7/23/2019 José de Souza Martins. a Questão Agrária Brasileira.
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Dados Internacionais de Cataloga~ao na Publicac;ao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, Sp,Brasil)
A reforma agraria e a luta do MST/ Jooo Pedro Stedile (org.).- Petropolis, RJ:Vozes, 1997.
Bibliografia.
ISBN 85-326-1901-0
1. Assentamento rural - Brasil 2. Movimento dos Sem Terra 3.
Posse da terra - Brasil 4. Reforma agraria - Brasil I. Stedile, JoooPedro. .
97-4624
Indices para catalogo sistematico:
1. Brasil: Reforma agraria 333.3181
2. Movimento dos Sem Terra: Assentamento rural: Economia333.3181
1. A QUESTAO AGRARIA BRASILEIRA
E 0 PAPEL DO MST
JST- Comoe que voce ve a questao da reforma agraria,.
ho;e,. no pais? Ela explodiu de ;ulho do ana passado[I 995J para c a . Alguns a situam em circunstancias de-
terminadas,. como a da crise agricola; outros dizem que
e porque 0 Movimento (dos Sem Terra)come~ou aapa-recer mais. Como voce ve isso,. do Movimento dos SemTerra,.ou da luta dos trabalhadores sem terrar come~ar
aconquistar mais espa~o? Jose de Souza Martins - Minha viseo do problema
vai numa direc;eodiferente do de sua pergunta, porque tem
como premissa que 0tempo do :! # c ;> , ~ ~ l2 j? " c c ::~ ~ I ;:I ! .! 5 ;M '! f l~ C : :C ! c ;! ,eum tempo longo, implica em buscar sua origem e lenta
e x p re ;s a ; d~sde0 passado. 0 problema social do ter;a neo
se explica entre nos por acontecimentos e circunstcmcias
imediatos. Sem compreender essa diferenqa de tempo
entre a sua pergunta e a minha resposta fica dificil enten-
der 0
que pense do problema. A questeo agr6ria, evidentemente, neo comec;acom 0
Movimento dos Sem Terra nem vai acabar quando ele
eventualmente cessar. Para mim, ela e essencialmente
uma questao politico. E uma questeo politico em qualquer
pais. A questeo agr6ria e caracterfstica do mundo contem-
poraneo. Elasurge com 0desenvolvimento do capitalismo.
Antes neo existia a questeo agraria. Ela surge em conse-
quencia do obst6culo que a propriedade territorial e 0
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pagamento da renda da terra ao propriet6rio representa
para a reprodu~ao ampliada do capital e a acumula~ao
capitalista na agricultura. No nosso caso, surge a questao
agr6ria quando a pr9priedadeda terra, ao inves de ser
atenuada para viabilizar 0 livre fluxo e reprodu~ao do
capital, e enrijecida para viabilizar a suiei~ao do trabalha-
dor livre"ao capital propriet6rio de terra. Ela se tomainstrumento da cria~ao artificial de um exercito industrial
de reserva, necess6rio para assegurar a explora~ao da
for~a de trabalho e a acumula~ao. A questao agr6ria,
curiosamente, foi surgindo, foi ganhando visibilidade, a
medida que escasseavam as alternativas de reinclusao dos
expulsos da terra. Portanto, entre nos, ela e a face esca-
moteada da quesfao do trabalho, que se manifesto na
exclusao social.
Para mim, nao existe a questao da reforma agrana,existe a quesfao agraria. A reforma agr6ria e uma possi-
bilidade de solu~ao para a questao agr6ria. A questao
agr6ria e 0 problema e a reforma agr6ria e a solu~ao do
problema. H6 diferentes modalidades de reform~agr6ria
que poderiam ser respostas a questao agr6ria. E preciso
verI primeiro, 0que e a questao agr6ria no Brasil para
depois ver quais sao as propostas de solu<;ao que Ihe estao
sendo oferecidas. Nao so as que 0 Estado brasileiro
oferecel desde a ditadura militar, para a questao agr6-
ria. Mas, tambem, as respostas que os proprios trabalha-
dores, quando organizados, imaginam que seriam as mais
adequadas para a questao.
A questao agr6ria em nosso caso tem tudo a ver com
o fato de que a sociedade brasileira foi, ate nao muito
tempo atr6s, ate cem anos atr6s, uma sociedade escravis-
ta. Ate 1850, que e quando de fato se come~a a tomar
il1iciativas concretas para acabar com a escravidao, 0
acesso a terra era "livre". Nao havia 0atual regime de
propriedade, que e um regime fechado,o da propriedadeabsoluta, que 0regime envelheceu muito depressa, que
ele contem muitas imperfei<;6es e insuficiencias e, ao con-
tr6rio de todo direito, nao se tornou produtor de justi<;a
(nem dos direitos dos grandes propriet6riosL mas produtor
de problemas e iniquidades.
A questao agr6ria come~a a se definir quando 0Estado
brasileiro, no seculo XIX,pressionado por alguns setores
das elites e, sobretudo, pelas grandes potencias da epoca,que queriam expandir mercados (coisa impossivel com a
escravidao, pois escravo nao compra), decide acabar com
a escravidao. Acabar com a escravidao significava, naque-
la epoca, em que 0governo estava nas maos dos grandes
fazendeiros, criar um serio problema para a grande pro-
priedade, para os proprios fazendeiros. A pergunta que os
fazendeiros faziam, e com razao, era: "quem vai trabalhar
nas fazendas quando a escravidao acabar?"
o regime de propriedade que entao havia era 0regimede sesmarias, suspenso em 1822, poucos meses antes da
Independencia 1• Apesar de suspenso, nao foi imediata-
1. 0 regime sesmarial era 0 regime de posse do terra vigente em Portugal
quando da descoberta do Brasil e para co foi transplantado. Havia diferen-
<;05 substantivas entre esse velho regime e 0 novo regime que seria
estabelecido aqui atraves do chamada Lei de Terras, a Lei N° 601, de
setembro de 1850. No regime de sesmarias, a agricultor tinha reconhecidoum direito de posse, mantendo 0 rei (isto ii, 0 Estado) 0 dominio, a
propriedade eminente. A terra nao era propriedade do fazendeiro; era
apenas uma concessoo territorial. 0 rei estabelecia que se as terras noo
fosse dado uso produtivo num prazo relativarilente curto, muitas vezes de
dois anos, a concessoo caducava, as terras caiam em comissq, isto ii,
tornavam-se realengas, voltavam ao dominio do rei. Este, por sua vez,
podia concede-Ias novamente a outra pessoa, noo subsistindo nenhum
direito territorial em favor do primeiro ocupante. As benfeitorias feitas sobre
terras assim concedidas pertenciam de direito a quem as tivesse feito ou
mandado fazer. Um agregado de fazenda, por construir nela sua propria
casa, tornava-se proprietorio de cas a em terra alheia. Podia vende-Ia a um
terceiro, mediante simples pagamento de laudemio ao senhor da terra, aa
sesmeiro, mediante 0simples pagamento de um tributo. E muito comum,nos documentos dos seculos XVI e XVII, referencias a remanejamento de
direitos sobre terras concedidas em sesmaria. Ate pelo menos 0seculo XVIII,
era costume que noo podiam receber terras emsesmaria os qUE! nao fossem
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mente substituido por urn novo direito de propriecJade. Na
pratica ele continuava funcionando, embora 0governo
neo fizesse novas concessoes sesmariais. Se 0 regime de
sesmarias fosse plenamente restabelecido e continuasse
em vigor apos 0fim do escravidoo, que obviamente
estava proximo com a diminui~eo do numero de escravos,
os trabalhadores pobres e livres e os libertos ocupariam
livremente as terras disponfveis e nao iriom trabalhar para
os fazendeiros. Era necessario, portanto, criar um direito
de propriedade que fosse, ao mesmo tempol um obstaculo
ao livre acesso a terra por parte da massa da popula~ao
pobrel inclusive por parte dos ex-escravos1 daqueles que
viessem a ser libertados da escravidoo.
A formula encontrada foi a de aprovar uma nova lei
de terras. Essa lei (Lei N° 601, de 1850) fornou-se 0oposto
da Lei de Coloniza~ao, aprovada nos Esfados Unidos mais
ou menos na mesma epoca. La as terras da fronteira, as
terras do Oeste, foram abertas a livre ocupac;ao dos
colonos, mediante superviseo e confrole do governo. Essa
foi a reforma agraria americana, que assegurou a trans-
forma~ao do Oeste num dos grandes celeiros mUrldiais de
alimentos, inicialmente com a agricultura famil iar.
No Brasil fez-se 0contrario. Trafou-se de aprovar um
regime de propriedade que impedisse 0aces so a proprie-
dade da terra a quem neo tivesse dinheiro para compra-Ial
mesmo que fosse terra publica ou terra devoluia. Para
obter a legitima~oo do direito a terra havida era l1e<:essario
que a pessoa pagasse por ela. Os efeitos sociais da lei
aparecem clara mente no fala de um grande fazendeiro de
cafe, que foi uma grande figura de nossa historia no fim
do Imperio e no come~o da Republica: Antonio do Silva
Pradol de Sao Paulo. Ele era de uma familia muito rica e
culta, inclusive. Eles foram industriais, grandes acionistas
e diretores de ferrovia, banqueiros. Prado dizia que 0
acesso a terra, por parte dos pobres, dos trabalhadores,
se faria mediante a poupan~al a vida sobria, aquela coisa
de noo gastar, de economizar e guardar. No fundol a lei
pressupunha uma especie de etica protestante dos tra-
balhadores ruraisl que assim poderiam economizar, de-
senvolver uma disciplina interior baseada no poupan~a e
comprar terras que os gran des fazendeiros tivessem em
disponibilidade.
Essa e a formula que a Lei de lerras consagra. Em
18541 foi feito 0 primeiro cadastramento de terras decor-
rente dessa Leil pois era preciso que os possuidores de
terras havidas por qualquer titulo legitimassem os direitos
territoriais obtidos durante todo 0 periodo colonial ou entao
verificar quais terras eram de fato devolutas e podi'Clmser
redistribuidas pelo governo.
Na verdade, 0chamado Registro Paroquial de Terras eI
ate hoje a base de refer€mcia do cadeia dominial no Brasil.
Qualquer titulo de propriedade territorial cuia cadeia do-
minial chegue ate 0Registro Paroquial e urn titulo perfeito,
e urn titulo que nao esta sujeito a discusseo. Todos os titulosl
cuia cadeia dominial neo chegue a urn ato original legal
de transferencia de terras do dominio publico para 0
dominio privado, seo tifulos discutiveis. Ha no pais, certa-
mente, urn grande numero de titulos nessa condi~aol
inclusive em areas urbanas, causa alias neo SO de nume-
rosos litigios judicia is como tambem de serios conflitos
fundiarios.
brancos, puros de sangue e cat6licos. 0acesso as terras estova il1te•.ditado oos
hereges e aos gentios, aos negros, aos mouros, oos i udeus. Os es crovos n60
podiam se tornar sesmeiros, como de resto n60 podiam :ser Jlropriet6rios de coisa
alguma. Tudo que viesse 0Ihes pertencer, pertencia de direito a seu:s se nhores.
Essa regra suscitou muitas discussoes jurfdicas, que revelam as muitOlS contradi-
~oes da escravidoo. Pela Lei de Terras, de 1850, a posse eo dornin io s..efundirom
num direito s6. Com isso, 0Estado brasileiro, senhor de dominio de todas os
terras, abriu moo desse direito e literalmente fez dele doo<;ao oos proprietarios
particulares. Monteve 0 dominio apenas em al9 uns· casos: e:111Irela ~ao 00
subsolo, as terras de marinha e as terras do otuol Distrito Federal.
A mesma legisla~eo que criou a mencionada dificulda-
de de acesso a propriedade da terra ja previa a imigra~eo
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macic;a de trabalhadores europeus que substituiriam os
escravos que estariam faltando. Noo s6 porque os escra-
vos existentes, se libertados, noo seriam suficientes para
suprir as novas necessidades da lavoura, sobretudo na
area do cafe que estava em expansoo. Mas, tambem, porque
os escravos existentes eram os escravos que ja estavam
trabalhando nas fazendas e que, provavelmente, mesmolivres, delas noo sairiam. Porem, como ficariam as novas
fazendas que estavam surgindo?
Na mesma ocasioo em que se aprovava a Leide Terras,
aprovava-se a lei que proibia, dai em diante, 0trafico de
escravos para 0Brasil. Ficava, assim, criado 0 problema
do suprimento de moo-de-obra para a grande lavoura. A
saida era, entoo, promover a imigrac;oo de trabalhadores
estrangeiros, especialmente europeus de paises em que a
expansoo capitalista estava promovendo ampla expulsoo
de trabalhadores da terra e criando excedentes populacio-
nais. S6 que se os trabalhadores europeus chegassem aqui
e encontrassem a terra disponivel para pessoas, como
eles, brancas e livres, noo teriam por que deixar de ter sua
pr6pria terra e trabalhar para os fazendeiros.
E preciso lembrar que a escravidoo era, entre outras
coisas, um modo de forc;ar a criac;oo de uma massa compul-
s6ria de trabalhadores onde noo houvesse pessoas em
numero suficiente disponiveis para serem forc;adas ao
trabalho em terra alheia. Cessada a escravidoo, era ne-
cessario criar um mecanismo que tornasse 0trabalho nas
terras dos fazendeiros 0unico meio de sobreviver. 0 direito
de propriedade da terra que se implanta no Brasil nesse
momento, e em vigencia ate hoje, tem essencialmente
essa finalidade: tornar 0trabalho em terra alheia, em terra
dos grandes proprietarios, 0unico meio de sobrevivencia
dos pobres. Trata-se, portanto, num pais que tem vastas
extensoes de terras subutilizadas em moos de proprietarios
particulares, de criar um meio artificial de forc;ar quemnoo tem terra a servir quem a tem. S6 que, nos dias atuais,
com as modernas tecnologias, quem tem ja noo precisa
do trabalho de quem noo tem ou, ao menos, noo precisa
de toda forc;a de trabalho de quem noo tem.
Isso tudo tinha a ver com 0fato de que antes, no regime
de sesmarias, 0 problema noo existia. S6 podia tornar-se
senhor de terras quem fosse branco e livre e, ate uma certa
epoca, cat6lico. Havia uma interdic;oo racial e religiosa noacesso a terra. Na base, esse acesso estava regulado por
criterios baseados na relevoncia da pureza de sangue e da
pureza de fe. Dessas concepc;oes derivava um direito que
era 0direito dos vencedores e dominadores de gentes de
outras rac;as e outros credos. Entoo, 0direito noo se
configurava em relac;oo a pessoas que tivessem, por exem-
plo, como entoo se dizia, macula de sangue, pessoas que
noo eram brancas de quatro costados, cujos bisav6s noo
fossem, tambem eles, brancos e puros de sangue. Todos
sabemos que essas definic;oes rigidas tinham excec;oes,
estabelecidas de modo nem sempre juridicamente daros.
E que s6 em meados do seculo XVIII0governo portugues
baniu formalmente a distinc;oo racial como fator de discri-
minac;oo dos indios e seus descendentes no reconheci-
mento de alguns direitos. Mas em muitos lugares ela
persistiu pelo costume.
5e essas interdic;oes desaparecessem, como de fato
comec;avam a desaparecer com a Independencia e, de-
pois, com a Lei de Terras, se acabasse a escravidoo, as
terras desocupadas do pais, que eram extensas, ficariam
disponiveis para a livre ocupac;oo de quem as quisesse
ocupar e nelas trabalhar. Era preciso, pois, criar mecanis-
mos que gerassem artificialmente, ao mesmo tempo, ex-
cedentes populacionais de trabalhadores a procura de
trabalho e falta de terras para trabalhar num dos paises com
maior disponibilidade de terras livres em todo 0mundo,
ate hoje.
Eis of 0n6 da questoo. 0 objetivo era criar "por meios
falsos" uma massa real e verdadeira de "despossufdos"
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(para usar uma palavra que nao tem senti do em portu-
gues), que nao tivesse nenhuma outra alternativa senao
trabalhar para os grandes proprietarios de terra. A L ei de
Terras foi um artificio para criar um problema e, ao mesmo
tempo, uma so/u~ao social em beneficio exclusivo dos que
tinham e tem terra e poder. Nessa epoca, porem, as elites,
que eram ao mesmo tempo elites economicas, politicas e
intelectuais, ainda tinham uma ampla compreensao dos
meios e fins envolvidos nos mecanismos sociais e politicos
que criavam e manipulavam para exercer 0 poder.
Em muitos sentidos, era uma elite competente e admi-
ravel, com uma razoavel consciemcia social e politica, e
razoavelmente ciente de suas responsabilidades sociais (e,
obviamente, de seus privilegios). Essa consciencia e essa
ciencia vinham provavelmente das rela<;6es patriarcais, no
regime de escravidao, entre a casa grande e a senzola. 0
escravo era, no fundo, um animal de servi<;o e, portanto,
um desvalido. Mas, era ao mesmo tempo um bem, uma
mercadoria, imobiliza<;ao de capital. Coisa e pessoa se
confundiam nessa rela<;ao ambigua e era nessa ambigui-
dade que nascia 0sentido da responsabilidade humana
do senhor pelo seu escravo. E claro que a ambiguidade se
desdobrava na complicada combina<;ao de afeto e violen-
cia, que fazia do mundo da fazenda um mundo organico
e fechado, e obrigava 0senhor a consciencia e as obriga-
<;6esde patriarca nao so em rela<;ao a sua parentela, mastambem em rela<;ao aos agregados, protegidos e cativos.
