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MASSIMO CANEVACCI
antroplogo, professorda Faculdade de Cinciasda Comunicao daUniversit La Sapienza deRoma e autor de, entreoutros, A CidadePolifnica(Studio Nobel).
MASSIMO CANEVACCI
Traduo de Aurora Fornoni Bernardini
Metrpole
comunicacional
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REVISTA USP, So Paulo, n.63, p. 110-125, setembro/novembro 2004112
intro: manchetes:
ste meu ensaio quer ser uma
homenagem a So Paulo pelos seguintes
motivos: fazendo uma pesquisa no interiorda cidade comecei a compreender cada vez
melhor aquilo que estava vindo tona, no
apenas na imensa capital, mas algo que ia
configurando um processo muito mais com-
plexo. Um trnsito da cidade moderna (pe-
los olhos da qual Lvi-Strauss havia visto
e condenado entropia cidades brasileiras
e culturas indgenas) para um novo tipo de
metrpole: a metrpole comunicacional.
Isto , as variegadas e fluidas formas decomunicaoque cruzavam essa nova me-
trpole iam se tornando mais importantes
do que o conceito tradicional de sociedade,
com o qual eu tinha me formado cientfica
e metodologicamente. Da, a insuficincia
da forma-ensaio do passado (monolgica)
e o impulso a experimentar uma multiplici-
dade de formas expositivas, todas elas ba-
seadas na montagem: uma reunio de frag-
mentos, pois apenas eles sabem dar, por
aproximao contnua, o sentido mutante
desse novo pulsar da metrpole. A monta-
gem de fragmentos , ao mesmo tempo,
uma homenagem a Walter Benjamin, o
primeiro grande pensador que atravessou
esses novos espaos culturais comunicati-
vos j nas primeiras antecipaes das me-
trpoles do sculo XIX.
O que mudou realmente em relao ao
cenrio do comeo da dcada de 90 o
enxerto da cultura digital nos fluxos dacomunicao; e o resultado a comunica-
o digital entre os espaos metropolitanos
assinala um outro trnsito: da montagem
ao morphing, com o qual a comunicao
digital modifica no interior (por meio da
assemblagem depixel) duas ou mais figu-
ras iniciais, transformando-as em algo de
visual e radicalmente novo. Essa alterao
icnica do morphing torna necessria a
modificao de uma outra clebre tese de
Benjamin: a que via na reprodutibilidade
tcnica a utopia que desafia a aura aristo-
crtico-burguesa. Graas ao digital, repro-
dutibilidade e no-reprodutibilidade mis-
turam-se e, dessa forma, afirmam-se as
prticas ps-dualistas do corpo da comuni-
cao. E a metrpole o contexto dentro do
qual o corpo se configura e se transfigura
como bodyscape.
As paisagens corporais so paisagensdentro do corpo da metrpole comunica-
cional. Os corpos metropolitanos so cor-
pos comunicacionais em que a tecnologia
somatizada segundo procedimentos irre-
gulares, sincrticos, mutides [que tendem
a mudar].A nova metrpole somatiza a
tecnocomunicao e a difunde em seus flu-
xos itinerantes. Basta abrir os poros do
prprio corpo e os fluxos entram por qual-
quer multplice sensorialidade.Quantos so os sentidos acesos da me-
trpole comunicacional?
:plano seqncia:
A fila est excitada. Ordenada e veloz.
Uma fila que parece consciente de estar
experimentando algo de novo: algo para
contar e para lembrar. Em volta, uma srie
de funcionrios competentes (vestidos de
modo uniforme, mas com variaes cro-
mticas eltricas diferentes e individuali-
zadas para cada um deles) distribui com
discrio bilhetes e dpliant, entretm as
crianas, responde s (poucas) perguntas.
Em So Paulo, o novo mega shopping
center Sensorlia est aberto h apenas
uma semana e todos j falam dele. A fila
escorre silenciosa por entre as plantas tro-
picais falsas-verdadeiras, enxertadas ao
longo de um jardim sinttico que precede aentrada. Chega o mini-mono, o trenzi-
nho minsculo estilo Sottsass (super-
design) e Star Trek (super-serial) no qual
N. T.: Certos neologismos do au-tor, como mutide (que tende amudar) assemblagem, etc., fo-ram deixados inalterados na tradu-o. Igualmente no foram traduzi-dos em sua quase totalidade ostermos em diferentes idiomas es-trangeiros usados pelo autor. Ape-sar de no corresponder nossanorma, foi conservada, em suaquase totalidade, a notao emitlico do autor, tendo sido, entre-tanto, assinalados em itlico os
vocbulos estrangeiros. Algunsoutros neologismos e/ou estran-geirismos menos compreensveisforam traduzidos (ou interpretados):nesse caso a traduo vem entrecolchetes.
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sentam os consumers, que j sabem lidar
com os cintos que se fecham com a simples
presso dos dedos sobre o cone respectivo
e sobre o casco que desce do alto para jun-
tarsuas cabeas. O mini-mono, comple-
tamente informatizado, parte: comea a
viagem de ingresso ao novssimo e multi-
sensorial-shop e, com ele, o espetculo.
Leio um dpliantque diz: Forward
vocs pensavam ter cinco sentidos: agora
sabem que so infinitos .
:primeiro plano sobre o dpliant e cut up:
Learning from So Paulo
O derrapar dos cdigos, o esvaziamen-
to dos smbolos, aproliferao dos signos
e sua descontextualizao caracterizam os
novos sets do consumo: agora os shopping
centers tornam a formatar-se como con-
textos performativos pblicos que compe-
tem entre si. O estilo comunicacional, que
se afirmou nos theme-parks e que desloca
massas crescentes de consumers, foireelaborado pelas grandescorporaesda
distribuio e aplicado ao mega-shop, onde
as emoes da viso so liberadas e contro-
ladas no mesmo espao-tempo. O restyling
do consumo performativo baseia-se numa
precisa idia-guia: a competio entre os
novos espaos metropolitanos d-se sobre
os cdigos, sobre a ativizao do sujeito-
consumer.Dressing.
Se a dcada de 70 viu Las Vegas como
modelo da simulao que prope o corta-e-
costura como o trao da ps-modernidade
como tudo, por sinal, j foi inventado,
trata-se to-somente de misturar os cdi-
gos feito uma sopa in progress: tudo isso se
esgotou. Ao jogo da simulao (que conti-
nua, em parte, em diferentes modalidades)
substitui-se o enxerto das tecnologias co-
municacionais no corpo da metrpole.
