josé de souza martins. a questão agrária brasileira

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Da dos Inte rna cio nai s de Cata log a~ao na Pu blic ac; ao (C IP) (C am ara Br asil eira do Liv ro, S p, Br asil ) A r efo rma agr ari a e a lut a do MST/ Joo o Ped ro Stedi le (org.). - Petropolis, RJ:Vozes, 1997. Bibliografia. ISBN 85-326-1901-0 1. Ass ent amento rural - Bra sil 2. Movi me nto dos Sem Ter ra 3. Pos se da ter ra - Bra sil 4. Ref orma agr ari a - Bra sil I. Stedile, Jooo Pedro. . 97-4624 Ind ice s par a cata log o siste ma tico : 1. Bras il: Refor ma agrar ia 333.3 181 2. Mov imen to dos Sem Terra : Ass enta ment o rura l: Econo mia 333.3181 1. A QUESTAO AGRARIA BRASI LEIRA E 0 PAPEL DO MST  JS T-  Como e qu e  voce ve a  q uesta o da refor ma agra ria,. ho;e,. no p ai s? El a ex pl od iu de ;u lh o do a na passado [I 995J  para  c a .  Alguns  a situam  e m circ unsta ncia s de- terminadas,. como  a  da cri se agr ico la;  outros diz em que e  porque  0  Mov im en to (d os Sem Terr a)com e~ ou  aapa- rece r mais. Com o vo ce ve  isso ,. do Mov imen to do s Se m Terr a,. ou da luta dos trabalhad ores sem terrar com e~ar aconquistar mais espa ~o?  Jo se de So uz a Mar tin s -  Min ha viseo do problem a va i n um a dire c;e odifere n te do de su a pe rgu n ta , po rqu e tem com o prem issa que 0tempo do :! # c ;> , ~ ~ l2 j? " c c ::~ ~ I ;:I ! .! 5 ;M '! f l~ C : :C ! c ;! ,e um tempo longo, implic a  e m buscar  sua origem  e lenta e x p re ;s a ;  d~sde 0  passado.  0 pro blema so cial do ter;a ne o se exp lica en tre no s por acon tecim en tos e circunstcm cias ime dia tos . Se m co m pree n der ess a di ferenqa de tempo en tre a su a pe rg unta e a m inha re sp o sta fica dificil en te n - d er  0que pen se do problem a.  A questeo agr6ria, e v id e n te m e nte, n e o c o m e c ;ac om0 M o vim en to do s Se m Te rra n em va i a ca ba r qu a n do ele eve n tua lme nte ces sa r. Pa ra mim , ela e  essencialme nte um a que sta o po litico. E  um a que steo politico emqua lquer  pa is. A qu es teo agr6 ria e  cara cterfstica do m undo co n tem - po ran eo. Elasurge com0dese nvo lvim en to do capitalismo .  A ntes neo e x istia a qu e s te o agraria.  Ela surg e em c on se- qu encia do ob st6 culo qu e a pro prie dade te rrito ria l e 0

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7/23/2019 José de Souza Martins. a Questão Agrária Brasileira.

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Dados Internacionais de Cataloga~ao na Publicac;ao (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, Sp,Brasil)

A reforma agraria e a luta do MST/ Jooo Pedro Stedile (org.).- Petropolis, RJ:Vozes, 1997.

Bibliografia.

ISBN 85-326-1901-0

1. Assentamento rural - Brasil 2. Movimento dos Sem Terra 3.

Posse da terra - Brasil 4. Reforma agraria - Brasil I. Stedile, JoooPedro. .

97-4624

Indices para catalogo sistematico:

1. Brasil: Reforma agraria 333.3181

2. Movimento dos Sem Terra: Assentamento rural: Economia333.3181

1. A QUESTAO AGRARIA BRASILEIRA

E 0 PAPEL DO MST

 JST-   Comoe que  voce ve a   questao da reforma agraria,.

ho;e,. no  pais? Ela explodiu de ;ulho do   ana  passado[I 995J   para   c a .   Alguns   a situam   em circunstancias de-

terminadas,. como  a  da crise agricola;   outros  dizem que

e   porque   0 Movimento (dos Sem Terra)come~ou  aapa-recer mais. Como voce ve   isso,. do Movimento dos SemTerra,.ou da luta dos trabalhadores sem terrar come~ar 

aconquistar mais espa~o? Jose de Souza Martins -   Minha viseo do problema

vai numa direc;eodiferente do de sua pergunta, porque tem

como premissa que  0tempo do   :! # c ;> , ~ ~ l2 j? " c c ::~ ~ I ;:I ! .! 5 ;M '! f l~ C : :C ! c ;! ,eum  tempo longo, implica   em  buscar    sua  origem   e   lenta

e x p re ;s a ;   d~sde0 passado.   0 problema social do ter;a neo

se explica entre nos por acontecimentos e circunstcmcias

imediatos. Sem compreender essa  diferenqa de tempo

entre a sua pergunta e a minha resposta fica dificil enten-

der   0

que pense do problema. A questeo agr6ria, evidentemente, neo comec;acom 0

Movimento dos Sem Terra nem vai acabar quando ele

eventualmente cessar. Para mim, ela   e   essencialmente

uma questao politico.   E   uma questeo politico em qualquer 

pais. A questeo agr6ria   e  caracterfstica do mundo contem-

poraneo. Elasurge com 0desenvolvimento do capitalismo.

 Antes neo existia a questeo agraria.   Ela surge em conse-

quencia do obst6culo que a propriedade territorial e  0

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 pagamento da renda da terra ao propriet6rio representa

 para a reprodu~ao ampliada do capital e a acumula~ao

capitalista na agricultura. No nosso caso, surge a questao

agr6ria quando a pr9priedadeda terra, ao inves de ser 

atenuada para viabilizar    0 livre fluxo e reprodu~ao do

capital, e enrijecida para viabilizar a suiei~ao do trabalha-

dor livre"ao capital propriet6rio de terra. Ela se tomainstrumento da cria~ao artificial de um exercito industrial

de reserva, necess6rio para assegurar a explora~ao da

for~a de trabalho e a acumula~ao. A questao agr6ria,

curiosamente, foi surgindo, foi ganhando visibilidade,   a

medida que escasseavam as alternativas de reinclusao dos

expulsos da terra. Portanto, entre nos, ela e a face esca-

moteada da quesfao   do trabalho,   que se manifesto na

exclusao social.

Para mim, nao existe a questao da reforma agrana,existe a   quesfao   agraria.   A reforma agr6ria e uma possi-

 bilidade de solu~ao para a questao agr6ria. A questao

agr6ria e  0 problema e a reforma agr6ria e a solu~ao do

 problema. H6 diferentes modalidades de reform~agr6ria

que poderiam ser respostas   a   questao agr6ria. E preciso

verI   primeiro,   0que e a questao agr6ria no Brasil para

depois ver quais sao as propostas de solu<;ao que Ihe estao

sendo oferecidas. Nao so as que   0 Estado brasileiro

oferecel   desde a ditadura militar, para a questao agr6-

ria. Mas, tambem, as respostas que os proprios trabalha-

dores, quando organizados, imaginam que seriam as mais

adequadas para a questao.

A questao agr6ria em nosso caso tem tudo a ver com

o fato de que a sociedade brasileira foi, ate nao muito

tempo atr6s, ate cem anos atr6s, uma sociedade escravis-

ta. Ate   1850,   que e quando de fato se come~a a tomar 

il1iciativas concretas para acabar com a escravidao,   0

acesso   a   terra era "livre". Nao havia   0atual regime de

 propriedade, que e um regime fechado,o da propriedadeabsoluta, que   0regime envelheceu muito depressa, que

ele contem muitas imperfei<;6es e insuficiencias e, ao con-

tr6rio de todo direito, nao se tornou produtor de justi<;a

(nem dos direitos dos grandes propriet6riosL mas produtor 

de problemas e iniquidades.

A questao agr6ria come~a a se definir quando   0Estado

 brasileiro, no seculo XIX,pressionado por alguns setores

das elites e, sobretudo, pelas grandes potencias da epoca,que queriam expandir mercados (coisa impossivel com a

escravidao, pois escravo nao compra), decide acabar com

a escravidao. Acabar com a escravidao significava, naque-

la epoca, em que   0governo estava nas maos dos grandes

fazendeiros, criar um serio problema para a grande pro-

 priedade, para os proprios fazendeiros. A pergunta que os

fazendeiros faziam, e com razao, era: "quem vai trabalhar 

nas fazendas quando a escravidao acabar?"

o regime de propriedade que entao havia era  0regimede sesmarias, suspenso em   1822,   poucos meses antes da

Independencia   1•   Apesar de suspenso, nao foi imediata-

1. 0 regime sesmarial era   0 regime de posse do terra vigente em Portugal

quando da descoberta do Brasil e para co foi transplantado. Havia diferen-

<;05   substantivas entre esse velho regime e   0   novo regime que seria

estabelecido aqui atraves do chamada Lei de Terras, a Lei N°   601,   de

setembro de   1850.   No regime de sesmarias, a agricultor tinha reconhecidoum direito de   posse,   mantendo   0 rei (isto   ii,   0  Estado)   0 dominio,   a

 propriedade eminente. A terra nao era propriedade do fazendeiro; era

apenas uma concessoo territorial. 0 rei estabelecia que se as terras noo

fosse dado uso produtivo num prazo relativarilente curto, muitas vezes de

dois anos, a concessoo caducava, as terras caiam em comissq, isto   ii,

tornavam-se realengas, voltavam ao dominio do rei. Este, por sua vez,

 podia concede-Ias novamente a outra pessoa, noo subsistindo nenhum

direito territorial em favor do primeiro ocupante. As benfeitorias feitas sobre

terras assim concedidas pertenciam de direito a quem as tivesse feito ou

mandado fazer. Um agregado de fazenda, por construir nela sua propria

casa, tornava-se proprietorio de cas a em terra alheia. Podia vende-Ia a um

terceiro, mediante simples pagamento de laudemio ao senhor da terra, aa

sesmeiro, mediante   0simples pagamento de um tributo. E muito comum,nos documentos dos seculos XVI e XVII, referencias a remanejamento de

direitos sobre terras concedidas em sesmaria. Ate pelo menos   0seculo XVIII,

era costume que noo podiam receber terras emsesmaria os  qUE!   nao fossem

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mente substituido por urn novo direito de propriecJade. Na

 pratica ele continuava funcionando, embora   0governo

neo fizesse novas concessoes sesmariais. Se   0 regime de

sesmarias fosse plenamente restabelecido e continuasse

em vigor apos   0fim do escravidoo, que obviamente

estava proximo com a diminui~eo do numero de escravos,

os trabalhadores pobres e livres e os libertos ocupariam

livremente as terras disponfveis e nao iriom trabalhar para

os fazendeiros. Era necessario, portanto, criar um direito

de propriedade que fosse, ao mesmo tempol um obstaculo

ao livre acesso   a   terra por parte da massa da popula~ao

 pobrel   inclusive por parte dos ex-escravos1   daqueles que

viessem a ser libertados da escravidoo.

A formula encontrada foi a de aprovar uma nova lei

de terras. Essa lei (Lei N° 601,   de   1850) fornou-se   0oposto

da Lei de Coloniza~ao, aprovada nos Esfados Unidos mais

ou menos na mesma epoca. La as terras da fronteira, as

terras do Oeste, foram abertas   a   livre ocupac;ao dos

colonos, mediante superviseo e confrole do governo. Essa

foi a reforma agraria americana, que assegurou a trans-

forma~ao do Oeste num dos grandes celeiros mUrldiais de

alimentos, inicialmente com a agricultura famil iar.

 No Brasil fez-se   0contrario. Trafou-se de aprovar um

regime de propriedade que impedisse   0aces so   a   proprie-

dade da terra a quem neo tivesse dinheiro para compra-Ial

mesmo que fosse terra publica ou terra devoluia. Para

obter a legitima~oo do direito   a   terra havida era l1e<:essario

que a pessoa pagasse por ela. Os efeitos sociais da lei

aparecem clara mente no fala de um grande fazendeiro de

cafe, que foi uma grande figura de nossa historia no fim

do Imperio e no come~o da Republica: Antonio do Silva

Pradol   de Sao Paulo. Ele era de uma familia muito rica e

culta, inclusive. Eles foram industriais, grandes acionistas

e diretores de ferrovia, banqueiros. Prado dizia que   0

acesso   a   terra, por parte dos pobres, dos trabalhadores,

se faria mediante a poupan~al a vida sobria, aquela coisa

de noo gastar, de economizar e guardar. No fundol a lei

 pressupunha uma especie de etica protestante dos tra-

 balhadores ruraisl   que assim poderiam economizar, de-

senvolver uma disciplina interior baseada no poupan~a e

comprar terras que   os gran des fazendeiros   tivessem em

disponibilidade.

Essa e a formula que a Lei de lerras consagra. Em

18541   foi feito   0 primeiro cadastramento de terras decor-

rente dessa Leil   pois era preciso que os possuidores de

terras havidas por qualquer titulo legitimassem os direitos

territoriais obtidos durante todo   0 periodo colonial ou entao

verificar quais terras eram de fato devolutas e podi'Clmser 

redistribuidas pelo governo.

 Na verdade,   0chamado Registro Paroquial de Terras eI

ate hoje a base de refer€mcia do cadeia dominial no Brasil.

Qualquer titulo de propriedade territorial cuia cadeia do-

minial chegue ate  0Registro Paroquial e urn titulo perfeito,

e urn titulo que nao esta sujeito a discusseo. Todos os titulosl

cuia cadeia dominial neo chegue a urn ato original legal

de transferencia de terras do dominio publico para   0

dominio privado, seo tifulos discutiveis. Ha no pais, certa-

mente, urn grande numero de titulos nessa condi~aol

inclusive em areas urbanas, causa alias neo   SO   de nume-

rosos litigios judicia is como tambem de serios conflitos

fundiarios.

 brancos, puros de sangue e cat6licos.   0acesso as terras estova il1te•.ditado oos

hereges e aos gentios, aos negros, aos mouros, oos   i udeus. Os es crovos n60

 podiam se tornar sesmeiros, como de resto n60 podiam :ser Jlropriet6rios de coisa

alguma. Tudo que viesse   0Ihes pertencer, pertencia de direito a seu:s se nhores.