A Lei de Terras, ao criar legalmente, e ao confirmar
social e politicamente, urn monopolio de classe sobre as
terras do pais, foi, na verdade, 0 primeiro passe importan-
te no sentido de destruir esse mundo patriarcal, essas
rela<;6es e essas concep<;6es que tornavam radicalmente
desiguais os semi-humanos (os semoventes, como entao
se definia os escravos, pondo-os na mesma condi<;ao dos
animais de trabalho), os subhumanos (que eram os nao
cativos e nao proprietarios, que so tinham existencia civil
do senhor de escravos e de terras, reduzidos a
condi<;ao de agregados e protegidos) e os humanos (que
os brancos, em rela<;ao aos quais nao pairava qual-
duvida quanto, por exemplo, a terem alma).
No entanto, 0fim do mundo patriarcal se deu por meio
de uma agonia lenta e, a rigor, ainda nao esta consumado.
Quando Tancredo Neves morreu, todos fica ram sabendo da
existencia de urn negro velho em sua familia, uma especie
de irmao de cria<;ao, que ainda sobrevivia como membro da
familia extensa e antiga, remanescente e descendente de
seus escravos. Ha ainda hoje no Brasil muitas familias que
honram seus compromissos socia is e morais com os antigos
cativos e seus descendentes. 0 Mosteiro de Sao Bento de
Sao Paulo teve como empregados e protegidos ate ai por 1971
descendentes de antigos escravos, libertados em 1871, de uma
mesma familia que 0servia desde 1700. Um descendente
desses escravos tornou-se professor universitario no Rio de
Janeiro e faleceu ha poucos anos.
A agonia desse mundo escravista e patriarcal prolon-
gou-se ate meados dos anos cinquenta, com suas rela<;6es
de favor e dependencia pessoal, sua violencia eS!5ecifica,
seus conflitos dissimulados e sua explora<;ao caracteristica.
Ate entao as diferentes rela<;6es entre 0homem e a terra,
mediadas pelo mono polio de classe instituido no seculo
XIX,davam razoavelmente certo, mesmo com uma enor-
me pobreza no campo. Uma pobreza, porem, curiosa, queainda hoje desperta nostalgia nos antigos camponeses
agora reduzidos a uma miseria completamente diferente.
Quase nao havia dinheiro nas rela<;6es de trabalho. A
possibilidade de uso da propria terra do fazendeiro por
parte do trabalhador para assegurar sua subsistencia e a
de sua familia e a possibilidade de moradia na propria
fazenda criava uma pobreza peculiar. 0 trabalhador pro-
duzia diretamente seus proprios meios de vida, nao pas-
sava fome. 0 mundo pobre do caipira e do sertanejo era
um mundo de fartura.
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Mas, ao mesmo tempo, ele neo era um comprado~ um
consumidor de produtos oriundos de outros setores da
economia sobretudo do setor industrial, senao em mo-
desta esc~la. Isso nao foi problema enquanto 0 Brasil
exportava produtos agricolas, como cafe e a~ucar,. e im-
portava da Europa e dos Estados Unidos produtos mdus-
trializados. Passou a ser problema com a industrializa~ao do
paiS, a partir do final do seculo passado, e a o~vi~ n~ces-
sidade de mercados de consumo por parte da mdustna. A
rigor, a necessidade de expanseo do mercado interno para
a industria deveria ter colocado os industriais a favor da
reforma agraria contra os grandes proprietarios de terra.
Mas, a burguesia industrial brasileira nunca foi politica-
mente participante e vigorosa e nunca teve uma consci€m-
cia de c1asse que a tornasse protagonista decisiva dos
destinos do pais. Sobretudo, a contradi~ao historica entre
a terra e 0capital nunca tomou corpo e visibilidade numconflito de interesses entre os grandes proprietarios e os
industria is.
Entre as vel has elites e as novas elites estabelecera-se
uma especie de compromisso politico, mediante 0qual os
industria is e os grandes comerciantes tornaram-se gran-
des c1ientes politicos das oligarquias, as quais delegaram
suas responsabilidades de mando e dire~ao, reproduzindo
os mesmos mecanismos politicos que vitimavam todo 0
povo e impediam um efetivo. desenvolvimento da demo-cracia entre nos. Emtroca recebiam favores fiscais, subsidios
e incentivos, favores economicos variados das proprias
oligarquias de base rural. Entre nos, nunca se configurou
como na Europa e, de certo modo, como nos Estados
Unidos, um conflito historico significativo entre os indus-
triais e os grandes proprietarios de terra que tornasse
inadiaveis as reformas socia is e pollticas, em especial a
reforma agraria, que transformassem 0 pais num pais
moderno. A nossa moderniza~eo tem um estilo proprio:
ocorre intensamente na area economica, inclusive no
campo, sem significativas repercuss6es no ambito social
bretudo, politico. Esse e, ainda hoje, penso, 0nosso
asse historico.
,A partir dos anos cinquenta, aproximadamente, come-
a . haver uma especie de revolu~eo tecnologica no
po. 0 proprio governo come<;a a estimular, atraves de
nciamentos subsidiados do Banco do Brasil, dos bancos
iais em geral e dos bancos particulares, a moderniza~aotnologica com a mecaniza~ao das grandes fazendas;
6rne~a a estimular a substitui<;ao dos cafezais velhos e
eficitarios de Sao Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas
$erais, por outros cultivos ou por pastagens. Foi 0chama-
do programa de erradica~ao do cafe, que se completou
no come~o dos anos sessenta. Tratava-se de cafezais
de baixa produtividade e de cafes de ma qualida-
e pouca aceita<;ao no mercado. A ideia era reduzir as
de plantio e promover a produ<;ao de cafes finos que
boa cota~ao no mercado internacional.
Com isso, come<;ava-se a expulsar, das fazendas de
os colonos residentes. Terminava, assim, 0regime de
que nascera com 0fim do trafico de escrgvos e
durara cerca de setenta anos. Na area da cana-de-
no Nordeste, houve uma coisa mais ou menos
parecida. Ali neo houve uma mudan~a tecnol6gica signi-
ficativa, mas houve a expulsao dos moradores das fazen-
das como uma forma de recuperar as terras que os
trabalhadores usavam para produzir seus proprios alimen-
tos. Os proprietarios passaram a dar um destino diretamente
rentavel a essas terras. Surgem, entao, os chamados
lc1andestinos/, os boias-frias de la, os moradores de ponta
de rua, os expulsos das fazendas de cana. Pouco tempo
depois, nos anos sessenta, na Amazonia, come~a a expul-
sao de posseiros e seringueiros, que ganha grande inten-
sidade e viol€mcia nos anos setenta e oitenta e vem ate
hoje.
Por diferentes razces e causas, no Brasil inteiro, os
ultimos cinquenta anos tem sido anos de mudan~as no
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economia agricola, nos setores mais importantes, que
levam ao aparecimento, em escala maci<;a, do que pode-
mos chamar de proletario agricola, 0trabalhador que ja
neo reside na propriedade de quem ocasionalmente - 0
fazendeiro - compra a sua for<;a de trabalho em troca de
salario.
o que acontece, entcio? Com a moderniza<;ao tecno-
logica vem simultaneamente a moderniza<;ao das rela<;oes
de trabalho. Com a aprova<;ao do Estatuto do Trabalhador
Rural em 1962, os vinculos de trabalho passam a ser
contratuais e neo mais vinculos de depend€mcia pessoal,
de favor. Com essa mudan<;a, a mesma legisla<;ao fundia-
ria, 0mesmo direito de propriedade que criava excedentes
populacionais pobres absorvidos pela grande proprieda-
de, passa a criar excedentes populacionais que nao sac
absorvidos por ninguem. Come<;a a surgir ai, efetivamente,
a cara de excedente populacional dessa massa de popu-la<;ao, os excluidos. El a surge nas favelas, surge nas cha-
madas beiras de rua das cidades do interior, surge nos
aglomerados urbanos de pessimas condi<;oes de vida,
invasoes, corti<;os, etc. Surgem ate aglomera<;oes urbanas
de migrantes temporarios, como o~ cortiesos proximos afavela do Jaguare, em Sao Paulo. E uma favela enorme
cujos habitantes, em parte, vem do Nordeste por seis
meses cada ana para trabalhar na cidade, ganhar algum
dinheiro, voltar para casa e sustentar a familia. Muitas
vezes, os homens fazem es"sa migra<;ao temporaria e
ciclica unicamente para nao ser uma boca a mais na casa
de origem. Surge, assim, um enorme problema nacional
que e 0 problema dos excedentes populacionais, a popu-
laesaosobrante, os excluidos, para os quais nao existe lugar
estavel de trabalho e vida, que sao absorvidos pela eco-
nomia marginal e precariamente.
No seculo XIX,quando os politicos e grandes proprie-
tarios de terra e de escravos perceberam que era neces-
sario acabar com a escravidao e mudar as rela<;oes de
alho, perceberam, tambem, que era necessario mudar
reito de propriedade. Era necessario fazer 0inverso de
reforma agraria. Nos anos sessenta, deste seculo,
dndo a revolu<;ao tecnologica impos mudanesas radicais
5rela<;oes de trabalho, os proprietarios de terra reieita-
a necessidade de fazer mudan~as correspondentes e
aptativas no direito de propriedade. Recusaram-se a
er a necessaria reforma agraria. Selaram, por isso, 0destino
pais e de todos n6s, condenando-nos a moderniza~eo
conclusa, a um desenvolvimento economico excludente
a um modelo politico de democracia precaria e neo
articipativa.
A esquerda tradicional, leninista, dizia, e por incrivel
pare<;a ainda diz, que esse desenraizamento do tra-
rural e, na verdade, progressista, um bem, porque
o operario e, assim, abre caminho para transformar 0
em cidadao. E rotula de populistas os que se pfligem com a enorme miseria e a enorme degrada<;eo
moral que atinge maci<;amente as vitimas desse processo.
S6 que esses leninistas de manual, que, de modo geral,
neo conhecem suficientemente 0 pais em que vivem, que
neo leram Marx nem Lenin, neo sabiam, e pelo visto
continuam nao sabendo, que 0mundo mudou enorme-
mente desde os tempos de Marx e Lenin e desde 0tempo
das primeiras revolu<;6es socialistas. Hoje 0mercado de
trabalho e muito restrito e seletivo para 0volume das
massas excedentes de popula<;eo que esteo sendo criadas,
sobretudo nos paises subdesenvolvidos, como 0nosso. No
verdade, essa produesao de excedentes populacionais cria
uma miseria profundamente desumanizadora, que neo
politiza nem anima a possibilidade da revolueseo social.
Antes, a freia. Quem estuda problemas socia is como 0dos
linchamentos, que venho estudando, que sac formas pa-
tol6gicas de vida social e de aplica<;eo da justiesa, formas
negadoras da civiliza<;eo e da cidadania, observa que elas
surgem especial mente associaclas aos aglomerados hu-manos formados pelos desenraizados, expulsos, excluidos.
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Neles noo nasce 0cidadoo. A expulsoo do campo noo cria
o cidadoo. 0 esmoleiro noo e urn cidadoo. A pessoa que
vive marginalmente em rela~oo as oportunidades econ6-
micas tem escassa e limitada possibilidade de se tornar
cidado.
E evidente, como ja disse, que 0desenraizamento liberta
o trabalhador dos vinculos de dependencia pessoal em
rela~oo ao fazendeiro; liberta-o noo so de uma certa servi-
doo material, mas tambem da servidoo ideologica que nele
nega 0individuo, 0sujeito de contrato e igualdade, como
nega nele e para ele a cidadania. E disso que falam tais
"teoricos". Mas, noo conseguem ver nem entender a contra-
partida dramatica desse processo, a exclusoo integrativa e
marginal que anula em grande parte a aludida liberta~oo.
onivel de desenvolvimento industrial do pais, quando
as expulsoes come~aram, noo foi suficiente para absorver
esses excedentes populacionais. Depois, como estamos
vendo agora, a industria e compelida a se modernizar para
se tornar competitiva no mercado internacional e mesmo
no mercado interno em face da concorrencia dos produtos
estrangeiros. Portanto, esse setor noo absorve moo-de-obra
de baixa qualifica~oo, como a de origem rural. Ele absorve
moo-de-obra de alta qualifica~oo profissional, que leva,
as vezes, uma gera~oo inteira para serformada, que exige
muita e boa escolaridade. Noo e esse, de modo geral, 0
caso dessas popula<;oes excedentes, que, no maximo, podera se tornar profissionalmente adequada a economia
moderna daqui a duas gera<;oes, para os filhos ou para os
netos dos atuais excedentes. 1550 se houver uma politica
consequente nesse sentido, que tambem noo ha. 0 Estado
brasileiro e suas muitas ramifica<;oes noo tem efetivamen-
te uma politico de integrac:;oo digna dos excluidos, que va
alem do mera e precaria integra<;oo economica do cha-
mada economia invisivel.
E isso que constitui a questoo agraria no Brasil. A questooagraria noo esta apenas em sua causa na concentrac:;oo
I1diaria; ela esta tambem em suas consequencias socia is
banos. E uma questoo agraria porque ha no pais uma
a e, sobretudo, irracional concentra~oo da propriedade
terra, inutilmente, nos moos de uma popula<;oo muito
. inuta de grandes proprietarios. Esses proprietarios
sam suas terras, quando as usam de modo economica-
ente correto, estimulados pelo Estado, atraves do em-
rego de tecnologia sofisticada, de altos financiamentos
ubsidiados, ete. Alem disso, no geral, essa gente desco-
riu que a terra e reserva de valor e po de ser utilizada
como meio de especula~oo. A propriedade da terra, em
nosso pais, tende a ser especulativa, seja na moo do rico,
seja no moo do pobre, quando a consegue. Isso noo
depende das pessoas. A escassez relativa da terra e que
faz com que ela possa ser facilmente instrumento de
~specula<;oo. Em nosso caso, tem sido, ate mesmo, um
meio de vida das elites, no ultimo seculo e meio. As elites,
as pessoas ricas do pais, em parte vivem dessa especie de
que a sociedade inteira e obrigada a pagar a elas
terem acesso a terra ou mesmo 005frutos do terra.
o que os c1assicos da economia chamavam de renda da
As nossas elites tendem a ser mais rentistas do que
o que e bem diferente das elites que 0capita-
criou nos paises desenvolvidos.
o nosso problema agrario esta ai: uma area enorme
de terra subutilizada ou noo utilizada, em boa parteempregada de modo improprio ou especulativo, sobretu-
do como reserva de valor. Ao mesmo tempo, uma grande
massa humana vitimada e penalizada pelos mecanismos
exclusoo que expus antes, os mesmos instaurados no
seculo XIX,e que agora a excluem do acesso a terra e, 00
rnesmo tempo, noo estoo articulados com novos meca-
nismos de reabsor<;oo dos excluidos. Essencialmente, as
grandes transforma<;oes socia is pelas quais 0 pais tern
passado desde que a escravidoo entrou em declinio e
cessou, revelaram que 0direito de propriedade gerado
pela Lei de Terras, de 1850, era urn direito historicamente
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muito provis6rio. Eque foi transformado em definitivo. Na
medida em que os mecanismos de exclusoo economica
por ele gerados para forc;ar um tipo especifico de reinclu-
soo do trabalhador na economia agrario-exportadora de
entoo ja noo soo compensados por novos mecanismos e
padroes de reinclusoo economica, a insistencia num direi-
to fundiario obsoleto transforma-se em fonte permanente
de exclusoo social.
Para mim, a questoo agraria tem duas caras: primeiro,
essa cara social, ruim. Ela e a fonte basica dos grandes
problemas sociais do Brasil. Quando pense em problema
social, penso na deteriorac;oo das condic;oes de vida, noo
s6 na deteriorac;oo material, mas tambem na deteriora~oo
moral que a acompanha. Noo pode haver cidadoo, noo
pode haver civilizac;oo, numa sociedade que tem uma
massa too grande de gente sem nenhuma oportunidade de
se inserir na unica via que nela ha para gestar e sustentar
a cidadania, que 130 mercado de trabalho. S6 quando voce
esta no mercado eque voce pode ser cidadoo, voce pode
ter direitos, etc. Fora disso, voce noo existe, voce noo 1 3
ninguem. Tratar a cidadania como coisa abstrata, como
mera palavra, ja e, em si mesmo, um ate de omissoo em
relac;oo a ela. Cidadoo exduldo de relac;oes sociais con-
cretas mediadas pela igualdade e pelo direito noo e
cidadoo nem aqui nem em lugar nenhum.