Bodyscape. Tal modo do consumo de
elemento secundrio e final da produo,torna-se diretamente produtivo. Em So
Paulo, as novas fbricas que surgem nas
reas menos favorecidas baseiam-se em um
trptico, o trptico da contemporaneidade
pulsante: cultura-consumo-comunicao.
As invenes que inserem sets perfor-
mativos no interior dos novos espaos me-
tropolitanos (os enclavesdo consumo per-
formativo) cruzam arquitetura, design,
moda, style e comunicao visual. Esta
ltima a comunicao visual emerge
como o elemento de unificao, invaso e
fragmentao das novas metrpoles. Tudo
isso difunde e recria, continuadamente, a
metrpole comunicacional. Gradualmente
e sem pausa, ela passa a substituir a metr-
pole moderna, baseada na produo. Os sets
performativos do consumo so os sucesso-
res das fbricas.
O olhar doperformerque entra nessesenclaves afirma-se como arte da masti-
gao: os olhos tornam-se dentes que se
movem lenta e inexoravelmente sobre a
dura comida a ser deglutida, que se agita na
boca; deslocando a comida com movimen-
tos sbios da lngua e umedecendo-a, os
dentes conseguem lentamente atacar sua
dureza, fragment-la, isol-la, dissolv-la
at transform-la em bolo. Finalmente, esse
bolo, cada vez mais molhado pelos sucoslinguais, pode ser engolido, j transforma-
do e afofado em sua inicial solidez. Pois
bem, os olhos, do mesmo jeito, selecionam
vises, cdigos, signos, estilos; juntam-nos
e fazem-nos rodopiar com os movimentos
frontais do olhar, feito os planos-seqncia
de uma telecmera incorporada, que tem o
condo de reunir e amolecer os objetos da
viso e os objetos-a-serem-vistos; depois
so focalizados detalhes com verdadeiros
zooms que pem em primeiro plano cada
particularidade; finalmente o olho absorve
engurgita, engole, deglute o pedao
selecionado e o coloca em sua memria
temporria.
O olho tem o poder seletivo, mordedor
e absorvente que outrora pertencia aos
dentes.
O olho o sucessor das presas.
Olho pulsante.
Os movimentos oculares atuam em con-tnuos cuts-up, entre os segmentos da co-
municao visual inseridos nos espaos
performativos do consumo. Esses espaos
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oscilam entre citaes, reprodues, ino-
vaes que atravessam parques temticos,
outlets da arquitetura, tecnomuseus, mos-
tras-espetculos, megaconcertos, malls,
shopping centers, village-holidays, eco-
turismo.
Em Roma, o concerto gratuito de Simon
& Garfunkel, realizado na cenografia ini-
mitvel do Coliseu, em 31 de julho de 2004,
comportou mais de 600.000 pessoas que
aplaudiram o duo um contingente acres-
cido de turistas que esgotaram todos os
ingressos existentes na cidade. Um vo
last minute vindo de qualquer cidade da
Europa era superbarato frente ao concerto
gratuito.
Na gesto desses processos comunica-cionais, obtm-se uma srie de resultados
optimais: governanceps-industrial, cida-
dania mvel, fluxos de pblico, famlias
nucleares, bandas juvenis, simples casais,
grupos tursticos, encontros amigveis so
atrados de modo crescente por um novo
meio comunicativo inserido no corpo ex-
tenso (material-imaterial) da nova metr-
pole comunicacional: assim se substituem
os novos pblicos-do-consumo aos quaisse oferecem elementos mltiplos para libe-
rar e enquadrar as emoes.
A grande distribuio ataca o poder de
atrao dos parques temticos ou dos
tecnomuseus, preparando montagens de
partes especficas dentro de cronotopos em
mutao constante, para subtrair cotas de
mercado concorrncia comunicacional ou
para aumentar as j existentes. Ou talvez
melhor para tornar-se uma pera de Con-
sumo Total.
O shopping comopera.
O trptico c-c-c oscila entre tornar-se
museu, parque temtico ou set da TV. Um
novo e poderoso hbrido em que consumo,
diverso, lazer, comunicao, mdia, espor-
te correm um atrs do outro e se cruzam
com cada um ou com todos.
Wagner em So Paulo: do projeto
wagneriano de obra de arte total que
assembla uma srie de cdigos primos se-parados para transform-los em um
Lebenswelt vvido aoConsumo Total da
pera consumo em sentido literal.
Dentro do Sensorlia, os novos consu-
midores assistem e, ao mesmo tempo, cri-
amperformances no tnel de entrada que
mostra a antecipao dos produtos a serem
comprados como se fosse set, expo-uni-
versal, mostra de arte, desfile de moda,
museu etnolgico. No tnel do consumi-
dor pratica-se uma mensagem mltipla e
sinttica entre gneros profundamente di-
ferentes, que agora o novo set tem poder de
reunificar numa nica grande viagem. Em
sincronia com o adiantar-se do mini-
mono, o consumidor assiste performan-
cedas mercadorias, a seu agitar-se nos ca-
chos do set, a seu falar, cantar, recitar. A
nova mercadoria exposta acha-se agora
completamente performada.A mercadoria do consumo performti-
co umfetiche visualdiferente da merca-
doria apenas material da era industrial
(Canevacci, 2001, cap. I).
A arquitetura de So Paulo apreendeu
com a Disneyworld e com a Rede Globo;
o tnel do mega-shop um cut-up que
atravessa (corta) diversos parques tem-
ticos. A expo das mercadorias assimilou-
se competitivamente expo dos parquestemticos.
A derrapagem semitica transita de um
gnero arquitetnico-comportamental a um
outro. Para desafi-lo. E, ao mesmo tempo,
para desafiar o pblico que, desse modo,
passa aparticipar.As mercadorias so as
animadoras dos consumidores, tal como os
animadores das aldeias tursticas que le-
vam os excursionistas adormecidos a faze-
rem meditaes zen, danas tribais, eso-
terismos, troca mansa de casais, tatuagens
temporrias, jogos de papis, gincanas ex-
citantes, passeios ecolgicos, silncios
adestrativos.