Essa regra suscitou muitas discussoes jurfdicas, que revelam as muitOlS   contradi-

~oes da escravidoo. Pela Lei de Terras, de   1850,   a posse eo dornin io s..efundirom

num direito s6. Com isso,   0Estado brasileiro, senhor de dominio de todas os

terras, abriu moo desse direito e literalmente fez dele doo<;ao oos proprietarios

 particulares. Monteve   0 dominio apenas em al9 uns· casos: e:111Irela ~ao   00

subsolo, as terras de marinha e as terras do otuol Distrito Federal.

A mesma legisla~eo que criou a mencionada dificulda-

de de acesso   a   propriedade da terra ja previa a imigra~eo

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macic;a de trabalhadores europeus que substituiriam os

escravos que estariam faltando. Noo s6 porque os escra-

vos existentes, se libertados, noo seriam suficientes para

suprir as novas necessidades da lavoura, sobretudo na

area do cafe que estava em expansoo. Mas, tambem, porque

os escravos existentes eram os escravos que ja estavam

trabalhando nas fazendas e que, provavelmente, mesmolivres, delas noo sairiam. Porem, como ficariam as novas

fazendas que estavam surgindo?

 Na mesma ocasioo em que se aprovava a Leide Terras,

aprovava-se a lei que proibia,   dai   em diante,   0trafico de

escravos para   0Brasil. Ficava, assim, criado   0 problema

do suprimento de moo-de-obra para a grande lavoura. A

saida   era, entoo, promover a imigrac;oo de trabalhadores

estrangeiros, especialmente europeus de paises em que a

expansoo capitalista estava promovendo ampla expulsoo

de trabalhadores da terra e criando excedentes populacio-

nais. S6 que se os trabalhadores europeus chegassem aqui

e encontrassem a terra disponivel para pessoas, como

eles, brancas e livres, noo teriam por que deixar de ter sua

 pr6pria terra e trabalhar para os fazendeiros.

E   preciso lembrar que a escravidoo era, entre outras

coisas, um modo de forc;ar a criac;oo de uma massa compul-

s6ria de trabalhadores onde noo houvesse pessoas em

numero suficiente disponiveis para serem forc;adas ao

trabalho em terra alheia. Cessada a escravidoo, era ne-

cessario criar um mecanismo que tornasse   0trabalho nas

terras dos fazendeiros   0unico meio de sobreviver. 0 direito

de propriedade da terra que se implanta no Brasil nesse

momento, e em vigencia ate hoje, tem essencialmente

essa finalidade: tornar    0trabalho em terra alheia, em terra

dos grandes proprietarios,   0unico meio de sobrevivencia

dos pobres. Trata-se, portanto, num pais que tem vastas

extensoes de terras subutilizadas em moos de proprietarios

 particulares, de criar um meio artificial de forc;ar quemnoo tem terra a servir quem a tem. S6 que, nos dias atuais,

com as modernas tecnologias, quem tem ja noo precisa

do trabalho de quem noo tem ou, ao menos, noo precisa

de toda forc;a de trabalho de quem noo tem.

Isso tudo tinha a ver com 0fato de que antes, no regime

de sesmarias,   0 problema noo existia. S6 podia tornar-se

senhor de terras quem fosse branco e livre e, ate uma certa

epoca, cat6lico. Havia uma interdic;oo racial e religiosa noacesso   a   terra. Na base, esse acesso estava regulado por 

criterios baseados na relevoncia da pureza de sangue e da

 pureza de fe. Dessas concepc;oes derivava um direito que

era   0direito dos vencedores e dominadores de gentes de

outras rac;as e outros credos. Entoo,   0direito noo se

configurava em relac;oo a pessoas que tivessem, por exem-

 plo, como entoo se dizia, macula de sangue, pessoas que

noo eram brancas de quatro costados, cujos bisav6s noo

fossem, tambem eles, brancos e puros de sangue. Todos

sabemos que essas definic;oes rigidas tinham excec;oes,

estabelecidas de modo nem sempre juridicamente daros.

E que s6 em meados do seculo XVIII0governo portugues

 baniu formalmente a distinc;oo racial como fator de discri-

minac;oo dos indios e seus descendentes no reconheci-

mento de alguns direitos. Mas em muitos lugares ela

 persistiu pelo costume.

5e essas interdic;oes desaparecessem, como de fato

comec;avam a desaparecer com a Independencia e, de-

 pois, com a Lei de Terras, se acabasse a escravidoo, as

terras desocupadas do pais, que eram extensas, ficariam

disponiveis para a livre ocupac;oo de quem as quisesse

ocupar e nelas trabalhar. Era preciso, pois, criar mecanis-

mos que gerassem artificialmente, ao mesmo tempo, ex-

cedentes populacionais de trabalhadores   a   procura de

trabalho e falta de terras para trabalhar num dos paises com

maior disponibilidade de terras livres em todo   0mundo,

ate hoje.

 Eis   of 0n6   da   questoo. 0 objetivo era criar "por meios

falsos" uma massa real e verdadeira de "despossufdos"

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(para usar uma palavra que nao tem senti do em portu-

gues), que nao tivesse nenhuma outra alternativa senao

trabalhar para os grandes proprietarios de terra. A L ei   de

Terras  foi   um artificio para criar  um  problema   e, ao mesmo

tempo, uma so/u~ao social   em beneficio exclusivo dos que

tinham   e  tem terra  e poder.   Nessa epoca, porem, as elites,

que eram ao mesmo tempo elites economicas, politicas e

intelectuais, ainda tinham uma ampla compreensao dos

meios e fins envolvidos nos mecanismos sociais e politicos

que criavam e manipulavam para exercer    0 poder.

Em muitos sentidos, era uma elite competente e admi-

ravel, com uma razoavel consciemcia social e politica, e

razoavelmente ciente de suas responsabilidades sociais (e,

obviamente, de seus privilegios). Essa consciencia e essa

ciencia vinham provavelmente das rela<;6es patriarcais, no

regime de escravidao, entre a casa grande e a senzola. 0

escravo era, no fundo, um animal de servi<;o e, portanto,

um desvalido. Mas, era ao mesmo tempo um bem, uma

mercadoria, imobiliza<;ao de capital. Coisa e pessoa se

confundiam nessa rela<;ao ambigua e era nessa ambigui-

dade que nascia   0sentido da responsabilidade humana

do senhor pelo seu escravo.   E   claro que a ambiguidade se

desdobrava na complicada combina<;ao de afeto e violen-

cia, que fazia do mundo da fazenda um mundo organico

e fechado, e obrigava   0senhor a consciencia e as obriga-

<;6esde patriarca nao so em rela<;ao a sua parentela, mastambem em rela<;ao aos agregados, protegidos e cativos.

A Lei de Terras, ao criar legalmente, e ao confirmar 

social e politicamente, urn monopolio de classe sobre as

terras do pais, foi, na verdade,   0 primeiro passe importan-

te no sentido de destruir esse mundo patriarcal, essas

rela<;6es e essas concep<;6es que tornavam radicalmente

desiguais os semi-humanos (os semoventes, como entao

se definia os escravos, pondo-os na mesma condi<;ao dos

animais de trabalho), os subhumanos (que eram os nao

cativos e nao proprietarios, que so tinham existencia civil

do senhor de escravos e de terras, reduzidos a

condi<;ao de agregados e protegidos) e os humanos (que

os brancos, em rela<;ao aos quais nao pairava qual-

duvida quanto, por exemplo, a terem alma).

 No entanto,   0fim do mundo patriarcal se deu por meio

de uma agonia lenta e, a rigor, ainda nao esta consumado.

Quando Tancredo Neves morreu, todos fica ram sabendo da

existencia de urn negro velho em sua familia, uma especie

de irmao de cria<;ao, que ainda sobrevivia como membro da

familia extensa e antiga, remanescente e descendente de

seus escravos. Ha ainda hoje no Brasil muitas familias que

honram seus compromissos socia is e morais com os antigos

cativos e seus descendentes. 0 Mosteiro de Sao Bento de

Sao Paulo teve como empregados e protegidos ate ai por 1971

descendentes de antigos escravos, libertados em  1871, de uma

mesma familia que   0servia desde   1700.   Um descendente

desses escravos tornou-se professor universitario no Rio de

Janeiro e faleceu ha poucos anos.

A agonia desse mundo escravista e patriarcal prolon-

gou-se ate meados dos anos cinquenta, com suas rela<;6es

de favor e dependencia pessoal, sua violencia eS!5ecifica,

seus conflitos dissimulados e sua explora<;ao caracteristica.

Ate entao as diferentes rela<;6es entre   0homem e a terra,

mediadas pelo mono polio de classe instituido no seculo

XIX,davam razoavelmente certo, mesmo com uma enor-

me pobreza no campo. Uma pobreza, porem, curiosa, queainda hoje desperta nostalgia nos antigos camponeses

agora reduzidos a uma miseria completamente diferente.

Quase nao havia dinheiro nas rela<;6es de trabalho. A

 possibilidade de uso da propria terra do fazendeiro por 

 parte do trabalhador para assegurar sua subsistencia e a

de sua familia e a possibilidade de moradia na propria

fazenda criava uma pobreza peculiar. 0 trabalhador pro-

duzia diretamente seus proprios meios de vida, nao pas-

sava fome. 0 mundo pobre do caipira e do sertanejo era

um mundo de fartura.

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Mas, ao mesmo tempo, ele neo era um comprado~ um

consumidor de produtos oriundos de outros setores da

economia sobretudo do setor industrial, senao em mo-

desta esc~la. Isso nao foi problema enquanto   0 Brasil

exportava produtos agricolas, como cafe e a~ucar,. e im-

 portava da Europa e dos Estados Unidos produtos mdus-

trializados. Passou a ser problema com a industrializa~ao do

 paiS, a partir do final do seculo passado, e a o~vi~ n~ces-

sidade de mercados de consumo por parte da mdustna. A

rigor, a necessidade de expanseo do mercado interno para

a industria deveria ter colocado os industriais a favor da

reforma agraria contra os grandes proprietarios de terra.

Mas, a burguesia industrial brasileira nunca foi politica-

mente participante e vigorosa e nunca teve uma consci€m-

cia de c1asse que a tornasse protagonista decisiva dos

destinos do pais. Sobretudo, a contradi~ao historica entre

a terra e  0capital nunca tomou corpo e visibilidade numconflito de interesses entre os grandes proprietarios e os

industria is.

Entre as vel has elites e as novas elites estabelecera-se

uma especie de compromisso politico, mediante   0qual os

industria is e os grandes comerciantes tornaram-se gran-

des c1ientes politicos das oligarquias, as quais delegaram

suas responsabilidades de mando e dire~ao, reproduzindo

os mesmos mecanismos politicos que vitimavam todo   0

 povo e impediam um efetivo. desenvolvimento da demo-cracia entre nos. Emtroca recebiam favores fiscais, subsidios

e incentivos, favores economicos variados das proprias

oligarquias de base rural. Entre nos, nunca se configurou

como na Europa e, de certo modo, como nos Estados

Unidos, um conflito historico significativo entre os indus-

triais e os grandes proprietarios de terra que tornasse

inadiaveis as reformas socia is e pollticas, em especial a

reforma agraria, que transformassem   0 pais num pais

moderno. A nossa moderniza~eo tem um estilo proprio:

ocorre intensamente na area   economica,   inclusive no

campo, sem significativas repercuss6es no ambito social

 bretudo, politico. Esse e, ainda hoje, penso,   0nosso

asse historico.

,A   partir dos anos cinquenta, aproximadamente, come-

a . haver uma especie de revolu~eo tecnologica no

 po. 0 proprio governo come<;a a estimular, atraves de

nciamentos subsidiados do Banco do Brasil, dos bancos

iais em geral e dos bancos particulares, a moderniza~aotnologica com a mecaniza~ao das grandes fazendas;

6rne~a a estimular a substitui<;ao dos cafezais velhos e

eficitarios de Sao Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas

$erais, por outros cultivos ou por pastagens. Foi  0chama-

do programa de erradica~ao do cafe, que se completou

no come~o dos anos sessenta. Tratava-se de cafezais

de baixa produtividade e de cafes de ma qualida-

e pouca aceita<;ao no mercado. A ideia era reduzir as

de plantio e promover a produ<;ao de cafes finos que

 boa cota~ao no mercado internacional.

Com isso, come<;ava-se a expulsar, das fazendas de

os colonos residentes. Terminava, assim,   0regime de

que nascera com   0fim do trafico de escrgvos e

durara cerca de setenta anos. Na area da cana-de-

no Nordeste, houve uma coisa mais ou menos

 parecida. Ali neo houve uma mudan~a tecnol6gica signi-

ficativa, mas houve a expulsao dos moradores das fazen-

das como uma forma de recuperar as terras que os

trabalhadores usavam para produzir seus proprios alimen-

tos. Os proprietarios passaram a dar um destino diretamente

rentavel a essas terras. Surgem, entao, os chamados

lc1andestinos/,   os boias-frias de la, os moradores de ponta

de rua, os expulsos das fazendas de cana. Pouco tempo

depois, nos anos sessenta, na Amazonia, come~a a expul-

sao de posseiros e seringueiros, que ganha grande inten-

sidade e viol€mcia nos anos setenta e oitenta e vem ate

hoje.

Por diferentes razces e causas, no Brasil inteiro, os

ultimos cinquenta anos tem sido anos de mudan~as no

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economia agricola, nos setores mais importantes, que

levam ao aparecimento, em escala maci<;a, do que pode-

mos chamar de proletario agricola,   0trabalhador que ja

neo reside na propriedade de quem ocasionalmente -   0

fazendeiro - compra a sua for<;a de trabalho em troca de

salario.

o que acontece, entcio? Com a moderniza<;ao tecno-

logica vem simultaneamente a moderniza<;ao das rela<;oes

de trabalho. Com a aprova<;ao do Estatuto do Trabalhador 

Rural em 1962, os vinculos de trabalho passam a ser 

contratuais e neo mais vinculos de depend€mcia pessoal,

de favor. Com essa mudan<;a, a mesma legisla<;ao fundia-

ria,   0mesmo direito de propriedade que criava excedentes

 populacionais pobres absorvidos pela grande proprieda-

de, passa a criar excedentes populacionais que nao sac

absorvidos por ninguem. Come<;a a surgir ai, efetivamente,

a cara de excedente populacional dessa massa de popu-la<;ao, os excluidos.   El a   surge nas favelas, surge nas cha-

madas beiras de rua das cidades do interior, surge nos

aglomerados urbanos de pessimas condi<;oes de vida,

invasoes, corti<;os, etc. Surgem ate aglomera<;oes urbanas

de migrantes temporarios, como o~ cortiesos proximos   afavela do Jaguare, em Sao Paulo. E uma favela enorme

cujos habitantes, em parte, vem do Nordeste por seis

meses cada ana para trabalhar na cidade, ganhar algum

dinheiro, voltar para casa e sustentar a familia. Muitas

vezes, os homens fazem es"sa migra<;ao temporaria e

ciclica unicamente para nao ser uma boca a mais na casa

de origem. Surge, assim, um enorme problema nacional

que e   0 problema dos excedentes populacionais, a popu-

laesaosobrante, os excluidos, para os quais nao existe lugar 

estavel de trabalho e vida, que sao absorvidos pela eco-

nomia marginal e precariamente.