Mas, de outro lado, penso que ha uma contrapartidadessa miseria, que e parte da questoo agraria; uma contra-
partida dessa dinomica errada, que e a de continuar
produzindo excedentes populacionais quando 0 pais noo
tem mais condic;oes de absorve-Ios. 0 que, por sua vez,
revelou uma elite ociosa, especulativa e noo raro corrupta
ou corruptora. Uma elite que se revelou incompetente
para administrar corretamente a riqueza que Ihe chegou
as maos em decorrencia do monop61io da terra e da
explorac;oo e miseria de muitos. Ela noo foi capaz de criar
alternativas sociais de reincorporac;oo desses excedentes
ulacionais. Pensou apenas em seus privilegios econo-
s e politicos. Uma elite que restaura continuamente
cdnismos de poder pessoal, apoiados na violencia legal
xtralegal. Voce tem alguma duvida sobre isso? Leia 0
os jornais costumam publicar sobre a chamada Repu-
a de Alagoas. Cinco familias mandam em todo um
do, mandam na vida, na consciencia das pessoas,
em 0que bem entendem, manipulam a policia e as
stituic;oes. E trabalhadores alagoanos sac encontrados
mo escravos nas plantac;oes de cana-de-ac;ucar do Mato
rosso do SuI.
{Ii> 0 caso do assassino de Chico Mendes e outra eviden-
Cia desse quadro tenebroso de irresponsabilidade. 0 su-
Jeito consegue fugir de uma prisoo do Estado e depois
qinda adquire terra de posseiro na esperanc;a e quase
seguranc;a de ter a terra legitimada pelo INCRA (Instituto
Nacional de Colonizac;oo e Reforma Agraria). Isso parece
nedota. No entanto, e apenas expresseo da flacidez das
e da irresponsabilidade das elites que delas se
r
As elites, no Brasil, noo soo capazes de perceber a crise
que elas pr6prias criam, no mlnimo por omissoo. E
abrem caminho para sua soluc;ao. Mandam sem ter
mandato verdadeiramente legltimo, pois no geral nao
a vontade coletiva, apenas a coletiva omissoo.
porque 0sistema eleitoral brasileiro continua sendo
sistema viciado e tendencioso, que funciona com
mecanismos populistas, paternalistas, corporativos, absolu-
tudo que e negac;oo da politica. Mecanismos arcai-
de definic;oo da representac;ao politica, modernizados
fachada pela riqueza anormalmente concentrada e
meios modernos de comunicac;oo de massa.
Alem disso, as elites estao sobrerrepresentadas no
cenario e nas institui~oes politicas. Os estados atrasados,
dominados pelo c1ientelismo politico e pela politica do
favor, estao mais representados do que os estados mais
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modernos, onde predominam os eleitores que votam como
cidadeos. Ha cerca de 180 representantes dos chamados
ruralistas na Camara dos Deputados, 0que corresponde a
mais de um ter~o dos votos. Mas, demograficamente, as
elites nao setO um ter~o da popula~ao. Portanto, esteo
usurpando 0lugar de alguem, alguem que neo esta la
corretamente representado, estao ocupando certamente
o /ugar dos pobres e dos que traba/ham. Sao destituldos
do sentido da responsabilidade social e coletiva, pois,
constantemente legislam em causa propria, em defesa de
seus injustos privilegios, como se ve frequentemente no
noticiario jorna/Istico. Nao cuidam dos problemas socia is
da popula~eo, neo percebem que estao em perigo. Toda
a popula~ao sofre, mas €lIas esteo em perigo, estao cor-
rendo um risco real.
JST- Eugostaria quevoce
desenvolvesse maisa
questao da terra como problema politico.
Jose de Souza Martins - Esse e outro lado da questao.
Sendo a contrapartida de elites incapazes, mas oportunis-
tas, as esquerdas tem uma historia de dificuldades para
lidar com muitas das questoes pollticas nacionais, como 0
aludida questao da moderniza~ao e a da igualdade no
representa~ao polltica dos estados e no voto de cada eleitor.
Nossas esquerdas sac fragmentadas, ideologicamente fra-
geis, quase sempre sem solidez doutrinaria. Muitos de seus
adeptos se dizem marxistas e nao conhecem Marx seneo por
meio de textos de vulgarizadores que simplificam, deformam
e dogmatizam. 5e considerarmos que um de nossos mais
importantes partidos de esquerda chegou a ter a figura do
"filosofo oficial", a quem cabia decidir 0que era verdadeiro
e 0que era falso para os membros do partido, uma especie
de censor e inquisidor, podemos ter uma ideio das grandes
limitac;;oesde uma praxis polltica fundada num conhecimen-
to precario e policial.
Criou-se em muitos grupos de esquerda um verdadeirohorror ao conhecimento das teorias, a reflexao teorica, ao
I1Uoconfronto entre teoria e pratica, a revisao critica
oria e da pratica. E assim se generalizou, nos partidos
'i0es, a curiosa concep~ao de que ideologia de es-
da neo e ideologia e de que a pratica e a vida estao
dos, a ideologia e que e correta. 5em contar, eviden-
ente, aqueles grupos chegados tardiamente a esquerda,
ndos dos movimentos socia is, e que fazem a apologia(sua) pratica particular contra toda intervenc;;ao teorica
possa resgatar a dimensao propriamente de praxis
.sas a~oes e desses atos fragmentarios e dispersos. A
menta'iao e 0corporativismo de nossas esquerdas, no
modo de ver, vem justamente das fragilidades gera-
por essa especie de esquizofrenia politica que separa
ria e pratica. Fragilidades que se expressam no espfrito
seita, no dogmatismo e no fundamenta/ismo, ingre-
ntes muito similares aos das seitas do neopentecosta-
mo de mercado em franca exp/osao nos dias atuais. 5e
esquerdas de nosso pafs se dispusessem a um mlnimo
to/erancia reciproca e democratica e tivessem me/hor
mpreensao do momento brasileiro, nos nao estarfamos
da esdruxula situac;;ao politica atual em que 0
originario da esquerda e pela esquerda abando-
e obrigado a dispender um tempo enorme e enor-
recursos com uma alian~a polltica com as oligarquias,
segura 0 processo historico e impede a modernizac;;ao
pais. Ao inves do paIs estar negociando desbloqueios,
negociando solu~oes concretas e democraticas , para seus problemas sociais.
Do mesmo modo que 0governo, no que se refere aagraria, sao incapazes de compreender 0carater
de alguns grandes problemas nacionais.
essa compreenseo ja constituiria uma atitude de esquer-
Isto E l, sac incapazes de compreender que alguns
e.sses problemas jamais serao resolvidos sem alianc;;as
.c1ma dos partidos, entre as classes socia is e os grupos de
Interesse. A questao agraria e um desses problemas, provavelmente 0maior deles. Portanto, tanto quanto a
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direita, 500 incapazes de fazer acordos com outros grupos
e partidos politicos. 1550 cria muitas dificuldades para se
tratar desse tema no plano parlamentar ou no plano do
rela~ao dos partidos de oposi~ao com 0governo. E posslvel
que estejamos perdendo uma oportunidade historica,
como a que se propos no seculo passado com a possibili-
dade do fim do escravidao, de interferir nos rumos politicos
do pais acima das paix6es e dos dogmas partidarios, para
desbloquear um dos entraves mais solidos 00desenvolvi-
mento social do povo brasileiro, que e a questao agraria.
Todos sabemos que as esquerdas se defrontam em
desvantagem com as elites por sua inferioridade numerica.
Mas, em desvantagem, tambem, porque no maioria dos
casos nossas elites, no geral, nao sac patriotas, nao sac
capazes de colocar os interesses do patria acima de seus
interesses privados e pessoais. Por isso, aqui as esquerdas
deveriam tambem ter um popel pedagogico. Penso que
alguns dos nossos politicos de esquerda tem uma boa
compreensao do fato. S6 assim e posslvel lidar com essa
maquina polltica viciada pelos interesses imobilizadores
do propriedade do terra.
Hoje, essa elite, cuja raiz esta na propriedade fundia-
ria investe no banco e no fazenda, no industria e no,
comercio. Ela e multi pIa. Nao e uma elite c1aramente
fragmentada pela oposi~ao entre os interesses agrarios eos interesses propriamente capitalistas como 0 foi no
historia europeia. Essa unidade de interesses agrario-ca-
pitalistas por si mesma ja fragiliza uma interven<;ao con-
sequente das esquerdas no processo politico, nos
esquemas de alian~as posslveis. 1550 talvez explique por
que esse quadro, de um lado, e a fragmenta~ao e intole-
rancia ideologica das esquerdas entre si, de outro, deixa
o coda um dos grupos de esquerda e centro-esquerda,
como se ve atualmente (e se veria no eventualidade de
que outro partido de esquerda ou de centro-esquerdativesse eleito 0Presidente do Republica), como unica alter-
iva de interven~ao no processo politico, u
ia~ao de esquemas de alian<;a com O s Q lig 'titqque chamo, num de meus livros, de poder do
Essa gente tem ainda hoje 0controle do aparelho de
do. Eo que, no meu modo de ver, imp6e que se distinga
pre com prudencia entre aparelho de Estado egover-
Nem durante a ditadura militar, tiveram os governos 0
pleto e efetivo controle do aparelho de Estado. Nem
ulio no ditadura de 1937 a 1945. Voce pode ir a
Iquer lugar do Brasil, para tratar de qualquer assunto,
de problema de saude ate reforma agraria e, inevita-
ente, encontra pela frente 0 poder, a presen~a insi-
sa desse pessoal, do politico local, do oligarca, que age
fun~ao de seus interesses privados e que e incapaz de
umir com ime~ssoalidade as fun~6es socia is do Estado.
deputado federal oligarquico tem tent6culos que se
ilarizam pelos ministerios e agencias governamentais,
avessam governos estaduais e prefeituras e chegam
erosamente 00 balcao de servi~os governamentais 00
c : > do caso do eleitor. 0 que este requer e solicita recebe
o se fossem favores de sua excelencia e nao eUreitos
cidadao. Eles tem 0controle de tudo porque mandam
funcionario, que manda no outro funcion6rio, que
nda no terceiro funcion6rio que atende voce 16no posto
saude ou no escritorio do INCRA. Todos devem favor a
em, todos, de algum modo, sac dependentes deuem. E, no fim, 00 inves de se tornar sujeito de um
ito, voce se torna devedor de um favor feito as custas
dinheiro publico, como se fosse um favor particular e
ssoal.
Jose de Souza Martins, 0 poder do atraso (Ensaios de sociologia da historia
lental, S60. Paulo, Editora Hucitec, 1994.
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Qualquer pessoa que chegue a Presidencia do Repu-
blica nao governa sem fazer acordos politicos com eles.
Nem Fernando Henrique nem Lula, nem ninguem.
Nem mesmo os militares, com toda sua prepotencia e
sua maquina de terror, conseguiram remover do cenario
politico a influencia dessa gente. Eles se metamorfoseiam
com facilidade. Se os ventos veo para a direita, eles veo para a direita. Se vao para a esquerda, eles vao para a
esquerda. Sao verdadeiros extremistas, sac politicos de
extremo-centro. Voces podem examinar a biografia dos
politicos que vieram de antes do ditadura, conviveram com
a ditadura e sobreviveram a ditadura; os varios que trafe-
garam do Arena, 0 antigo partido do ditadura, para 0
PMDB ou para 0 PH, vestiram fantasia de democratas ou
de liberais, alguns se tornaram condestaveis do Republica.
Eles mudam de colora<$ao e permanecem. Ou nem mudam
tanto. Seu partido neo e de direita ou de esquerda ou de
centro. Eles seo do partido do poder. Se os comunistas
tivessem chegado 00 poder, eles teriam se tornado comu-
nistas. Se 0 Estado brasileiro se convertesse num estado
teocratico, eles passariam a ir a missa todos os dias e nao s6
nos dias de gala e exibi<$eopolitico no catedral de Brasilia.
Ou seja, 0 problema e um problema estrutural do Estado
brasileiro.
o golpe militar que imp6s a ditadura decorreu em
grande parte do dificuldade para resolver a questeo agr6-ria. No final dos ones cinquenta e inkio dos anos sessenta,
a questeo agraria come<$oua se tornarvislvel atraves do a<$eo
das Ligas Camponesas e depois, tambem, do a<$eoainda que
titubeante do Igreja Cat61ica no campo. 0monop61io do
terra por essa elite, como base de sustenta<$ao de um setor
importante do poder, estava amea<$ado. A reforma agraria
comprometia a base de poder. Uma reforma agr6ria dis-
tributiva que fragmenta e redistribui a propriedade, solapa
a base de exist€mcia politico dessa gente, que e 0 latifun-
dio, a grande propriedade. 0golpe de Estado foi dado,
e a reforma agr6ria exigida e necessaria sola poria
<:Jmentea base de sustenta<$eo do Estado, do sistema
o. A estrutura e a composi<$eo politico do Estado
ria. Os grandes proprietarios de terra e seus interes-
ssariam a ter uma participac;ao politica no Estado
rcional a sua importoncia demogrCifica e noo mais
ialmente proporcional a sua descabida importoncia
ornico e fundiaria. Os trabalhadores rurais, que nun-
verarn representac;eo politica, que sempre falaram
yes dos proprietarios de terra, passariam a falar dire-
ente, em seu pr6prio nome. 0golpe de Estado foi
p, portanto, para evitar a chamada revolu<$eo agraria.
io de equlvocos, porque os pr6prios militares, como
\J claro ao tango do tempo, neo tinham a menor clareza
rica sobre os grandes dilemas do pais envolvidos no
pe que praticavam contra as instituic;oes e contra a
ocracia. Essencialmente, a dinomica do processo vi-das inquieta<$oes rurais. Vinha, tambem, do medo ao
~nismo e vinha, ainda, da 6bvia manipula<$eo de
.dor posta em andamento pelo governo americano.
erguer a barreira do golpe contra a reforma agr6ria
se desenhava no agenda politica do Estado populista,
encadearam uma enorme represseo, que, afinal, neo
Iveu 0 problema agrario, pois era ele um problema
'iutural e neo urn problema ideol6gico. As tensoes
i ! 1 tinuaram crescendo e os trabalhadores rurais estao 01
~endo presseo e reivindica<$eo ate hoje.
Os militares tiveram a oportunidade de fazer, a seu
, a grande reforma social de que 0 pais precisava,
e e a reforma agraria. Como eles mesmos pretendiam
m a mediac;ao dos grupos de presseo que davam esta~
ra e direc;ao politicos a necessidade de reforma agraria.
Estatuto do Terra era uma proposta bastante raz06vel
/p ..aquele contexto. S6 que eles usaram 0 Estatuto com
ijf1nalidades puramente estrategicas, com finalidades mili-
res e repressivas. 0governo militarfazia desapropriac;eoUando havia conflito e ao mesmo tempo botava no cadeia
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os cabe~as do conflito porque eram, segundo eles, comunis-
tas. 0 Estatuto da Terrafo; ufilizado para desmontar as fensoes
sociais no campo e neo para resolver a questoo agr6r;a; fo;
ut;lizado para resolver a questoo polltica sem resolver a
questeo agr6ria. Quando os militares compreenderam que
haviam cometido um enorme erro politico ao noo fazer de fato
uma reforma agraria no pais, no final do governo Figueiredo,
ja era tarde demais. Nao havia mais alian~as possiveis com
quem pudesse dar-Ihes algum respaldo politico contra as
oligarquias, como era 0caso da Igreja, ja ativamente em-
penhada num trabalho pastoral profundamente voltado
para a solu~ao da questao agraria. Aliada, porem, as opo-
si~6es ao regime militar. Era, tambem, 0caso das oposi~6es,
justa mente punidas e mutiladas por defenderem, antes do
golpe, a reforma agraria. Todos os aliados possiveis numa
proposta nacional de reforma agraria haviam sido conver-
tidos em adversarios do governo pela ditadura. A reforma,alias, que fora 0fator de derrubada do governo de Goulart,
convertia-se, agora, por nao ter sido realizada de maneira
a atenuar e mesmo limitar 0direito de propriedade, num
dos fatores poderosos de extin~ao do proprio regime militar.
A ditadura nao conseguiu modernizar a cabeesa e a
realidade social dos grandes proprietarios de terra nem
acabar com 0latifundio, apesar de ter promovido associa-
~6es econ6micas historicamente significativas entre 0capital
e a propriedade da terra. Ao inves da expansao capitalista
no campo ter modernizado a mentalidade polltica dos gran-
des proprietarios, acabou comprometendo a mentalidade
dos capitalistas com os interesses do latifundio. Ao inves de
ter promovido a moderniza~ao da estrutura politica, com-
prometeu-a com mecanismos poderosos de reproduc;ao de
sua rigidez e de sua impermeabilidade a reformas sociais
e politicas de que 0 pafs necessita para de fato entrar no
mundo moderno.
Terminou a ditadura e sobrou a questao agraria nao
resolvida e mal encaminhada. Mal encaminhada sobretu-
rque 0modo que a ditadura encontrou para faze-Ia
cava, como implica ainda, em reconhecer a intocabi-
e do renda da terra, mais do que a intocabilidade do
o de propriedade, justa mente 0que faz da proprie-
e territorial um fator de irracionalidade econ6mica e
ica e um fator de atraso.
que e pior: a ditadura resolvera modernizar a eco-
dos grandes proprietarios de terra promovendo
associa~ao entre 0grande capital e a grande proprie-
e territorial, atraves dos incentivos fiscais. Qual foi 0
Hado? Foi 0fortalecimento dos grandes proprietarios
rra e a transforma~ao do grande capital, supostamen-
mprometido com a moderniza~ao do pais e por ela
tado, tambem em proprietario de terra. Portanto, um
do a mais na resist€mcia a reforma agraria.
