UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – DCIE NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD
A FORMAÇÃO DE PROFESSORAS PARA AS RELAÇÕES
ETNICORRACIAIS NO CURSO DE PEDAGOGIA DA UESC: QUESTÕES E
POSSIBILIDADES
Karina Santos do Carmo1
Kátia Maria de Aguiar Barbosa2
RESUMO
A partir da promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que modificam a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN9.394/96), novas demandas surgiram
para os cursos de formação dos professores da Educação Básica, no que diz respeito à
inclusão dos temas referentes à História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Nesse
sentido, esta pesquisa investiga como ocorre a formação de professores, contemplando
suas especificidades, no âmbito do Curso de Pedagogia da UESC. Através da pesquisa
documental sobre os fluxogramas do curso, e análise de conteúdo sobre os programas
de disciplinas selecionadas, ementas e conteúdos, a pesquisa teve como objetivo central
conhecer as bases da formação inicial do professor para os Anos Iniciais do Ensino
Fundamental no que diz respeito aos conhecimentos necessários para o enfrentamento
das questões do racismo em sala de aula, bem como a percepção mais ampla de aspectos
relativos à diversidade cultural.Como resultado, observou-se a ausência de componentes
curriculares que contemplem a temática das relações etnicorraciais, fator que, associado
a não ocorrência de outras modalidades de formação, como seminários, grupos de
estudos e debates, obstaculiza ao futuro pedagogo a elaboração de conhecimentos
específicos na área, bem como dificulta a formulação de propostas pedagógicas
antirracistas e inclusivas. Com a implantação do novo PAC de Pedagogia, em 2013,
observou-se alguma mudança, com a inclusão da disciplina Movimentos Sociais, que
antes optativa passa a ser obrigatória e a inclusão uma nova disciplina, Diversidade
Cultural e Educação, que somente em parte contempla a temática em questão.
Considera-se aqui a necessidade de criação de outros espaços que possam
complementar a formação.
Palavras-chave: Formação de professores – Educação e relações etnicorraciais – Curso
de Pedagogia da UESC
Introdução
A partir da promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, novas demandas
passaram a desafiar os cursos de formação dos professores para a Educação Básica, no
1 Graduanda do Curso de Pedagogia da UESC. Bolsista Iniciação Científica – FAPESB.
2 Pedagoga, Professora Assistente do Departamento de Ciências da Educação – DCIE/UESC.
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que diz respeito à inclusão dos temas referentes à História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. A história dos índios e dos negros, classificados como “minorias” pela
colonização, pela escravidão, pela ideologia do branqueamento, pelas representações
opressoras, são lembradas e registradas de maneira que tais populações chegam a
encontrar dificuldades na construção e reconhecimento de suas identidades, pois há uma
política de negação de seus valores e costumes, onde suas histórias são contadas sob a
ótica dos dominadores e sob um ponto de vista único, por um discurso que, muitas
vezes, manipula e reproduz pensamentos alienados e preconceituosos.
Nesse sentido, este artigo discute os resultados da pesquisa queinvestiga
como ocorre a formação de professores para as relações etnicorraciais, contemplando
suas especificidades, no âmbito do Curso de Pedagogia da UESC. Este curso foi
escolhido em razão de se tratar do curso que forma os profissionais que atuam
diretamente nas instituições de Educação Infantil e Ensino Fundamental, atendendo
crianças e jovens que iniciam sua trajetória de escolarização.
Para o desenvolvimento do trabalho, foi utilizada metodologia de
abordagem qualitativa, com levantamento bibliográfico de trabalhos publicados que
abordam a temática, pesquisa documental, sendo os documentos utilizados os
fluxogramas – antigo e atual – do Curso de Pedagogia, ementários e programa de
disciplina. Neste caso, também foi utilizada a análise de conteúdo.