[:dissolvncia:]
- Piranha: instrutivo visitar, nem que seja
por algumas horas, um lugar que estava na
moda em 2002, como o Piranha:por fora
um edifcio baixo, descascado, annimo,quase em decomposio, gente esquisita
na rua, dentro de uma rea que parece res-
duo da clssica periferia Ao contrrio,
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basta passar pela soleira,limen inefvel e
decisivo, para mudar de identidade, per-
cepes e metodologias e achar-se num es-
pao ultramodernssimo, grandes cozinhas
com nipo-cozinheiros ao ar livre, salas de
msica on the edge,pessoas de todo estilo,
mas, em geral, muito observadoras dos
cdigos expostos, sujeitos transclassistas
que pem em contato coactos [forados]
vindos no se sabe de onde, quem sabe de
casas prximas, com a elite intelectual,
estudantes progressistas, provedores de
tudo ou qualquer coisa, famintos por boa
msica que no seja a MPB. E tudo se ex-
pressa numa clara dimenso de poli-
sensorialidade transclassista, cuja determi-
nante aparecia como sendo a multiplicida-de dos nveis comunicacionais (vestir-se,
comer, gesticular, fumar, danar, ouvir,
etc.).
Sensorlia.
Basta atravessar grande parte do sprawl
[esparramamento]paulista para penetrar em
um bairro e em um lugar totalmente ou-
tro da piranha vai-se ao moinho.
- A Mooca um dos velhos bairros indus-triais de So Paulo. Ali esteve e em gran-
de parte ainda est presente a emigrao
de origem italiana que agora se diluiu no
mosaico tnico da segunda metrpole do
mundo nas diferentes vagas que deixa-
ram forte marca na cidade-trabalho, funda-
da na grande indstria. So Paulo baseava-
se e em grande parte ainda se baseia
nesse tipo de modelo de trabalho. Agora
sua sensorlia comunicacional est se in-
serindo entre seus contorcidos mapas ur-
banos e seus interstcios. Espaos-entre.
Pulsa um novo tipo de motor metropolita-
no que se funda sobre vigorosas reestru-
turaes ps-industriais. Por causa disso
tudo, o consumo est se pondo como cen-
tro de expanso de valor (em sentido eco-
nmico) e, ao mesmo tempo, de valores
(em sentido antropolgico, como estilos de
vida), deixando atrs de si todas aquelas
impostaes moralistas e pauperistas que ocondenavam a dissipaes vistosas. Os
impulsos rumo a novos consumos esto
redesenhando as formas da metrpole. De
toda e qualquer metrpole comunicacional.
Por isso tudo, assiste-se a processos de
mutao que transportam os lugares est-
veis, as identidades compactas, os traba-
lhos repetitivos, os ambientes poludos para
mudanas comunicacionais.
Assim deu-se que, desde 1998, um ve-
lho e enorme moinho que tratava o milho
desde a espiga at a farinha refez seu lifting
e se transformou em multilocal quente. O
caminho que leva ao Moinho apertado e
industrial, por perto ainda h velhas fbri-
cas que produzem conforme os ritmos e os
tempos da modernidade. De repente che-
ga-se a esse multilocal. Ao entrar o cliente
recebe um carto magntico com seu nome,
onde sero marcadas todas as despesas. o Temporary Identity Card. Depois assis-
te-se a uma multiplicidade de papis sepa-
rados entre si ou para se juntar a bel-prazer,
em relao aos quais cada cliente-performer
decide seu percurso e seu consumo. (Con-
forme foi dito, nesses multilugares o es-
pectador no apenas isso, mas tambm
um preciso criador deperformances.) Tudo
inserido e transformado, desconstrudo e
reconstrudo no espao do velho moinho.H pizzarias rpidas, restaurantes de cem
dlares, sorveterias coloridas, paredes
cheias de videogames, espaos-vdeo e ci-
nemas, pistas de dana, doceiras, bares. E
uma enorme discoteca que se envenena
depois da meia-noite. Outros espaos es-
to sendo programados.
Nos velhos ptios foram erguidas
como nos estdios de Cinecitt ou da Glo-
bo enormes esttuas de papel mach que
representam as fases do trabalho obreiro
no moinho, num perfeito estilo de falso
realismo socialista. O efeito deslocante:
d a impresso de se estar mergulhando em
um parque temtico onde se transita por
entre o consumo visual de smbolos do
passado, reduzidos a puros signos, com os
quais pode-se brincar de identidades m-
veis identidades-de-tempo ao invs de
se permanecer pregados na nica identida-
de que nos foi dada pelo modelo fordista.O consumidor-performer constri seu
prprio itinerrio, usa cada cdigo sua
disposio, transita nos espaos, nos esti-
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los, e tambm nos tempos. O Moinho um
no-moinho onde se comem as enormes
pizzas paulistas. E os patrocinadores su-
blinhando ulteriormente as profundas
disjunes com o passado so Parmalat,
Barilla, Fiat, ou seja: uma Itlia multina-
cional. Num canto do moinho abre-se at
mesmo uma espcie de cripta bem ao lado
do modernssimo espao dos videogames:
entra-se ali numa Itlia medieval, pintada
por pintores-barilla, onde a imagem do sa-
grado um sagrado dessacralizado, priva-
do de seu poder simblico e transformado
em puro espao de exposio e em tempo
de diverso. Cripta e videogame coabitam
e transitam. Tudo pode coexistir e tudo
tolervel.
metropolis comunicationalis
H precedentes para essa mudana epo-
cal e algumas dessas tendncias foram adi-
antadas, com sua visionria lucidez, por
Musil em um de seus romances que tem, no
centro, a decomposio da Viena capital
universal; na citao que ele faz evocada
uma metrpole da dcada de 30 que desafiaa condio anmica atual:
No damos particular importncia ao nome
da cidade. Como todas as metrpoles, era
formada por irregularidades, revezamentos,
precipitaes, intermitncias, colises de
coisas e de eventos, e, no meio de tudo, pontos
de silncio abismais; por bitolas e terras vir-
gens, por um pulsar rtmico e pelo eterno
desacordo e perturbao de todos os ritmos;
e, em seu conjunto, parecia-se com uma
bolha em reebulio posta em um recipien-
te feito de casas, leis, regulamentos e tradi-
es histricas (Musil, 1996, p. 6).
Trata-se do primeiro captulo, do pri-
meiro pargrafo, da primeira pgina de O
Homem sem Qualidades de Robert Musil,
sendo que est claro que o autor quis atri-
buir a esse comeo um valor de fundao,
porquanto aquela cidade-sem-nome (capi-tal do estado de Cacnia) igualmente o
contexto expressivo, poltico e terico den-
tro do qual se desenrola a narrativa que
anatomiza a crise de 1900. Parafraseando o
homem, tambm a metrpole sem quali-
dades. De fato, as assim chamadas quali-
dades pertencem quelas pessoas do im-
prio austro-hngaro que no perceberam
a decomposio em curso, devida a um sis-
tema poltico-cultural dentro do qual sua
capital Viena jamais chegaria a festejar
os 70 anos de seu imperador. Junto com o
aniversrio aproxima-se a derrota do im-
prio na Primeira Guerra Mundial.