Isso tornou mais dificil fazer qualquer tipo de reformaque hoje a propriedade da terra e de interesse de todos
etores poderosos da economia. Os bancos, as empre-
multinacionais, os grandes grupos econ6micos, todos
interesse no propriedade da terra. Propor uma refor-
agraria significa desafiar seus interesses ou, entao,
niz6-los a pre~os que incluem a especula~ao imobi-
Of 0que significa nao fazer reforma agr6ria. Trata-se
era compra de terras e noo de reforma, pois nao se
titui num ato de interven~ao consequenfe no circuito
eprodu~ao do processo de produ~ao de excedentesulacionais a partir do campo. Essas compras de terra
sac de fato uma reforma agraria porque elas nao
stituem um projeto politico de reinclusao dos que
am, estao sendo e continuarao a ser expulsos do campo
a grande propriedade e, tambem, pela pequeno que
,tornou insuficiente para a sobrevivemcia da familia do
balhador.
No Brasil, so terfamos uma reforma agr6ria efetiva e
dadeira se 0 processo de cria~ao artificial de excedenfesulacionais no campo, para constituir um exercito in-
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dustrial de reserva para a lavoura, fosse interrompido e
revertido. Isto e, se 0campo se tornasse 0 instrumento
central de um projeto alternativo e moderno de reinclusao
de excedentes populacionais sem alternativa no mercado
de trabalho urbano. Ese, portanto, houvesse 0reconhe-
cimento, tanto por parte da direita latifundista quanto da
esquerda, que a agricultura e uma profissao como outra
qualquer e nao um destino reservado aos que vivem no
mundo supostamente cerrado do atraso historico. Isso nao
pode ser feito mediante 0 pagamento de tributo aos
grandes monoporistas da terra, cujos direitos, se submeti-
dos a uma investigac;Cio historica seria, isenta e rigorosa
nem sempre se sustentam, originarios do mercado facil da
negociata politica, da troca de favores e, sobretudo, origi-
narios de conhecida viol€mcia contra ocupantes cuia pre-
ced€mcia se apoiava no direito costumeiro.
Com 0fim da ditadura, 0novo regime civil, a chamada Nova Republica, se defronta com uma elite fundiaria .
revitalizada, modernizada em suas orientac;oes economi-
cas, porem revigorada no arcalsmo de suas concepc;oes
politicos c1ientelistas e negocistas. E que, ao mesmo tem-
po, continua sendo a elite fundiaria interessada no blo-
queio de qualquer reforma social e polltica que, ao menos,
atenue 0 peso da propriedade do terra como mediac;ao no
processo de reproduC;ao economica e, sobretudo, de re-
produc;Cio de estruturas politicos arcaicas. Interessada,
portanto, na preservac;ao desse poderoso instrumento de
tradicionalismo, de conservadorismo, de antimoderniza-
C;aoque e a propriedade concentrada da terra. ~enhum
dos presidentes civis posteriores a ditadura e antenores ao
governo de Fernando Henrique Cardoso teve grande in-
teresse em resolver a questCio agraria. 0 caso do Sarney
e significativo. Ao mesmo tempo em que dizia sim aos
que demandavam a reforma agraria, seu chefe da Casa
Civil engavetava os processos ou nao os mandava para
publicaC;ao no Diorio Oficial, inviabilizando as desapro-
priac;oes.
governo de Fernando Henrique Cardoso e bem
tivo das dificuldades que cercam a soluC;Cioda ques-
raria. Ele proprio e um grande conhecedor dessa
o. Tem trabalhos importantes sobre 0assunto desde
po em que era professor aqui na Universidade de
Paulo. E um bom conhecedor do problema e tem a
€litoboas interpretac;oes. Ele e tambem um excelente
ecedor das elites no Brasil, que estudou cuidadosa-
te e com rigor quando era professor universitario.
estudos revelaram quais sac os impasses do processo
ico brasileiro, considerado desde a perspectiva das
formac;oes socia is, politicos e economicas necessarias
odernizaC;ao do pais com justic;a social. Revelaram,
bem, ate onde essas elites podem ir nessa direC;ao;
·s sac seus limites e incompreensoes; qual e, enfim, a
00 entre a estrutura da sociedade brasileira e a
ci€mcia que os diferentes grupos socia is tem dos blo-ios estruturais que dificultam a superaC;ao dos nossos
ClSOS. Ao entrar na polltica, ganhou tambem um ample
~Iido conhecimento do poder bloqueador dessas elites.
ambem, de suas fragilidades.
Ele sabe, e todos nos sabemos, que qualquer um que
ida governar 0Brasil contra os interesses dessas oli-
quias, mesmo modernizadas, mas ainda oligarquicas,
6 fora do poder. Ou e deposto ou e anulado na pratica.
o tenho duvida sobre isso. NCio ha nenhuma forc;a nafutura do Estado, como 0Exercito, por exemplo, que
a se opor a voracidade de poder e de ganho das elites
diarias; 0Exercito, alias, saiu da ditadura dividido e
ilitado na competencia historica para interromper 0
fbrno dclico das oligarquias ao poder. Noo ha ninguem
e diga as oligarquias que se continuarem brincando de
fifundiarios, cuios interesses tem precedencia sobre os
teresses do pais e do povo, vai tira-Ios de onde estoo. Esse
III problema. Nao ha no pais hoie nenhuma forc;a capaz
fazer uma revoluc;ao. Ate porque num pais com classes
dais too diversificadas, como 0Brasil, so e posslvel fazer
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uma revolu~ao nos estruturas sociais e politicos se os que
preconizam reformas sociais e politicos forem capazes de
fazer e de impor acordos e alian~as; se forem capazes de
construir uma frente para revolucionar e superar ~strutu-
ras sociais e politicos injustas. Nao ha quem se dlsponha
a pensar a necessidade e a urgencia dessas t:ansforma-
~6es. Eo que assegura a impunidade ~e:s~s elites; elas se
sentem seguras de que ninguam val flra-Ias de nossas
costas.
Aparentemente, 0 governo entende que 0 :na~im.o
posslvel de transforma~ao politico, no circunstanCia hl:to-
rica atual e modernizar 0Estado. Mas, para modernlzar
o Estado 6 preciso retirar os privilagios das elites, que sao
demasiados e escandalosos. Para mim, toda a atual ten-
tativa de negocia~ao das reformas ~ol!tic~s com. ~ ~~n-
gresso Nacional vai no dire~ao de dlmmUlr os pnvtleglos
dos que os tem, de tornar 0 Estado mai: fun~ional, de
acabar com 0Estado como media~ao do chentellsmo e do
poder pessoal. Ha muitos equlvocos nesse processo, mas
minha impressao a a de que a coisa vai por ail embora eu
nao tenha certeza de que 0governo consiga promover a
necessaria moderniza~ao do Estado. Entre os varios equi-
vocos dessa proposta ha 0de se supor que as oligarquias,
por estarem sobrerrepresenta~as, sac po!iticamente fo~-
tes. No entanto, elas sac fragels porque vlvem de l}'1end,-
gar favores politicos do Estado (e de chanta~~ar). E ness:momento que 0governo pode impor condl~oes e.ess~ e
certamente 0lado invisivel dos custos do modernlza~ao.
E , tambam, seu lado repugnante.
A moderniza~ao do Estado pode ser a forma nao-revo-
lucionaria de atenuar 0 poder politico do elite fundiaria, das
oligarquias, dos ruralistas, dessa gente tod~. Ou seja, a
moderniza<;;ao do Estado tiraria deles a capacldade de ma-
nipular os recursos dientelisticos do maquina do Estado.
Dou-Ihe um exemplo de interven<;;ao modernizante no
aparelho de Estado e suas dificuldades. Ha pouco tempo
articipei em Brasilia, a convite do Ministerio do Trabalho
e uma reuniao que discutiu a proposta de legisla<;;a~
ra resolver 0 problema do escravidao no Brasil, hoje. 0
esidente do Republica, em pronunciamento publico, re-
nheceu e lamentou a exist€mcia do escravidao em nosso
ISnos dias atuais. Foi a primeira vez que um governante
isso depois do Lei Aurea, que eu saiba. Criou, entao,
grupo de trabalho, 0 chamado GETRAF (Grupo de
pressao 00 Trafico de Pessoas e a Escravidao). Esse
po tem poderes especiais, para contornar justamente
bloqueios, limita~6es e fragmentac;6es dos multiplos
aos administrativos e policiais que estao legal mente
estidos de autoridade para combater a servidao. Esse
vo grupo a constituldo por pequeno corpo de funciona-
s alto mente eficientes, com poderes para atuar em
bito interministerial e acima de poderes locais e regio-
's (base, alias, do c1ientelismo oligarquico). E um grupoPresidencia do Republica.
Supostamente, 0 problema do trabalho escravo teria
ser resolvido pela Pol/cia Federal, no plano policial,
e um crime federal. E, no plano propriamente
ministrativo, teria que ser resolvido pelo Ministerio do
?alho, que tem a incumbencia legal de fiscalizar e punir
lola~ao do legislac;ao do trabalho. 0 Ministerio do
,alh~ tem agencias nos estados, que sac as Delegacias
lonalS do Trabalho, atraves das quais ele atua. Porem, osgados regionais do trabalho, que sac representantes
~os do ministro, sac nomeados por indicac;ao dos
~dos. e fac~6es politicos regionais. Ou seja, grupos
arqulcos. Por of se entende por que as denuncias de
olho escravo cafam no vazio. A rigor, pode-se dizer
a.pesar do dedicac;ao de muitos, provavelmente do
no dos fiscais do trabalho, 0sistema foi montado, no
ado, para evitar as consequencias do fiscaliza~ao e
para fiscalizar de verdade. Vi 0desdobramento de
(,?S de denuncias feitas pelos sindicatos. Raramente~nuncia e confirmada. 0 fiscal vai 00local em que
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supostamente esta ocorrendo a irregularidade{ constata
que ha algumas irregularidades por desconhecimento da
lei (como falta de higiene e de alguns equipamentos
basicosL mas nega que se trate de trabalho escravo. Ou
seja, ele reduz 0caso aos seus aspectos mfnimos. Com um
funcionario too daramente engajado no espfrito e nas
conveni€mcias das oligarquias{ que derivam da propria
estrutura do Estado{ nao se pode resolver um problema
como esse. Portanto, 0que em qualquer pais seria uma
ag€mcia de moderniza~ao das rela~oes de trabalho{ aqui
se torna uma agencia de preserva~ao de interesses e
rela~oes antimodernos{ fora do nosso tempo. Nao e estra-
nho{ pois{ que hoje se venda e se compre escravos no
Brasil.
o grupo criado pela Presidencia da Republica se so-
brepoe{ quando necessario{ aos delegados regionais do
trabalho. Recebida uma denuncia{ vinda de uma determi-
nada regiao{ relativa as condi~oes de trabalho nas carvoa-
rias{ por exemplo{ com a suspeita de que se trata de
trabalho escravo, e forte a possibilidade de que ela morra
nas moos do proprio delegado{ apos uma investiga~ao
superficial. Se essa denuncia chega a Brasflia{ ao GETRAF;
o grupo imediatamente desloca uma equipe Ilmultidisci-
plinar ll{ de varios orgaos federais{ para a propriedade
denunciada. Verifica, solta os trabalhadores, autua e pro-
cessa 0 proprietario ou 0adverte{ exige 0cumprimento da
lei que ja existe. Educa.
A atua~ao desse grupo{ para mim{ e bem indicativa de
quais sac e como sac as barreiras a moderniza~ao do
Estado e das rela~oes sociais num pais em que a maquina
do Estado ainda esta amplamente capturada pelas oligar-
quias e os interesses relativos a domina~ao patrimonial.
Por que 0 delegado regional do trabalho neo atua
como deve? E claro que atua aqui e ali. Porque 0delegado
regional do trabalho e nomeado pelo ministro do trabalhoa partir da indica~ao dos partidos politicos, com base na
~ao de que 0Estado existe para ser loteado entre
esentantes das oligarquias regionais. Ele se consi-
elegado do seu partido politico e dos interesses
is desse partido e{ portanto{ agente de um acordo
posi~ao polltica do Estado. Ele nao e um funciona-
Estado{ comprometido com os interesses do Estado
pel de cumpridor impessoal da lei. A modernizac;ao
ado depende em grande parte da multiplica~ao do
ro de funcionarios impessoais da lei{ 0verdadeiro
nario publico profissional (Eu nao tenho certeza{
de que a atual reforma do Estado va nessa dire~ao{
do suspende as garantias de estabilidade do funcio-
publico e de isen~ao quanto ao poder pessoal dos
osos e das oligarquias).
oda maquina do Estado est a montada para inviabi-
a a~ao do funcionario profissional e isento. Durante
\ferno Sarney{ quando Jose Gomes da Silva estavaCRA{ uma parte ponderavel das dificuldades para
rver{ como proposta do Estado{ as demandas dos
imentos sociais que preconizavam a reforma agraria
justamente{ 0enorme poder de conspira~ao e boicote
ue se poderia chamar de funcionario das olig;rquias
poder pessoal instalado como parasita na maquina
Estado. Decretos de desapropriac;ao de latifundios
.chegavam ao Presidente da Republica; os que 0
sldente assinava nao chegavam ao Diorio OficiaJ
a. publica~ao e entrada em vigor; os que entravam
Vigor nao eram cumpridos porque os funcionarios se
t,lsavam a tomar as medidas praticas para a tomada
osse; e, quando havia imissao de posse{ entrava em
.0.0outro brac;o das oligarquias{ instalado no poder
clario{ que determinava reintegrac;ao de posse em
r do proprietario desapropriado. As desapropriac;oes
sumadas foram excec;ao, mesmo que majoritorias.
fundo{ cumpriram-se como gesto de toleroncia e
.~nevolencia e nao como obrigac;ao legal e funcional.
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Estamos em face de um Estado parasitado por um
sistema de poder que se baseia em privilegios e noo em
direitos. Podemos eleger quem quisermos para Presidente
da Republica. Quem quer que seja eleito noo tem nem tera
condi<;6es de por a maquina para funcionar de acordo com
leis e principios modernizantes e democraticos. Nenhum
eleitogovernara se noo se entender e se noo se compuser
com essa gente. Eles sobreviveram a ditadura militar. A pr6pria ditadura teve que se compor com eles, ate porque
resultou de um golpe em nome deles. A ditadura militar
reconheceu desde 0inlcio a necessidade de fazer a refor-
ma agraria. Noo porque fosse contra eles, mas porque 0
"establishment" militar temia as consequ€mcias da inquie-
ta<;oo social que se produzia em torno das demandas dos
trabalhadores rurais. No fundo, as concep<;oes que leva-
ram a ditadura entendiam que a modernizac;oo do pais
estava bloqueada e que 0desbloqueio passava por refor-
mas que incluiam a reforma agraria. Ja que por via legal
e democratica noo era possivel remover os privilegios dos
grandes proprietarios, era necessario colocar a democra-
cia entre par€mteses para implantar uma nova legisla<;oo
fundiaria, aparentemente contra os interesses estabelecidos
do latifundio. Os governos da Nova Republica noo tiveram
(e em alguns casos nem quiseram) meios de alterar essa
composi<;oo de for<;as politicas.
o professor Fernando Henrique Cardoso conhece 0
problema melhor do que ninguem e sabe quais soo os limites
de sua a<;oogovernamental no sentido da moderniza<;oo do
Estado e da altera<;oo desse estado de coisas. Ele conhece
o problema e, sobretudo, conhece as dificuldades politicas
para resolve-Io. Ele sabe perfeitamente que noo basta
assinar um decreto ou mil decretos de desapropria<;ao de
latifundios para concretizar a reforma agraria. Sua atua-
c;ao est a clara mente referida as dificuldades desse contex-
to. Ele prefere, com razao, nao tratar da questao agraria
atraves de uma politica de confronto. Isso, no meu modode ver, e pr6prio dele. E um trac;o de habilidade politica.
Cl posic;oo e no senti do de fazer com que 0 outro seja
LJzido a entrar na sua politica, a reconhecer que a
·nic;ooda agenda polltica do Estado, como ele gosta de
r, e de responsabilidade de todos os que de diferentes
ens politicas e ideol6gicas receberam um mandato
Hticoe a responsabilidade do poder. Por esse meio seria
ssivel promover reformas socia is e politicas num contex-
de representa<;eo polltica deformada pelo voto c1iente-
to, oligarquico e conservador. Noo da para fazer
errilha como Presidente da Republica. Essa neo e sua
l1c;eo.
Numa entrevista importantfssima, de alguns anos
as, antes, portanto, de ser presidente, ele dizia que a
ande dificuldade para executar a reforma agraria no
osil e que os que a querem noo conseguem coloca-Ia na
enda polltica do Estado. Noo e 0Presidente da Republi-
que a coloca na agenda polltica do Estado. Somente
ando a questoo agraria se transforma num impasse
~bHtico, numa questeo polltica, e que ela se prop6e como
;~tnpecilho que precisa ser resolvido para desobstruir 0
p:rocesso politico, 0desenvolvimento economico, etc. Apa-
;frntemente, no Brasil, ela e irrelevante para 0fl;nciona-
" r r ento do sistema, ela noo obstrui 0 desenvolvimento
Kconomico e ja noo obstrui tambem 0 processo politico,
omo obstruia em 1964. Tudo sugere que a questeo
graria, em nosso pais, vai se reduzindo a mere problema
cial, que se resolve com simples tecnicas de soluc;oo de
toblemas desse tipo, como se faz em relac;ao a outros
roblemas sociais. Por isso, ela ja se confunde com 0
roblema da pobreza. Noo e mais um obstciculo hist6rico,
ernbora, do meu ponto de vista, continue sendo, de certo
modo, um obstaculo politico a transforma<;ao efetiva do
rasil num pais moderno e democratico. E possivel gover-
Cirsem de fato fazer uma reforma agraria no Brasil. Mas,
so implica em aceitar que 0 pais continue definindo seu
stino politico em termos de um modelo democratico na perflcie dos procedimentos, dos rituais do poder; mas
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nCionecessaria mente democratico no efetivo exerdcio das
rela~ees politicas, de media~Cio patrimonialista, nas rela-
c;eesentre 0Estado e a sociedade. Urn pais em que se
pode falar em democracia, mas noo se pode, de fato, falar
em cidadania.