Este trabalho justifica-se pela importância, nos dias atuais, de se
compreender como a escola vem se preparando para a convivência com a diversidade
em sala de aula, especialmente no que diz respeito às presenças negra e indígena, em
atenção à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96), modificada em
2003 pela Lei 10.639 e, posteriormente, em 2008, pela Lei 11.645. Para tal, considera-
se fundamental que esta compreensão tenha como foco central a formação inicial de
professores, neste caso especial estudantes do Curso de Pedagogia da UESC, futuros
atores das mudanças que têm sido demandadas por estes sujeitos em sua trajetória de
escolarização. Conforme Arroyo,
Os coletivos populares ao se afirmarem sujeitos políticos, sociais, culturais,
éticos, de pensamento, saberes, memórias, identidades construídas nesses
contextos, padrões de poder, dominação/subalternização explicitam as
concepções/epistemologias não apenas em que foram conformados,
subalternizados, mas, sobretudo, explicitam, põem na agenda pedagógica as
pedagogias com que se formaram e aprenderam Outros Sujeitos. Que
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pedagogias outras eles explicitam e põem na agenda pedagógica?[grifo
nosso] (2012, p. 11-12).
Neste sentido, a partir do questionamento do autor e na discussão dos
resultados desta pesquisa, busca-se trazer à pauta uma questão consequente:a exclusão e
o fracasso escolar de crianças negras e indígenas com base no preconceito e na
discriminação.
Pedagogos em formação: quais pedagogias para a contemporaneidade?
No campo da educação, uma das questões que se impõem na atualidade está
relacionadaà convivência com a diversidade na sala de aula. Uma diversidade que
sempre esteve presente, mas que, entretanto, passou muito tempo “despercebida”, ora
porque não reclamada, ora porque não contemplada nos currículos oficiais, fechados,
etnocêntricos,tornando muitas vezes cômodas as relações.
Contudo, é possível afirmar, vive-se um momento em que populações que
sempre ocuparam as margens dos processos de formação pela escola, reclamam
fortemente sua participação ativa e as escolas necessitam acolher suas reinvindicações.
Decorre daí que as pesquisas na área vêm aumentando significativamente, nas duas
últimas décadas.Autores como Petrolina Beatriz Gonçalves e Silva, Nilma Lino Gomes,
Ana Célia da Silva, Delcele Mascarenhas Queiroz, Narcimária Correia Patrocínio Luz,
Eliane Cavalheiro, Jeruse Ramão, Kabenguelê Munanga, são exemplos de
pesquisadores que vêm pesquisando, apresentando trabalhos, discutindo e
problematizando a questão já há muito. Curioso notar que somente a partir de 2001 é
que foi criado o GT 21 da ANPED – Educação e Relações Étnico-Raciais, 26 anos após
sua existência como principal associação de pesquisadores em educação no Brasil.
Houve uma abertura para a temática a partir da criação deste Grupo de Trabalho.Apenas
para exemplificar, em 2003, ano da promulgação da Lei 10.639, a Revista da FAEEBA
(da Faculdade de Educação da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus I),
número 19, teve como tema Educação e Pluralidade Cultural. Já o número 27 da citada
revista, lançado em 2007, o tema foi Educação Inclusiva. Neste número, o artigo de
Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes, “A percepção dos estudantes do curso de
pedagogia sobre educação inclusiva”, demonstra a importância de se conhecer o estado
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da formação dos futuros pedagogos no que diz respeito às políticas de inclusão e de
diversidade. Ainda a Revista da FAEEBA, os números 33 e 34, trouxeram à discussão
ostemas da Educação Indígena e dos Movimentos Sociais, respectivamente, ambos
publicados em 2010. Gomes e Silva (2011, p. 12) informam que o tema do XI ENDIPE
(Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino), em 2002, foi Igualdade e
Diversidade na Educação. Dada a importância deste evento para a formação de
professores, é certo afirmar que mudanças significativas vêm acontecendo e devem ser
multiplicadas. Entretanto, percebe-se que seus reflexos, no âmbito da formação de
professores, especialmente no Curso de Pedagogia, ainda são tímidos.
Mas, é na intersecção entre ensino e pesquisa, buscando atualizar a
formação a partir do que muitos pesquisadores, qualificadamente, têm apresentado, que
se encontram as diferentes pedagogias para os diferentes sujeitos da sala de aula.
