capitalismo dependente. Se a

    natureza da dependncia latino-americana emana do fato de que foi incumbida a participar no

    processo de acumulao em geral, alterando a capacidade produtiva do trabalho no exterior,

    isto centrou-se em uma forma particular de extrao de sobretrabalho, dada a situao

    perifrica dos capitais latino-americanos no mbito mundial: o pagamento de salrios abaixodas condies de sobrevivncia dos trabalhadores.

    Imersas nesse processo de desvendamento da realidade social, que, segundo Marini

    (2011), tem como elemento bsico a modernizao da Amrica Latina pautada na

    contraditria relao de subordinao ao mercado externo, que se localizam as polticas

    sociais. Essa perspectiva engendra tanto os limites quanto o potencial poltico-emancipatrio

    dessas polticas. Da a importncia de compreender o lugar da questo agrria na atual fase de

    acumulao do capital financeiro na periferia capitalista, uma vez que h, nessa regio, umfortalecimento da economia agroexportadora. Essa alternativa, adotada pelas classes

    dominantes na Amrica Latina para compensar suas perdas nas relaes internacionais, s foi

    possvel devido superexplorao da fora de trabalho. Da dialtica do desenvolvimento e da

    dependncia na Amrica Latina, resulta um aspecto central para o entendimento da questo

    16 Concordando com Beatriz Paiva (2009), entendemos a poltica social como uma dimenso constitutivado Estado capitalista, portanto, de sua interveno, desde a transio sua fase monoplica, nas dcadas iniciaisdo sculo XX, cujos primeiros vnculos transitam numa unidade contraditria entre as esferas da produo eda reproduo social.Isso porque as determinaes estruturais so tipificadas quando esclarecidas as funes

    que assumem no financiamento de parte do capital varivel, socializando os custos econmicos de reproduo dafora de trabalho, seja pela regulao salarial, seja pela subveno de bens e servios necessrios satisfao dosmeios de vida. Mas so tambm produto da luta de classes, como parte do processo de disputa do excedenteeconmico expropriado das massas.

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    social: qual o papel da superexplorao da fora de trabalho na compreenso das polticas

    sociais na periferia capitalista? De acordo com Beatriz Paiva e Nildo Ouriques (2006), a

    construo das polticas sociais na Amrica Latina encontra-se obstaculizada pela perpetuao

    da dependncia.

    Nesse sentido, h que se destacar outro determinante das polticas sociais,

    dialeticamente contraditrio, cuja implementao resulta historicamente da luta da classe

    trabalhadora por direitos sociais. Ora, se por um lado as polticas sociais foram financiadas

    pelo excedente econmico do capital em seu estgio mais dilatado, por outro lado,

    significaram respostas luta poltica dos trabalhadores; portanto, adquirem uma dimenso no

    apenas econmica, mas tambm poltica.

    Logo, quando o potencial poltico-emancipatrio das polticas sociais na AmricaLatina questionado, h que se pensar a crtica aos mecanismos de produo e extrao de

    mais-valia no continente. a partir disso que podemos inferir as especificidades da poltica

    social, delineadas nos marcos do subdesenvolvimento e de uma economia dependente. Assim,

    as polticas sociais, de um lado, circunscrevem-se no processo de disputa poltica pela

    redistribuio do excedente econmico real, historicamente expropriado das massas, uma vez

    que no se limitam a amortizar os conflitos ou as manifestaes mais agudas da pobreza por

    meio da oferta de servios bsicos. De outro, so tambm um instrumento de transformaosocial que organiza as massas segundo seus interesses essenciais, embora estes no portem,

    por si ss, a capacidade de transformao societria.

    Entretanto, ao confrontar o horizonte poltico-emancipatrio das polticas sociais com

    a condio na qual elas se encontram assentadas na Amrica Latina, evidenciam-se seus

    limites, mais que em qualquer outro contexto, em funo da natureza da extrao da mais-

    valia, via superexplorao da fora de trabalho. Como trabalhado por Paiva e Ouriques (2006,

    p. 172), a poltica social subordinada a essa lgica reproduz igualmente as situaes desdefora, e o esboo de proteo social permitido no vai alm de aes focalistas e pontuais,

    somente ofertadas em situaes extremas.De modo que a expropriao de parte substantiva

    do trabalho necessrio para o trabalhador repor sua fora de trabalho desde a apropriao

    maior do trabalho excedente coloca as polticas sociais como horizonte necessrio

    reproduo das massas exploradas (PAIVA; OURIQUES, 2006, p. 174).