Se, pOl' urn lado, as pr6prias elites nCiose defrontam
com dificuldades que as obriguem a colocar na agenda
politica do Estado a questCio agr6ria e sua soluC;Cio,areforma agraria, pOl' outro, ostrabalhadores tambem nCio
tern sido capazes de faze-Io. POl'que nCio?Em primeiro
lugar, porque nCio tern representa~Cio politica. A repre-
sentac;Ciopolitica que eventualmente se identifica com os
trabalhadores rurais e indireta e minima. Eles estCiosub-
representados porque votam nos grandes proprietarios de
terra ou em seus candidatos. Os trabalhadores rurais nCio
se identificam consigo mesmos, mas com 0modo de vel'
o mundo e os interesses de seus adversarios, oponentes e
ate inimigos.
Os chamados ruralistas tern no Congresso Nacional
uma representac;Ciomuito acima da propor~Cioque corres-
ponderia a seu numero relativamente reduzido na socie-
dade brasileira e naeconomia nacional. Mas, estCiola com
o voto dos trabalhadores rurais e dos pobres da cidade
que foram expulsos do campo. Essae uma contradic;Cio.
NCio e 0 Estado que vai assumir que ha no pais uma
questCioagraria nem vai resolve-la, mesmo que0
governoe 0governante entendam que a questCioe real e precisa
de solu~Cio. Pois, 0 Estado, que inclui 0 Congresso e 0
Judiciario, estaimobilizado pelos politicos que consideram
o latifundio intocavel.
Alem disso, os trabalhadores rurais nCioconseguem
aliados que coloquem a questCio agraria na agenda poli-
tica do Estado. Ate porque sua fragil e insuficiente repre-
senta~Ciopolitica est6 nas mediac;ees partidarias que, pOl'
razees inteiramente diferentes das de suas pr6prias razoesde dasse, recusam a possibilidade de qualquer alianc;a
mesmo com os politicamente pr6ximos. Os que
que a estCiocolocando, pOl' serem minoria, POl'
rem numero suficiente, e pOl' nCioterem condic;oes
CIS e ideol6gicas de articularem ou participarem de
as, na verdade, muitas vezes, levantam obstaculos
nais a essa inciusCio. Ou nCio tem sensibilidade
~nte para entender 0que e a questCio agr6ria. Voce
o que dizem alguns dos ditos aliados da reforma¢ltia e fica pensando se e 0caso de tel' aliados desse
~"'ipo 0que?
Jose de Souza Martins - Eles repetem coisas que
iram dizer, sem saber de onde vem. Coisas como a
~ue a reforma agr6ria vai aumentar enormemente a
~utividade agricola ou que quem pede a reforma
~ria esta numa situac;Ciode miseria e mendiconcia.
<:mto,a reforma agr6ria faria 0milagre de acabar com
breza no Brasil. NCiopercebem que a questCioagraria
s problemas de pobreza que ela cria noo aparecem
o pobreza rural, mas, basicamente, como pobreza
ana. Alem disso, nCio percebem que, mesmo .-'quea
[ma agraria nCioaumente a produtividade agricola,
e ser feita, porque ela resolve uma questCio social e
uma questCio economica.
Esse quadro se complica porque nCio h6 caso de
orma agraria que nCio tenha sido produto de uma
oluC;Ciosocial ou de uma grande alianc;a politica entre
~Iassessociais. Eo caso das reformas feitas depois da
unda Guerra Mundial e 0caso de quase todas as
t;>rmasagrarias que nCio decorreram de revolu~oes.
as elites incorporam como de seu interesse esse tipo
reforma, pOl' algum motivo politico, economico ou
ial, ou ate mesmo hist6rico, ou dificilmente esse tipo
reforma se cumprira enquanto reforma estrutural,
nas relac;ees de classes e nas relac;ees de poder.
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JST- Voce aplica esse raciocinio ate mesmo ao processo
que come~ou a acontecer do ano passado para ca, pelomenos em alguns momentos, principa/mente depois dos
massacres que aconteceram em Corumbiara, dos episo-
dios do Pontal, das prisoes e sobretudo depois do mas-
sacre, agora, do Para? Ela ocupa 0centro da agenda politica. A gente sente isso no Movimento porque a
imprensa passou a nos procurar direto, a toda hora.
Claro,agente interpreta issoa partir de algumas coisas,como a crise da agricultura e 0 fato de que 0congressodo MST chegou a Brasilia um dia depois que os cami-nhoneiros foram embora. Houve uma conjun~ao de fa-tores que possibilitou que a reforma agraria viesse aocupar espa~o. Voce sente que a sociedade fala emreforma agraria. Agora, reforma agraria ja nao e uma
coisa que naoexiste na palavra, ela passa a ser falada. Esta na novela das oito. Da forma que seja, ela estasendo debatida. Eusempre fui da teoria de que ela era
uma questao silenciada. Ate ha um tempo atras, princi- palmente depois de 1988, depois da derrota institucio-nal dareforma agraria, existia um silenciamento. Quemestava discufindo isso ha anos nao rompia essa barreirade silencio. Essa conjuntura mais proxima, como e que
voce enxerga isso?
Jose de Souza Martins - Se eu remeto a definic;ao (e
a compreensao) do reforma agraria a questao agraria, a
conjuntura e irrelevante. Esses acontecimentos mais re-
centes colocaram 0questao agraria no imaginario daque-
la parte da popula<;ao que hao vive os problemas doagricultor sem terra nem tem por que vive-Ios. Mas, nao
a colocaram na agenda politica do Estado, mesmo que
membros do governo tenham feito algum esfor<;o nesse
sentido, aproveitando a sensibiliza<;ao do conjunto da
popula<;ao que decorreu desses acontecimentos. Houve
ate a otimista insinuac;ao de um alto membro do governo
de que ela poderia finalmente ser assumida como uma
questao nacional. Assim como ela entrou facilmente na
conversac;ao cotidiana de muitas pessoas que nada tern aver com 0assunto, era tambem saiu facilmente. E uma
imaginar que ela se tornou uma irreversivel preo-
~ao do povo brasileiro. Na verdade, a reforma agr6-
penas disputa espac;o nos meios de comunicac;ao de
a com assuntos banais pela manchete do dia.
o que e que voce chama de ela entrar na agenda
ica?
ose de Souza Martins - E a questao agraria sesformar num impasse politico. Uma questao que, se
for resolvida, torna 0 pais ingovernavel, bloqueia 0
lmto do processo politico. Ela entra na agenda po-
a do Estado quando todos aqueles envolvidos em
cessos de decisao se tornam conscientes de que a
stao tem que ser resolvida, 0obstaculo tem que ser
ovido. Isso aconteceu com a escravidao. A escravi-
negra nao terminou em 1888 porque os negros
ravizados tenham feito uma grande revoluc;ao social
e pusesse fim a sua servidao. Ela terminou porque
trara na agenda politica do Estado desde 1850. Nesse
0/ a aprovac;ao da lei de Terras abriu caminho para
rac;ao estrangeira macic;a, especialmente~euro-
para trabalhar nas fazendas do Brasil no lugar dos
ravos. E que as press6es internacionais, sobretudo da
~Iaterra, e um tratado nesse sentido, assinado ante-
orrnente pelo Brasil, proibiram 0trafico de escravos da
frica, 0chamado trafico negreiro. Para que a agricultura
~scesse e os negros escravizados fossem substitufdos~~ando morressem, era necessaria outra mao-de-obra,
Jiyre e branca, que era a disponivel.
Para desemperrar 0 processo, 0caminho era promover
imigrac;ao em massa de trabalhadores rurais estrangei-
s. E assim foi feito. Se a escravidao nao terminasse, ela
iqria muitos problemas para assimilac;ao da nova for<;a
trabalho vinda de fora. Como de fato criou dificuldades
coexistencia de trabalhadores livres e escravos traba-
ndo no mesmo cafezal, por exemplo. Foi necessario,rtanto, acelerar 0fim da escravidao. Quem fez isso? Os
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grandes fazendeiros que estavam na politica, no Parla-
mento, no Ministerio, no governo, como Joaquim Nabu-
co e Antonio da Silva Prado, que tomaram consciencia
do atraso economico, social e politico que a escravidao
promovia. De fato, quando a escravidao terminou, hou-
ve ampliaSao do mercado, a industrializar:;:ao teve seu
primeiro deslanche, 0 regime republicano foi implanta:
do e 0 pafs viveu seu primeiro surto de modernizar:;:ao. Eclaro que outros fatores intervieram e se combinaram
com tais mudanr:;:as para viabilizar essa reorienta<;ao em
nosso desenvolvimento historico. Mas, sem a providen-
cia da aboli<;ao da escravatura dificilmente as mudanr:;:as
se dariam no ritmo e na amplitude em que se deram.
Penso que uma reforma agr6ria ampla e consequente,
de verdade, promoveria um grande saito historico na vida
do pafs: diminuiria a miseria urbana,.criaria uma valvula
de seguranr:;:a para as mudan<;as economicas e tecnologi-cas aceleradas pelas quais estamos passando, ampliaria
o mercado e teria um efeito multiplicador de beneffcios
salutar no conjunto da sociedade, alem de viabilizar 0
processo de modernizar:;:ao social e politica. 50 elites obtusas
nao podem perceber isso. Antes de 1964,0 pais se dividiu
em relar:;:ao, justa mente, a por ou nao por a questao
agr6ria na agenda politica do Estado. E quem a pos,
agindo no lugar do povo, foi deposto.
As elites, refratarias a
necessidade da reforma, reali-mentam os mecanismos politicos de reprodur:;:ao da con-
cepr:;:ao 0lig6rquica do poder. Por isso, pode escrever, na
proxima eleir:;:ao as pessoas vao continuar votando nos
grandes proprietarios de terra, inclusive os trabalhado-
res rurais vao continuar votando neles. Nesse quadro de
imobilismo dificilmente a questao agraria entrara na
agenda do Estado sem grandes negociar:;:ees, alianr:;:as e
concessees.
JST - Mesmo que tenha acontecido um aumento demobilizaljao no campo, pelo menos segundo 0ultimo
elatorio da CPT?De cinco anos para co aumentou 0
iimero de ocupatioes de terra.
Jose de Souza Martins - 5im, mas isso nao e tudo. A
estao nao e quantitativa, e uma questao qualitativa. Toda
obilizar:;:aono campo, que e uma mobilizar:;:aomais intensa
qui, menos intensa ali, nao pee em xeque, necessariomen-
f ie , a estrutura de poder, nao questiona qualitativamente 0
odo como as coisas estao organizadas. A tragedia e essa.o mesmo tempo, nao se ve uma certa imaginar:;:ao criadora
tuando para descobrir como desbloquear essa questeo. Ela
sta bloqueada, ela esta engavetada, ela amear:;:a sair da
aveta e volta para a gaveta. Durante 0ditadura militar e
or pouco tempo no come<;o do governO Sarney houve
ndfcios de que 0 Estado brasileiro assumiria a questao
t1graria e adotaria providencias para resolve-la, remover 0
bloqueio por ela representado para 0 desenvolvimento do
pa is. Mas, isso afinal, neo aconteceu. A ditadura agiu nesse
sentido j6 no final, quando devia ter agido no comer:;:o,antes
de definir 0 modelo politico e economico que a caracterizaria
e que nos deixou como sua unica heran<;a.
Neo basta a opiniao publica dizer-se favoravel a refor-
lTlaagr6ria. Voce faz pesquisa de opinieo e descobre que
70% das pessoas sac favor6veis a reforma ograria. 50 que
"'~Ias nao sabem 0 que e reforma agraria. Tanto que, na
hora de votar, votam em partidos e pessoas que, por razees
~e c1asse social e de opr:;:ao ideologica, sac contrarias a
eSsa reforma. Esses partid6rios da reforma neo condicio-
nom seu voto a ador:;:ao do reforma agraria como plata-
.•..forma polltica daqueles que elegem.
...151 - Mas esse ator politico, sem terra, pelo menos
passou a ser mais encontrado no imaginario das pes-<~()as. Eu falo isso porque foi feita uma pesquisa de
~piniao e co/ocaram 0 MST em quinto lugar em termos
e institui~cioconfiavel, junto a Igreja, universidade.
Jose de Souza Martins - Mas so no imaginario. Isso!f,~Cioproduz noda, nenhum efeito reolmente significativo.
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o grande problema de tudo que entra no imaginario, eque 0imaginario e manipulavel; no caso dos sem-terra e
bom tomar cuidado porque essa imagem ja est a sendo
manipulada. Aparentemente, 0segredo da sacanagem
politica e 0de fazer com que um tema desses entre no
imaginario da popula~ao para poder manipula-Io. Se
alguem se der ao trabalho de estudar justa mente esse
aspedo do problema, provavelmente descobrira que ostrabalhadores rurais desde antes da ditadura, por varios
meios vinham afetando a possibllidade das composi~oes, . politicas. 0 fato de que a Igreja Cat61ica e algumas Igrelas
protestantes tenham assumido abertamente que ha no
pais uma questao agraria politicamente dimensionada,
que precisa ser resolvida por razoes socia is e morais,
inviabilizou alianc,;as politicas que teriam dado a ditadura
um peso historico maior do que ela teve. Convem lembrar
do famoso discurso do general Golbery do Couto e Silva
na Escola Superior de Guerra sobre a abertura politica.
Disse ele que eta era necessaria porque 0 processo politico
tinha sardo de seu leito natural, constitufdo pelos particlos
politicos. A Igreja estava fazendo politica e 0fazia sobre-
tudo a partir da aceitac,;ao da legitimidade da questao
agraria.
Aparentemente, setores das elites indisponiveis para
de fato assumirem a reforma agraria nos termos em que
est a sendo posta pelos movimentos sociais resolveram
inclui-Ia no imaginario da populac,;eo para manipula-Ia,
coisa que nao pode ocorrer enquanto esse imaginario tiver
como refer€mcia estrutural as comunidades de base, os
grupos politicos extrapartidarios, as organizac,;oes nao-go-
vernamentais claramente opostas aos esquemas de alian-
c,;aem vigor.
Ha pouco tempo, 0Presidente da Republica participou
de uma discusseo muito interessante na televisao. AI-
guem tocou no assunto da reforma agraria, do Movimento
dos Sem Terra e assuntos correlatos. Ele disse uma coisa,
ortante para entender a logica da inserc,;ao desse tema
preocupac;;oes de governo: a agricultura pesa 15% na
nomia brasiteira. 0 conjunto da economia brasileira
se nao de pen de da agricultura. E, nesses 15%, os
oenos agricultores pesam quanto exatamente? Os que
tem terra nao pesam absolutamente nada. Percebe-
s, entao, que 0sujeito da situac;;ao politica atual e um
ieito que representa uma porcentagem de alguma coisaonomica. Esse fato consagra a exclusao politica da
ioria da populac,;ao brasileira, que quase nada repre-
nta do ponto de vista economico.
- Mas ele respondeu dessa forma?
Jose de Souza Martins - Nao, eu e que estou inter-
etando 0que ele disse. E 0que ele disse e claro: a
iifnportCincia politica dos sem-terra e medida por sua im-
orfoncia economica. Isso nao quer dizer que ele ignore
problema social representado pela exist€mcia de uma
/rriassa de trabalhadores rurais sem terra que pressiona
'pela reforma agraria. Um problema que, para 0governo, se
poe no mesmo capitulo do problema da pobreza. Diferen-
fe, porfanto, do modo como as esquerdas entt3'ndem 0
/<problema: como problema historico e estrufural.
A questao agraria comporta diferentes definic;;oes, in-
~erpretac,;oes e soluc,;oes. Por isso, ha diferentes possibili-
ades de reforma agraria. A reforma agraria do Movi-
ento dos Sem Terra, das Igrejas e do Partido dos Traba-
adores - se e que e a mesma para todos eles - nao e,,aesde 0 golpe de 1964, a reforma agraria do Estado
<prasiteiro. A questao agraria, jusfamente por ser uma
questeo politica, est a entre aquelas reformas cuja defi-
nic,;eo depende da coniuntura hist6rica e das alianc;;as
politicas e da estrutura de Estado que dessa coniuntura
decorrem.
Quando 0Movimento dos Sem Terra exige reforma
qgraria, exige uma coisa. Quando os governos dizem queestao fazendo reforma agraria, esteo fazendo outra coisa.
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Por isso mesmo, os numeros e as informac;oes, de urn lado,
nao coincidem com os numeros e as informac;oes, do outro
lado. Que ambos usem 0mesmo r6tu/o, reforma agraria,
para fafar de coisas diferentes ja e indlcio da manipulac;ao
a que me refiro; indlcio de uma batalha para alcan<iar 0
controle ideologico de um conceito-chave na luta social.