 No seculo XIX,quando os politicos e grandes proprie-

tarios de terra e de escravos perceberam que era neces-

sario acabar com a escravidao e mudar as rela<;oes de

alho, perceberam, tambem, que era necessario mudar 

reito de propriedade. Era necessario fazer    0inverso de

reforma agraria. Nos anos sessenta, deste seculo,

dndo a revolu<;ao tecnologica impos mudanesas radicais

5rela<;oes de trabalho, os proprietarios de terra reieita-

a necessidade de fazer mudan~as correspondentes e

aptativas no direito de propriedade. Recusaram-se a

er a necessaria reforma agraria. Selaram, por isso, 0destino

 pais e de todos n6s, condenando-nos   a   moderniza~eo

conclusa, a um desenvolvimento economico excludente

a um modelo politico de democracia precaria e neo

articipativa.

A esquerda tradicional, leninista, dizia, e por incrivel

 pare<;a ainda diz, que esse desenraizamento do tra-

rural e, na verdade, progressista, um bem, porque

o operario e, assim, abre caminho para transformar    0

em cidadao. E rotula de populistas os que se pfligem com a enorme miseria e a enorme degrada<;eo

moral que atinge maci<;amente as vitimas desse processo.

S6 que esses leninistas de manual, que, de modo geral,

neo conhecem suficientemente   0 pais em que vivem, que

neo leram Marx nem Lenin, neo sabiam, e pelo visto

continuam nao sabendo, que   0mundo mudou enorme-

mente desde os tempos de Marx e Lenin e desde   0tempo

das primeiras revolu<;6es socialistas. Hoje   0mercado de

trabalho e muito restrito e seletivo para   0volume das

massas excedentes de popula<;eo que esteo sendo criadas,

sobretudo nos paises subdesenvolvidos, como   0nosso. No

verdade, essa produesao de excedentes populacionais cria

uma miseria profundamente desumanizadora, que neo

 politiza nem anima a possibilidade da revolueseo social.

Antes, a freia. Quem estuda problemas socia is como   0dos

linchamentos, que venho estudando, que sac formas pa-

tol6gicas de vida social e de aplica<;eo da justiesa, formas

negadoras da civiliza<;eo e da cidadania, observa que elas

surgem especial mente associaclas aos aglomerados hu-manos formados pelos desenraizados, expulsos, excluidos.

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 Neles noo nasce   0cidadoo. A expulsoo do campo noo cria

o cidadoo. 0 esmoleiro noo e urn cidadoo. A pessoa que

vive marginalmente em rela~oo as oportunidades econ6-

micas tem escassa e limitada possibilidade de se tornar 

cidado.

E   evidente, como ja disse, que   0desenraizamento liberta

o trabalhador dos vinculos de dependencia pessoal em

rela~oo ao fazendeiro; liberta-o noo so de uma certa servi-

doo material, mas tambem da servidoo ideologica que nele

nega   0individuo,   0sujeito de contrato e igualdade, como

nega nele e para ele a cidadania.   E   disso que falam tais

"teoricos". Mas, noo conseguem ver nem entender a contra-

 partida dramatica desse processo, a exclusoo integrativa e

marginal que anula em grande parte a aludida liberta~oo.

onivel de desenvolvimento industrial do pais, quando

as expulsoes come~aram, noo foi suficiente para absorver 

esses excedentes populacionais. Depois, como estamos

vendo agora, a industria e compelida a se modernizar para

se tornar competitiva no mercado internacional e mesmo

no mercado interno em face da concorrencia dos produtos

estrangeiros. Portanto, esse setor noo absorve moo-de-obra

de baixa qualifica~oo, como a de origem rural. Ele absorve

moo-de-obra de alta qualifica~oo profissional, que leva,

as vezes, uma gera~oo inteira para serformada, que exige

muita e boa escolaridade. Noo e esse, de modo geral,   0

caso dessas popula<;oes excedentes, que, no maximo, podera se tornar profissionalmente adequada a economia

moderna daqui a duas gera<;oes, para os filhos ou para os

netos dos atuais excedentes.   1550   se houver uma politica

consequente nesse sentido, que tambem noo ha. 0 Estado

 brasileiro e suas muitas ramifica<;oes noo tem efetivamen-

te uma politico de integrac:;oo digna dos excluidos, que va

alem do mera e precaria integra<;oo economica do cha-

mada economia invisivel.

E   isso que constitui a questoo agraria no Brasil. A questooagraria noo esta apenas em sua causa na concentrac:;oo

I1diaria; ela esta tambem em suas consequencias socia is

 banos.   E   uma questoo agraria porque ha no pais uma

a e, sobretudo, irracional concentra~oo da propriedade

terra, inutilmente, nos moos de uma popula<;oo muito

. inuta de grandes proprietarios. Esses proprietarios

sam suas terras, quando as usam de modo economica-

ente correto, estimulados pelo Estado, atraves do em-

rego de tecnologia sofisticada, de altos financiamentos

ubsidiados, ete. Alem disso, no geral, essa gente desco-

riu que a terra e reserva de valor e po de ser utilizada

como meio de especula~oo. A propriedade da terra, em

nosso pais, tende a ser especulativa, seja na moo do rico,

seja no moo do pobre, quando a consegue. Isso noo

depende das pessoas. A escassez relativa da terra e que

faz com que ela possa ser facilmente instrumento de

~specula<;oo. Em nosso caso, tem sido, ate mesmo, um

meio de vida das elites, no ultimo seculo e meio. As elites,

as pessoas ricas do pais, em parte vivem dessa especie de

que a sociedade inteira e obrigada a pagar a elas

terem acesso a terra ou mesmo   005frutos do terra.

o que os c1assicos da economia chamavam de renda da

As nossas elites tendem a ser mais rentistas do que

o que e bem diferente das elites que   0capita-

criou nos paises desenvolvidos.

o nosso problema agrario esta ai: uma area enorme

de terra subutilizada ou noo utilizada, em boa parteempregada de modo improprio ou especulativo, sobretu-

do como reserva de valor. Ao mesmo tempo, uma grande

massa humana vitimada e penalizada pelos mecanismos

exclusoo que expus antes, os mesmos instaurados no

seculo XIX,e que agora a excluem do acesso a terra e,   00

rnesmo tempo, noo estoo articulados com novos meca-

nismos de reabsor<;oo dos excluidos. Essencialmente, as

grandes transforma<;oes socia is pelas quais   0 pais tern

 passado desde que a escravidoo entrou em declinio e

cessou, revelaram que   0direito de propriedade gerado

 pela Lei de Terras, de   1850,   era urn direito historicamente

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muito provis6rio. Eque foi transformado em definitivo. Na

medida em que os mecanismos de exclusoo economica

 por ele gerados para forc;ar um tipo especifico de reinclu-

soo do trabalhador na economia agrario-exportadora de

entoo ja noo soo compensados por novos mecanismos e

 padroes de reinclusoo economica, a insistencia num direi-

to fundiario obsoleto transforma-se em fonte permanente

de exclusoo social.

Para mim, a questoo agraria tem duas caras: primeiro,

essa cara social, ruim. Ela e a fonte basica dos grandes

 problemas sociais do Brasil. Quando pense em problema

social, penso na deteriorac;oo das condic;oes de vida, noo

s6 na deteriorac;oo material, mas tambem na deteriora~oo

moral que a acompanha. Noo pode haver cidadoo, noo

 pode haver civilizac;oo, numa sociedade que tem uma

massa too grande de gente sem nenhuma oportunidade de

se inserir na unica via que nela ha para gestar e sustentar 

a cidadania, que   130   mercado de trabalho. S6 quando voce

esta no mercado eque voce pode ser cidadoo, voce pode

ter direitos, etc. Fora disso, voce noo existe, voce noo   1 3

ninguem. Tratar a cidadania como coisa abstrata, como

mera palavra, ja e, em si mesmo, um ate de omissoo em

relac;oo a ela. Cidadoo exduldo de relac;oes sociais con-

cretas mediadas pela igualdade e pelo direito noo e

cidadoo nem aqui nem em lugar nenhum.

Mas, de outro lado, penso que ha uma contrapartidadessa miseria, que e parte da questoo agraria; uma contra-

 partida dessa dinomica errada, que e a de continuar 

 produzindo excedentes populacionais quando   0 pais noo

tem mais condic;oes de absorve-Ios. 0 que, por sua vez,

revelou uma elite ociosa, especulativa e noo raro corrupta

ou corruptora. Uma elite que se revelou incompetente

 para administrar corretamente a riqueza que Ihe chegou

as maos em decorrencia do monop61io da terra e da

explorac;oo e miseria de muitos. Ela noo foi capaz de criar 

alternativas sociais de reincorporac;oo desses excedentes

ulacionais. Pensou apenas em seus privilegios econo-

s e politicos. Uma elite que restaura continuamente

cdnismos de poder pessoal, apoiados na violencia legal

xtralegal. Voce tem alguma duvida sobre isso? Leia   0

os jornais costumam publicar sobre a chamada Repu-

a de Alagoas. Cinco familias mandam em todo um

do, mandam na vida, na consciencia das pessoas,

em   0que bem entendem, manipulam a policia e as

stituic;oes. E trabalhadores alagoanos sac encontrados

mo escravos nas plantac;oes de cana-de-ac;ucar do Mato

rosso do SuI.

{Ii>   0 caso do assassino de Chico Mendes e outra eviden-

Cia desse quadro tenebroso de irresponsabilidade. 0 su-

Jeito consegue fugir de uma prisoo do Estado e depois

qinda adquire terra de posseiro na esperanc;a e quase

seguranc;a de ter a terra legitimada pelo INCRA (Instituto

 Nacional de Colonizac;oo e Reforma Agraria). Isso parece

nedota. No entanto, e apenas expresseo da flacidez das

e da irresponsabilidade das elites que delas se

As elites, no Brasil, noo soo capazes de perceber a crise

que elas pr6prias criam, no mlnimo por omissoo. E

abrem caminho para sua soluc;ao. Mandam sem ter 

mandato verdadeiramente legltimo, pois no geral nao

a vontade coletiva, apenas a coletiva omissoo.

 porque   0sistema eleitoral brasileiro continua sendo

sistema viciado e tendencioso, que funciona com

mecanismos populistas, paternalistas, corporativos, absolu-

tudo que e negac;oo da politica. Mecanismos arcai-

de definic;oo da representac;ao politica, modernizados

fachada pela riqueza anormalmente concentrada e

meios modernos de comunicac;oo de massa.

Alem disso, as elites estao sobrerrepresentadas no

cenario e nas institui~oes politicas. Os estados atrasados,

dominados pelo c1ientelismo politico e pela politica do

favor, estao mais representados do que os estados mais

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modernos, onde predominam os eleitores que votam como

cidadeos. Ha cerca de   180  representantes dos chamados

ruralistas na Camara dos Deputados,   0que corresponde a

mais de um ter~o dos votos. Mas, demograficamente, as

elites nao setO um ter~o da popula~ao. Portanto, esteo

usurpando   0lugar de alguem, alguem que neo esta la

corretamente representado, estao ocupando certamente

o /ugar dos pobres e dos que traba/ham. Sao destituldos

do sentido da responsabilidade social e coletiva, pois,

constantemente legislam em causa propria, em defesa de

seus injustos privilegios, como se ve frequentemente no

noticiario jorna/Istico. Nao cuidam dos problemas socia is

da popula~eo, neo percebem que estao em perigo. Toda

a popula~ao sofre, mas €lIas esteo em perigo, estao cor-

rendo um risco real.

 JST- Eugostaria quevoce

  desenvolvesse maisa

questao da terra como problema politico.

Jose   de   Souza Martins -   Esse e outro lado da questao.

Sendo a contrapartida de elites incapazes, mas oportunis-

tas, as esquerdas tem uma historia de dificuldades para

lidar com muitas das questoes pollticas nacionais, como   0

aludida questao da moderniza~ao e a da igualdade no

representa~ao polltica dos estados e no voto de cada eleitor.

 Nossas esquerdas sac fragmentadas, ideologicamente fra-

geis, quase sempre sem solidez doutrinaria. Muitos de seus

adeptos se dizem marxistas e nao conhecem Marx seneo por 

meio de textos de vulgarizadores que simplificam, deformam

e dogmatizam. 5e considerarmos que um de nossos mais

importantes partidos de esquerda chegou a ter a figura do

"filosofo oficial", a quem cabia decidir   0que era verdadeiro

e 0que era falso para os membros do partido, uma especie

de censor e inquisidor, podemos ter uma ideio das grandes

limitac;;oesde uma praxis polltica fundada num conhecimen-

to precario e policial.

Criou-se em muitos grupos de esquerda um verdadeirohorror ao conhecimento das teorias,   a   reflexao teorica, ao

I1Uoconfronto entre teoria e pratica,   a   revisao critica

oria e da pratica. E assim se generalizou, nos partidos

'i0es, a curiosa concep~ao de que ideologia de es-

da neo e ideologia e de que a pratica e a vida estao

dos, a ideologia e que e correta. 5em contar, eviden-

ente, aqueles grupos chegados tardiamente   a  esquerda,

ndos dos movimentos socia is, e que fazem a apologia(sua) pratica particular contra toda intervenc;;ao teorica

 possa resgatar a dimensao propriamente de praxis

.sas a~oes e desses atos fragmentarios e dispersos. A

menta'iao e  0corporativismo de nossas esquerdas, no

modo   de  ver, vem justamente das fragilidades gera-

 por essa especie de esquizofrenia politica que separa

ria e pratica. Fragilidades que se expressam no espfrito

seita, no dogmatismo e no fundamenta/ismo, ingre-

ntes muito similares aos das seitas do neopentecosta-

mo de mercado em franca exp/osao nos dias atuais. 5e

esquerdas de nosso pafs se dispusessem a um mlnimo

to/erancia reciproca e democratica e tivessem me/hor 

mpreensao   do   momento brasileiro, nos nao estarfamos

da esdruxula situac;;ao politica atual em que   0

originario da esquerda e pela esquerda abando-

e obrigado a dispender um tempo enorme e enor-

recursos com uma alian~a polltica com as oligarquias,

segura   0 processo historico e impede a modernizac;;ao

 pais. Ao inves do paIs estar negociando desbloqueios,

negociando solu~oes concretas e democraticas , para seus problemas sociais.