    Assim, ao aprofundar o pacto da economia do agronegcio, aviltado na atual fase de

    acumulao de capital na periferia capitalista, a especificidade das polticas sociais na

    Amrica Latina redimensionada como um mecanismo de socializao dos custos de

    reproduo da fora de trabalho. Esse mecanismo essencial, na medida em que a explorao

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    da fora de trabalho dos camponeses acentuada naquilo que constitui a particularidade

    capitalista no continente: as condies desumanas de pagamento de um salrio incompatvel

    com a sobrevivncia mnima dos trabalhadores. Isso se reflete tambm no direcionamento das

    polticas pblicas agrcolas e agrrias, na perspectiva definida pelo mercado internacional de

    commodities. Dessa forma, as polticas corroboram com o aumento da concentrao fundiria

    e a expulso dos camponeses de suas terras.

    Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2007), ao discutir dados referentes ao cadastro do

    Instituto Nacional de Reforma Agrria (Incra), revela como a concentrao fundiria atual

    reflete um processo histrico de apropriao e monoplio da terra por poucos. Tal

    concentrao entendida no como excrescncia lgica do desenvolvimento capitalista, mas

    ao contrrio, como parte constitutiva do capital que se desenvolveu no pas. Segundo dadosdo INCRA, em 1972, de um total de 3.387.175 imveis, 50.548 representavam a grande

    propriedade, apenas 1,5% ocupando uma rea de 193.749.742 hectares, ou seja 51,4% de uma

    rea total de 370.275.187 hectares. J em 1978, de um total de imveis de 3.071.085, 56.546

    representavam a grande propriedade, equivalente a 1,8% dos imveis, ocupando uma rea de

    246.023.591 hectares, ou seja, 57% de uma rea total de 419.901.870 hectares. No

    contraponto, os pequenos produtores rurais detinham uma rea inferior a 100 hectares, que, no

    mesmo perodo em 1972, representavam 2.905.416 ha, equivalente a 85,8% das terras,detendo apenas 17,5% da superfcie agricultvel. Em 1978, esses pequenos agricultores

    representam 83,8% do total de imveis, equivalentes a 2.581.838 ha, ocupando uma superfcie

    agricultvel de 14,8%: apenas 59.939.629 hectares.

    Os dados acima revelam como a modernizao da agricultura veio acompanhada da

    crescente concentrao fundiria, alterando o ndice de Gini, que passou de 0,836 em 1972

    para 0,854 em 1978.17Porm, a cada nova conferncia de imveis, os dados sobre estrutura

    fundiria se repetem. Os mais recentes so de 2003, presentes no II Plano Nacional deReforma Agrria, do governo Luiz Incio Lula da Silva (SAMPAIO, 2003). Nesse plano, a

    grande propriedade representa 1,6% dos imveis rurais, ocupando 43,7% de um total de

    420.345.382 hectares; enquanto isso, as pequenas propriedades representam 85,2%, ocupando

    20,1% da rea. Ou seja, o crescimento abissal do latifndio continua vigente, porm

    acompanhado de um tmido crescimento das pequenas propriedades, diferentemente do

    processo de diminuio presente nas dcadas de 1970 e 1980. Oliveira (2007), ao lanar mo

    desses dados, ressalta que a diminuio dos latifndios ocorreu em razo de medida

    17 O ndice de Gini mede o grau de concentrao de renda e varia de 0, que significa sem desigualdade, a1, que significa plenamente desigual.

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    administrativa do Incra, que cancelou e expurgou do cadastro 1.899 imveis, que ocupavam

    uma rea de 62,7 milhes de hectares.

    Mesmo assim, esses dados revelam a brutal concentrao fundiria na atualidade.

    Ainda segundo dados do Incra, o Brasil possui uma rea territorial de 850 milhes de

    hectares, sendo 420 milhes a rea dos imveis cadastrados no Incra, totalizando 4,2 milhes

    de imveis; destes, a rea mdia nas grandes propriedades de 2.700 hectares, ao passo que,

    nas pequenas propriedades, de apenas 25 hectares, mais de cem vezes menos. Essa excluso

    leva misria parte expressiva dos camponeses e trabalhadores brasileiros. Vale ilustrar que,

    como fruto desse processo de aprisionamento da terra pelo grande capital, havia em Minas,

    segundo dados do MST, 415 mil famlias sem terra s na primeira dcada do sculo XXI.