Nao so 0governo manipula. a Movimento dos Sem Terra
tambem manipula esse conceito, que parece vital, quandoinclui os posseiros da Amazonia na designa<iao de sem
terra. a que e compreenslvel, porque 0Movimento vem
clara mente atuando no sentido de estabelecer sua hegemo-
nia sobre lutas fragmentarias e locais, fora de sua propria
logica, como ados posseiros. Mas, os posseiros nao sac
trabalhadores sem terra. Sao trabalhadores privados do
direito legal sobre a terra que ocupam, 0que e coisa bem
diferente dos propria mente sem terra do Rio Grande do
Sui, do Parana e de Sao Paulo, que reivindicam 0acesso
a terra. Sao problemas diferentes que exigem solu<ioes
completamente diferentes e que encerram possibilidades
de solu<iao diferentes. Temo, alias, que essa unifica<iao
conceitual equivocada tenha trazido um grande beneflcio
aos grandes proprietarios de terra. Nao so porque tambem
os unificou, permitindo-Ihes superar a notoria fragilidade
de suas posic;oes nos anos setenta e oitenta, mas tambem
porque deu uma legitimidade descabida aos grileiros de
terra e aos beneficiarios de mulos falsificados em regioes
de grilagem, como a Amazonia, que, por isso mesmo,entram no grupo dos passlveis de inclusao nas desapro-
priac;oes de terras que, historicamente, nap Ihes pertence.
Na impossibilidade de ter, portanto, apoio daqueles
para os quais a soluc;ao da questao agraria interessa, 0
governo e 0 presidente tem que formula-Io de modo a
dar-Ihe a soluc;ao posslve!. E essa solu<iao nap e, certa-
mente, a soluc;ao que 0MST daria se fosse governo. Eu
conhec;o pessoalmente 0Presidente da Republica, traba-
Ihei com ele, fui aluno dele aqui na Universidade, foi uma
essoas com quem aprendi sociologia. Ele sempre
deu que ha no pais questoes agr6rias e que e neces-
resolve-Ias de acordo com as caracterlsticas que tem
da situa<iao e em cada lugar.
Isso e uma ;ustificativa para nao resolver 0pro-
a?
ose de Souza Martins - Nao. Nao e uma justificati-
sso e uma realidade politica. E preciso nap esquecer
Q dimensionamento economico do mundo moderno ,cola da economia e do lucro, tendem a reduzir os
lemas sociais a sua dimensao economica. a capita-
dos dias de hoje tem solu<ioes economicas para os
lemas sociais que tornam dispensavel transformar
s problemas em questoes politicas e historicas. Morei
.~iEstados Unidos durante um curto tempo. Eles resolvem
...:problema da pobreza e da falta de trabalho atraves do
16rio-desemprego e dos bonus de alimentos que as pes-?as recebem porque estao desempregadas. au seja,
rque elas sac zero a esquerda, no sistema economico,
o irrelevantes. E mais barato trata-Ias assim do que
romover grandes transforma<ioes economicas.
·1 - Fica mais barato fazer isso do que fazer uma
forma agr6ria.
Jose de Souza Martins - Exatamente. Nao e, eviden-
mente, a minha posic;ao. Minha posic;ao e outra. auvi
!~lgo parecido de um fazendeiro de cafe de uma das mais
t~od~c~onais regioes de cafe de Sao Paulo, ele proprio de
t[Cld,c,onalfssima familia de fazendeiros e ate envolvido na
~~nda<iao de famosa entidade de defesa da tradic;ao e da
~ropriedade. No comec;o de minha carreira aqui na Uni-
rsidade, em 1965, fui para 0 interior fazer pesquisa
bre mudan<ias nas rela<ioes de trabalho na economia
.feeira. Na epoca estava comec;ando a aparecer 0 boia-
la, que aindo nao tinha esse nome. Era chamado de
.•Iante. Apesar da erradicac;ao dos cafezais nap estar Inda conclulda, estimulada e subsidiada pelo governo
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federal, ja encontrei aqueJe pessoal extremamente pobre
colhendo cafe. Nao eram mais colonos da fazenda. Era
gente que vinha de fora, recrutada pelo "gato". Tentei
argumentar com 0fazendeiro a favor do colonato, para
ver como ele reagia. Peto menos 0colono tinha moradia,
tinha direito a fazer sua rocinha, as condi<;6es de vida eram
melhores. Ele disse: nao, nao funciona. "Estou propondq
aos 01timos colonos que ainda tenho 0seguinte: eles temla 0 roc;ado deles. EuyOU la e vejo quanto eles colhem de
arroz, quanto eles colhem de feijao, quanto eles colhem
de milho nos ro<;ados deles. Estou oferecendo a eles a
mesma quantidade que etes colhem de cada um desses
produtos. Mas, eu mesmo fa<;o a planta<;ao na mesma
terra a eles cedida por mim, e colho muito mais do que
eles colhem. Eassim, retomo a terra e soio ganhando, sem
que eles deixem de receber a mesmo quantidade de
generos que antes cultivavam por conta propria. Plantan-
do naquela terra outra coisa, ou a mesma coisa, com outra
tecnoJogia, consigo tirar mais do que eles tiram." Esse,
evidentemente, como se sabe hoje, foi um passe de tran-
si<;ao para reduzir 0 trabalhador rural a categoria de
trabalhador assalariado e temporario.
Esse e 0raciocinio que esta pesando em muitos lugares
do mundo para discutir essa questao. Aproposta nao e de
reciclar as pessoas, reabrir alternativas e possibilidades
econ6micas com base em tecnologias intermediarias, mais
simples do que as tecnoJogias dominantes, num esquemade pluraJidade tecnologica. eria-se, assim, uma popula-
c;;aocondenada a viver a margem do sistema econ6mico
globalizado. Aquilo que sem precisao muitos chamam de
excluidos.
J ST - E pelo menos apressao internacional que 0Fer-
nando Henrique sofre. Eu tenho certeza que ele socome~ou a falar mais enfaticamente sobre 0assunto
porque a repercussao internacional desse tipo de con-
flito no Brasil nao condiz com0
perfil de pais modernoque ele quer passar, para a logica gtobalizada. Epeto
tem relatorio doBIRD (Banco Mundial) fa/ando
reforma agraria seria a so/u~ao no mundo con-
oraneo.
ose de Souza Martins - Sim, porque os proprios
,.icanos, quando derrotaram 0 Japao na Segunda
rra Mundial, e ocuparam militarmente 0 pais, pro-
ram que fosse feita ali uma reforma agraria. Alias,
fJonsavel em parte pela transformac;;ao do Japao na~fe.ncia econ6mica e politico que e hoje. Penso que 0
t:pprio Fernando Henrique entende que essa e a soluc;;ao.
nao diz que e contra.
Mas nunca ninguem diz que e contra.
.Josede Souza Martins - Mas, ele com certeza nao e
Ele mantem a mesma visao do problema que tinha
bando era professor aqui e nao tinha, ainda, pianos de
trar na politica. Isso 16pelos anos sessenta. Ele entendiae a reforma agraria no Brasil era uma questao regional.
Oer dizer, em cada regiao a questao agraria se propunha
1 3 . uma forma diferente, que e uma coisa bastante sensata.
00 e minha visao do problema, mas e uma visao sensata
l.Jclndo se pens a na reforma como meio de ~solver
foblemas sociais imediatos. Penso que da para discutir
~o. Nesse programa de televisao, a que me referi, ele
pfirmou esse ponto de vista. Para ele, por exemplo, os
ampados do Movimento dos Sem Terra sac um proble-
q real. Nao nos esque<;amos de que foi ele 0 primeiroresidente a reconhecer a legitimidade do Movimento dos
\'E;lmTerra. Ele disse isso publicamente. Mas, ele entende
e 0 problema se resolve com as desapropria<;6es e com
assentamento desses 37 mil ou 40 mil sem-terra que
~ao nos acampamentos.
'l'- Que efetivamente eles nao fazem. Quando ele faz
es pacotes de desapropriafiao, a maior parte das
ras nao sao as areas pleiteadas pelos acampados.
, 0 nas zonas de co/oniza~ao, no Mato Grosso, no Para.
e tem todo um discurso..•
Jose de Souza Martins Esse e 0discurso do Estado l d "
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Jose de Souza Martins - Esse e 0discurso do Estado
brasileiro sobre a questao agraria desde a ditadura. E 0
discurso montado no esquema limitado de entrada da
questao agraria no debate politico que a ditadura estabe-
leceu eviabilizou. Eo discurso pasteurizado, nao conflitivo;
o discurso que passa, que pode ser ouvido e entendido
pelos grandes proprietarios de terra sem acelerar-Ihes os
batimentos cardiacos. 0 que indica que mesmo com amudanc;a de governo 0Estado mantem uma interpretac;ao
e uma orientac;ao proprias em relac;ao a questao agraria.
JST - Claro, ele reproduz 0discurso e agora esta colo-
cando 0Exercito para regular os conflitos .••
Jose de Souza Martins - Isso, acho eu, e mais do
ministro dele do que dele.
JST - Mas e minisfro dele. Qual e a sua concep(jao de
reforma agraria entao? Ou para resolver a questao
agraria brasileira?
Jose de Souza Martins - E preciso pensar em do is
niveis de intervenc;ao possive!. Um, 0do Estado real, que
e esse que esta of. 0 que voce faria? Pessoalmente acho
que se pode fazer pouca coisa at raves desse Estado que
est a ai, dessa estrutura e dessa concepc;ao de Estado, que
e a do Estado oligarquico, forte mente dominado por inte-
resses patrimonialistas, um Estado pre-moderno. A menos
que ocorra um rompimento no drculo vicioso do poder,
que e anti-reformista, que e anti-social, que e injusto. Um
rompimento de fundo historico que torne inevitavel dar
soluc;ao consistente as quest6es pendentes, nao so a ques-
tao agraria, mas tambem a questao do desemprego, do
miseria urbana, da ignorancia, do atraso cultural, a ques-
tao das terras indigenas, etc. Essas quest6es nao devem ser
subestimadas. Mas, para que elas sejam resolvidas e
necessario que mude radical mente a relac;ao entre a
sociedade e 0 Estado. Na verdade, desde 0tempo deGetulio Vargas nao houve mudanc;a propria mente signifi-
nessa relac;ao, a nao ser 0recuo do pop ". u Ismo notenor do Estado.
~um outro ~i~e" supondo que 0Estado brasileiro ja
ntem caractenstlcas modernas e abre possibilidades de
~ao governamental no sentido de realizar as reformas
ciais modernizadoras de que 0 pais necessita. E correr
riscos correspondentes. Ou seja, supondo que, se um
nos fosse Presidente da Republica, nao teria que nego-
com absolutamente ninguem e poderia fazer livre-
todas as reformas socia is e politicos necessarias a
ansformac;ao do Brasil num pais moderno. Fazer uma
pecie de foquismo governamental, pressupondo que 0
oder Executivo tem mais poder do que parece ter e que
'pode, portanto, arrastar consigo a opiniao e 0voto dos
.ll1embro~~o Congre~so Nacional, inclusive daqueles que,
Elmcondlc;oes normOlS, se op6em as reformas. Ja tivemos
episodios desse tipo antes do ditadura e durante a ditadu-ra. Os resultados sac conhecidos: desequillbrio da estru-
tOra de poder, crise politica, suiddio, renuncia, deposic;ao.
Poucos se lembram que os grandes proprietarios de terra
>que foram decisivos no golpe militar de 1964 nosmese~
uintes chegaram a se armor para derruba~ 0governo
o m~rech~1 Castelo Bra.nco. No fundo, 0que esta em jogo
se e posslvel fazer a Historia em lugar do povo, como se
Ouvesse uma delegac;ao do povo para faze-la, quando 0
esmo povo vota em membros do Legislativo identificados
m orientac;6es conservadoras e anti-reformistas.
f ! ii No entanto, apesar de todos esses bloqueios e dificul-
i'i~~des, pense que a reforma agraria e a soluc;ao para
tPIVersos dos nossos problemas. E por isso e necessario
if~tar por ela e mante-ta no debate politico. 0 Brasil e um
dos poucos poises do mundo que tem a possibilidade de
usar 0recurso do reforma agraria para atenuar os efeitos
t"lElgativose dramaticos do desenvolvimento econ6mico e
tecnologico muito rapido, dessa modernizac;ao tecnol6gi-
~muit "d . d •••.• 0rap' a que cna esemprego e exclusao e que
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responde pela rapida e grave deterioras;oo das normas de
convivencia, da moralidade e da segurans;a publica. Pro-
cesso que alcans;a tanto os pobres quanto os ricos.
Desemprego que noo se resolve com 0 proprio desenvol_
vimento que 0gera porque a modernizas;oo se da por saltos
tecnologicos e cientificos muito grandes. A massa da popu-
las;oo marginalizada pelo desemprego fica marginalizada
tambem em termos de conhecimento, de cultura, de es-
pecializas;oo, etc., e sem possibilidade de reintegrar-se no
mercado de trabalho a curto prazo, a noo ser em ocupa-
s;oes igualmente marginalizadas. Vai se criando aos pou-
cos uma especie de humanidade de segunda categoria,
excluida ate mesmo da possibilidade de participar das
lutas sociais e politicas segundo modelos politicos eficazes
de atuas;oo, recolhida a formas lumpen e quase sempre
delinquentes de as;oo e reas;oo.
A reforma agraria poderia se constituir num programa
de tecnologia intermediaria entre 0tradicional e 0moder-
no, com 0claro objetivo de absorveros impados negativos
de um modelo de desenvolvimento que tende a ser exclu-
dente e gerador de miseria. Um programa que criaria
alternativas sociais e econ6micas entre 0saito tecnologico
e 0atraso econ6mico e suas seqi.ielas. As proprias expe-
riencias dos assentados do Movimento dos Sem Terra
indicam que e possivel recriar e estimular um modo de
vida alternativo, relativamenteprospero, em relacsoo aodesemprego e a excludencia. Dessa forma seria possivel
absorver preventivamente os excedentes populacionais
que estoo sendo gerados pelo saito tecnologico promovido
pel a globalizas;oo da economia. Ao mesmo tempo, em
decorrencia da reforma agraria, seria igualmente possivel
desenvolver programas que seriam programas educacionais,
de modernizas;oo, de atualizas;oo, para que a geracsoo se-
~uinte, dos filhos desses trabalhadores, se adaptasse para
Insercsoo adequada, num futuro proximo, na realidade
desse mundo que fatalmente vai estar modernizado.
eU fosse um membro do Movimento dos Sem Terra
vida ria 0 presidente Fernando Henrique Cardoso para
or as experi€mcias de assentamento do Movimento,
l11edo. Ele que pense 0que quiser depois. Isso e
blel11a dele. Ele e um inteledual inteligente e compe-
te. Isso 0ajudaria a ajudor seus ministros a desenvolve-
ul11acompreensoo mais ampla dos efeitos largamente
itivos da reforma agraria. Eu faria isso tambem com
rnbros do Congresso Nacional, especial mente com
eles que tem uma conceps;oo equivocada e frequente-
nte tola do que pode ser a reforma. Esse seria um modo
isolar os inimigos irredutiveis das reformas socia is, em
rticular da reforma agraria. Eu Ihes mostraria essas
eriencias de recuperas;oo e atualizas;oo da cultura cam-
nesa, de recrias;oo de nichos de prosperidade e fartura,
reencontro da tradis;oo camponesa da comunidade e
familia simultaneamente com a modernizas;oo econo-•....ica segundo um outro modelo de economia. 0 presiden-
~, em particular, poderia relativizar os pontos de vista de
ecnicos que 0assessoram e que decretam verdades defi-
jtivas sobre coisas que noo conhecem, como a vida e a
ealidade do homem do campo que passou pel a experien-
'qia da luta social para preservar ou restaurar um modo de
>'y'ida. Mas, um modo de vida que e melhor do que 0
desemprego urbano ou subemprego, ou a miseria da vida
'I1Osfavelas e corticsos, ou emboixo dos pontes e viodutos
dos grandes cidades. Os que lutam por transformas;oes
sociais esquecem-se da dimensoo propriamente pedag6-
gica das proposis;oes politicas de dimensoo suprapartida-
'fia, como e concretamente 0 caso da reforma agraria.
f-,Aantidasas condicsoes politicas atuais, ela jamais sera feita
IDaperspectiva do confronto de classes.
Na verdade, 0Movimento dos Sem Terra e ao mesmo
fempo um grande movimento de modernizas;oo no campo.
tie e 0mais consequente movimento de modernizas;oo e
ressocializacsoo das populacsoes do campo que ja houve na
historia do Brasil Acho um absurdo que esse lado do geralmente, depositario de uma cultura secular de eficien-
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historia do Brasil. Acho um absurdo que esse lado do
Movimento nao seja proclamado pelo pr6prio Movimento.
oMovimento mostra um lado, que e 0seu pior lado do
ponto de vista politico, e nao mostra esse lado, que e 0
lado da promessa, exatamente 0lado da coisa que se
resolve, que tem soluc;60. Voce pode tirar 0 sujeito da mais
absoluta falta de destino, da mais absoluta miseria e
transforma-Io num sujeito que vive num estado de bem-estar social. E posslvel fazer isso e sem retroceder.