O campo da formação de professores é complexo, não comporta concepções
totalizantes, conceitos universalizantes. Para problematizá-lo, é necessário ter em vista
diversas dimensões, posições teóricas, tradições. O autor Carlos Macedo Garcia defende
que “a formação de professores deve proporcionar situações que possibilitem a reflexão
e a tomada de consciência das limitações sociais, culturais e ideológicas da própria
formação docente” (1995, apud GOMES e SILVA, 2011, p. 12).
Na defesa desta multidimensionalidade da formação de professores é que
este estudo se volta para o Curso de Pedagogia, tomando como ponto de partida a
questão que não está implícita no rol dos “conteúdos”, mas explícita por força de lei: a
educação para as relações etnicorraciais, na tentativa de forjar as pedagogias necessárias
para o enfrentamento da situação. A questão que se impõe é: sob quais bases os futuros
pedagogos passarão a enfrentar o preconceito, a discriminação, a evasão, a repetência
– fracasso escolar – das crianças e jovens negros e indígenas?
Compreender o espaço do ensino superior como o primeiro onde as
mudanças devem acontecer, a partir dos currículos dos cursos de formação, implica
também especialmente discutir e problematizar a participação efetiva das populações
“minoritárias” neste espaço, tanto na condição de alunos, como de professores e
gestores. Afinal, quem reclama tais mudanças, quem defende esta formação?
Na esfera universitária [...] dados do IPEA revelam que menos de 2% dos
estudantes afrodescendentes estão em universidades públicas ou privadas.
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Isto faz com que as universidades sejam territórios brancos. Note-se que a
universidade é um espaço de poder, já que o diploma pode ser um passaporte
para ascensão social [...] (PIOVESAN, 2007, p. 42).
Mesmo que estas populações negras e indígenas tenham “acesso” à
educação escolarizada, básica e superior, o desnível sustentado pelas desigualdades
econômicas, sociais e raciais, muitas vezes torna inviável a ascensão social e a
possibilidade de as “minorias” desfrutarem com igualdade de direitos as oportunidades
sociais. Entretanto, é a via da educação o caminho possível.
Preconceito racial, discriminação, fracasso escolar: termos em colisão
Compreender o preconceito e a discriminação, neste trabalho, é fundamental
para a análise da formação de professores para a educação das relações etnicorraciais no
Curso de Pedagogia, bem como para uma diferente leitura do fenômeno fracasso
escolar. Isso porque se reconhece que sem uma ampla discussão sobre preconceito
racial e discriminação, não se poderá compreender a maneira como operam no fracasso
escolar.
É muito comum que, nas escolas, se afirme que não há preconceito, que
todas as crianças são tratadas igualmente, que raça não existe. Contudo, é no âmago
destas afirmações que se pode perceber a dificuldade de compreensão do que seja
preconceito racial e discriminação. Em alguns casos, afirmar que não há preconceito na
escola pode significar uma maneira mais confortável de lidar com a realidade. Que
todas as crianças são tratadas igualmente remete à ideia de que os diferentes não têm
direito à diferença.
Neste trabalhoentende-se que a utilização do termo “raça” é necessária do
ponto de vista sociológico, uma vez que o mesmo é usado como um dos fundamentos
do racismo, a despeito das conclusões advindas do campo da Biologia. Como pode se
vê, nas Diretrizes Curriculares para as Relações Étnico-Raciais:
É importante destacar que se entende por raça a construção social forjada nas
tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como
harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no
século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe esclarecer que o termo raça
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é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras, para informar
como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo,
entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o
lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira (BRASIL, 2005,
p. 13).
Desta maneira, no combate ao racismo é esta a forma a ser utilizada,
fundamentada no campo das Ciências Sociais: “uma noção cuja razão de ser é justificar
uma ordem acrítica (ideológica)” (GUIMARÃES, 1999, apud BARBOSA, 2008, p. 13).