Do mesmo modo que   0governo, no que se refere   aagraria, sao incapazes de compreender    0carater 

de alguns grandes problemas nacionais.

essa compreenseo ja constituiria uma atitude de esquer-

Isto   E l,   sac incapazes de compreender que alguns

e.sses  problemas jamais serao resolvidos sem alianc;;as

.c1ma dos partidos, entre as classes socia is e os grupos de

Interesse. A questao agraria e um desses problemas, provavelmente   0maior deles. Portanto, tanto quanto a

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direita,   500 incapazes de fazer acordos com outros grupos

e partidos politicos.   1550   cria muitas dificuldades para se

tratar desse tema no plano parlamentar ou no plano do

rela~ao dos partidos de oposi~ao com 0governo. E posslvel

que estejamos perdendo uma oportunidade historica,

como a que se propos no seculo passado com a possibili-

dade do fim do escravidao, de interferir nos rumos politicos

do pais acima das paix6es e dos dogmas partidarios, para

desbloquear um dos entraves mais solidos   00desenvolvi-

mento social do povo brasileiro, que e a questao agraria.

Todos sabemos que as esquerdas se defrontam em

desvantagem com as elites por sua inferioridade numerica.

Mas, em desvantagem, tambem, porque no maioria dos

casos nossas elites, no geral, nao sac patriotas, nao sac

capazes de colocar os interesses do patria acima de seus

interesses privados e pessoais. Por isso, aqui as esquerdas

deveriam tambem ter um popel pedagogico. Penso que

alguns dos nossos politicos de esquerda tem uma boa

compreensao do fato. S6 assim e posslvel lidar com essa

maquina polltica viciada pelos interesses imobilizadores

do propriedade do terra.

Hoje, essa elite, cuja raiz esta na propriedade fundia-

ria investe no banco e no fazenda, no industria e no,

comercio. Ela e multi pIa. Nao e uma elite c1aramente

fragmentada pela oposi~ao entre os interesses agrarios eos interesses propriamente capitalistas como   0  foi no

historia europeia. Essa unidade de interesses agrario-ca-

 pitalistas por si mesma ja fragiliza uma interven<;ao con-

sequente das esquerdas no processo politico, nos

esquemas de alian~as posslveis.   1550   talvez explique por 

que esse quadro, de um lado, e a fragmenta~ao e intole-

rancia ideologica das esquerdas entre si, de outro, deixa

o coda um dos grupos de esquerda e centro-esquerda,

como se ve atualmente (e se veria no eventualidade de

que outro partido de esquerda ou de centro-esquerdativesse eleito   0Presidente do Republica), como unica alter-

iva de interven~ao no processo politico, u

ia~ao de esquemas de alian<;a com   O s Q lig 'titqque chamo, num de meus livros, de   poder do

Essa gente tem ainda hoje   0controle do aparelho   de

do. Eo que, no meu modo de ver, imp6e que se distinga

 pre com prudencia entre aparelho de Estado egover-

 Nem durante a ditadura militar, tiveram os governos   0

 pleto e efetivo controle do aparelho de Estado. Nem

ulio no ditadura de   1937   a   1945.   Voce pode ir a

Iquer lugar do Brasil, para tratar de qualquer assunto,

de problema de saude ate reforma agraria e, inevita-

ente, encontra pela frente   0 poder, a presen~a insi-

sa desse pessoal, do politico local, do oligarca, que age

fun~ao de seus interesses privados e que e incapaz de

umir com ime~ssoalidade as fun~6es socia is do Estado.

deputado federal oligarquico tem tent6culos que se

ilarizam pelos ministerios e agencias governamentais,

avessam governos estaduais e prefeituras e chegam

erosamente   00 balcao de servi~os governamentais   00

c : >   do caso do eleitor. 0 que este requer e solicita recebe

o se fossem favores de sua excelencia e nao eUreitos

cidadao. Eles tem   0controle de tudo porque mandam

funcionario, que manda no outro funcion6rio, que

nda no terceiro funcion6rio que atende voce 16no posto

saude ou no escritorio do INCRA. Todos devem favor a

em, todos, de algum modo, sac dependentes deuem. E, no fim,   00 inves de se tornar sujeito de um

ito, voce se torna devedor de um favor feito as custas

dinheiro publico, como se fosse um favor particular e

ssoal.

Jose de Souza Martins, 0 poder do atraso   (Ensaios de sociologia da historia

lental,   S60.   Paulo, Editora Hucitec, 1994.

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Qualquer pessoa que chegue   a   Presidencia do Repu-

 blica nao governa sem fazer acordos politicos com eles.

 Nem Fernando Henrique nem Lula, nem ninguem.

 Nem mesmo os militares, com toda sua prepotencia e

sua maquina de terror, conseguiram remover do cenario

 politico a influencia dessa gente. Eles se metamorfoseiam

com facilidade. Se os ventos veo para a direita, eles veo para a direita. Se vao para a esquerda, eles vao para a

esquerda. Sao verdadeiros extremistas, sac politicos de

extremo-centro. Voces podem examinar a biografia dos

 politicos que vieram de antes do ditadura, conviveram com

a ditadura e sobreviveram   a   ditadura; os varios que trafe-

garam do Arena, 0 antigo partido do ditadura, para 0

PMDB   ou para 0   PH,   vestiram fantasia de democratas ou

de liberais, alguns se tornaram condestaveis do Republica.

Eles mudam de colora<$ao e permanecem. Ou nem mudam

tanto. Seu partido neo e de direita ou de esquerda ou de

centro. Eles seo do partido do poder. Se os comunistas

tivessem chegado 00 poder, eles teriam se tornado comu-

nistas. Se 0 Estado brasileiro se convertesse num estado

teocratico, eles passariam a ir a   missa todos os dias e nao s6

nos dias de gala e exibi<$eopolitico no catedral de Brasilia.

Ou seja,   0 problema e um problema estrutural do Estado

 brasileiro.

o golpe militar que imp6s a ditadura decorreu em

grande parte do dificuldade para resolver a questeo agr6-ria. No final dos ones cinquenta e inkio dos anos sessenta,

a questeo agraria come<$oua se tornarvislvel atraves do a<$eo

das Ligas Camponesas e depois, tambem, do a<$eoainda que

titubeante do Igreja Cat61ica no campo.   0monop61io do

terra por essa elite, como base de sustenta<$ao de um setor 

importante do poder, estava amea<$ado. A reforma agraria

comprometia a base de poder. Uma reforma agr6ria dis-

tributiva que fragmenta e redistribui a propriedade, solapa

a base de exist€mcia politico dessa gente, que e 0 latifun-

dio, a grande propriedade.   0golpe de Estado foi dado,

e a reforma agr6ria exigida e necessaria sola poria

<:Jmentea base de sustenta<$eo do Estado, do sistema

o. A estrutura e a composi<$eo politico do Estado

ria. Os grandes proprietarios de terra e seus interes-

ssariam a ter uma participac;ao politica no Estado

rcional   a   sua importoncia demogrCifica e noo mais

ialmente proporcional   a   sua descabida importoncia

ornico e fundiaria. Os trabalhadores rurais, que nun-

verarn representac;eo politica, que sempre falaram

yes dos proprietarios de terra, passariam a falar dire-

ente, em seu pr6prio nome.   0golpe de Estado foi

 p, portanto, para evitar a chamada revolu<$eo agraria.

io de equlvocos, porque os pr6prios militares, como

\J   claro ao tango do tempo, neo tinham a menor clareza

rica sobre os grandes dilemas do pais envolvidos no

 pe que praticavam contra as instituic;oes e contra a

ocracia. Essencialmente, a dinomica do processo vi-das inquieta<$oes rurais. Vinha, tambem, do medo ao

~nismo e vinha, ainda, da 6bvia manipula<$eo de

.dor posta em andamento pelo governo americano.

erguer a barreira do golpe contra a reforma agr6ria

se desenhava no agenda politica do Estado populista,

encadearam uma enorme represseo, que, afinal, neo

Iveu 0 problema agrario, pois era ele um problema

'iutural e neo urn problema ideol6gico. As tensoes

i ! 1 tinuaram crescendo e os trabalhadores rurais estao   01

~endo presseo e reivindica<$eo ate hoje.

Os militares tiveram a oportunidade de fazer, a seu

, a grande reforma social de que 0 pais precisava,

e e a reforma agraria. Como eles mesmos pretendiam

m a mediac;ao dos grupos de presseo que davam esta~

ra e direc;ao politicos   a   necessidade de reforma agraria.

Estatuto do Terra era uma proposta bastante raz06vel

/p ..aquele contexto. S6 que eles usaram 0 Estatuto com

ijf1nalidades puramente estrategicas, com finalidades mili-

res e repressivas.   0governo militarfazia desapropriac;eoUando havia conflito e ao mesmo tempo botava no cadeia

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os cabe~as do conflito porque eram, segundo eles, comunis-

tas. 0   Estatuto da  Terrafo; ufilizado   para   desmontar    as fensoes

sociais   no   campo   e neo   para resolver   a questoo   agr6r;a;   fo;

ut;lizado para resolver    a questoo   polltica sem resolver    a

questeo agr6ria. Quando os militares compreenderam que

haviam cometido um enorme erro politico ao noo fazer de fato

uma reforma agraria no pais, no final do governo Figueiredo,

 ja era tarde demais. Nao havia mais alian~as possiveis com

quem pudesse dar-Ihes algum respaldo politico contra as

oligarquias, como era   0caso da Igreja, ja ativamente em-

 penhada num trabalho pastoral profundamente voltado

 para a solu~ao da questao agraria. Aliada, porem, as opo-

si~6es ao regime militar. Era, tambem,   0caso das oposi~6es,

 justa mente punidas e mutiladas por defenderem, antes do

golpe, a reforma agraria. Todos os aliados possiveis numa

 proposta nacional de reforma agraria haviam sido conver-

tidos em adversarios do governo pela ditadura. A reforma,alias, que fora  0fator de derrubada do governo de Goulart,

convertia-se, agora, por nao ter sido realizada de maneira

a atenuar e mesmo limitar   0direito de propriedade, num

dos fatores poderosos de extin~ao do proprio regime militar.

A ditadura nao conseguiu modernizar a cabeesa e a

realidade social dos grandes proprietarios de terra nem

acabar com   0latifundio, apesar de ter promovido associa-

~6es econ6micas historicamente significativas entre   0capital

e a propriedade da terra. Ao inves da expansao capitalista

no campo ter modernizado a mentalidade polltica dos gran-

des proprietarios, acabou comprometendo a mentalidade

dos capitalistas com os interesses do latifundio. Ao inves de

ter promovido a moderniza~ao da estrutura politica, com-

 prometeu-a com mecanismos poderosos de reproduc;ao de

sua rigidez e de sua impermeabilidade a reformas sociais

e politicas de que   0 pafs necessita para de fato entrar no

mundo moderno.

Terminou a ditadura e sobrou a questao agraria nao

resolvida e mal encaminhada. Mal encaminhada sobretu-

rque   0modo que a ditadura encontrou para faze-Ia

cava, como implica ainda, em reconhecer a intocabi-

e do renda da terra, mais do que a intocabilidade do

o de propriedade, justa mente   0que faz da proprie-

e territorial um fator de irracionalidade econ6mica e

ica e um fator de atraso.

que e pior: a ditadura resolvera modernizar a eco-

dos grandes proprietarios de terra promovendo

associa~ao entre   0grande capital e a grande proprie-

e territorial, atraves dos incentivos fiscais. Qual foi  0

Hado? Foi   0fortalecimento dos grandes proprietarios

rra e a transforma~ao do grande capital, supostamen-

mprometido com a moderniza~ao do pais e por ela

tado, tambem em proprietario de terra. Portanto, um

do a mais na resist€mcia a reforma agraria.

Isso tornou mais dificil fazer qualquer tipo de reformaque hoje a propriedade da terra e de interesse de todos

etores poderosos da economia. Os bancos, as empre-

multinacionais, os grandes grupos econ6micos, todos

interesse no propriedade da terra. Propor uma refor-

agraria significa desafiar seus interesses ou, entao,

niz6-los a pre~os que incluem a especula~ao imobi-

Of    0que significa nao fazer reforma agr6ria.   Trata-se

era compra   de   terras   e noo de reforma, pois nao se

titui num ato de interven~ao consequenfe no circuito

eprodu~ao do processo de produ~ao de excedentesulacionais a partir do campo. Essas compras de terra

sac de fato uma reforma agraria porque elas nao

stituem um projeto politico de reinclusao dos que

am, estao sendo e continuarao a ser expulsos do campo

a grande propriedade e, tambem, pela pequeno que

,tornou insuficiente para a sobrevivemcia da familia do

 balhador.

 No Brasil, so terfamos uma reforma agr6ria efetiva e

dadeira se   0 processo de cria~ao artificial de excedenfesulacionais no campo, para constituir um exercito in-

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dustrial de reserva para a lavoura, fosse interrompido e

revertido. Isto e, se   0campo se tornasse   0 instrumento

central de um projeto alternativo e moderno de reinclusao

de excedentes populacionais sem alternativa no mercado

de trabalho urbano. Ese, portanto, houvesse   0reconhe-

cimento, tanto por parte da direita latifundista quanto da

esquerda, que a agricultura e uma profissao como outra

qualquer e nao um destino reservado aos que vivem no

mundo supostamente cerrado do atraso historico. Isso nao

 pode ser feito mediante   0  pagamento de tributo aos

grandes monoporistas da terra, cujos direitos, se submeti-

dos a uma investigac;Cio historica seria, isenta e rigorosa

nem sempre se sustentam, originarios do mercado facil da

negociata politica, da troca de favores e, sobretudo, origi-

narios de conhecida viol€mcia contra ocupantes cuia pre-

ced€mcia se apoiava no direito costumeiro.