Uma das grandes crfticas a reforma agraria de qual-
quer tipo e, sobretudo, as distributivistas, que e a que se
pode fazer no Brasil, e justamente a crftica ao fato de que
o distributivismo poderia criar uma grande miseria. Na
mencionada entrevista na televisao, Fernando Henrique
disse isso, disse que a distribuic;ao de terras sem criterio
cria uma pobreza muito grande, pois nao da como assistir
tecnologicamente essas populac;6es. Da, sim, para resol-ver 0 problema da pobreza dessas populac;6es se elas
estiverem envolvidas na especie de mlstica pr6prias dos
movimentos socia is, ou do seu pr6prio movimento social,
no senti do de que elas tambem querem dar 0 saito para
a frente. Ninguem gosta da miseria, ninguem gosta de
passar fome, ninguem gosta de viver como bicho. Imagi-
nar que essas populac;6es amam a miseria e ate mesmo
uma injustic;;aabsolutamente incrivel, sobretudo daqueles
que entendem que a opc;ao pelo pobre e 0mesmo que
opc;;ao pela pobreza. Eles tambem querem ter televisao,
querem ter trator, querem ter um padrao de vida alto,
querem ter eletricidade dentro de casa, querem ter os
filhos na escola, querem uma vida digna, inclusive mate-
rialmente digna. Eles querem ter tudo que todo mundo
tern, que todo mundo tem 0 direito de ter. Quando Ihes
sac dadas as condic;6es de vida, ate minimas, conseguem
alcanc;;ar um nivel de bem-estar que 0desenvolvimento
capitalista acelerado esta longe de oferecer-Ihes. Alias,
nao cometamos 0
erro grosseiro de supor que 0 trabalha-dor sem terra nao sabe como trabalhar a terra. Ele e,
geralmente, depositario de uma cultura secular de eficien
te trato da terra. Esta mais em condic;;6es de ensinar do
que de aprender. 0que ele precisa e de terra para
trabalhar.
Pessoalmente, entendo que a reforma agraria deveria
ser feita mesmo nos casos em que, a curto prazo, nao se
produzisse nem um grao de milho como excedente eco-
nomico para 0 mercado. 0Brasil e um pais que tem terrassuficientes, mais do que suficientes, para fazer uma refor-
ma agraria em que, num primeiro momento, se tire essa
populac;ao da miseria, da marginalizac;ao, da falta de
possibilidade de trabalhar. Uma reforma que oferec;;a aos
beneficiarios a possibilidade de ao menos plantar a comi-
da que comem. Isso e mais digno do que viver nas ruas,
embaixo de ponte, do que perambular pelas fazendas
como escravo. Ha uma dimensao emergencial na reforma
agraria que se deve fazer no Brasil. E justamente a dimen-
sac que os governantes e politicos se recusam a aceitar e
que os movimentos socia is, inclusive 0 Movimento dos Sem
Terra, nao tem coragem de propo~ pois foram engolidos
ideologicamente pelos pressupostos da reforma tolliJravel
pelos grandes proprietarios. Emcima dessa base e a partir
del a e que se pode fazer uma proposta de elevac;;ao da
dignidade humana, de melhoria das condic;6es socia is,
sanitarias, educacionais da populac;;ao e, tambem, uma
polltica de fomento. 0 problema e que 0 Estado brasileiro
e incompetente para fazer isso. Uma proposta assim dacerto nas experiencias localizadas de assentamentos do
Movimento dos Sem Terra porque nao e uma organizac;;ao
tutelada pelo Estado. S6 da certo porque a propria popu-
lac;;ao envolvida no movimento esta nele, nao 56 porque
quer terra, mas, tambem, porque tem um modo de vida
como bandeira. Uma mistica de como viver, de como um
ser humano deve ser.
Entendo que, se os membros do governo que cuidam da
politica de reforma agraria fossem mais espertos, nego-
ciariam com as sem-terra. Se as esquerdas fossem esper- o primeiro e unico partido popular agr6rio que
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q p
tas, negociariam com 0governo a amplia<;eo do base de
sustentac;eo governamental no que diz respeito as refor-
mas sociais. Porque neo h6 outro jeito de participar ativa
e positivamente da viabilizac;eo da reforma. Neo se pode
retardar uma soluc;eo para 0 problema em nome da
suposic;eo de que determinado grupo, quando chegar ao
poder, far6 a reforma agr6ria que deve ser feita. 0 mo-
mento e 0momento historico do governo de composi<;eo.
Resta saber quem est6 disposto a compor e quem neo est6.
Se se retira toda e qualquer possibilidade de apoio a um
governo que est6 disposto a composic;eo, porque eu neo
acredito que neo esteja disposto, nos 0deixamos so com
o outro lado para negociar, e 0 outro lado e isso que
conhecemos.
No programa de televiseo, que mencionei, mais uma
vez Fernando Henrique fez a critica das elites. H6 muito
tempo ele e um critico das elites, de sua incompetencia
politica.
JST - Agorar essa coisa do Movimento dos Sem Terra ser
um agente de moderniza~aor voce co/oca assimr como
e que voce constr6i isso? E por causa da questito das
escolas? 0 MST nao e mais ummovimento social?
Jose de Souza Martins - Neo e mais. E uma organi-
zac;eo. Ele tem uma estrutura, um corpo de funcion6rios.
J6 neo tem as caracteristicas de um movimento social. Atendencia dos movimentos sociais e de desaparecerem,
uma vez atingidos ou esgotados seus objetivos ou sua
capacidade de pressionar, ou de se transformarem em
organiza~6es, partid6rias ou de outro tipo. Isso e proprio
da dincmica dos movimentos sociais. Os movimentos sociais
existem enquanto existe uma causa neo resolvida. Se 0
problema se resolve, acaba 0 movimento. Se ele neo se
resolve, a tendencia e a de que 0movimento se institucio-
nalize, se transforme numa organizac;eo, como e 0caso
do MST. Trata-se de uma organizac;eo poderosa. Eu diria
o primeiro e unico partido popular agr6rio que
o Brasil, apesar de neo ter programa e organiza-
priamente partid6rios.
aSe ele rejeita esse nome •..
See de Souza Martins - Ele pode rejeitar 0 que
mas, na pr6tica, ele 0e. Certamente, e mais do,fT 1 partido, mas no conjunto de sua atuac;eo tem as
eristicas de um partido agr6rio popular. E esse e 0
positivo, neo 0lado negativo do movimento.
JJ...Masos candidatos nao vito a eleit;ao ...
ose de Souza Martins - E verdade, se bem que 0
mento atue politicamente atraves de partidos politicos
istentes, como 0Partido dos Trabalhadores. No en-
, trata-se do unico grupo que conseguiu dar estatura
.ica a uma luta popular no Brasil, luta de trabalhador
L Esse e um fato positivo.
Mas, 0que eu dizia eo seguinte: um movimento como
, que agrupa populac;6es cuio conflito social atinge os
erces do sistema, que e 0direito de propriedade, tem
qfunc;eo modernizadora indiscutivel. E do que tr;to no
go recentemente publicado na Folha de S. Pau/03• Nele,
cordo da afirmac;eo do presidente Fernando Henrique
da realiza~60 desta entrevista, houve a elei~oo municipal de 3 de
outubro de 1996. E claro que houve em diversas regi6es, especialmente no
do pais, crescimento politico de partidos que tem posi~6es e programas
esquerda, incluindo neles a reforma agraria. Mas, houve retrocessos
not6rios, especialmente em regi6es importantes para a hist6ria das lutas
sociais dos trabalhadores rurais. Uma delas foi a do Araguaia mato-gros-
sense, lugar de lutas memoraveis nos anos setenta, ainda durante a
ditadura, lugar em que teve infcio 0renascimento das lutas populares no
campo. E de um iornal do Araguaia este comentario: "Essas elei~6es
mostraram que as atuais administra~6es noo conseguiram eleger seus
candidatos, exce~ao feita a Querencia e Alto Boa Vista. 0quadro atual do
regioo noo e muito animador. A direita, com seus metod os de sempre, onde
pouco lugar fico para a etica, se fortalece, e invade siglas que, na regioo,
tiveram um caroter de esquerda, como 0 PMDB e 0 PDT". Eespecificamente,
quanto ao municipio de Vila Rica, reduto de gauchos imigrados nos ultimos
Cardoso de que 0 Movimento representa 0 arcaico contret t d d t d l
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Cardoso de que 0 Movimento representa 0 arcaico contret
o moderno. Ora, 0 modemo e 0 Movimento dos Sem Terra
mesmo que, de fato, os parlicipantes do Movimento na6i
saibam disso nem estejam expressamente preocupados
com isso. 0Movimento dos Sem Terra e que e 0 porlador
e 0 agente do moderno porque questiona a estrutura de .
propriedade e por meio dela questiona a estrutura de
poder: questiona a propriedade concentrada injustamen_ te, anti-social, e, em consequencia, questiona 0 poder
oligarquizado e, no fundo, antidemocr6tico. 0Movimento
e 0 unico agente social a proclamar todos os dias que a
questao agr6ria nao e s6 nem predominantemente Uma
questao economica. Ela e uma questao polftica. Mesmo
grupos atuantes, da maior relevoncia hist6rica e polltica,
como a Comissao Pastoral da Terra, onde ali6s nasceu 0
Movimento dos Sem Terra, j6 se equivocam na sua missao
e no alcance de seu trabalho ao anunciarem na pr6tica a
precedencia das questoes economicas e tecnicas em rela-
~60 as questoes propriamente sociais e polfticas. H6 al uma
cerla renuncia aos pr6prios objetivos, uma cerla rendi~60
a 16gica dos grupos e classes dominantes, a sua ideologia
tecnicista e economicista e a sua proposta de moderniza-
~60 excludente, pois nela se proclama a precedencia do
economico em rela~60 ao social e polftico. Enquanto que
o que tem dado sentido e vida a CPT e exatamente a 16gica
oposta.
A medida que 0 Movimento dos Sem Terra questionao injusto e anti-social regime de propriedade, a medida
que, ao reivindicar, cria impasses politicos criativos para os
governantes e 0 Estado, a medida que obriga 0 Estado,
anos, antigos pequenos agricultores obrigados a migrar por falta de terras no
Rio Grande do Sui: "Esta elei~ao mostra clara reiei~ao a administra~ao atual
(PDT/PT) que muito investiu em educa~ao e em saude publica, investimentos que
nao rendem votos. Fica claro que 0 eleitor esta mais preocupado com obras que
apare~am ou com beneffcios particulares do que com seriedade administrativa.
U Cf. Alvorada, Ano 26, n. 194, Sao Felix do Araguaia (MT), set./out. 1996, p. 4.
concretas de ocupa~ao de terras, de alguma
que tangencialmente, a tomar providencias
a negociar, a fazer reformas t6picas, nessa
Movimento questiona 0 Estado 0lig6rquico e
. Assim agindo, 0 Movimento dos Sem Terra atua
d e democratizar a propriedade da terra e deoirum fator de persistencia da mentalidade 0lig6r-
sse sentido ele e essencialmente modemizador,. modemizador do que 0 capital que se compos
nde propriedade fundi6ria.
disso, a vida nos acampamentos promove uma
periencia de ressocializa~60 de seus membros e
ntes. Netes se cria uma especie de sociabilidade
que significa que dal decorre mais do que a
d~60 de terra. 0Movimento tem que abranger,
mais do que 0 acesso a terra, algo que corres-
horizontes aberlos por essa nova sociabilidade.Movimento propoe nesses projetos de coopera-
trabalho, de moderniza~60 das rela~6es sociais.
modo, pode-se dizer que nessa experi€mcia h6
reinven<;60 do mundo campones em eases
h6 pouco, na revista Atenqoo!, uma bem feita
la sobre 0 modo de vida desse campesinato que
da luta pela terra4• E uma proposta sofisticada. Nem
guesia brasileira, que supostamente tem 0 mandatorico da moderniza~ao, e capaz de propor algo seme-
te nessa escala de atividade economica. A burguesia
Heira deveria aprender com 0Movimento dos Sem
q, pelo menos no que diz respeito a agricultura. Ela
percebe que, de fato, a iniciativa do trabalho gerencial
boa qualidade na agricultura familiar, da coisa que
Cf . Ricardo Kotscho e loao R. Ripper, A terra que queriam ver dividida, in:
Aten~60!, Sao Paulo, out. 1995, p. 30-41.
funciona, que do certo, esto hoje nas maos de grupos ossibilidade da alternativa controria Qualquer coisa
7/23/2019 José de Souza Martins. a Questão Agrária Brasileira.
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, q , j g p
populares. 0 Movimento dos Sem Terra esto provando isso.
Eles nao tem a mesma capacidade gerencial, a mesma
competencia que 0 pessoal desses assentamentos est6
demonstrando. Os nossos empres6rios, que estao quase
sempre se queixando e esperando privilegios do governo,
especial mente os empres6rios rurais, exercitam sua capa-
cidade gerencial em condic;6es de favorecimento politico.J6 0Movimento dos Sem Terra exercita sua capacidade
gerencial em condic;6es adversas e conflitivas, sem apoio
material e sem apoio dos orgaos de formac;ao da opiniao
publica, num ambiente quase de guerra. So por isso, as
inova~6es que implantam e difundem ja representam uma
competencia maior.
Na verdade, estamos em face de um duplo movimento
social protagonizado pelos membros de uma mesma orga-
nizac;ao, que e 0Movimento dos Sem Terra. De um lado, 0
movimento propriamente politico, que alcanc;a as ralzes do
sistema de poder. Nao alcanc;a com exito, mas alcanc;a e
desafia. E, de outro lado, a ressocializa~ao da popula<;ao
rural alcan<;ada pelo Movimento para se integrar no mundo
moderno de uma maneira decente, de uma maneira digna,
porque 0 que 0 capitalismo esta oferecendo para essa
humanidade e a integra<;ao excludente e a marginalizac;ao.
No mundo inteiro esto assim. Aumenta 0numero de casos
de trabalho escravo, sac seis milh6es de escravos no mundo
hoje, conforme 0relatorio da Organiza<;ao Internacional doTrabalho de 1993. Nao e a mesma escravidao do passado.
E a escravidCio que nasce no interior do capitalismo moderno,
que exclui e degrada (na India ho pais que vendem os
filhos em troca de comida). 0 lado monstruoso do capi-
talismo esta aparecendo agora nessas modalidades de
degrada<;ao do homem. E a contrapartida do ultradesenvol-
vimento que alguns paises, algumas regi6es, algumas clas-
ses estao conhecendo e vivendo em nossos dias.
Movimentos populares, camponeses, como os que seabrigam no Movimento dos Sem Terra, estao anunciando
ossibilidade da alternativa controria. Qualquer coisa
oferec;a as novas gerac;6es, as crianc;as, a possibilidade
rn sorriso que nao seja falso, vale a pena.
_ Voce e conhecido como defensor da agricultura
War, solitario por algum tempo. Hoje 0modelo de
Icultura familiar tem sido retomado, ate como umaosta de modernizat;ao. Euqueria que voce falasse
pouco sobre isso, ate porque, na 16gicado Movimen-¢lepois de toda uma discussao de cooperativar, de
halho coletivo, se descobre outras formas de coope-o que integram a agricultura familiar e, pelo que
onheci disso, acho que e a melhor solut;ao, porquevai em cima daquela mentalidade camponesa quegosta de fkar sob cabresto, horarioenao sei 0que.
mbem porque propoe uma alternativa para eles nao. rem sufocados pelo esquema que esta montado ai, falta de espat;o economico para eles. Entao como e
voce enxerga isso, assim, a agricultura familiar ser cada agora, num outro patamar, numa outra discus-
.ose de Souza Martins - Meu primeiro projeto de
uisa, de 1964, tratava, justa mente, dos obstocClos a
ernizac;ao da agricultura, dos processos que recriavam
raso econ6mico e social. E abrangia tanto a grande
nda quanto a pequena agricultura de familia, inclusive
areas atrasadas, como 0Alto Paraiba, em Sao Paulo.
Nunca fui defensor da agricultura familiar pela agricul-
familiar, do tipo volta a pequena unidade de produc;ao,
mae e filho trabalhando na roc;a, solitarios e isolados.
cp fui defensor do atraso social e econ6mico, porque
pessoal e diretamente 0que ele significa. Venho de
familia de pequenos agricultores pobres, e eu proprio
a roc;a, quando menino. Boa parte de minha familia
rna ainda esta na ro~a. Sempre achei que a experien-
a familia rural estavel, que e capaz de sobreviver com
idade e sem passar fome, e uma experiencia que tem·Ser resgatada socialmente, que nao pode ser "jogada
fora" Porq e a alternati a para ela no circ nstancia at al ante noo aceitam a logica de ma cooperac;oo irrea
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fora". Porque a alternativa para ela, no circunstancia atual,
e a proletariza~ao e a miseria. Isso aconteceu no minha
familia. Quem nao ficou no ro~a, foi para a fabrica. Eu
mesmo ainda menino trabalhei em fabrica, cresci dentro
de uma fabrica. So fui estudar porque os donos do empre-
sa, que era muito grande, a familia de Roberto Simonsen,
eram pessoas esclarecidas e mandaram estudar os meni-
nos que 0 quisessem. Eles pagavam a escola noturna para
as crian~as que trabalhavam durante 0 dia. Por uma
cilada da vida, essa familia, que era muito correta com
seus operarios e ja foi riquissima, perdeu tudo que tinha.