Do mesmo modo, o preconceito racial que decorre desta noção de raça, e a
discriminação, consequência perversa do preconceito, porque exclui e impede a
participação de grupos considerados marginalizados na tomada de decisões sobre
processos nos quais também estão incluídos, necessitam ser evidenciados, discutidos,
problematizados na formação de professores, pois fazem parte da realidade da maioria
das escolas. E a maneira como atuam, muitas vezes, impactam sobre o desempenho de
crianças e jovens negros e indígenas na escola. Conforme Abramowicz, “o preconceito
e a discriminação, ainda que de forma escamoteada, são muito presentes na escola e
essa instituição, apesar de utilizar o discurso da igualdade, não respeita as diferenças e,
diante disso, as crianças negras, para obter sucesso na escola, precisam branquear-se
(2010, p. 86).
O que importa salientar, neste ponto, é o fato de que, ao se sentirem
discriminadas, as crianças e jovens negros e indígenas, podem passar a perceber que não
desfrutam da mesma atenção de seus professores que as crianças e jovens brancos.
No artigo de Paula Louzano, que integra o Relatório AnualTodos pela
Educação, edição 2012, é possível conferir dados que comprovam que o problema do
fracasso escolar e da desigualdade no Ensino Fundamental atinge diferentes alunos, de
diferentes grupos etnicorraciais, sociais e econômicos. Neste artigo a autora discute
dados no Inep/Prova Brasil 2011, mostrando que um sujeito do sexo masculino tem
mais probabilidade de fracassar na escola, em todas as regiões e em todos os níveis de
escolaridade do país, outro resultado encontrado é que a escolaridade dos pais é um
fatorde influência no sucesso acadêmico do filho. É certo que a sala de aula é um lugar
onde ocorrem muitos conflitos, pois nele encontramos uma diversidade humana, com
diferentes conhecimentos e experiências prévias, com histórias de vida e distintas
cosmovisões advindas de sua relação com seus grupos sociais de origem.Neste
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ambiente são forjadas novas e contínuas experiências que, em muitos casos, dependem
da intervenção do professor na condução de uma convivência saudável.
Existe uma discrepância percentual entre os grupos raciais demonstrada
pelos dados da Prova Brasil 2011. “Os estudantes pretos são mais propensos a repetir e
a abandonar a escola de que seus colegas pardos e brancos, independentemente das
diferenças entre as regiões do país e da educação dos pais” (LOUZANO, 2012, p. 118).
Isso indica que o racismo na sala de aula influencia diretamente o fracasso escolar
nacional e que, dada a atualidade da pesquisa, os educadores e educadoras brasileiras
não foram, nem estão sendo preparados suficientemente para lidar e conviver com a
diversidade. Conforme Silva,
O que almeja não é o enegrecimento da educação [...] o que se se propõe à
escola é que cada um se sinta acolhido e integrante, onde as contribuições de
todos os povos para a humanidade estejam presentes, não como lista,
sequência de dados e informações, mas como motivos e meios que conduzam
ao conhecimento, compreensão, respeito recíproco, a uma sociedade justa e
solidaria (2010, p. 41).
Não se trata simplesmente de encontrar os meios de constatar a origem do
fracasso escolar. Trata-se, prioritariamente, de garantir que ao se fazer tal constatação, o
professor tenha as condições de intervir, transformando efetivamente a realidade.
Instrumentalizar-se para esta intervenção é um processo que deve acontecer na
formação inicial dos professores, uma vez que nem todos têm acesso à formação
continuada.
Cavalleiro (2002) revela que a situação de crianças negras em algumas
instituições pré-escolares no Estado de São Paulo, locusde sua pesquisa, é, muitas
vezes, inferiorizante:
A existência de preconceito e de discriminação étnicos, dentro da escola,
confere à criança negra a incerteza de ser aceita por parte dos professores.
[...] As crianças da pré-escola, além de já se darem conta das diferenças
étnicas, percebem também o tratamento diferenciado destinado a elas pelos
adultos à sua volta. Essa percepção compele a criança negra à vergonha de
ser quem é, pois isso lhe confere participar de um grupo inferiorizado dentro
da escola, o que pode minar a sua identidade (CAVALLEIRO, 2002, p. 98).