Quem sabe por isso mesmo, conforme
sobejamente conhecido, se liberam tan-
tas foras criativas no corpo-em-decompo-
sio. Musil uma dessas personalidades
extraordinrias que conseguem dar o sen-
tido de uma condio metropolitana muitomelhor do que as famosas pesquisas
contempory [contemporneas] da Escola
de Chicago: irregularidades, intermitncias,
colises, arritmias designam justamente a
metrpole como uma enorme bexiga refer-
vente. So Paulo foi e ainda assim. A ci-
dade polifnica referve. O que se acrescen-
ta tem a ver com a tecnocomunicao.
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Por isso mesmo, aquilo que continua-
mos a chamar de metrpole adquire fei-
es cada vez mais fugidias e mltiplas que
desafiam as classificaes tradicionais: me-
trpole-sem-nome ou de-muitos-nomes.
Em qualquer caso, a metrpole contempo-
rnea, a que se pode dar o vago adjetivo de
comunicacional, o contexto fluido e
inovador que libera roots (razes) e mistura
routes (itinerrios, cruzamentos, atraves-
samentos): tambm um laboratrio que
desafia as divises tradicionais das disci-
plinas. No d para sentir a metrpole se
nos fecharmos no especfico arquitetni-
co, urbanstico, sociolgico, antropolgi-
co, esttico e assim por diante; ao contr-
rio, sente-se quando se entretecem meto-dologias descentralizadas e deslocadoras.
A transdisciplinaridade no quer dizer
colocar juntas vrias disciplinas, mas sim
criar um novo objeto que no pertence a
ningum. Esse novo objeto a metrpole
comunicacional. MetaplisOu melhor:
a nova metrpole sujeito transdisciplinar
que no pertence a ningum e que, justa-
mente por isso, todos temos que atravessar
e cruzar. Criss-crossing.Esse trnsito caracterizado pela ten-
dncia dissoluo da produo industrial
que constitua o centro identitrio, poltico
e mnstico [referente memria] da cidade
(seu monumento por excelncia, com
suas classes precisas, a dialtica sinttica,
os dualismos centro-periferia, pblico-pri-
vado, cultura de elite-cultura de massa). As
inovaes complexas e plurais que favore-
ceram, acompanharam, anteciparam dita
dissoluo so o referido trptico: consu-
mo-comunicao-cultura.
Shopping centers, malls, parques tem-
ticos,gentrification,museus, publicidade,
arranjo de vitrines, desfiles, mostras, expo-
sies, frias, encontros: tudo isso est
redesenhando a vida material-imaterial do
novo sentir metropolitanto. A competio
entre as metrpoles d-se nesse plano, no
mais pela quantidade de mercadorias que
se podem produzir ou estocar, mas peloscenrios tecnocomucacionais e expo-cul-
turais que cada metrple oferece em pano-
rama glocal.
A cultura e a comunicao dos consu-
mos tomam o lugar da tradicional socieda-
de dos consumos e a dissolvem.
As novas tecnologias esto tendo um
papel decisivo nessa passagem: as repre-
sentaes arquitetnicas, urbansticas ou
das cincias sociais e comunicacionais in-
corporam e difundem uma multiplicidade
sensorial de panoramas.
:flash-back:
-Avatar: os arquitetos mais inovadores (al-
gum deles, tambm em So Paulo) enxer-
tam-se dentro das multplices dimenses
do avatar e espalham novas dimenses
polilgicas e de muitas perspectivas:avatecture. Segundo o manifesto do arqui-
teto Michael Heim, avatecture um
morphingentre avatar e arquitetura, que
exprime algumas tendncias da nova me-
trpole comunicacional.
Architecture is becoming avatecture:
Physical buildings morph into visual
structures that generate online avatar
communities. The avatars discuss prototypestructures in virtual reality, and the physical
structures become multimedia visualization
a magic theater where buildings acquire
networked significance. Avatecture injects
transformation into physical structures,
merging clicks with bricks, enlivening re-
configurable buildings with flexibility,
change, and soft significance. The avatect
is a shaman who creates interactive visions,
who initiates a shared version of future
habitation. The shaman dances the
community into a dwelling that responds to
shared visions and that can later morph to
accommodate the passages of time. The
physical edifice becomes a theater of
endless possibilities (www.mheim.com).
E isso est ocorrendo numa metrpole
como So Paulo. Os clssicos edifcios
tornam-se espaos deperformances sem-
fim. Desse contexto, junto com a comuni-cao digital, surge a dimenso fluida e
plural do avatar. Em minhas pesquisas so-
bre metrpoles, tecnologias e comunica-
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o emergiu essa dimenso.Avatarsigni-
fica criando-se uma metfora a partir do
sentido primeiro da filosofia hindu, isto ,
a multplice manifestao do deus a ex-
perincia de uma subjetividade multividual
e, ao mesmo tempo, a autoproduo de lin-
guagens mltiplas. Avatar um desafio a
qualquer discurso monolgico e a qualquer
identidade fixa.
So Paulo est transitando de mega-
cidade industrial para metrpole comuni-
cacional inexplorada. Os restos da era in-
dustrial quem sabe o perodo mais funes-
to da humanidade esto se descolorando
e com os seus tempos lentos reconfiguram-
se como espaos performativos do consu-
mo. Espaos-tempos lentos. Alm dosexemplos j dados, h muitos outros. Quem
sabe na segunda metade da dcada de 90
um dos mais importantes desenhos urba-
nsticos tenha sido ligar a Avenida Faria
Lima com a AvenidaBerrini,conforme j
antecipado em A Cidade Polifnica. Ali
fora projetada no apenas a passagem de
autoveculos, mas, essencialmente, um dos
novos centros da metrpole, caracterizado
de acordo com a concepo ps-industrial.
No apenas tercirio avanado ou, se qui-
sermos, quaternrio, mas justamente a
mudana dos terrains vagues [terrenos
vazios], onde as mercadorias da indstria
se aposentaram, juntamente com um
aparato conceitual e poltico (dialtica,
partidos, hegemonias, etc.), para flurem
para outras torrentes lingsticas.
:primeiro plano:
- Dress-code: a proliferao de fluxos
panoramticos consegue dar sentido a todo
esse entrecho de avatares com arquiteturas,
onde os concepts storepodem constituir
painis seja para um seminrio universit-
rio, seja para uma exposio trendy[bada-
lada]. Do conjunto variegado e mltiplo
desses panoramas flutuantes, salienta-se um
outro cacho de conceitos que desafia a
semitica tradicional na busca de leis, opo-sies, inverses binrias, atravs dos qua-
drados semiticos.