Com  0fim da ditadura,   0novo regime civil, a chamada Nova Republica, se defronta com uma elite fundiaria .

revitalizada, modernizada em suas orientac;oes economi-

cas, porem revigorada no arcalsmo de suas concepc;oes

 politicos c1ientelistas e negocistas. E que, ao mesmo tem-

 po, continua sendo a elite fundiaria interessada no blo-

queio de qualquer reforma social e polltica que, ao menos,

atenue   0 peso da propriedade do terra como mediac;ao no

 processo de reproduC;ao economica e, sobretudo, de re-

 produc;Cio de estruturas politicos arcaicas. Interessada,

 portanto, na preservac;ao desse poderoso instrumento de

tradicionalismo, de conservadorismo, de antimoderniza-

C;aoque e a propriedade concentrada da terra. ~enhum

dos presidentes civis posteriores a ditadura e antenores ao

governo de Fernando Henrique Cardoso teve grande in-

teresse em resolver a questCio agraria. 0 caso do Sarney

e significativo. Ao mesmo tempo em que dizia sim aos

que demandavam a reforma agraria, seu chefe da Casa

Civil engavetava os processos ou nao os mandava para

 publicaC;ao no Diorio   Oficial,   inviabilizando as desapro-

 priac;oes.

governo de Fernando Henrique Cardoso e bem

tivo das dificuldades que cercam a soluC;Cioda ques-

raria. Ele proprio e um grande conhecedor dessa

o. Tem trabalhos importantes sobre   0assunto desde

 po em que era professor aqui na Universidade de

Paulo.   E   um bom conhecedor do problema e tem a

 €litoboas interpretac;oes. Ele e tambem um excelente

ecedor das elites no Brasil, que estudou cuidadosa-

te e com rigor quando era professor universitario.

estudos revelaram quais sac os impasses do processo

ico brasileiro, considerado desde a perspectiva das

formac;oes socia is, politicos e economicas necessarias

odernizaC;ao do pais com justic;a social. Revelaram,

 bem, ate onde essas elites podem ir nessa direC;ao;

·s sac seus limites e incompreensoes; qual e, enfim, a

00   entre a estrutura da sociedade brasileira e a

ci€mcia que os diferentes grupos socia is tem dos blo-ios estruturais que dificultam a superaC;ao dos nossos

ClSOS.   Ao entrar na polltica, ganhou tambem um ample

~Iido conhecimento do poder bloqueador dessas elites.

ambem,   de suas fragilidades.

Ele sabe, e todos nos sabemos, que qualquer um que

ida governar    0Brasil contra os interesses dessas oli-

quias, mesmo modernizadas, mas ainda oligarquicas,

6 fora do poder. Ou e deposto ou e anulado na pratica.

o tenho duvida sobre isso. NCio ha nenhuma forc;a nafutura do Estado, como   0Exercito, por exemplo, que

a se opor a voracidade de poder e de ganho das elites

diarias;   0Exercito, alias, saiu da ditadura dividido e

ilitado na competencia historica para interromper    0

fbrno dclico das oligarquias ao poder. Noo ha ninguem

e diga as oligarquias que se continuarem brincando de

fifundiarios, cuios interesses tem precedencia sobre os

teresses do pais e do povo, vai tira-Ios de onde estoo. Esse

III problema. Nao ha no pais hoie nenhuma forc;a capaz

fazer uma revoluc;ao. Ate porque num pais com classes

dais too diversificadas, como   0Brasil, so e posslvel fazer 

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uma revolu~ao nos estruturas sociais e politicos se os que

 preconizam reformas sociais e politicos forem capazes de

fazer e de impor acordos e alian~as; se forem capazes de

construir uma frente para revolucionar e superar ~strutu-

ras sociais e politicos injustas. Nao ha quem se dlsponha

a pensar a necessidade e a urgencia dessas t:ansforma-

~6es. Eo que assegura a impunidade ~e:s~s elites; elas se

sentem seguras de que ninguam val flra-Ias de nossas

costas.

Aparentemente,   0 governo entende que   0 :na~im.o

 posslvel de transforma~ao politico, no circunstanCia hl:to-

rica atual e modernizar    0Estado. Mas, para modernlzar 

o Estado   6   preciso retirar os privilagios das elites, que sao

demasiados e escandalosos. Para mim, toda a atual ten-

tativa de negocia~ao das reformas ~ol!tic~s com. ~ ~~n-

gresso Nacional vai no dire~ao de dlmmUlr os pnvtleglos

dos que os tem, de tornar    0 Estado mai: fun~ional, de

acabar com   0Estado como media~ao do chentellsmo e do

 poder pessoal. Ha muitos equlvocos nesse processo, mas

minha impressao a a de que a coisa vai por ail embora eu

nao tenha certeza de que   0governo consiga promover a

necessaria moderniza~ao do Estado. Entre os varios equi-

vocos dessa proposta ha   0de se supor que as oligarquias,

 por estarem sobrerrepresenta~as, sac po!iticamente fo~-

tes. No entanto, elas sac fragels porque vlvem de l}'1end,-

gar favores politicos do Estado (e de chanta~~ar). E ness:momento que   0governo pode impor condl~oes e.ess~ e

certamente   0lado invisivel dos custos do modernlza~ao.

E ,  tambam, seu lado repugnante.

A moderniza~ao do Estado pode ser a forma nao-revo-

lucionaria de atenuar    0 poder politico do elite fundiaria, das

oligarquias, dos ruralistas, dessa gente tod~. Ou seja, a

moderniza<;;ao do Estado tiraria deles a capacldade de ma-

nipular os recursos dientelisticos do maquina do Estado.

Dou-Ihe um exemplo de interven<;;ao modernizante no

aparelho de Estado e suas dificuldades. Ha pouco tempo

articipei em Brasilia, a  convite   do Ministerio do Trabalho

e   uma reuniao que discutiu a proposta de legisla<;;a~

ra resolver    0 problema do  escravidao   no Brasil, hoje. 0

esidente do Republica, em pronunciamento publico, re-

nheceu e lamentou a exist€mcia do escravidao em nosso

ISnos dias atuais. Foi a primeira vez que um governante

isso depois do Lei Aurea, que eu saiba. Criou, entao,

grupo de trabalho,   0 chamado GETRAF (Grupo de

 pressao   00 Trafico de Pessoas e   a   Escravidao). Esse

 po tem poderes especiais, para contornar justamente

 bloqueios, limita~6es e fragmentac;6es dos multiplos

aos administrativos e policiais que estao legal mente

estidos de autoridade para combater a servidao. Esse

vo grupo a constituldo por pequeno corpo de funciona-

s alto mente eficientes, com poderes para atuar em

 bito interministerial e acima de poderes   locais   e regio-

's (base, alias, do c1ientelismo oligarquico).   E   um grupoPresidencia do Republica.

Supostamente,   0 problema do trabalho escravo teria

ser resolvido pela Pol/cia Federal, no plano policial,

e um crime federal. E, no plano propriamente

ministrativo, teria que ser resolvido pelo Ministerio do

?alho, que tem a incumbencia legal de fiscalizar e punir 

lola~ao do legislac;ao do trabalho. 0 Ministerio do

,alh~ tem agencias nos estados, que sac as Delegacias

lonalS do Trabalho, atraves das quais ele atua. Porem, osgados regionais do trabalho, que sac representantes

~os do ministro, sac nomeados por indicac;ao dos

~dos. e fac~6es politicos regionais. Ou seja, grupos

arqulcos. Por of se entende por que as denuncias de

olho escravo cafam no vazio. A rigor, pode-se dizer 

a.pesar do dedicac;ao de muitos, provavelmente do

no dos fiscais do trabalho,   0sistema foi montado, no

ado, para evitar as consequencias do fiscaliza~ao e

 para fiscalizar de verdade. Vi 0desdobramento de

(,?S   de denuncias feitas pelos sindicatos. Raramente~nuncia e confirmada. 0 fiscal   vai   00local em que

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supostamente esta ocorrendo a irregularidade{ constata

que ha algumas irregularidades por desconhecimento da

lei (como falta de higiene e de alguns equipamentos

 basicosL mas nega que se trate de trabalho escravo. Ou

seja, ele reduz   0caso aos seus aspectos mfnimos. Com um

funcionario too daramente engajado no espfrito e nas

conveni€mcias das oligarquias{ que derivam da propria

estrutura do Estado{ nao se pode resolver um problema

como esse. Portanto,   0que em qualquer pais seria uma

ag€mcia de moderniza~ao das rela~oes de trabalho{ aqui

se torna uma agencia de preserva~ao de interesses e

rela~oes antimodernos{ fora do nosso tempo. Nao e estra-

nho{ pois{ que hoje se venda e se compre escravos no

Brasil.

o grupo criado pela Presidencia da Republica se so-

 brepoe{ quando necessario{ aos delegados regionais do

trabalho. Recebida uma denuncia{ vinda de uma determi-

nada regiao{ relativa as condi~oes de trabalho nas carvoa-

rias{ por exemplo{ com a suspeita de que se trata de

trabalho escravo, e forte a possibilidade de que ela morra

nas moos do proprio delegado{ apos uma investiga~ao

superficial. Se essa denuncia chega a Brasflia{ ao GETRAF;

o grupo imediatamente desloca uma equipe   Ilmultidisci-

 plinar ll{   de varios orgaos federais{ para a propriedade

denunciada. Verifica, solta os trabalhadores, autua e pro-

cessa   0 proprietario ou   0adverte{ exige   0cumprimento da

lei que ja existe. Educa.

A atua~ao desse grupo{ para mim{ e bem indicativa de

quais sac e como sac as barreiras a moderniza~ao do

Estado e das rela~oes sociais num pais em que a maquina

do Estado ainda esta amplamente capturada pelas oligar-

quias e os interesses relativos a domina~ao patrimonial.

Por que   0 delegado regional do trabalho neo atua

como deve?   E   claro que atua aqui e ali. Porque   0delegado

regional do trabalho e nomeado pelo ministro do trabalhoa partir da indica~ao dos partidos politicos, com base na

~ao de que   0Estado existe para ser loteado entre

esentantes das oligarquias regionais. Ele se consi-

elegado do seu partido politico e dos interesses

is desse partido e{ portanto{ agente de um acordo

 posi~ao polltica do Estado. Ele nao e um funciona-

Estado{ comprometido com os interesses do Estado

 pel de cumpridor impessoal da lei. A modernizac;ao

ado depende em grande parte da multiplica~ao do

ro de funcionarios impessoais da lei{ 0verdadeiro

nario publico profissional (Eu nao tenho certeza{

de que a atual reforma do Estado va nessa dire~ao{

do suspende as garantias de estabilidade do funcio-

 publico e de isen~ao quanto ao poder pessoal dos

osos e das oligarquias).

oda maquina do Estado est a montada para inviabi-

a a~ao do funcionario profissional e isento. Durante

\ferno Sarney{ quando Jose Gomes da Silva estavaCRA{ uma parte ponderavel das dificuldades para

rver{ como proposta do Estado{ as demandas dos

imentos sociais que preconizavam a reforma agraria

 justamente{   0enorme poder de conspira~ao e boicote

ue se poderia chamar de funcionario das olig;rquias

 poder pessoal instalado como parasita na maquina

Estado. Decretos de desapropriac;ao de latifundios

.chegavam ao Presidente da Republica; os que   0

sldente assinava nao chegavam ao Diorio   OficiaJ

a. publica~ao e entrada em vigor; os que entravam

Vigor nao eram cumpridos porque os funcionarios se

t,lsavam a tomar as medidas praticas para a tomada

osse; e, quando havia imissao de posse{ entrava em

.0.0outro brac;o das oligarquias{ instalado no poder 

clario{ que determinava reintegrac;ao de posse em

r do proprietario desapropriado. As desapropriac;oes

sumadas foram excec;ao, mesmo que majoritorias.

fundo{ cumpriram-se como gesto de toleroncia e

.~nevolencia e nao como obrigac;ao legal e funcional.

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Estamos em face de um Estado parasitado por um

sistema de poder que se baseia em privilegios e noo em

direitos. Podemos eleger quem quisermos para Presidente

da Republica. Quem quer que seja eleito noo tem nem tera

condi<;6es de por a maquina para funcionar de acordo com

leis e principios modernizantes e democraticos. Nenhum

eleitogovernara se noo se entender e se noo se compuser 

com essa gente. Eles sobreviveram a ditadura militar. A pr6pria ditadura teve que se compor com eles, ate porque

resultou de um golpe em nome deles. A ditadura militar 

reconheceu desde   0inlcio a necessidade de fazer a refor-

ma agraria. Noo porque fosse contra eles, mas porque   0

"establishment" militar temia as consequ€mcias da inquie-

ta<;oo social que se produzia em torno das demandas dos

trabalhadores rurais. No fundo, as concep<;oes que leva-

ram a ditadura entendiam que a modernizac;oo do pais

estava bloqueada e que   0desbloqueio passava por refor-

mas que incluiam a reforma agraria. Ja que por via legal

e democratica noo era possivel remover os privilegios dos

grandes proprietarios, era necessario colocar a democra-

cia entre par€mteses para implantar uma nova legisla<;oo

fundiaria, aparentemente contra os interesses estabelecidos

do latifundio. Os governos da Nova Republica noo tiveram

(e em alguns casos nem quiseram) meios de alterar essa

composi<;oo de for<;as politicas.

o  professor Fernando Henrique Cardoso conhece   0

 problema melhor do que ninguem e sabe quais soo os limites

de sua a<;oogovernamental no sentido da moderniza<;oo do

Estado e da altera<;oo desse estado de coisas. Ele conhece

o problema e, sobretudo, conhece as dificuldades politicas

 para resolve-Io. Ele sabe perfeitamente que noo basta

assinar um decreto ou mil decretos de desapropria<;ao de

latifundios para concretizar a reforma agraria. Sua atua-

c;ao est a clara mente referida as dificuldades desse contex-

to. Ele prefere, com razao, nao tratar da questao agraria

atraves de uma politica de confronto. Isso, no meu modode ver, e pr6prio dele.   E   um trac;o de habilidade politica.

Cl   posic;oo e no senti do de fazer com que   0   outro seja

LJzido a entrar na sua politica, a reconhecer que a

·nic;ooda agenda polltica do Estado, como ele gosta de

r, e de responsabilidade de todos os que de diferentes

ens politicas e ideol6gicas receberam um mandato

Hticoe a responsabilidade do poder. Por esse meio seria

ssivel promover reformas socia is e politicas num contex-

de representa<;eo polltica deformada pelo voto c1iente-

to, oligarquico e conservador. Noo da para fazer 

errilha como Presidente da Republica. Essa neo e sua

l1c;eo.