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O pensamento desta autora vem confirmar que o preconceito, o racismo e a
discriminação configuram-se como fatores de exclusão do processo de escolarização,
uma vez que ao se sentirem inferiores, muitas crianças podem internalizar a escola
como um lugar/espaço social do qual não faz parte e a educação como um bem que não
lhe pertence. Estas crianças repetem, apresentam baixo desempenho, quando não
evadem do sistema.
MubaracSobrinho, em sua pesquisa etnográfica com um grupo de doze
crianças indígenas da etnia Sataré-Mawé na cidade de Manaus, relata sobre
comportamentos de professores que evidenciam uma ação pedagógica que nega a
possibilidade de outras formas de conhecimento e de ensino-aprendizagem, e ao analisar
uma situação vivenciada entre um aluno e um professor, ele constata:
Evidencia-se o despreparo e descaso deste professor acerca do conhecimento
que as crianças Sateré-Mawé trazem da sua experiência cotidiana e dos
saberes adquiridos no seu grupo étnico. Por isso, a prática pedagógica pauta-
se na visão que reforça a exclusão, a discriminação e busca determinar o
papel de cada aluno no contexto da sociedade urbana, como sendo a única
referência possível [...] (MUBARAC SOBRINHO, 2010, p. 12, 13).
O autor defende que a postura do professor deve ser voltada a estimular no
aluno o pensar, a reflexão, proporcionando uma formação cidadã e atuante com
consciência, independente da cor de sua pele e ou de etnia.
Desta forma, considera-se que a educação para as relações etnicorraciais
envolve questões amplas e complexas, as quais dificilmente poderiam ser tratadas no
âmbito de uma disciplina. Estas questões requerem desconstruir currículos muitas vezes
fechados, romper estruturas preestabelecidas, o que significa dizer que a mobilização
deve ser mais efetiva.
Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que
desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o
etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais,
desalienando processos pedagógicos. Isto não pode ficar reduzido a palavras
e a raciocínios desvinculados da experiência de ser inferiorizados vivida
pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas nas
escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas
(BRASIL-MEC, 2005, p. 15).
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No mesmo sentido, em relação ao papel da escola, no processo de
reprodução do preconceito racial e da discriminação, Durham acrescenta outro aspecto
de extrema relevância:
A inexistência, no processo de formação de professores, de uma
conscientização e compreensão do fenômeno do preconceito e da explicitação
de práticas pedagógicas a serem desenvolvidas nas salas de aula para
redirecionar as atividades e comportamentos preconceituosos das crianças,
constitui uma omissão inaceitável, pois faz com que se perca grande
oportunidade que se apresenta no processo de socialização, de combater o
preconceito racial em seu nascedouro (2004, p. 15).
Percebe-se, assim, que os termos preconceito racial, discriminação e
fracasso escolar, este último em suas múltiplas formas: evasão, repetência, violência
etc., colidem, se chocam em vários momentos da vida escolar dos sujeitos considerados
“diferentes”, o que coloca a necessidade de reformular o pensamento no contexto da
formação de professores.
O lugar das relações etnicorraciais no Curso de Pedagogia da UESC
A análise desta questão realizou-se a partir da pesquisa documental sobre os
fluxogramas do curso disponibilizados pelo Colegiado de Pedagogia, e análise de
conteúdo sobre oprograma da disciplina selecionada, ementas e conteúdos, tendo como
objetivo central conhecer as bases da formação inicial do professor para os Anos
Iniciais do Ensino Fundamental no que concerne aos conhecimentos necessários para o
enfrentamento das questões do racismo em sala de aula, bem como a percepção mais
ampla de aspectos relativos à diversidade cultural. Observou-se a ausência de
componentes curriculares que contemplem a temática das relações etnicorraciais, fator
que, associado à não ocorrência de outras modalidades de formação, como seminários,
grupos de estudos e debates, obstaculiza ao futuro pedagogo a elaboração de
conhecimentos específicos na área, bem como dificulta a formulação de propostas
pedagógicas antirracistas e inclusivas.