    Por fim, afirmamos que a atual fase de acumulao na periferia capitalista, comoocorre na subdesenvolvida economia brasileira, acirra a questo agrria e compele-nos a mirar

    a base na qual tal acumulao est assentada: o agronegcio. Mas observar a reproduo de

    tais relaes em um universo estratgico, o Vale do Jequitinhonha, coloca para ns um

    paradoxo de anlise. Se por um lado a populao rural do Jequitinhonha viu suas condies de

    vida serem pioradas historicamente, subordinando a fora de trabalho numa dinmica de

    expropriao no apenas de suas terras, mas de suas condies subjetivas de reproduo,

    dilacerando costumes tradicionais, na medida em que os deixou rfos de terra e trabalho; poroutro lado, esse processo s foi possvel devido atuao do Estado como sustentculo da

    expanso do agronegcio no campo, expresso na ento poltica hegemnica de produo

    agrcola no pas. Essa lgica, que se espraiou pela economia nacional, faz-se presente em

    todos os grotes e veredas, subjugando toda e qualquer forma de reproduo social. sobre

    esse frtil campo de pesquisa que nos debruamos no captulo a seguir.

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    2OVALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A RESISTNCIA E A SUPEREXPLORAO

    A ocupao populacional do territrio mineiro ocorreu com descontinuidadestemporais e geogrficas, atrelada disponibilidade de recursos e s alternativas econmicas

    de cada poca. Entretanto, os vrios surtos de ocupao territorial estiveram sempre ligados

    busca dos recursos minerais e posteriormente, agrcolas e pecurios, com a produo voltada

    para a exportao (DINIZ, 1986).

    Assim ocorreu no nordeste do estado, o serto mineiro, como tambm conhecido o

    Vale do Jequitinhonha.18 A regio possui uma diversificada e ampla histria de ocupao

    territorial, que desde o incio atendeu aos anseios do projeto de desenvolvimento capitalistabrasileiro e internacional.

    Neste captulo, iremos analisar as razes do subdesenvolvimento no Jequitinhonha,

    sobretudo no campo, pois, dos 737.516 habitantes da regio, 276.704 vivem na rea rural.

    Desses 37,5% da populao total, 72.729 pessoas, segundo o IBGE (2010), encontram-se em

    situao de extrema pobreza.

    Tecer reflexes sobre essa regio que viu seus filhos serem superexplorados nas

    indstrias canavieiras e suas riquezas minerais serem saqueadas, s custas de um ditodesenvolvimento que se expressa na vida dos sertanejos justamente ao contrrio, no uma

    tarefa fcil, pois tambm a histria daqueles que resistiram, que travaram lutas pela defesa

    de suas terras e de seus costumes isto , da resistncia camponesa ao avano brutal do

    capital.

    Portanto, o que se encontrar neste captulo so relatos, vivncias, depoimentos sobre

    a histria dos nmades da terra no serto mineiro, num contexto histrico de consolidao de

    um projeto que ficou conhecido como a modernizao agrcola. Esse projeto, nas dcadas

    de 1970 e 1980, marcou a ferro e fogo a carne e a memria dos camponeses que vivenciaram

    as migraes e as constantes perdas.

    Ainda que a qumica agrcola e a biologia industrial no tenham adentrado os

    latifndios do Baixo Jequitinhonha, que preferiram seguir com a pecuria extensiva; e ainda

    que a lgica de produo incutida na modernizao agrcola tenha encontrado entraves nas

    18 H na literatura corrente uma concepo do serto impressa pela lente europeia, com claro sentido dedominao pretendido nessas reas por parte dos colonizadores. Esta perspectiva analtica, no mnimo

    ahistrica, no percebe a paisagem sertaneja como produto no s de dois sculos de colonizao europia, mastambm de milhares de anos de interao de outros povos com o cerrado (RIBEIRO, 1997, p. 32). Neste texto,

    partimos da perspectiva analtica do termo serto segundo as inter-relaes entre populao e cerrado, biomapredominante no serto, este como espao de (re)produo de prticas e tradies socioculturais.

