Download - Grande Sertão: veredas (Trechos)
OS CATRUMANOS
Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo,
amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta.
Um, zambo, troncudo, segurava somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no
manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado chato o formo do nariz,
estragada a boca grande demais, em três. Outro, que tinha uma foice encabada muito
comprido, e um porongo pendurado a tiracol por uma embira, cochichava com os restantes
uma séria falação: a qual uma espécie de pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito o demônio
gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino acudia. Todos eles, com seus saquinhos
chumbeiros e surrões, e polvorinhos de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim
não tomavam bastante receio de nossos rifles (ROSA, 1994, p. 545).
Viviam tapados de Deus, assim nos ocos.
Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto
lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que
explicou, o Acauã sabia deles. Que viviam tapados de Deus, assim nos ocos. Nem não saíam
dos solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos, em socavas. Mas por ali deviam de ter
suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas burguéias, em
dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados.
Aí plantavam suas rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal. Tanteei pena deles, grande
pena. Como era que podiam parecer homens de exata valentia?
Essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e matando o atirador
Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas,
manipulando em panelas. Que era uma pólvora preta, fedorenta, que estrondava com
espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa pólvora bruta fazia as armas
rebentarem, queimando e matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme
podiam viver?
Povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos...
Ossenhor uturje, mestre... Não temos costume... Não temos costume... Que estamos
resguardando essas estradas... De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão
com a doença, que pega em todos... Ossenhor é grande chefe, dando sua placença. Ossenhor é
Vossensenhoria? Peste de bexiga preta...
Eram orelhudos, que a regra da lua tomava conta deles, e dormiam farejando.
A mais eles todos riram, as tantas grandes bocas, e não tinham quase nenhum dente. Riam,
sem motivo justo, agora mas para nos agradar. (...) Aqueles homens eram orelhudos, que a
regra da lua tomava conta deles, e dormiam farejando. E para obra e malefícios tinham muito
governo.
Convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente.
O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente.
Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com vida cerrada no costume de si, o
senhor é de externos, no sutil o senhor sofre perigos. O que assenta justo é cada um fugir do
que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do
morto, o frio longe do quente, o rico longe do pobre.
Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que
quisessem ser?
E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos
milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos,
tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e
conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer
usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e
bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteirinhas da Januária. E pegavam as mulheres, e
puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem
casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus
o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se
esconderem – Deus me diga?
Da pessoa dele, da grande cabeça dele, era só que podia se repor nossa guarda de amparo e
completa proteção, eu via.
Dei tino. Zé Bebelo, em testa, chefe como chefe, como executava nossa ida. Da marca de um
homem solidado assim, que era sempre alvissareiro. Por ele eu crescia admiração, e que era
estima e fiança, respeito era. Da pessoa dele, da grande cabeça dele, era só que podia se repor
nossa guarda de amparo e completa proteção, eu via. (...) Para mim, ele estava sendo feito o
canoeiro mestre, com o remo na mão, no atravessar o rebelo dum rio cheio. – “Carece de ter
coragem... Carece de ter muita coragem...” – eu relembrei.
Povo do Sucruiú: os vultos, e as tristes caras deles, que branqueavam, tantas máscaras
Mas pessoas mor que houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga se
vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que branqueavam, tantas máscaras. Aos
homens e mulheres, apartados tão estranhos, caladamente, seriam os que estavam jogando
todo o tempo mais rodelas de bosta seca nas fogueiras – isso que deviam de ter por todo
remédio. Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não saíam, não saudavam.
O medo, a doença, os perigos.
Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é
desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos
perigam – o contagioso.
Eu comecei a tremeluzir em mim.
Zé Bebelo pegou a principiar medo! Por quê? Chega um dia, se tem. Medo dele era da bexiga,
do risco de doença e morte: achando que o povo do Sucruiú podiam ter trazido o mau-ar, e
que mesmo o Sucruiú ainda demeava vizinho justo demais. Tanto ri. Mas ri por de dentro, e
procedi sério feito um pau do campo. Assim mesmo, em errei; disso não sabia. Mas o cabedal
é um só, do misturado viver de todos, que mal vareia, e as coisas cumprem norma. Alguém
estiver com medo, por exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se
o senhor firme agüentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e tresdobra,
que até espanta. Pois Zé Bebelo, que sempre se suprira certo de si, tendo tudo por seguro,
agora bambeava. Eu comecei a tremeluzir em mim.
Veredas Mortas
E aquele situado lugar não desmentia nenhuma tristeza. A vereda dele demorava uma agüinha
chorada, demais. Até os buritis, mesmo, estavam presos. O que é que buriti diz? É: – Eu sei e
não sei... Que é que o boi diz: – Me ensina o que eu sabia... Bobice de todos. Só esta coisa o
senhor guarde: meia-légua dali, um outro corgo-vereda, parado, sua água sem-cor por sobre
de barro preto. Essas veredas eram duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas,
formavam um tristonho brejão, tão fechado de moitas de plantas, tão apodrecido que em
escuro: marimbus que não davam salvação. Elas tinham um nome conjunto – que eram as
Veredas-Mortas. O senhor guarde bem. No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a
gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se via uma encruzilhada. Agouro? Eu creio no
temor de certos pontos. Tem, onde o senhor encosta a palma-da-mão em terra, e sua mão
treme pra trás ou é a terra que treme se abaixando.