:bodyscape:os fluxos panoramticos cor-
porais que amarram, citam, excitam a rela-
o entre location (locais cujos interiores-
exteriores expressam textualidades arqui-
tetnicas, design, instalaes que marcam
uma tendncia) e bodyscape (os cdigos
ligados a roupas, piercing, tatuagens,
cosmese, acessrios) atravs da eXposio
dedress-codesprecisos. O dress-codedes-
loca as atraes inter e intratextuais entre
location e bodyscape; dress-code uma
chave de acesso de tipo semitico-compor-
tamental sempre em mutao; dress-code
um sistema narrativo hbrido que arquite-
tos,designers, estilistas e cool hunterspro-
curam muitas vezes interpretar observan-
do os segmentos mais conflitivos das cul-
turas juvenis; dress-code o novo corposomatizado e mutide da metrpole
comunicacional; atravs do dress-code a
maquilagem transita do bodyscape
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location: dress-code cosmese para cos-
mos flutuantes em mutao.
Cosmos-avatar.
Fashion-designer sound designer
avatecture: o estilo cruzado de identidades
flutuantes e linguagens sincrticas torna a
definir cada profisso. Os limites fazem-se
incertos e as fronteiras so sempre mais
porosas.
No bodyscape tranam-se cdigos cor-
porais e arquitetnicos, ambos transforma-
dos em paisagem. E esta a paisagem me-
tropolitana por excelncia. por aqui que
passa a metrpole comunicacional. Ao lon-
go desses tranqilos fluxos panoramticos,
tem-se tambm a viso de panoramas tni-
cos que misturam e tornam a desenhar osfragmentos dentro de cada encaixe urbano;
a metropolis comunicationalis somatiza
fluxos miditicos divergentes atravs da pu-
blicidade, da moda, da videomusic, dos
estilos de comportamento, dos cdigos
corporais, dos gestos, dos jarges, da sedu-
o, dos erotismos, dos fetichismos. Esses
fluxos corporais-panoramticos experi-
mentam enxertos pervasivos entre corpos-
metrpole-mdia. E as locations levam emconta todo esse flutuar e atravessar como
se fossem corpos inorgnicos que arran-
cam o in e se tornam plenamente e ps-
dualisticamente orgnicos.
O avatar detesta qualquer dualismo,
multiplica as subjetividades e os infinitos
enxertos entre orgnico e inorgnico.
Nessa perspectiva, a semitica desvin-
culou-se progressivamente de qualquer ten-
tativa sistmica e classificatria que nos
anos passados viu nascer ordens inter-
pretativas que naufragaram nos fluxos
conflituais, sincrticos, em mutao. jus-
tamente a nova metrpole comunicacional
que performa e pe em crise qualquer ten-
tativa de ordenao (disciplinar), de com-
posio urbana. Uma nova semitica irre-
gular escorre pelos ditos panoramas e de-
safia qualquer leitura sistmica, regular, de
carter generalizante. Uma semitica
conflitual qual nos cabe dar sentido evisibilidade.
O dress-code testemunha a passagem
dos paradigmas de carter industrial
(monolgicos) para a multiplicidade ps-
paradigmtica (plurilgica) das locations,
cada vez mais prximas dos sets mix-
midiais, dasperforming arts, das instala-
es de rua; o dress-code sopra dos lugares
tayloristas da produo aos espaos estti-
cos (multissensoriais) do consumo.
Sensorlia. O consumo como produtor de
valor (econmico) e de valores (estilos):
shoppings, museus, estaes, parques te-
mticos, multissalas, neofolclore, mega-
concertos, etc. e at mesmo de elementos
ps-estatais, no meio do consumo glocal.
:plano cruzado narrativo:
Piranha uma location, tal como oMoinhoe os infinitos locais que nascem,
morrem e ressurgem num cenrio metro-
politano que flui continuamente, onde per-
manece apenas o que se dissolve no ar como
fluxo comunicacional. Em todas essas
locations um novo contexto que cruza
uma espcie de set cinematogrfico ou de
TV, com qualquer possvel espao per-
formativo , o corpo torna-se o ator princi-
pal. E ele assume pragmticas comunica-cionais precisas, por afinidade, por contras-
te, por tenso, por mudanas, por fragmen-
tao, por assemblagem:e tudo isso se re-
sume no dress-code.Cdigo de ingresso e
de aclaramento, atravs do qual o sujeito
que investe temporariamente aquele corpo
com aqueles cdigos aceitvel naquela
determinada location. Dela performer
construtivista. Verdadeiro sujeito
comunicacional que sabe expor e decifrar
cdigos.Multi-viduo. Eus ii
A passagem de cidade moderna para
metrpole comunicacional adquire entre
outras coisas a finalidade tendencional
da distino clssica entre o centro e a pe-
riferia.
Centros diferentes esto nas periferias
tradicionais assim como periferias igual-
mente diferentes esto naquilo que era o
centro bem definido e circunscrito. Se issoainda pouco visvel nas clssicas cidades
italianas, basta visitar as metrpoles con-
temporneas (So Paulo, Cidade do Mxi-
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co, Los Angeles, Tquio) para sentir essa
mudana e esse movimento. De um ponto
de vista urbanstico como tambm antro-
polgico-urbano o novo e freqentemen-
te espontneo redesenhar dos espaos en-
contra-se em relao estrita com a mudan-
a dos comportamentos. Um desafio este
que no apenas urbanstico, mas tambm
poltico, mesmo que o termo poltico no
d precisamente o sentido dessa derrapa-
gem. Quero dizer com isso que o uso neo-
colonial e retr de termos como terceiro
mundo parece querer encobrir o fato de que
China, Brasil, ndia e frica do Sul esto
constituindo uma fora outra, que altera
definitivamente a definio autoritria cen-
tro-periferia (ou norte-sul, do mundo).Desse ponto de vista, os efeitos da globali-
zao esto deslocando todo determinismo
centro-periferias de acordo com mapea-
mentos completamente inditos, cujos con-
tornos comeam a ser visveis. E constitu-
em um desafio para todos aqueles que con-
tinuam a definir-se centros .
A redefinio dos espaos mundia-
lizados graas a um certo tipo de globa-
lizao obriga as potncias clssicas (Eu-ropa, Estados Unidos, Japo) a se verem
postas em discusso por essas novas potn-
cias que emergiram, inclusive, graas ao
nexo entre tecnologias e agricultura. Desse
ponto de vista, o fato de que justamente
durante o vero o WTO tenha aceitado re-
tirar as barreiras alfandegrias sobre os
produtos agrcolas dos pases ex-primeiros
atesta a afirmao de uma nova era. Aquela
em que a oposio centro-periferia apo-
sentada.