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    relaes sociais reproduzidas nas pequenas propriedades camponesas do Alto e Mdio

    Jequitinhonha, todo o Vale sofreu severas transformaes.

    Tal processo deixou cicatrizes que por um longo tempo sufocaram aquela populao,

    mas nunca foram suficientes para cal-la. Seus ecos de resistncia e luta devem ser

    propagados aos quatro cantos do pas, como forma de compor o universo da memria coletiva

    sobre a historia das resistncias invisibilizada pela historia hegemnica dominante. A histria

    das resistncias, desde sua prpria linguagem, significao e expresso, guarda em si nossos

    anseios de classe, historicamente esmagados sufocados.

    Conforme o Mapa abaixo, podemos visualizar os municpios que compem todo o

    Vale do Jequitinhonha, vez que constitui-se de trs grandes micro-regies, facilitando a

    compreenso espacial do territrio.

    Figura 1Mapa do Vale do Jequitinhonha

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    2.1 Dos geraes, das veredas e das grotas

    O Vale do Jequitinhonha situa-se no nordeste de Minas Gerais e compreende duas

    regies com caractersticas geogrficas e de colonizao bem particulares: a regio dos

    Geraes e a regio conhecida como Veredas ou Grotes.19De acordo com Silva (2000), h no

    mnimo um sculo de diferena entre a minerao no Alto Jequitinhonha e a pecuria (na

    abertura das ltimas fronteiras regionais) no Baixo Jequitinhonha. Em larga medida, esse fato

    determinou uma regio extremamente diversificada, tanto pela historicidade do povoamento

    quanto pela caracterizao do quadro geogrfico e das atividades que ali se desenvolveram.

    O Rio Jequitinhonha foi a principal via de migrao e fixao do povo: suas margensabrigavam pessoas que vinham de vrios lugares, especialmente a Bahia, o litoral e o

    Nordeste do pas. Muitos desses migrantes fugiam da decadncia econmica da zona de

    minerao no Distrito Diamantino, contrariando todas as interdies do trfego pelo rio, num

    momento em que era proibido o assentamento de colonos nas regies diamantferas, impostas

    pela demarcao do Distrito. Essas restries foram compiladas no temvel Regimento

    Diamantino ou Livro da Capa Verde.

    Foi apenas em meados de 1804 que o Rio Jequitinhonha teve sua abertura definitiva,ainda assim cercada de cuidados com bases militares em quase todo o seu curso, sendo este o

    principal fator que dificultou e retardou o processo de colonizao do Mdio e Baixo

    Jequitinhonha.

    A regio do Alto Jequitinhonha, formada pelas terras irregulares do planalto, de

    vegetao tpica do cerrado, conhecidas como Veredas ou Grotas e pelas chapadas, foi a

    primeira a ser colonizada. Essa importante regio do sculo XVIII, marcada pela extrao

    mineral, abrigou alguns dos principais pontos de extrao de ouro e diamante do pas.Eduardo Graziano e Francisco Graziano Neto (1983), ao estudar a agricultura no Alto

    Jequitinhonha, pontuam como principal elemento de anlise a apropriao e o usufruto da

    terra com base em um peculiar modo de produo agrcola camponesa. A agricultura de

    subsistncia denominada de roa era predominante nessa regio, realizada nas partes planas e

    midas, com o cultivo de diversas espcies destinadas alimentao da unidade familiar.

    19 O Jequitinhonha foi delimitado oficialmente em 1966, para efeito de atuao da Codevale, rgo criado

    com intuito de desenvolver economicamente a regio. Em 1990, o IBGE passou adotar o conceito demicrorregies geogrficas, que compem as mesorregies, que apresentam especificidades na organizao doespao segundo dois indicadores: a estrutura de produo e a interao regional (IBGE, 1991). Na mesorregiodo Vale do Jequitinhonha, h trs microrregies: Alto, Mdio e Baixo Jequitinhonha.

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    Havia tambm as partes apropriadas individual ou familiarmente, conhecidas como as

    mangas, destinadas solta do gado e dos animais de carga. Combinavam-se, assim, tanto

    terras de uso privadoda lavoura e moradiacomo terras de uso comumpara a criao

    de animais e colheita de frutos.