 Numa entrevista importantfssima, de alguns anos

as, antes, portanto, de ser presidente, ele dizia que a

ande dificuldade para executar a reforma agraria no

osil e que os que a querem noo conseguem coloca-Ia na

enda polltica do Estado. Noo e  0Presidente da Republi-

que a coloca na agenda polltica do Estado. Somente

ando a questoo agraria se transforma num impasse

~bHtico, numa questeo polltica, e que ela se prop6e como

;~tnpecilho que precisa ser resolvido para desobstruir    0

 p:rocesso politico,   0desenvolvimento economico, etc. Apa-

;frntemente, no Brasil, ela e irrelevante para   0fl;nciona-

" r r ento   do sistema, ela noo obstrui   0 desenvolvimento

Kconomico e ja noo obstrui tambem   0 processo politico,

omo obstruia em   1964.   Tudo sugere que a questeo

graria, em nosso pais, vai se reduzindo a mere problema

cial, que se resolve com simples tecnicas de soluc;oo de

toblemas desse tipo, como se faz em relac;ao a outros

roblemas sociais. Por isso, ela ja se confunde com   0

roblema da pobreza. Noo e mais um obstciculo hist6rico,

ernbora, do meu ponto de vista, continue sendo, de certo

modo, um obstaculo politico   a   transforma<;ao efetiva do

rasil num pais moderno e democratico.   E   possivel gover-

Cirsem de fato fazer uma reforma agraria no Brasil. Mas,

so implica em aceitar que   0 pais continue definindo seu

stino politico em termos de um modelo democratico na perflcie dos procedimentos, dos rituais do poder; mas

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nCionecessaria mente democratico no efetivo exerdcio das

rela~ees politicas, de media~Cio patrimonialista, nas rela-

c;eesentre   0Estado e a sociedade. Urn pais em que se

pode falar em democracia, mas noo se pode, de fato, falar 

em cidadania.

Se, pOl' urn lado, as pr6prias elites nCiose defrontam

com dificuldades que as obriguem a colocar na agenda

politica do Estado a questCio agr6ria e sua soluC;Cio,areforma agraria, pOl' outro, ostrabalhadores tambem nCio

tern sido capazes de faze-Io. POl'que nCio?Em primeiro

lugar, porque nCio tern representa~Cio politica. A repre-

sentac;Ciopolitica que eventualmente se identifica com os

trabalhadores rurais e indireta e minima. Eles estCiosub-

representados porque votam nos grandes proprietarios de

terra ou em seus candidatos. Os trabalhadores rurais nCio

se identificam consigo mesmos, mas com   0modo de vel'

o mundo e os interesses de seus adversarios, oponentes e

ate inimigos.

Os chamados ruralistas tern no Congresso Nacional

uma representac;Ciomuito acima da propor~Cioque corres-

ponderia a seu numero relativamente reduzido na socie-

dade brasileira e naeconomia nacional. Mas, estCiola com

o voto dos trabalhadores rurais e dos pobres da cidade

que foram expulsos do campo. Essae uma contradic;Cio.

NCio e  0 Estado que vai assumir que ha no pais uma

questCioagraria nem vai resolve-la, mesmo que0

governoe 0governante entendam que a questCioe real e precisa

de solu~Cio. Pois, 0 Estado, que inclui   0 Congresso e   0

Judiciario, estaimobilizado pelos politicos que consideram

o latifundio intocavel.

 Alem disso, os trabalhadores rurais nCioconseguem

aliados que coloquem a questCio agraria na agenda poli-

tica do Estado. Ate porque sua fragil e insuficiente repre-

senta~Ciopolitica est6 nas mediac;ees partidarias que, pOl'

razees inteiramente diferentes das de suas pr6prias razoesde dasse, recusam a possibilidade de qualquer alianc;a

mesmo com os politicamente pr6ximos. Os que

que a estCiocolocando, pOl' serem minoria, POl'

rem numero suficiente, e pOl' nCioterem condic;oes

CIS   e ideol6gicas de articularem ou participarem de

as, na verdade, muitas vezes, levantam obstaculos

nais a essa inciusCio. Ou nCio tem sensibilidade

~nte para entender    0que e a questCio agr6ria. Voce

o que dizem alguns dos ditos aliados da reforma¢ltia e fica pensando se e 0caso de tel' aliados desse

~"'ipo   0que?

 Jose   de   Souza Martins -   Eles repetem coisas que

iram dizer, sem saber de onde vem. Coisas como a

~ue a reforma agr6ria vai aumentar enormemente a

~utividade agricola ou que quem pede a reforma

~ria esta numa situac;Ciode miseria e mendiconcia.

<:mto,a reforma agr6ria faria  0milagre de acabar com

breza no Brasil. NCiopercebem que a questCioagraria

s problemas de pobreza que ela cria noo aparecem

o pobreza rural, mas, basicamente, como pobreza

ana. Alem disso, nCio percebem que, mesmo .-'quea

[ma agraria nCioaumente a produtividade agricola,

e ser feita, porque ela resolve uma questCio social e

uma questCio economica.

Esse quadro se complica porque nCio h6 caso de

orma agraria que nCio tenha sido produto de uma

oluC;Ciosocial ou de uma grande alianc;a politica entre

~Iassessociais. Eo caso das reformas feitas depois da

unda Guerra Mundial e  0caso de quase todas as

t;>rmasagrarias que nCio decorreram de revolu~oes.

as elites incorporam como de seu interesse esse tipo

reforma, pOl' algum motivo politico, economico ou

ial, ou ate mesmo hist6rico, ou dificilmente esse tipo

reforma se cumprira enquanto reforma estrutural,

nas relac;ees de classes e nas relac;ees de poder.

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 JST- Voce aplica esse raciocinio ate mesmo ao processo

que come~ou a acontecer   do ano passado para  ca, pelomenos em alguns momentos, principa/mente depois dos

massacres que aconteceram em Corumbiara, dos episo-

dios  do  Pontal, das prisoes e sobretudo depois   do mas-

sacre, agora,   do   Para? Ela ocupa   0centro da agenda politica.   A gente sente isso   no   Movimento porque a

imprensa passou a nos procurar direto, a toda hora.

Claro,agente interpreta issoa partir de algumas coisas,como a crise da agricultura e  0 fato de que  0congressodo MST chegou a Brasilia um dia depois que   os   cami-nhoneiros foram embora. Houve uma conjun~ao de fa-tores que possibilitou que a reforma agraria viesse   aocupar espa~o. Voce sente que   a  sociedade fala emreforma agraria. Agora, reforma agraria ja nao  e   uma

coisa que  naoexiste na palavra, ela passa a ser falada. Esta na novela das oito. Da forma que seja, ela estasendo debatida. Eusempre fui da teoria de que ela era

uma questao silenciada. Ate ha um tempo atras, princi- palmente depois de   1988, depois   da  derrota institucio-nal dareforma agraria, existia um silenciamento. Quemestava discufindo isso ha anos nao rompia essa barreirade silencio. Essa conjuntura mais proxima, como  e   que

voce enxerga isso?

 Jose de Souza Martins -   Se eu remeto a definic;ao (e

a compreensao) do reforma agraria   a   questao agraria, a

conjuntura e irrelevante. Esses acontecimentos mais re-

centes colocaram   0questao agraria no imaginario daque-

la parte da popula<;ao que hao vive os problemas doagricultor sem terra nem tem por que vive-Ios. Mas, nao

a colocaram na agenda politica do Estado, mesmo que

membros do governo tenham feito algum esfor<;o nesse

sentido, aproveitando a sensibiliza<;ao do conjunto da

 popula<;ao que decorreu desses acontecimentos. Houve

ate a otimista insinuac;ao de um alto membro do governo

de que ela poderia finalmente ser assumida como uma

questao nacional. Assim como ela entrou facilmente na

conversac;ao cotidiana de muitas pessoas que nada tern aver com   0assunto, era tambem saiu facilmente.   E   uma

imaginar que ela se tornou uma irreversivel preo-

~ao do povo brasileiro. Na verdade, a reforma agr6-

 penas disputa espac;o nos meios de comunicac;ao de

a com assuntos banais pela manchete do dia.

o que e que   voce  chama de ela entrar   na   agenda

ica?

ose de Souza Martins -   E   a questao agraria sesformar num impasse politico. Uma questao que, se

for resolvida, torna   0 pais ingovernavel, bloqueia   0

lmto do processo politico. Ela entra na agenda po-

a   do Estado quando todos aqueles envolvidos em

cessos de decisao se tornam conscientes de que a

stao tem que ser resolvida,   0obstaculo tem que ser 

ovido. Isso aconteceu com a escravidao. A escravi-

negra nao terminou em 1888 porque os negros

ravizados tenham feito uma grande revoluc;ao social

e pusesse fim   a   sua servidao. Ela terminou porque

trara na agenda politica do Estado desde 1850. Nesse

0/   a aprovac;ao da lei de Terras abriu caminho para

rac;ao estrangeira macic;a, especialmente~euro-

 para trabalhar nas fazendas do Brasil no lugar dos

ravos.   E   que as press6es internacionais, sobretudo da

~Iaterra, e um tratado nesse sentido, assinado ante-

orrnente pelo Brasil, proibiram   0trafico de escravos da

frica,   0chamado trafico negreiro. Para que a agricultura

~scesse e os negros escravizados fossem substitufdos~~ando morressem, era necessaria outra mao-de-obra,

Jiyre e branca, que era a disponivel.

Para desemperrar    0 processo,   0caminho era promover 

imigrac;ao em massa de trabalhadores rurais estrangei-

s. E assim foi feito. Se a escravidao nao terminasse, ela

iqria muitos problemas para assimilac;ao da nova for<;a

trabalho vinda de fora. Como de fato criou dificuldades

coexistencia de trabalhadores livres e escravos traba-

ndo no mesmo cafezal, por exemplo. Foi necessario,rtanto, acelerar    0fim da escravidao. Quem fez isso? Os

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grandes fazendeiros que estavam na politica, no Parla-

mento, no Ministerio, no governo, como Joaquim Nabu-

co e Antonio da Silva Prado, que tomaram consciencia

do atraso economico, social e politico que a escravidao

 promovia. De fato, quando a escravidao terminou, hou-

ve ampliaSao do mercado, a industrializar:;:ao teve seu

 primeiro deslanche, 0 regime republicano foi implanta:

do e 0 pafs viveu seu primeiro surto de modernizar:;:ao. Eclaro que outros fatores intervieram e se combinaram

com tais mudanr:;:as para viabilizar essa reorienta<;ao em

nosso desenvolvimento historico. Mas, sem a providen-

cia da aboli<;ao da escravatura dificilmente as mudanr:;:as

se dariam no ritmo e na amplitude em que se deram.

Penso que uma reforma agr6ria ampla e consequente,

de verdade, promoveria um grande saito historico na vida

do pafs: diminuiria a miseria urbana,.criaria uma valvula

de seguranr:;:a para as mudan<;as economicas e tecnologi-cas aceleradas pelas quais estamos passando, ampliaria

o mercado e teria um efeito multiplicador de beneffcios

salutar no conjunto da sociedade, alem de viabilizar 0

 processo de modernizar:;:ao social e politica. 50 elites obtusas

nao podem perceber isso. Antes de 1964,0 pais se dividiu

em relar:;:ao, justa mente, a por ou nao por a questao

agr6ria na agenda politica do Estado. E quem a pos,

agindo no lugar do povo, foi deposto.

As elites, refratarias  a

  necessidade da reforma, reali-mentam os mecanismos politicos de reprodur:;:ao da con-

cepr:;:ao 0lig6rquica do poder. Por isso, pode escrever, na

 proxima eleir:;:ao as pessoas vao continuar votando nos

grandes proprietarios de terra, inclusive os trabalhado-

res rurais vao continuar votando neles. Nesse quadro de

imobilismo dificilmente a questao agraria entrara na

agenda do Estado sem grandes negociar:;:ees, alianr:;:as e

concessees.

 JST - Mesmo que tenha acontecido   um aumento   demobilizaljao   no campo,   pelo   menos segundo   0ultimo

elatorio da CPT?De cinco   anos   para co   aumentou   0

iimero de ocupatioes de terra.

Jose de   Souza Martins -   5im, mas isso nao e tudo. A

estao nao e quantitativa, e uma questao qualitativa. Toda

obilizar:;:aono campo, que e uma mobilizar:;:aomais intensa

qui, menos intensa ali, nao pee em xeque, necessariomen-

f ie ,   a estrutura de poder, nao questiona qualitativamente 0

odo como as coisas estao organizadas. A tragedia e essa.o mesmo tempo, nao se ve uma certa imaginar:;:ao criadora

tuando para descobrir como desbloquear essa questeo. Ela

sta bloqueada, ela esta engavetada, ela amear:;:a sair da

aveta e volta para a gaveta. Durante   0ditadura militar e

or pouco tempo no come<;o do governO Sarney houve

ndfcios de que 0 Estado brasileiro assumiria a questao

t1graria e adotaria providencias para resolve-la, remover 0

 bloqueio por ela representado para 0 desenvolvimento do

 pa is.   Mas, isso afinal, neo aconteceu. A ditadura agiu nesse

sentido j6 no final, quando devia ter agido no comer:;:o,antes

de definir 0 modelo politico e economico que a caracterizaria

e que nos deixou como sua unica heran<;a.

 Neo basta a opiniao publica dizer-se favoravel   a   refor-

lTlaagr6ria. Voce faz pesquisa de opinieo e descobre que

70% das pessoas sac favor6veis   a   reforma ograria. 50 que

"'~Ias nao sabem 0 que e reforma agraria. Tanto que, na

hora de votar, votam em partidos e pessoas que, por razees

~e c1asse social e de opr:;:ao ideologica, sac contrarias a

eSsa reforma. Esses partid6rios da reforma neo condicio-

nom seu voto   a   ador:;:ao do reforma agraria como plata-

.•..forma polltica daqueles que elegem.

...151 -   Mas esse ator politico,   sem   terra, pelo   menos

passou a  ser mais encontrado   no   imaginario das pes-<~()as. Eu falo isso porque foi feita   uma   pesquisa de

~piniao e  co/ocaram  0 MST em quinto lugar   em termos

e institui~cioconfiavel, junto a  Igreja, universidade.

Jose de   Souza Martins -   Mas so no imaginario. Isso!f,~Cioproduz noda, nenhum efeito reolmente significativo.

7/23/2019 José de Souza Martins. a Questão Agrária Brasileira.