Só a continuação de airagem, trastejo, trançar o vazio.
Conforme eu pensava: tanta coisa já passada; e, que é que eu era? Um raso jagunço atirador,
cachorrando por este sertão. O mais que eu podia ter sido capaz de pelejar certo, de ser e de
fazer; e no real eu não conseguia. Só a continuação de airagem, trastejo, trançar o vazio. Mas,
por quê? – eu pensava. Ah, então, sempre achei: por causa de minha costumação, e por causa
dos outros. Os outros, os companheiros, que viviam à-toa, desestribados; e viviam perto da
gente demais, desgovernavam toda-a-hora a atenção, a certeza de se ser, a segurança
destemida, e o alto destino possível da gente. De que é que adiantava, se não, estatuto de
jagunço? Ah, era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e tinha cisma de todo o mundo.
Zé Bebelo murchava muda na cor, não existia mais em viço para desatinos, nada que falava
era mais de se reproduzir, aqueles exageros bonitos e tamanhos rasgos.
Apartado. De Zé Bebelo, mais do que de todos. Zé Bebelo doente não estava. Doença, com
ele? Sendo o que a um assim não podia permitido; só se perdesse de todo o siso. A não ser por
essa malacafa. Ei, pois, ele estava caipora. Logo vi. Daí tinha conta a nossa reles perdição,
aquele atrasamento geral. Zé Bebelo, para mim, tinha gastado as vantagens. Zé Bebelo
murchava muda na cor, não existia mais em viço para desatinos, nada que falava era mais de
se reproduzir, aqueles exageros bonitos e tamanhos rasgos. Só dizendo que tínhamos de
esperar mesmo ali, até que os adoecidos sarassem. Assim em impossibilidades.
A gente carecia agora era de um vero tiroteio, para exercício de não se minguar...
E o Sidurino disse: – “A gente carecia agora era de um vero tiroteio, para exercício de não se
minguar... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando...” Ao assaz
confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei
de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpejo; e o
que me picou foi uma cobra bibra.
Fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e
mães – eles achavam questão natural.
Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com
sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para
socorros. Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um
arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães – eles achavam questão
natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se
espreguiçar bem. O horror que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo de homem
humano.
Quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente
A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas outras doideiras assim
haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas
todas, de uma vez! Aí, para mim – que não tenho rebuço em declarar isto ao senhor – parecia
que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não
depositava, em ninguém.
A natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém,
nem respeitasse honestidade neste mundo.
O Lacrau se ria, só por acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, não
favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo. –
“Pra matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça
dele com sangue certo: que foi o de um homem são e justo, sangrado sem razão...
Coruja, Veredas mortas, racionalidade, Zé Bebelo
Com isso, o tempo mais parava. Também, fazia mais de mês que a gente estava naquela tapera
de retiro, cujo a Coruja era que era o nome, por um desses impossíveis de Zé Bebelo.
Gerente para tudo
Assim ele dava balanço, inquiria, e espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento
suão, homem carecesse de cuidar comercial. Eu pensei: enquanto aquele homem vivesse, a
gente sabia que o mundo não se acabava.
Jagunço não passa de ser homem muito provisório.
E seô Habão, que escutava com respeito, devagarzinho pegava a fazer perguntas, com a idéia
na lavoura, nos trabalhos perdidos daquele ano, por desando das chuvas temporãs e do sol
grave, e das doenças sucedidas. O que me dava a qual inquietação, que era de ver: conheci
que fazendeiro-mor é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem
muito provisório.
Seu Habão e Ricardão: Ouvidos atentos apenas para o comércio
E, no mais, nem ouvia, apesar de toda a cortesia de respeito, quando se falava em Joca Ramiro,
no Hermógenes e no Ricardão, em tiroteios com os praças e na grande tomada, por
quinhentos cavaleiros, da formosa cidade de São Francisco – que é a que o Rio olha com
melhor amor.
Somente a estância dele, em frente, já media, conferia e reprovava.
Eu, digo – me disse: que um homem assim, seô Habão, era para se querer longe da gente; ou,
pois, então, que logo se exigisse e deportasse. Do contrário, não tinha sincero jeito possível:
porque ele era de raça tão persistente, no diverso da nossa, que somente a estância dele, em
frente, já media, conferia e reprovava.
E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo.
E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com
a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que não esperdiçava nem o
átomo dumas felpas. A alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: vinte,
trinta carros de milho, ah, os mil alqueires de arroz...