    Portanto, ainda que utilizadas por indivduos isolados, essas reas permaneceram

    coletivas ou comuns. O usufruto das terras da chapada era coletivo ou socializado, de modo

    que qualquer chapada mais rica em frutas ou plantas medicinais era utilizada indistintamente

    por indivduos de outra chapada e comunidade (GRAZIANO; GRAZIANO NETO, 1983). Da

    necessidade de convivncia direta com a natureza emanam comportamentos culturais

    essenciais para a reproduo social das comunidades. Destes, o uso social da gua torna-se o

    mais expressivo e foi objeto de amplas pesquisas (GALIZONE, 2005; FREIRE, 2001). NoAlto Jequitinhonha, as cabeceiras ou nascentes dos rios, denominadas como capo, so reas

    sagradas, devendo ser conservadas a qualquer custo, uma responsabilidade compartilhada por

    todos. No por acaso, alguns conflitos levados Justia dizem respeito utilizao de

    nascentes de gua, os minadouros.

    O Baixo Jequitinhonha a regio conhecida como Geraes, marcada por terras planas e

    baixas. Fica na margem direita do Rio Jequitinhonha e tem vegetao remanescente da Mata

    Atlntica. A maior parte da margem esquerda est sob influncia do semirido, que seprolonga do serto baiano sobre uma parte de Minas, mas hoje j foi totalmente substituda

    pelas pastagens nas grandes propriedades pecuaristas.

    Desde o incio de sua ocupao, em meados do sculo XIX, o Baixo Jequitinhonha foi

    marcado pela criao de gado com o objetivo de abastecer o ciclo da minerao. Durante o

    final do sculo XIX e a primeira metade do sculo XX, houve a expanso das pequenas

    cidades na regio, principalmente pela populao ribeirinha s margens do Jequitinhonha.

    Concomitante s atividades de minerao e agropecuria voltadas para a exportao,foi se estabelecendo uma diversificada agricultura de subsistncia, necessria tanto para as

    populaes envolvidas nas atividades de minerao, que j entrava em decadncia, quanto

    para a pecuria, responsvel por um acentuado incremento populacional na primeira metade

    do sculo XX no nordeste mineiro. Outro aspecto determinante no processo de povoamento

    do Baixo Jequitinhonha foram os enfrentamentos entre brancos e ndios. Os relatos dos

    viajantes que por ali passaram no incio do sculo XIX mostram as condies de vida da

    populao indgena, sempre ressaltando suas caractersticas brbaras. Saint Hilaire(1975)

    em seu livro Viagem pelas Provncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, assim define os

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    ndios: desgraados, vivendo no presente, unicamente ocupados de suas necessidades

    materiais, muito inferiores a ns, e dignos por isso mesmo, de toda nossa compaixo.

    Essa compaixo, por vezes, se traduzia na catequese dos ndios pelos missionrios

    religiosos que estavam nos aldeamentos. Estimulada pelo governo imperial, a catequese tinha

    como tarefa adaptar os ndios ao mundo cultural dos brancos. A Dita poltica de civilizao

    europria acabou por contribuir com sua dizimao como povo, etnia e nao. Mas no sem

    resistncia. Os enfrentamentos entre os brancos e os ndios eram constantes, acelerando o

    extermnio da populao indgena.

    Os ndios habitavam as terras do que foi denominado de Mdio e Baixo Jequitinhonha;

    eram eles povos originrios pertencentes a este territrio, muito antes da ocupao europeia

    com fim mercantil a partir de 1.800. De acordo com a pesquisa de Luis Santiago (2010) haviatrs principais naes ali: a nao Borun os temidos botocudos, que estavam divididos

    entre as famlias cracmuns ou craquims, naquenenuques, bakus e arans; a nao Maxacali,

    a nica que no foi totalmente dizimada, que estava dividida em pataxs, cumanaxs,

    monoxs, tocois, macunis, malalis e panhames; e os mongoi-camac. Houve uma guerra

    declarada contra todas essas naes indgenas, acirrada com a vinda definitiva da corte

    portuguesa ao Brasil, resultando na dizimao de seus povos e tomada de suas terras.

    Nesse sentido, ao estudar o histrico processo de expropriao da terra no Vale doJequitinhonha, no h como no retomarmos, ainda que