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o   grande problema de tudo que entra no imaginario,   eque   0imaginario e manipulavel; no caso dos sem-terra   e

 bom tomar cuidado porque essa imagem ja est a sendo

manipulada. Aparentemente,   0segredo da sacanagem

 politica e   0de fazer com que um tema desses entre no

imaginario da popula~ao para poder manipula-Io. Se

alguem se der ao trabalho de estudar justa mente esse

aspedo do problema, provavelmente descobrira que ostrabalhadores rurais desde antes da ditadura, por varios

meios vinham afetando a possibllidade das composi~oes,   . politicas. 0 fato de que a Igreja Cat61ica e algumas Igrelas

 protestantes tenham assumido abertamente que ha no

 pais uma questao agraria politicamente dimensionada,

que precisa ser resolvida por razoes socia is e morais,

inviabilizou alianc,;as politicas que teriam dado   a   ditadura

um peso historico maior do que ela teve. Convem lembrar 

do famoso discurso do general Golbery do Couto e Silva

na Escola Superior de Guerra sobre a abertura politica.

Disse ele que eta era necessaria porque   0 processo politico

tinha sardo de seu leito natural, constitufdo pelos particlos

 politicos. A Igreja estava fazendo politica e  0fazia sobre-

tudo a partir da aceitac,;ao da legitimidade da questao

agraria.

Aparentemente, setores das elites indisponiveis para

de fato assumirem a reforma agraria nos termos em que

est a sendo posta pelos movimentos sociais resolveram

inclui-Ia no imaginario da populac,;eo para manipula-Ia,

coisa que nao pode ocorrer enquanto esse imaginario tiver 

como refer€mcia estrutural as comunidades de base, os

grupos politicos extrapartidarios, as organizac,;oes nao-go-

vernamentais claramente opostas aos esquemas de alian-

c,;aem vigor.

Ha pouco tempo,   0Presidente da Republica participou

de uma discusseo muito interessante na televisao. AI-

guem tocou no assunto da reforma agraria, do Movimento

dos Sem Terra e assuntos correlatos. Ele disse uma coisa,

ortante para entender a logica da inserc,;ao desse tema

 preocupac;;oes de governo: a agricultura pesa   15% na

nomia brasiteira. 0 conjunto da economia brasileira

se nao de pen de da agricultura.   E,   nesses   15%,   os

oenos agricultores pesam quanto exatamente? Os que

tem terra nao pesam absolutamente nada. Percebe-

s, entao, que   0sujeito da situac;;ao politica atual   e   um

ieito que representa uma porcentagem de alguma coisaonomica. Esse fato consagra a exclusao politica da

ioria da populac,;ao brasileira, que quase nada repre-

nta do ponto de vista economico.

- Mas ele  respondeu   dessa   forma?

Jose   de  Souza Martins -   Nao, eu e que estou inter-

etando   0que ele disse. E   0que ele disse e claro: a

iifnportCincia politica dos sem-terra e medida por sua im-

orfoncia economica. Isso nao quer dizer que ele ignore

 problema social   representado pela exist€mcia de uma

/rriassa de trabalhadores rurais sem terra que pressiona

'pela reforma agraria. Um problema que, para   0governo, se

 poe no mesmo capitulo do problema da pobreza. Diferen-

fe, porfanto, do modo como as esquerdas entt3'ndem   0

/<problema: como problema historico e estrufural.

A questao agraria comporta diferentes definic;;oes, in-

~erpretac,;oes e soluc,;oes. Por isso, ha diferentes possibili-

ades de reforma agraria. A reforma agraria do Movi-

ento dos Sem Terra, das Igrejas e do Partido dos Traba-

adores - se e que e a mesma para todos eles - nao   e,,aesde   0 golpe de   1964,   a reforma agraria do Estado

<prasiteiro. A questao agraria, jusfamente por ser uma

questeo politica, est a entre aquelas reformas cuja defi-

nic,;eo depende da coniuntura hist6rica e das alianc;;as

 politicas e da estrutura de Estado que dessa coniuntura

decorrem.

Quando   0Movimento dos Sem Terra exige reforma

qgraria, exige uma coisa. Quando os governos dizem queestao fazendo reforma agraria, esteo fazendo outra coisa.

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Por isso mesmo, os numeros e as informac;oes, de urn lado,

nao coincidem com os numeros e as informac;oes, do outro

lado. Que ambos usem   0mesmo r6tu/o,   reforma agraria,

 para fafar de coisas diferentes ja e indlcio da manipulac;ao

a que me refiro; indlcio de uma batalha para alcan<iar    0

controle ideologico de um conceito-chave na luta social.

 Nao so   0governo manipula. a Movimento dos Sem Terra

tambem manipula esse conceito, que parece vital, quandoinclui os posseiros da Amazonia na designa<iao de sem

terra. a que e compreenslvel, porque   0Movimento vem

clara mente atuando no sentido de estabelecer sua hegemo-

nia sobre lutas fragmentarias e locais, fora de sua propria

logica, como ados posseiros. Mas, os posseiros nao sac

trabalhadores sem terra. Sao trabalhadores privados do

direito legal sobre a terra que ocupam,   0que e coisa bem

diferente dos propria mente sem terra do Rio Grande do

Sui, do Parana e de Sao Paulo, que reivindicam   0acesso

a   terra. Sao problemas diferentes que exigem solu<ioes

completamente diferentes e que encerram possibilidades

de solu<iao diferentes. Temo, alias, que essa unifica<iao

conceitual equivocada tenha trazido um grande beneflcio

aos grandes proprietarios de terra. Nao so porque tambem

os unificou, permitindo-Ihes superar a notoria fragilidade

de suas posic;oes nos anos setenta e oitenta, mas tambem

 porque deu uma legitimidade descabida aos grileiros de

terra e aos beneficiarios de mulos falsificados em regioes

de grilagem, como a Amazonia, que, por isso mesmo,entram no grupo dos passlveis de inclusao nas desapro-

 priac;oes de terras que, historicamente, nap Ihes pertence.

 Na impossibilidade de ter, portanto, apoio daqueles

 para os quais a soluc;ao da questao agraria interessa,   0

governo e   0 presidente tem que formula-Io de modo a

dar-Ihe a soluc;ao posslve!. E essa solu<iao nap e, certa-

mente, a soluc;ao que   0MST daria se fosse governo. Eu

conhec;o pessoalmente   0Presidente da Republica, traba-

Ihei com ele, fui aluno dele aqui na Universidade, foi uma

essoas com quem aprendi sociologia. Ele sempre

deu que ha no pais   questoes agr6rias   e que e neces-

resolve-Ias de acordo com as caracterlsticas que tem

da situa<iao e em cada lugar.

Isso e uma ;ustificativa para nao resolver    0pro-

a?

ose de Souza Martins -   Nao. Nao e uma justificati-

sso e uma realidade politica.   E   preciso nap esquecer 

Q   dimensionamento economico do mundo moderno   ,cola da economia e do lucro, tendem a reduzir os

lemas sociais   a   sua dimensao economica. a capita-

dos dias de hoje tem solu<ioes economicas para os

lemas sociais que tornam dispensavel transformar 

s problemas em questoes politicas e historicas. Morei

.~iEstados Unidos durante um curto tempo. Eles resolvem

...:problema da pobreza e da falta de trabalho atraves do

16rio-desemprego e dos bonus de alimentos que as pes-?as recebem porque estao desempregadas. au seja,

rque elas sac zero   a   esquerda, no sistema economico,

o irrelevantes.   E   mais barato trata-Ias assim do que

romover grandes transforma<ioes economicas.

·1 -   Fica mais barato fazer isso do que fazer uma

forma agr6ria.

Jose de Souza Martins -   Exatamente. Nao e, eviden-

mente, a minha posic;ao. Minha posic;ao e outra. auvi

!~lgo parecido de um fazendeiro de cafe de uma das mais

t~od~c~onais regioes de cafe de Sao Paulo, ele proprio de

t[Cld,c,onalfssima familia de fazendeiros e ate envolvido na

~~nda<iao de famosa entidade de defesa da tradic;ao e da

~ropriedade. No comec;o de minha carreira aqui na Uni-

rsidade, em   1965,   fui para   0 interior fazer pesquisa

 bre mudan<ias nas rela<ioes de trabalho na economia

.feeira. Na epoca estava comec;ando a aparecer    0 boia-

la,   que aindo nao tinha esse nome. Era chamado de

.•Iante. Apesar da erradicac;ao dos cafezais nap estar Inda conclulda, estimulada e subsidiada pelo governo

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federal, ja encontrei aqueJe pessoal extremamente pobre

colhendo cafe. Nao eram mais colonos da fazenda. Era

gente que vinha de fora, recrutada pelo "gato". Tentei

argumentar com   0fazendeiro a favor do colonato, para

ver como ele reagia. Peto menos   0colono tinha moradia,

tinha direito a fazer sua rocinha, as condi<;6es de vida eram

melhores. Ele disse: nao, nao funciona. "Estou propondq 

aos 01timos colonos que ainda tenho   0seguinte: eles temla  0 roc;ado deles. EuyOU la e vejo quanto eles colhem de

arroz, quanto eles colhem de feijao, quanto eles colhem

de milho nos ro<;ados deles. Estou oferecendo a eles a

mesma quantidade que etes colhem de cada um desses

 produtos. Mas, eu mesmo fa<;o a planta<;ao na mesma

terra a eles cedida por mim, e colho muito mais do que

eles colhem. Eassim, retomo a terra e soio ganhando, sem

que eles deixem de receber a mesmo quantidade de

generos que antes cultivavam por conta propria. Plantan-

do naquela terra outra coisa, ou a mesma coisa, com outra

tecnoJogia, consigo tirar mais do que eles tiram." Esse,

evidentemente, como se sabe hoje, foi um passe de tran-

si<;ao para reduzir    0 trabalhador rural   a   categoria de

trabalhador assalariado e temporario.

Esse e 0raciocinio que esta pesando em muitos lugares

do mundo para discutir essa questao. Aproposta nao e de

reciclar as pessoas, reabrir alternativas e possibilidades

econ6micas com base em tecnologias intermediarias, mais

simples do que as tecnoJogias dominantes, num esquemade pluraJidade tecnologica. eria-se, assim, uma popula-

c;;aocondenada a viver   a   margem do sistema econ6mico

globalizado. Aquilo que sem precisao muitos chamam de

excluidos.

J ST -   E   pelo menos apressao internacional que  0Fer-

nando   Henrique sofre. Eu tenho certeza que ele   socome~ou a falar mais enfaticamente sobre   0assunto

porque   a   repercussao internacional desse tipo de  con-

flito   no Brasil nao condiz   com0

perfil de pais modernoque ele quer passar, para   a logica gtobalizada. Epeto

tem relatorio   doBIRD (Banco Mundial) fa/ando

reforma agraria seria   a so/u~ao no mundo con-

oraneo.

ose   de   Souza Martins -   Sim, porque os proprios

,.icanos, quando derrotaram   0 Japao na Segunda

rra Mundial, e ocuparam militarmente   0 pais, pro-

ram que fosse feita ali uma reforma agraria. Alias,

fJonsavel em parte pela transformac;;ao do Japao na~fe.ncia econ6mica e politico que e hoje. Penso que   0

t:pprio Fernando Henrique entende que essa e a soluc;;ao.

nao diz que e contra.

Mas  nunca   ninguem diz que e contra.

.Josede Souza Martins -   Mas, ele com certeza nao e

Ele mantem a mesma visao do problema que tinha

 bando era professor aqui e nao tinha, ainda, pianos de

trar na politica. Isso 16pelos anos sessenta. Ele entendiae a reforma agraria no Brasil era uma questao regional.

Oer dizer, em cada regiao a questao agraria se propunha

1 3 . uma forma diferente, que e uma coisa bastante sensata.

00  e minha visao do problema, mas e uma visao sensata

l.Jclndo se pens a na reforma como meio de ~solver 

foblemas sociais imediatos. Penso que da para discutir 

~o. Nesse programa de televisao, a que me referi, ele

 pfirmou esse ponto de vista. Para ele, por exemplo, os

ampados do Movimento dos Sem Terra sac um proble-

q real. Nao nos esque<;amos de que foi ele   0 primeiroresidente a reconhecer a legitimidade do Movimento dos

\'E;lmTerra. Ele disse isso publicamente. Mas, ele entende

e  0 problema se resolve com as desapropria<;6es e com

assentamento desses 37 mil ou 40 mil sem-terra que

~ao nos acampamentos.

'l'- Que efetivamente eles nao fazem.   Quando   ele faz

es pacotes   de   desapropriafiao,   a   maior parte   das

ras nao sao   as   areas pleiteadas pelos acampados.

 , 0  nas zonas  de co/oniza~ao,   no Mato   Grosso, no Para.

e tem todo  um discurso..•

Jose de Souza Martins Esse e 0discurso do Estado l d "

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Jose  de   Souza Martins -   Esse e   0discurso do Estado

 brasileiro sobre a questao agraria desde a ditadura.   E   0

discurso montado no esquema limitado de entrada da

questao agraria no debate politico que a ditadura estabe-

leceu eviabilizou. Eo discurso pasteurizado, nao conflitivo;

o discurso que passa, que pode ser ouvido e entendido

 pelos grandes proprietarios de terra sem acelerar-Ihes os

 batimentos cardiacos. 0 que indica que mesmo com amudanc;a de governo   0Estado mantem uma interpretac;ao

e uma orientac;ao proprias em relac;ao a questao agraria.

JST - Claro, ele reproduz   0discurso   e agora esta colo-

cando   0Exercito para regular    os conflitos .••

Jose   de   Souza Martins -   Isso, acho eu, e mais do

ministro dele do que dele.

JST - Mas e   minisfro dele. Qual   e   a sua  concep(jao   de

reforma agraria entao?   Ou   para resolver    a   questao

agraria brasileira?

Jose   de   Souza Martins -   E   preciso pensar em do is

niveis de intervenc;ao possive!. Um,   0do Estado real, que

e esse que esta of. 0 que voce faria? Pessoalmente acho

que se pode fazer pouca coisa at raves desse Estado que

est a ai, dessa estrutura e dessa concepc;ao de Estado, que

e a do Estado oligarquico, forte mente dominado por inte-

resses patrimonialistas, um Estado pre-moderno. A menos

que ocorra um rompimento no drculo vicioso do poder,

que e anti-reformista, que e anti-social, que e injusto. Um

rompimento de fundo historico que torne inevitavel dar 

soluc;ao consistente as quest6es pendentes, nao so a ques-

tao agraria, mas tambem a questao do desemprego, do

miseria urbana, da ignorancia, do atraso cultural, a ques-

tao das terras indigenas, etc. Essas quest6es nao devem ser 

subestimadas. Mas, para que elas sejam resolvidas e

necessario que mude radical mente a relac;ao entre a

sociedade e   0 Estado. Na verdade, desde   0tempo deGetulio Vargas nao houve mudanc;a propria mente signifi-

nessa relac;ao, a nao ser    0recuo do pop ". u Ismo notenor do Estado.