No Projeto Acadêmico-Curricular do curso de Pedagogia, reformulado no
ano de 2007, nota-se a presença da disciplina Movimentos Sociais, como optativa,
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quatro anos após a promulgação da Lei 10.639/03. Tal disciplina é aqui citada pelo que
consta de sua ementa: “Sindicalismo frente ao mundo neoliberal. A questão agrária e os
sem-terra. Movimentos de consciência negra e questões indígenas. O papel da mulher
na sociedade atual” [grifo nosso].
Aqui é possível perceber que a disciplina pretende discutir sobre os
movimentos organizados das populações negras e indígenas, ainda que não indique seu
papel na luta pela educação.Ao analisar, em um programa desta disciplina
disponibilizado pelo Colegiado de Pedagogia, seu conteúdo programático, pode-se
inferir que a mesma não atendeplenamente às expectativas de discussão sobre a temática
das relações etnicorraciais no tocante à educação. Compreende-se que seu objetivo é
tratar a questão do negro e do indígena a partir da compreensão de seus movimentos
sociais de forma mais abrangente, o que é adequado para a proposta, finalidade e, ainda,
carga horária da disciplina no Curso. Cabe notar que o programa analisado data do ano
de 2002.
Neste ano de 2013, um novo Projeto Acadêmico-Curricular foi implantado
visando a atender o momento atual da formação de profissionais da educação, com suas
novas demandas. Neste PAC, a disciplina Movimentos Sociais que, anteriormente, era
optativa passa a ser obrigatória. O novo PAC de Pedagogia trouxe outra mudança
significativa: a disciplina Diversidade Cultural e Educação, que integra o eixo IV –
“Educação, diversidade, cultura e inclusão”. Esta disciplina, em parte, contempla a
temática em questão, por meio de uma proposta que trata especificamente sobre
relações étnicas, aborda sobre o estereótipo e preconceito no cotidiano escolar, como se
vê na ementa: “Aborda diversas perspectivas conceituais sobre as Relações Étnico-
Raciais. Tratará das discussões sobre a natureza do ambiente escolar (Reprodução e
Transformação), relacionando-as aos contextos etnicorraciais da Educação Básica.
Conceitua/Reflete sobre discriminação, estereótipo e preconceito no cotidiano escolar.
Intersecção entre classe, gênero, raça/etnia, religiosidade e educação”.
Assim, é possível pensar que a disciplina Diversidade Cultural e Educação,
com carga horária de 60h, como único momento/espaço de discussão da temática, não
possibilita ao estudante do Curso de Pedagogia a formação necessária para tal demanda.
Cabe acrescentar que, no plano regional, a área de abrangência da
Universidade Estadual de Santa Cruz é de população negra significativa. Além disso, é
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reconhecidamente encravada em território de grande concentração indígena, fato que
coloca um desafio a mais para a formação dos professores que, provavelmente, atuarão
nas escolas desta região. Acrescenta-se ainda o fato de que as escolas indígenas, na
região em particular, no Brasil de modo geral, não existem em número correspondente à
necessidade destas populações, o que significa dizer que uma parte dos estudantes das
diferentes etnias indígenas frequentam escolas urbanas, ou do campo que, não
necessariamente estão preparadas para reconhecer e valorizar as peculiaridades culturais
destes grupos.
A partir do todo já exposto, outro aspecto se faz necessário pensar: o espaço
da formação de professores, tanto inicial (nos cursos de graduação), como continuada
(nas especializações). As instituições de ensino superior, reconhecidamente locus do
debate, da confluência de opiniões, são, por esta razão, instrumentos propulsoresde
mudanças e/ou transformação de visões e comportamentos.
Assim, é possível compreender este espaço como o primeiro onde as
mudanças devem acontecer, a partir dos currículos dos cursos de formação. Um fato que
deve ser notado, entretanto, é a participação efetiva das populações “minoritárias” neste
espaço, tanto na condição de alunos, como de professores e gestores.
Na esfera universitária, por exemplo, dados do IPEA revelam que menos de
2% dos estudantes afrodescendentes estão em universidades públicas ou
privadas. Isto faz com que as universidades sejam territórios brancos. Note-se
que a universidade é um espaço de poder, já que o diploma pode ser um
passaporte para ascensão social [...] (PIOVESAN, 2006, p. 42).