O conceito de centro especialmente
quando referido s metrpoles possui um
significado forte que tem muito do mito.
Perde-se o centro (ao menos assim que se
pensa) quando j no se tem a capacidade
de estabelecer uma ordem vertical com
referncia qual seja possvel dispor hori-
zontalmente o restante. O centro produz o
cosmo. Sem se estabelecer ritualmente esse
centro, no se ordena o restante segundopadres hierrquicos e mapeamentos de
poder cognitivo. Com o centro, o ritual casa-
se com o poltico e o sagrado, o centro o
poder. Quem controla o centro quem pro-
duz o centro controla o todo. As religies,
os estados, as economias devem estabele-
cer sempre um centro; o poder simblico
do centro.O smbolo do centro, portanto,
afirma sua capacidade de unificar o todo. O
poder simblico na construo do centro
consiste no fato de que submete sua auto-
ridade todo o restante. O centro uma au-
toridade que se faz totalidade graas ao
smbolo. Por esse motivo, todo ato sensato
de libertao progressiva s pode afirmar
uma descentralizao do sujeito e do espa-
o; um conter, ou melhor, uma tendncia
para dissolver qualquer smbolo. O centro
a autoridade do UM. Esse poder simb-
lico do Um pode ser rompido e dispersopor meio de novas disporas, j no mais
determinadas pela coao forosa do aban-
dono. O desejo descentraliza: no corpo
como bodyscape e na metrpole como
location.
:subttulos:
A metrpole contempornea no pro-
duz mais (e felizmente) um discurso unit-rio; a autoridade do projeto passa a ser des-
centralizada, a unidade esttica e poltica
da plis est morta. Chegou o momento de
colher as vozes mltiplas e mesmo disso-
nantes que representam os fluxos snicos
metropolitanos como algo de rico e de
desordenado, de plural e de sincrtico. A
hegemonia da sntese produzida pela ci-
dade monolgica e moderna, com sua or-
dem produtiva de tipo industrial, taylorista
e fordista, com suas classes bem delinea-
das em luta entre si pela hegemonia rom-
peu-se, e em seu lugar foram se insinuando
soundscapes dissonantes e polifnicos.
Para somatizar e transformar as metr-
poles contemporneas importante esse
posicionamento do sujeito: os fluxos dos
olhares afirmam uma particular sensibili-
dade cognitiva que sensvel o bastante
para colher aquelas inmeras pequenas di-
ferenas, aqueles detalhes apenas aparen-temente insignificantes, aquela prolifera-
o de signos em excesso constante. O
olhar para dentro da metrpole comu-
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nicacional cada vez mais determinante
nesse trnsito. Diria mesmo que o olhar
emerge como um meio (medium) que tran-
a de modo inextricvel natureza e cultu-
ra, um olhar infobiolgico. Desse excesso
do olhar, do olho, do mirar nasce minha
proposta metodolgica: ofazer-se ver. No
no sentido banal de mostrar-se, mas no
sentido de transformar-se em olho-que-v
eque-se-v.
O olhar do observador metropolitano ,
de fato, reflexivo e, portanto, no apenas
participante (conforme a clssica coloca-
o etnogrfica de observao participan-
te), mas mais participante: a observao
observante implica dirigir o olhar tanto para
o interior do sujeito inserido nos fluxos dametrpole comunicacional, quanto para o
exterior dele. Isso testemunha o mtodo da
comunicao visual como fazer-se ver,
envolvendo seja as novas sensibilidades
visuais, perceptivas, oculares, seja as
informacionais, tecnolgicas. Tranformar-
se em corpo que v e se v produz o prprio
panorama corpreo interior/exterior:
bodyscape.
Um olho que assume (incorpora) o m-todo do fazer-se ver desenvolve uma poli-
fonia do olhar. Este o sentido profundo da
multiperspectiva, de acordo com a qual a
polifonia est no objeto e no mtodo.A
polifonia dos olhares transita pelos ntidos
confins traados entre esses dois momen-
tos (objeto de busca e representao tex-
tual) e os transforma em subjetividades que
dialogam entre si, que conflituam, que cons-
troem dissonncias cognitivas. A metr-
pole animiza-se em suas inmeras subjeti-
vidades e sua representao pluraliza-se nas
formas expressivas mais descentralizadas
(Canevacci, 2004, p. 4).
:dissolvncia: lembranas & saudades:
Meu primeiro encontro com So Paulo
foi com asDiretas j.Cheguei durante o
carnaval de 1984 numa cidade a mim des-
conhecida, na qual a atividade de trabalhoj fora suspensa desde a Quinta-feira Gor-
da. Bancos fechados, escritrios fechados,
tambm o Instituto Italiano de Cultura, fe-
chado e naturalmente a Universidade.
Tinha recebido dois convites: de Tonino
dAngelo para realizar umas palestras so-
bre Pasolini atravs do instituto e da gran-
de filsofa Olgria Matos para ministrar
um curso sobre a famlia, na USP. Ambos
no estavam. Felizmente consegui que
Teresa, uma funcionria da Rua Frei Cane-
ca a qual ter meu eterno reconhecimen-
to , me desse uma chave para umflat na
mesma rua e alguns cruzeiros.
Sozinho e sem dinheiro (ainda no sa-
bia que na poca havia um cmbio parale-
lo), sem falar portugus, comecei a andar
a esmo. S que, ao contrrio de Roma, que
se entende caminhando, caminhar por So
Paulo tem um significado de todo diferen-te, visto suas extraordinrias e inmeras
dimenses que ainda ignorava. De qual-
quer forma, essa experincia inicial ver-
dadeiramente dolorosa: uma espcie de
rito de passagem e de passeio foi para
mim extremamente til e dela sinto muita
saudade.
Devido a meu escasso portugus, ima-
ginei que em SP todos fossem de direita.