Recentemente, Iinuma grande revista a noticia de que um
filho do homem que fora meu patrao estivera no Federa-
~ao das Industrias procurando emprego, pois nem mesmo
tinha dinheiro para pagar 0 metro e retornar para casa.
Uma coisa que aprendi em coso mesmo, no ro~a, com
meus avos, meus tios e meus primos, e que a agriculturafamiliar e, sobretudo, uma forma basica de coopera~ao
economica e e, tambem, uma comunidade. Nos momen-
tos de colheita, quatro gera~6es do familia se reuniam
para executar 0 trabalho dos mais fracos, sobretudo dos
velhos. Eram muitas semanas de muito trabalho e tambem
de muita alegria. Um momento, propriamente, de comu-
nhoo.
Se voce propuser alguma coisa mais complicada paraessas pessoas, algo teoricamente sofisticado, complicado
e pouco inteligfvel para qualquer um, inclusive para os
proprios inteleduais, como gostam de fazer os economis-
tas de esquerda, e tambem os sociologos, a proposta noo
chega a funcionar na pratica. Ate porque suas propostas,
mais do que transformadoras, sac destrutivas. E levam 005
famosos desastres do coletiviza~oo fidicia e boba. Nos quase
vinte ones em que fiz pesquisas periodicas no Amazonia,
mas tambem em Sao Paulo, vi muitas tentativas fracassa-
das de tornar real a fic~oo do trabalho coletivo. Essestrabalhadores rurais noo entendem e, sobretudo, pruden-
ante noo aceitam, a logica de uma cooperac;oo irrea-
que se sobrepoe a coletivizac;ao realista, de fundo
ral, que ha no coopera~ao familiar. Em areas de imi-
c.;:Oorecente, como e 0caso do regioo amazonica, a
lidade estrutural da familia extenso, que continua pre-
te no cultura e no mentalidade da popula~ao do cam-
, perde visibilidade, porque 0 pesquisador so ve nos
yoados e nas ro~as aglomerados de familias nucleares.
Mas, 0 que ele ve nao e 0que 0 povo vive, pensa e e.
portanto, ja existe uma base e uma cultura de coope-
00 e de divisao cooperada do trabalho, que se desen-
Ive ou que desaparece em func;ao das circunstancias
toricas e sociais. Nas areas de luta, e de experiencias
cassadas de coletivizac.;:ao do trabalho, por exemplo
raves de cooperativas, com facilidade essa cultura co-
~unitaria e familista produziu experiencias transitorias de
¢60perac;ao que revelaram um modo proprio de cooperar
cheio de potencialidade modernizadora e transformadora
~apropria agricultura familiar tradicional. Isso os pesqui-
~~dores nao conseguem ver. Por isso entendo que e pos-
·el integrar a familia do pequeno agricultor no mundo
derno de um modo muito mais humanizado e criativo
que atraves da proletarizac;ao e do converseD do
dbalhador em mero bra~o, e nao em cerebro, do traba-
ador coletivo de que falava Marx.
Como voce lembra, neo s6 falei sozinho, mas tambem
muita paulada de intelectuais de classe media desen-
cuio radicalismo noo e 0radicalismo do vida, mas
da leitura diletante, quase sempre ligados aos partidos
esquerda, que conhecem os livros e desdenham a vida.
sempre acharam, e muitos ainda acham, que essa era
proposta (minha!) e, alem disso, uma proposta rea-
e incompetente. No fundo, eu estaria propondo
volta 00 passado. Um desses ide610gos de facc;oo
olftica, escrevendo sob pseudonimo numa publicac;ooQrtidaria, que estava retornando da Europa, de volta do
"exilio", e que se c1assificava a si mesmo "ministr~. da inicial, eles foram capazes de estabelecer sistemas de
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, q
agricultura" do seu partido politico, chegou a clas:"f,car " I' .. "0 la eleessa compreensao como popu Ismo COlplra. u se ,
me comparava aos populistas russos d.o seculo ~IX, os
cham ados narodnik, combatidos por Lenin desde a luven-
tude para sugerir que eu tinha uma compreensao nao-le-
nini:fa e conservadora da realidade do campo e do
campones. Justo eu! Esse era 0unico parametro de qu.eele dispunha para compreender a realidade de nosso pOlS
que, no fundo, nao conhecia.
Trac;o nofavel dessa especie de covardia ideologica foi
que varias dessas figuras escreveram artigos carregad~s
de insinuac;;oes de incompetencia e de depreciac;;ao graful-
ta de minhas interpretac;oes, sem fazer qualquer cifac;;ao
expressa dos trabalhos em que estavam contidas,. q~e me
assegurasse honestamente a possibilidade e 0dlrelto de
contestac;;ao.
o que eu estava dizendo era olgo completomente
diferente do que eles estovam lendo, porque eles liam com
olhos gerados na leitura de pifios manuais de marxismo
vulgar, que estiveram em moda numa certa ep~ca e que
ainda correm por ai, agora sobretudo nos mOVlmentos e
organizac;;oes populares. 0 que eu estava sugerindo e que
ja existia uma unidade basica de coopera.<sao no can: po,
unica tradic;;ao que nos temos, nesse senti do, na agrlcul-tura. Nos nao femos a comunidade camponesa tradicio-
nal nos nao temos nenhuma instituic;;ao camponesa como, .houve na Europa, em varios paises. E essa que resta, e a
unica que nao foi destruida. Entao ela pode ser preservada
e incorporada positivamente num processo de transforma-
c;;aosocial e, inclusive, de transformac;;ao economica.
A experiencia dos sem-terra que salram da Encruzilha-
da Natalino, no RioGrande do SuI, depois de conseguirem
a terra, foi uma experiencia historica. Eu nao acompanheio caso mais tarde, em seus desdobramentos. Mas, na fase
cooperac;;ao sem interferir no processo imediato de produ-
c;;ao.A cooperac;;ao se desenrolava em outros pianos, como
acontece em muitos assentamentos. Nao e precise fazer
a tolice de estabelecer 0trabalho coletivo em serie para
assegurar que os camponeses estao entrando no mundo
moderno (e socialista!!). Eles podem estar entrando, isso
sim, no que de pior existe na produc;;ao coletiva que e aalienac;ao completa, mental e flsica.
Certos tipos de cultivo, ainda por cima, sac incompa-
tlveis com essas modalidades de coletivizac;;ao. E a pequena
agricultura familiar e ao mesmo tempo altamente eficien-
te. Mesmo num sitio tradicional do Alto Paraiba, aqui em
Sao Paulo, um dos 6ltimos redutos da complexa cultura
caipira, as familias aproveitam absolutamente tudo, nao
so as coisas, mas tambem 0tempo. Estamos em face de
um sistema de maximizac;;ao da eficiencia. So que nao esta posta em termos da logica do moderno, do mundo da
produc;;ao moderna. 0 fato de que a produc;;ao seja propor-
cionalmente alta, devido ao bom aproveitamento do tempo
e tambem do espac;;o, e de que os resultados financeiros
sejam minguados, nao deveria confundir os tecnicos inteli-
gentes, capazes de perceber que esse desencontro decorre
de fatores que estoo fora do mundo caipira e do mundo da
pequena agricultura familiar, e nao dentro. Essa confusao
resulta de preconceito e ignorcmcia e esta muito longe de ter
uma base cientlfica respeitavel.
Penso, po is, que e posslvel incorporar essa competen-
cia no mundo modemo. E 0que propoe, no meu modo
de ver, 0Movimento dos Sem Terra e tenta realizar nos
assentamentos: a inserc;;ao desses trabalhadores numa
16gica economica mais ampla, racional, apoiada na ideia
de retornos economicos modern os e reciprocidades sociais
basicamente tradicionais, na ideia de formas amplas de
cooperac;;ao nao so economica, mas tambem de solidarie-
dade comunitaria revigorada. Com base, enfim, na socia-
bilidade gerada na partilha daquilo que nao e propriaLefeb~vr~e a que questiona a redu~ao da realidade ao
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bilidade gerada na partilha daquilo que nao e propria-
mente economico, pois e neste ambito que as pessoas tem
mais dificuldade para aceitar propostas de coopera~ao.
Essa e uma caraeterfstica disseminada das popula~6es
camponesas. Visitei, na Italia, areas camponesas antigas,
onde 0 Partido Comunista sempre teve uma presen~a
muito forte, como a Emilia Romagna. Ali os campones
es
sac economicamente muito modernos. Continuam man-
tendo a base familiar, que e tambem 0maximo de coope-
ra~ao possivel no caso deles, desdobrada por varias
gera~6es que vivem e trabalham juntas, no minimo avoS,
filhos e netos. Essa combina~ao vem de suas tradi~6es e
de sua visao politica.
JST _ Para voce deve ser interessante, porque numa
epoca pichado por defender uma questao e, hoje, ter-se
encontrado que a alternativa era essa. Porque 0 proprio Movimento, depois de muito tempo nao discutindo a
questao do individual, passou a discutir isso, a incorpo-
rar isso com mais seriedade. Eu acho que passou um
pouco a febre... lsso em termos de utopia, porque 0
movimento acaba tendo um reflexo local, solutjoes 10-
cais. Morreu a chance, 0capitalismo esta cada vez maisselvagem, as pessoas perderam amistica, i5S0 e visivelhoie. Comovoce enxerga esse mundo contempor6neo e
a aparente falta de alternativa de mudant;a, alem das
alternativas locais?
Jose de Souza Marlins - Penso essa questao em
grande parte com a cabe~a de Henri Lefebvre, um autor
com cuja obra trabalhei muito ate aqui. Durante anoS
mantive, na Universidade, um seminario semanal sobre a
obra dele. Ele e 0grande marxista contemporaneo. Eu
cheguei a trocar umas ideias com ele por correspondencia.
Morreu faz poucos anos. Ele trouxe 0marxismo para a
segunda metade do seculo xx . E com isso atualizou a
pro posta de reden~ao do homem das necessidades que 0
transformam em objeto, em vitima, proposta propria domarxismo de Marx. Uma tese importante na obra de
q q
eco.n~m.lco o~ ao politico, e a de que todas as rela<;6es
SOCIalS,mcluslve as rela~6es cotidianas, tendem a se trans-
formar em poder. 0 poder tende a aparecer em todos os
lugares, em todas as rela<;6es, na rela<;ao marido-mulher
na rela~ao pai-filho, na rela<;ao professor-aluno em casa', ,
na rua.
. Mas ~efebvre ensina ao mesmo tempo que nem tudo
e capturavel pelo poder. Por isso, para ele, a concep~ao
da revoluc;ao social nao se confunde com golpe de Estado
mas ~ a revolu<;ao no modo de viver, no modo de pensa:'
naquJlo que pode nos tornar mais humanos, nos humani-
zar, no sentido de libertar-nos de carencias e miserias. Para
ele, a r~volu~ao esta no que chama de encontro e junc;ao
dos reslduos, daquelas rela~6~s e situac;6es, que nao
foram ca~turadas pelo poder. E no residual que esta a
fonte ~a hberdade, do socialismo, de uma outra vida, deuma vIda nova. Como 0imaginerio e manipulevel ele
t~mbe.m di~ que e preciso opor a imagina~ao ao ima~ina-
~IO. A.Imagmac;ao e residual em relac;ao ao imaginerio. A
~ma~II~.ac;~oe 0 insubmisso de nossa cabe~a, de nossa
mte"gencla, de nossa sensibilidade para a vida de nossa
consci~ncia, de nossa compreensao da vida e do mundo,
de mUltas de nossas relac;6es socia is. .
. Ente~do que a utopia hoje se p6e nesse plano. A utopia
e 0 posslve!. Para Lefebvre, 0 posslvel e 0eixo da luta e daconsciencia de quem luta. A utopia e a proposta de uma
tra~sforma.~ao do mundo alicer~ada no posslve!. A utopia
est a no reSIdual, esta naquilo que nao pode ser capturado
pelo poder e pelos que tem poder. He coisas que neo
p.~de~ ser capturadas, na nossa vontade, na nossa cons-
clen~I~, no nosso modo de viver, naquilo que nos achamos
q.ue e Justo, no nosso trabalho. He um irredutivel em nossa
vida.
Essa compreenseo da realidade historica do homemganha sentido em sua tese de que neo he reprodu<;eo de
rela<;oes SOCialS sem uma certa produ<;oo de rel04;;oes
i i O j d d li d
estilo que herdaram de meus avos, e que eu
b Al f t d U d l bi t d
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sociais. Ou seja, quando ocorre a reprodu<;oo ampliada
do capital, ocorre tambem a reprodu<;ao ampliada das
contradi<;oes socia is. A tend€mcia a aparente perpetua<;oo
do capitalismo, de sua explora<;ao e de suas rela<;oes de
poder nao se repete sem reproduzir consigo aquilo que a
nega e que propoe, no proprio boio da explora<;~o ~ da
opressao, a liberta<;ao. 0 poder absoluto. do capltahsmonao existe, e u ma farsa e u ma fraude. E um sonho de
capitalistas.
JST - Posso voltar um pouquinho atras? Voce tem origem
numa familia de camponeses ...
Jose de Souza Martins - Sao camponeses do sui da
Espanha que vieram para 0Brasil no come<;o do seKulo na
grande onda de substitui<;ao dos escravos nas fazendas de
cafe, que come<;ara j6 antes da aboli<;ao da escravatura.
Vieram como imigrantes subsidiados, pobres, sem dinhei-
roo Da Hospedaria de lmigrantes, em Sao Paulo, foram
mandados para a esta<;ao de Bragan<;a Paulista e 16 reco-
Ihidos por um fazendeiro que precisava de trabalhadores.
Minha mae, que tinha tres meses nessa epoca, foi a primeira
que saiu da ro<;a, quando se tornou mocinha, para casar,
pois meu pai era aqui de Sao Caetano, do suburbio
industrial. Meu pai era empregado de f6brica. Ele morreu
logo. Quando ela ficou viuva, foi para a f6brica, unico
meio de sustentar os dois filhos pequenos. Quando fizonze anos, tambem fui para a f6brica e 0mesmo aconte-
ceu com meu irmao. Trabalho h6 46 anos, 38 dos quais
com efetiva contribui<;ao a orgoos de previdencia social.
De m inha vida nao me lembro de nada que nao seja
trabalho.
Uma parte grande da familia ficou no campo. Sempre
tive um vinculo forte com meus avos e tios que ficaram na
ro<;a, morreram na ro<;a. Muitos de meus primos ainda
estao na ro<;a, como pequenos agricultores. Quase todosenvolvidos em esquemas criativos de coopera<;ao familiar,
bem. Alguns foram estudar. Um deles, bisneto de
avOS, foi ate mesmo para os Estados Unidos durante
110, com uma bolsa da Cooperativa de Cotia, para se
iarizar com tecnicas modernissimas de agricultura de
fa. Ao voltar, criou uma cooperativa de trabalho em
domlnio com irmaos, primos e cunhados na minuscula
ela de terra da avo, minha prima-irma. Sao culturas
issimas de tomate e pimentao, verdadeiras f6bricas
rfcolas com base numa tecnologia simples, moderna e,
mesmo tempo, sofisticada. Todos mantem suas familias
m bom padrao de vida a partir desse modo de produzir
pies e familistico.
Quando pude estudar, decidi que seria professor pri-
'!"hario na ro<;a, 16 no Arri6, na Cachoeirinha, na Rosa
Mendes, na Fazenda Velha, bairros rurais em que viviam
~vivem meus parentes, na regiao da Bragantina, em Sao
Paulo. Ou entao, 16 no fundao da zona rural de Guaiana-
ses, distri to d e Sao Paulo, n o q ue fora an tigamente a
Fazenda Santa Etelvina, on de morei e frequentei a escola
prim6ria. Era esse meu projeto de vida, meu sonho. Quan-
do fiz 0Curso Normal, ainda no tempo da escola publica
de qualidade exemplar, Ii, por exemplo, 0homem, de
Ralph Linton, um cJassico da antropologia, todinho. Fazia
parte do curso, era 0 manual do curso. AI fui "mordido"
pela sociologia, que era disciplina do curriculo. Resolvi,
entao, fazer 0vestibular para Ciencias Sociais na Univer-sidade de Sao Paulo, sem muita esperan<;a de obter apro-
va<;ao no duro exame oral e escrito perante varias bancas
.constituidas de algumas das melhores cabe<;as da nossa
intelectualidade, e passei. Fui aluno do professor Florestan
Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio
Ianni, de Ruth Cardoso, de Paula Beiguelman, de Marialice
Mencarini Foracchi, de Oliveiros da Silva Ferreira, de
Gioconda Mussolini, pioneira no estudo de popula<;oes
rurais no Brasil, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, deEunice Ribeiro Durhan, de Fernando Antonio Novaes, de
Coelho. Acabei sendo convidado
auxiliar de pesquisa em projetos
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auxiliar de pesquisa em projetos
cientistas socia is. Eles desenvolve-
e teorias para explicar os
de nosso pafs num pafs moder-
Esquemas que norteiam as nossas
ate hoje. Nesse grupo havia muita preo-
esse nosso Brasil desencontrado, esse Brasil
de maneira desigual, esse Brasil fundamen-
talmente injusto. Esse era 0Brasil de gente como eu, que
vinha da ro~a e da fObrica, gente como a minha familia
que ainda estava na ro~a e de minha mae, que ainda
estava na fObrica.