Mesmo que estas populações negras e indígenas tenham “acesso” à
educação escolarizada superior, o desnível sustentado pelas desigualdades econômicas,
sociais e raciais, muitas vezes torna inviável a ascensão social e a possibilidade de as
“minorias” desfrutarem com igualdade de direitos as oportunidades sociais. Por esta
razão, considera-se que a escola não pode prescindir, não pode ausentar-se do problema.
O que se espera é que esta seja uma questão do cotidiano das comunidades escolares.
Considerações finais
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Neste trabalho se procurou conhecer com ocorre, no Curso de Pedagogia da
UESC, a formação de professores para as relações etnicorraciais, por meio da análise
dos fluxogramas, ementário, programa de disciplina. Neste sentido, o levantamento
bibliográfico realizado foi a base para a compreensão do que é fundamental, na
formação de professores, para a convivência com a diversidade em sala de aula, para o
enfrentamento do racismo e da discriminação que muitas vezes ocorrem na escola,
implícita ou explicitamente.
Pode-se inferir que deve haver, no contexto desta formação,discussões sobre
o racismo e seus fundamentos (teorias racialistas), sobre as consequências do
preconceito racial na escola, principalmente o baixo desempenho, a repetência, a evasão
de crianças e jovens negros e indígenas. Saber por que estas crianças e jovens fracassam
não significa ter que militar nos movimentos sociais organizados em torno das questões
do negro ou do indígena. Mas, especialmente, é saber dar respostas, utilizando vias
alternativas, a um dos problemas mais críticos da educação: o fracasso escolar. Isso
porque as vias tradicionais ainda não responderam plenamente.
O que se espera do pedagogo, entre outras coisas, é que ele tenha condições
de responder a desafios dessa natureza. Para isso, compreende-se que sua formação
deve incluir as discussões sobre os fenômenos que vem emergindo fortemente. A
educação para as relações etnicorraciais está no centro da questão, já que os sujeitos
implicados requerem, cada vez mais, ocupar seus lugares sociais.
O curso avançou sobejamente com a implantação da disciplina Diversidade
Cultural e Educação, neste ano de 2013. Mas, cabe ressaltar que isso ocorre exatamente
dez anos após a promulgação da lei 10.639/03 e que a disciplina ainda não foi
ministrada, em função do PAC ter sido implantado no ano corrente. Por esta razão, não
foi possível analisar um programa desta disciplina, fato que pode trazer outras respostas
para esta pesquisa.
Desta forma, este trabalho defende a necessidade de se criar outros
momentos/espaços de formação, uma vez que no contexto dos componentes curriculares
do Curso de Pedagogia da UESC, o que se pode constatar é a insuficiência dessa
discussão. A disciplina Diversidade Cultural e Educação constitui-se como um ponto de
partida. Mas, sozinha, significa ter como única opção para o estudante do curso olhar o
problema de maneira vertical. Por exemplo, discutir o racismo na escola, sem carga
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horária disponível para conhecer, antes, os fundamentos do racismo. Neste sentido, os
grupos de estudo e pesquisa, seminários temáticos permanentes, mini-cursos etc. podem
se tornar importantes alternativas.
Além disso, o campo da Educação Infantil, da Educação de Jovens e
Adultos, da Educação do Campo, entre outros, com seus projetos de extensão e
pesquisas já existentes, podem proporcionar experiências transversais significativas para
a formação do professor para as relações etnicorraciais.
Espera-se, com este estudo, trazer à pauta a questão do negro e do indígena
na educação no âmbito do Curso de Pedagogia da UESC, bem como suscitar a
possibilidade de ampliação deste trabalho para os demais cursos de licenciatura desta
Universidade.
Referências
ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012.
BARBOSA, Kátia Maria de Aguiar. Um educador negro na Chapada Diamantina: a
história ainda não contada. 2008, p. 139. Dissertação (Mestrado em Educação e
Contemporaneidade) – Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade
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Afro-brasileira. Diário Oficial da União. Brasília, 09 de janeiro de 2003. Disponível em
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