De fato, a cidade estava cheia de faixas,banners, manifestos com a escritaDiretas
j que eu traduzi erroneamente (direta =
direita) no sentido poltico do termo e ima-
ginei que a cidade inteira tivesse adotado a
cor amarela porque queria imediatamente
um governo de direita, que no meu enten-
der j existia, e ainda por cima, militar! O
que queriam de mais direita esses paulis-
tas! O equvoco foi resolvido pouco de-
pois, quando encontrei Caio Graco Prado,
o editor da Brasiliense que havia traduzido
um livro meu sem me avisar e a quem sem-
pre me ligar eterna amizade, pois foi atra-
vs dessa traduo que descobri o Brasil e
a mim mesmo. Quando esteve em Roma
com a mulher, acompanhei-o para comprar
um capacete de moto prximo Via Cavour,
justamente o capacete que viria a tirar pou-
cos minutos antes de atravessar aquele
maldito viaduto (p de boi) onde sua moto
capotou e ele morreu.Depois da tera-feira de carnaval en-
contrei Tonino DAngelo. Era uma pessoa
forte e passional. Situado esquerda coi-
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sa no fcil no Ministrio do Exterior na
Itlia tinha grande experincia das cultu-
ras latino-americanas de lngua espanhola.
Passava horas contando-me histrias es-
pecialmente da Colmbia cujas persona-
gens tresloucadas ele adorava. Era origi-
nrio da Basilicata, uma regio do Sul da
Itlia, na poca extremamente pobre, tra-
zia os cabelos brancos longos, sobre as
costas, e no escritrio desenvolvia uma
atividade frentica. Queria tornar conhe-
cidas as diferentes Itlias daquela poca e
no a Itlia dos cartes-postais, com todos
os esteretipos que conhecemos. Falava
incessantemente e ouvir os outros era um
sofrimento para ele. Depois de Caio, foi
ele quem me introduziu na que haveria dese tornar minha segunda cidade e minha
primeira metrpole.
Em primeiro lugar levou-me aoEdif-
cio Itlia,de cujo terrao vi, pela primeira
vez, o incomensurvel panorama, em sua
irredutvel polifonia e fantasmagoria. Ave-
nida Paulista, Frei Caneca, Rua Augusta,
praa da Repblica. J conhecera detalha-
damente a p essa rea que ligava o assim
chamado centro Paulista, pela Augusta. Ejustamente a Augusta tornou-se minha rua,
a que aprendi a conhecer em seus microde-
talhes, descobrindo, em particular, aquele
mix de cdigos para mim completamente
indito e que antecipou a descoberta dos
sincretismos culturais.
Rua Augusta tornou-se para mim um
longussimo plano-seqncia que, do cine-
ma, havia se estendido sobre essa rua igual-
mente comprida, onde tudo se entrelaava
com tudo, escolas primrias e prostituio,
hotis cinco estrelas e pequenas saunas co-
loridas para clientes especiais. Comecei a
compreender que pela rua s andava certa
parte digamos sociolgica da cidade.
Nenhum de meus amigos paulistas teria ja-
mais aceitado passear comigo a p, de tarde,
na Rua Augusta Em particular, intriga-
vam-me as diferenas e o fato de que essas
diferenas se tornassem cada vez mais frag-
mentrias, vivendo uma ao lado ou dentroda outra e, muitas vezes, uma contra a outra.
Numa espcie de galeria sem sada que
se abre na Rua Augusta, no longe de um
luxuoso cinema, h uma loja de objetos de
culto afro-brasileiro. Todas as vezes que
posso, dou um pulo l para comprar algu-
ma estatueta ou outras coisas. Uma dessas
vezes, o dono, um negro alto e doce, sor-
riu-me e presenteou-me com dois olhos-
de-tigre . Conservo-os at hoje, no por
terem me dado sorte conforme ele asse-
gurava mas pela doura um pouco triste
com a qual ele os pousou sobre minha mo.
Do outro lado da Augusta existe outra
loja que eu amo e que no posso deixar de
visitar: chama-se Art-ndia e l se vendem
objetos de artesanato indgena, alguns de
grande beleza, outros mais do gosto dos
rpidos turistas etnicamente corretos. Cer-
tamente, a loja que se encontra no Museudo ndio no Rio de Janeiro muito mais
bonita e possui peas raras ou, de qualquer
forma, difceis de encontrar em outro lu-
gar. No entanto, o fato de ter encontrado
desde o primeiro ano aquela loja foi funda-
mental para mim por diversos motivos:
inclusive pelo fato paradoxal de um antro-
plogo ter descoberto as culturas nativas
numa loja e no em sua estada no campo!
Situada num lado da Augusta que d paraa Repblica, a loja testemunhava que mes-
mo a metrpole permevel s influncias
das culturas nativas. E no apenas turisti-
camente. O patrimnio indgena um bem
precioso que o Brasil inteiro ainda tem di-
ficuldade de exprimir em sua plenitude
pluralizante. Quem sabe somente a moda
esta moda que de So Paulo irradia em tan-
tas partes do mundo com sensibilidade e
inovao esta moda brasileira e em par-
ticular paulistana, adquire muitas vezes jus-
tamente os cdigos nativos (a imensa va-
riao dos grafismos geomtricos indge-
nas) dentro do tecido dos estilistas, no cor-
po das modelos e, cada vez mais freqen-
temente, at mesmo nas coreografias que
conseguem fazer, sempre mais do que a
moda, uma verdadeira performance ade-
quada sua metrpole.
A est: os desfiles paulistas de moda
so a aplicao de como um dress-codeque entretece sincreticamente as muitas
cores-cdigos-grafismos brasileiros se ex-
pressa ao longo de uma location per-
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formativa que se maquila segundo cdigos
afins s modelos.Bodyscape cosmese que
se faz cosmo.
O desgarramento, o deslocamento, a
perda como ato criativo, a amnsia como
esquecimento ativo, e no-retrica do pas-
sado que deve nos ameaar feito um monu-
mento de bronze enfiado na memria: to-
dos foram conceitos experimentados nesse
movimento e apenas sucessivamente
teorizados: conceitos decisivos para com-
preender as coisas novas de um mundo
novo. De outra forma, tudo o que outro
colocado dentro das tradicionais gavetas
interpretativas (paradigmas) e assim pro-
duz-se ignorncia, etnocentrismo, autori-tarismo. SP era em parte semelhante e em
parte diferente das cidades que j conhecia
mas, com certeza, no podia lhe aplicar um
ponto de vista externo (romano), pois nada
teria compreendido. Tratava-se, portanto,
de abandonar-se ao fluxo comunicacional
da metrpole, sem a angstia de dominar
tudo com esquemas vindos de fora. O pra-
zer perturbador do deslocamento da per-
cepo e do mtodo senti-o, pela primeiravez, quando me afastei da Rua Augusta,
por ter seguido a direo contrria, e me vi
na Brigadeiro.
Grande lio para uma Grande So
Paulo!
:campo longo: panormica final:
O processo de metropolizao do mun-
do no tem uma mo nica. Ao lado, contra
e entretecido a ele h um processo inverso
de aldeizao da metrpole. Se, por um
lado, a antropologia urbana no se subtrai
ao desafio da mudana quanto comunica-
o metropolitana, ao contrrio, insere-se
em suas inovaes mais experimentais e
polifnicas contra qualquer monologismo
metodolgico ou representativo, por outro,
uma etnografia atenta e apaixonada, reno-
vada em sentido multivocal e sincrtico,
volta a mergulhar nos contextos nativos:nas aldeias indgenas. Descobre-se, ento,
que o anunciado catastrofismo quanto ao
desaparecimento triste das culturas tro-
picais no aconteceu, assim como as subje-
tividades nativas recusam sua museificao
(auspiciada por complexos de culpa ou de
interesse disciplinar) dentro de espaos
controlados e isolados pelos processos das
diferentes mudanas culturais. Como se tais
mudanas s pudessem pertencer a uma
parte da humanidade (a histrica ) e,
conseqentemente, as culturas nativas ti-
vessem que ser colocadas por tradio
fora de qualquer histria, delas mesmas
ou de outrem, contra a qual a antropologia
h tempo desceu em campo para afirmar a
irredutvel pluralidade das histrias .
E ento, tambm as culturas nativas,
especialmente algumas suas subjetividades,
aceitaram o desafio da mudana, atravs denovas e originais produes sincrticas.
Dessa forma, esses produtos delas mais
do que tradicionais, explicitamente mu-
dados ingressam nas metrpoles no ape-
nas brasileiras, mas mundiais. Trata-se de
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um novo artesanato indgena, formas de
arte nativa tantas vezes ignoradas e at
mesmo excludas pelos tericos de esttica
eurocntricos msicas tnicas, modifica-
es extraordinrias do corpo com tatua-
gens, grafismos, incises que transformam
cada corpo em uma obra de arte, novos
percursos de body-art privados dos vrios
primitivismos ou arquetipismos. Dentro
dessas vises e expanses panoramticas,
navegam os jovens metropolitanos mais
atentos e sensveis aos modelos de alteri-
dade, antagnicos aos valores dominantes,
xenfilos nos comportamentos e nas esco-
lhas produtivas.
As variegadas riquezas expressivas dos
mundos tnicos podem invadir cada vezmais os espaos comunicativos das metr-
poles, inserindo cunhas de aldeizao;os
estilos, as formas, as sugestes das aldeias
penetram nos interstcios metropolitanos e
praticam a construo de paradigmas
xenfilos. No se trata mais de salvaguar-
dar a tradio: como j est claro, em cada
pressuposta tradio h elementos de ino-
vao ou de construo. A tenso sin-
crtica e multivocal na comunicao tni-
ca (aldeizao) ocorre tambm nos territ-
rios erroneamente ditos avanados: as ex-
perimentaes das linguagens. Ao mesmo
tempo, os nativos usam cada vez mais os
celulares muito teis em contextos onde
muitas vezes falta a eletricidade e a
internet para glocalizar conflitos e infor-
maes, CD-roms para registrar seus ritu-
ais, torcem por um time de futebol, so
apaixonados por msicas mesmo metropo-
litanas, usam o vdeo para se representar e
para intercomunicar.A nova antropologia radical procurar
favorecer uma cada vez maior aldeizao
das metrpoles por meio dos instrumentos
polifnicos dos novos sincretismos cultu-
rais.O olhar etnogrfico oblquo por ser
inquieto e instvel: oscila explorando,
conflitando e experimentando entre os con-
gestionamentos sgnicos metropolitanos e
os fluxos frgeis mas resistentes das al-
deias. De tal modo, a metrpole ou pelomenos algumas de suas partes expande-
se e constri-se entre seus cimentos m-
veis e uma pluralidade de formas significa-
tivas sincrticas.
:loop:
Com um sorriso irnico saio do mini-
mono. Apercebo-me que as modificaes
em meu corpomente tornaram-se diversifi-
cadas graas a meu estar, a meu transitar, a
meu fazer-me ver no interior de Sensorlia.
Ou ser no exterior? Reflito: por muito
tempo se acreditou seguindo uma abor-
dagem filosfica baseada em critrios
vitalsticos e objetivistas que as desco-
bertas tecnolgicas no passassem de pr-
teses que se acrescentam aos rgos do ser
humano, para favorecer operaes que este
no estava em condies de realizar. Da
surgirem as teses curiosas de o telefone sera prtese do ouvido, o cinema, do olho, o
carro, das pernas e assim por diante, at a
atual discusso sobre o PC e a inteligncia
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artificial. O absurdo ou a ingenuidade des-
sas posies to bvia que no se entende
como ainda possa ser professada. Nela
mantida a pior das tradies, que impre-
cisamente definirei como iluminista, se-
gundo a qual, por um lado, haveria uma
natureza constituda evolucionisticamente
noHomo sapiens; por outro, a cultura que
se acresce a partir de um certo perodo.
Durante minha viagem metropolitana e
comunicacional compreendi definitiva-
mente que, evidentemente, no assim.
Nenhuma dessas tecnologias se acrescenta
a um rgo, deixando-o ontologicamente
intacto e separado do restante. O nexo
corpo-tecnologia (tecnocorpo ou corpo
ps-orgnico) no se adapta a seu rgode referncia, na medida em que cada um
dos sentidos encontra-se entretecido numa
densa teia de aranha que o liga, se no a
todos, a muitos outros. Ou melhor, o cons-
tri, segundo ligaes reticulares e flui-
das. As perspectivas contemporneas
rumam para um mindful-bodyque adquire
a mente-corpo o corpo-cheio-de-mentes
como biocultural que no exclui, mas
inclui a tecnologia.Assim, nada h de natural no olho. Ele
participa dos processos inovadores difun-
didos pela tecnocomunicao, sendo que
nada, em seu ato de ver, permanece imutado.
No existe aqui (no binculo ou na tela da
TV) a prtese e acol (na pupila), o olho.
Os meus sistemas perceptivos, a minha
sensibilidade do olhar, a minha arte de ver,
a minha velocidade em decodificar afinam-
se, modificam-se, desenvolvem-se, plura-
lizam-se, aceleram-se segundo mdulos
que pertencem experincia cotidiana, di-
versificada em cada cultura, sujeito, espa-
o. E os espaos interconexos atravs da
metrpole comunicacional no comeam
nem terminam dentro do circuito da Gran-
de So Paulo, mas se estendem em sua
ubiqidadepolifnica.
Em suma, os sentidos no so cinco:
so infinitos mesmo graas ao desgarra-
mento no corpo mutide de So Paulo.
:ttulos em coda:
memria de Caio Graco e de suaEditora
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