~um outro ~i~e" supondo que   0Estado brasileiro ja

ntem caractenstlcas modernas e abre possibilidades de

~ao governamental no sentido de realizar as reformas

ciais modernizadoras de que   0 pais necessita. E correr 

riscos correspondentes. Ou seja, supondo que, se um

nos fosse Presidente da Republica, nao teria que nego-

com absolutamente ninguem e poderia fazer livre-

todas as reformas socia is e politicos necessarias a

ansformac;ao do Brasil num pais moderno. Fazer uma

 pecie de foquismo governamental, pressupondo que   0

oder Executivo tem mais poder do que parece ter e que

'pode, portanto, arrastar consigo a opiniao e  0voto dos

.ll1embro~~o Congre~so Nacional, inclusive daqueles que,

Elmcondlc;oes normOlS, se op6em as reformas. Ja tivemos

episodios desse tipo antes do ditadura e durante a ditadu-ra. Os resultados sac conhecidos: desequillbrio da estru-

tOra de poder, crise politica, suiddio, renuncia, deposic;ao.

Poucos se lembram que os grandes proprietarios de terra

>que foram decisivos no golpe militar de   1964   nosmese~

uintes chegaram a se armor para derruba~   0governo

o m~rech~1 Castelo Bra.nco. No fundo,   0que esta em jogo

se e posslvel fazer a Historia em lugar do povo, como se

Ouvesse uma delegac;ao do povo para faze-la, quando   0

esmo povo vota em membros do Legislativo identificados

m orientac;6es conservadoras e anti-reformistas.

f ! ii   No entanto, apesar de todos esses bloqueios e dificul-

i'i~~des, pense que a reforma agraria e a soluc;ao para

tPIVersos dos nossos problemas. E por isso e necessario

if~tar por ela e mante-ta no debate politico. 0 Brasil e um

dos poucos poises do mundo que tem a possibilidade de

usar   0recurso do reforma agraria para atenuar os efeitos

t"lElgativose dramaticos do desenvolvimento econ6mico e

tecnologico muito rapido, dessa modernizac;ao tecnol6gi-

~muit "d . d  •••.• 0rap' a que cna esemprego e exclusao e que

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responde pela rapida e grave deterioras;oo das normas de

convivencia, da moralidade e da segurans;a publica. Pro-

cesso que alcans;a tanto os pobres quanto os ricos.

Desemprego que noo se resolve com  0 proprio desenvol_ 

vimento que   0gera porque a modernizas;oo se da por saltos

tecnologicos e cientificos muito grandes. A massa da popu-

las;oo marginalizada pelo desemprego fica marginalizada

tambem em termos de conhecimento, de cultura, de es-

 pecializas;oo, etc., e sem possibilidade de reintegrar-se no

mercado de trabalho a curto prazo, a noo ser em ocupa-

s;oes igualmente marginalizadas. Vai se criando aos pou-

cos uma especie de humanidade de segunda categoria,

excluida ate mesmo da possibilidade de participar das

lutas sociais e politicas segundo modelos politicos eficazes

de atuas;oo, recolhida a formas   lumpen   e quase sempre

delinquentes de as;oo e reas;oo.

A reforma agraria poderia se constituir num programa

de tecnologia intermediaria entre   0tradicional e   0moder-

no, com 0claro objetivo de absorveros impados negativos

de um modelo de desenvolvimento que tende a ser exclu-

dente e gerador de miseria. Um programa que criaria

alternativas sociais e econ6micas entre   0saito tecnologico

e   0atraso econ6mico e suas seqi.ielas. As proprias expe-

riencias dos assentados do Movimento dos Sem Terra

indicam que e possivel recriar e estimular um modo de

vida alternativo, relativamenteprospero, em relacsoo aodesemprego e   a   excludencia. Dessa forma seria possivel

absorver preventivamente os excedentes populacionais

que estoo sendo gerados pelo saito tecnologico promovido

 pel a globalizas;oo da economia. Ao mesmo tempo, em

decorrencia da reforma agraria, seria igualmente possivel

desenvolver programas que seriam programas educacionais,

de modernizas;oo, de atualizas;oo, para que a geracsoo se-

~uinte, dos filhos desses trabalhadores, se adaptasse para

Insercsoo adequada, num futuro proximo, na realidade

desse mundo que fatalmente vai estar modernizado.

eU fosse um membro do Movimento dos Sem Terra

vida ria   0 presidente Fernando Henrique Cardoso para

or as experi€mcias de assentamento do Movimento,

l11edo. Ele que pense   0que quiser depois. Isso e

 blel11a dele. Ele e um inteledual inteligente e compe-

te. Isso  0ajudaria a ajudor seus ministros a desenvolve-

ul11acompreensoo mais ampla dos efeitos largamente

itivos da reforma agraria. Eu faria isso tambem com

rnbros do Congresso Nacional, especial mente com

eles que tem uma conceps;oo equivocada e frequente-

nte tola do que pode ser a reforma. Esse seria um modo

isolar os inimigos irredutiveis das reformas socia is, em

rticular da reforma agraria. Eu Ihes mostraria essas

eriencias de recuperas;oo e atualizas;oo da cultura cam-

nesa, de recrias;oo de nichos de prosperidade e fartura,

reencontro da tradis;oo camponesa da comunidade e

familia simultaneamente com a modernizas;oo econo-•....ica segundo um outro modelo de economia. 0 presiden-

~, em particular, poderia relativizar os pontos de vista de

ecnicos que   0assessoram e que decretam verdades defi-

 jtivas sobre coisas que noo conhecem, como a vida e a

ealidade do homem do campo que passou pel a experien-

'qia da luta social para preservar ou restaurar um modo de

>'y'ida. Mas, um modo de vida que e melhor do que   0

desemprego urbano ou subemprego, ou a miseria da vida

'I1Osfavelas e corticsos, ou emboixo dos pontes e viodutos

dos grandes cidades. Os que lutam por transformas;oes

sociais esquecem-se da dimensoo propriamente pedag6-

gica das proposis;oes politicas de dimensoo suprapartida-

'fia, como e concretamente   0 caso da reforma agraria.

f-,Aantidasas condicsoes politicas atuais, ela jamais sera feita

IDaperspectiva do confronto de classes.

 Na verdade,   0Movimento dos Sem Terra e ao mesmo

fempo um grande movimento de modernizas;oo no campo.

tie e   0mais consequente movimento de modernizas;oo e

ressocializacsoo das populacsoes do campo que ja houve na

historia do Brasil Acho um absurdo que esse lado do geralmente, depositario de uma cultura secular de eficien-

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historia do Brasil. Acho um absurdo que esse lado do

Movimento nao seja proclamado pelo pr6prio Movimento.

oMovimento mostra um lado, que e   0seu pior lado do

 ponto de vista politico, e nao mostra esse lado, que e 0

lado da promessa, exatamente   0lado da coisa que se

resolve, que tem soluc;60. Voce pode tirar 0 sujeito da mais

absoluta falta de destino, da mais absoluta miseria e

transforma-Io num sujeito que vive num estado de bem-estar social.   E   posslvel fazer isso e sem retroceder.

Uma das grandes crfticas   a   reforma agraria de qual-

quer tipo e, sobretudo, as distributivistas, que e a que se

 pode fazer no Brasil, e justamente a crftica ao fato de que

o distributivismo poderia criar uma grande miseria. Na

mencionada entrevista na televisao, Fernando Henrique

disse isso, disse que a distribuic;ao de terras sem criterio

cria uma pobreza muito grande, pois nao da como assistir 

tecnologicamente essas populac;6es. Da, sim, para resol-ver    0 problema da pobreza dessas populac;6es se elas

estiverem envolvidas na especie de mlstica pr6prias dos

movimentos socia is, ou do seu pr6prio movimento social,

no senti do de que elas tambem querem dar 0 saito para

a frente. Ninguem gosta da miseria, ninguem gosta de

 passar fome, ninguem gosta de viver como bicho. Imagi-

nar que essas populac;6es amam a miseria e ate mesmo

uma injustic;;aabsolutamente incrivel, sobretudo daqueles

que entendem que a opc;ao pelo pobre e   0mesmo que

opc;;ao pela pobreza. Eles tambem querem ter televisao,

querem ter trator, querem ter um padrao de vida alto,

querem ter eletricidade dentro de casa, querem ter os

filhos na escola, querem uma vida digna, inclusive mate-

rialmente digna. Eles querem ter tudo que todo mundo

tern, que todo mundo tem 0 direito de ter. Quando Ihes

sac dadas as condic;6es de vida, ate minimas, conseguem

alcanc;;ar um nivel de bem-estar que   0desenvolvimento

capitalista acelerado esta longe de oferecer-Ihes. Alias,

nao cometamos  0

erro grosseiro de supor que 0 trabalha-dor sem terra nao sabe como trabalhar a terra. Ele e,

geralmente, depositario de uma cultura secular de eficien

te trato da terra. Esta mais em condic;;6es de ensinar do

que de aprender.   0que ele precisa e de terra para

trabalhar.

Pessoalmente, entendo que a reforma agraria deveria

ser feita mesmo nos casos em que, a curto prazo, nao se

 produzisse nem um grao de milho como excedente eco-

nomico para 0 mercado.   0Brasil e um pais que tem terrassuficientes, mais do que suficientes, para fazer uma refor-

ma agraria em que, num primeiro momento, se tire essa

 populac;ao da miseria, da marginalizac;ao, da falta de

 possibilidade de trabalhar. Uma reforma que oferec;;a aos

 beneficiarios a possibilidade de ao menos plantar a comi-

da que comem. Isso e mais digno do que viver nas ruas,

embaixo de ponte, do que perambular pelas fazendas

como escravo. Ha uma dimensao emergencial na reforma

agraria que se deve fazer no Brasil.   E   justamente a dimen-

sac que os governantes e politicos se recusam a aceitar e

que os movimentos socia is, inclusive 0 Movimento dos Sem

Terra, nao tem coragem de propo~ pois foram engolidos

ideologicamente pelos pressupostos da reforma tolliJravel

 pelos grandes proprietarios. Emcima dessa base e a partir 

del a e que se pode fazer uma proposta de elevac;;ao da

dignidade humana, de melhoria das condic;6es socia is,

sanitarias, educacionais da populac;;ao e, tambem, uma

 polltica de fomento.   0 problema e que 0 Estado brasileiro

e incompetente para fazer isso. Uma proposta assim dacerto nas experiencias localizadas de assentamentos do

Movimento dos Sem Terra porque nao e uma organizac;;ao

tutelada pelo Estado. S6 da certo porque a propria popu-

lac;;ao envolvida no movimento esta nele, nao 56 porque

quer terra, mas, tambem, porque tem um modo de vida

como bandeira. Uma mistica de como viver, de como um

ser humano deve ser.

Entendo que, se os membros do governo que cuidam da

 politica de reforma agraria fossem mais espertos, nego-

ciariam com as sem-terra. Se as esquerdas fossem esper- o primeiro e unico partido popular agr6rio que

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q p

tas, negociariam com   0governo a amplia<;eo do base de

sustentac;eo governamental no que diz respeito as refor-

mas sociais. Porque neo h6 outro jeito de participar ativa

e positivamente da viabilizac;eo da reforma. Neo se pode

retardar uma soluc;eo para   0  problema em nome da

suposic;eo de que determinado grupo, quando chegar ao

 poder, far6 a reforma agr6ria que deve ser feita. 0 mo-

mento e  0momento historico do governo de composi<;eo.

Resta saber quem est6 disposto a compor e quem neo est6.

Se se retira toda e qualquer possibilidade de apoio a um

governo que est6 disposto   a   composic;eo, porque eu neo

acredito que neo esteja disposto, nos   0deixamos so com

o outro lado para negociar, e   0 outro lado e isso que

conhecemos.

 No programa de televiseo, que mencionei, mais uma

vez Fernando Henrique fez a critica das elites. H6 muito

tempo ele e um critico das elites, de sua incompetencia

 politica.

 JST - Agorar   essa coisa do Movimento dos Sem Terra ser 

um  agente de moderniza~aor voce co/oca assimr   como

e que voce constr6i isso?   E    por causa da questito das

escolas?   0 MST nao e mais   ummovimento social?

 Jose de Souza Martins -   Neo e mais.   E   uma organi-

zac;eo. Ele tem uma estrutura, um corpo de funcion6rios.

J6 neo tem as caracteristicas de um movimento social. Atendencia dos movimentos sociais e de desaparecerem,

uma vez atingidos ou esgotados seus objetivos ou sua

capacidade de pressionar, ou de se transformarem em

organiza~6es, partid6rias ou de outro tipo. Isso e proprio

da dincmica dos movimentos sociais. Os movimentos sociais

existem enquanto existe uma causa neo resolvida. Se   0

 problema se resolve, acaba   0 movimento. Se ele neo se

resolve, a tendencia e a de que   0movimento se institucio-

nalize, se transforme numa organizac;eo, como e   0caso

do MST. Trata-se de uma organizac;eo poderosa. Eu diria

o primeiro e unico partido popular agr6rio que

o  Brasil, apesar de neo ter programa e organiza-

 priamente partid6rios.

aSe   ele rejeita esse nome •..

See   de Souza Martins -   Ele pode rejeitar    0   que

mas, na pr6tica, ele   0e. Certamente, e mais do,fT 1   partido, mas no conjunto de sua atuac;eo tem as

eristicas de um partido agr6rio popular. E esse e   0

 positivo, neo   0lado negativo do movimento.

 JJ...Masos candidatos   nao   vito  a  eleit;ao ...

ose   de Souza Martins -   E   verdade, se bem que   0

mento atue politicamente atraves de partidos politicos

istentes, como   0Partido dos Trabalhadores. No en-

, trata-se do unico grupo que conseguiu dar estatura

.ica a uma luta popular no Brasil, luta de trabalhador 

L   Esse e um fato positivo.

Mas,   0que eu dizia eo seguinte: um movimento como

, que agrupa populac;6es cuio conflito social atinge os

erces do sistema, que e   0direito de propriedade, tem

qfunc;eo modernizadora indiscutivel.   E   do que tr;to no

go recentemente publicado na  Folha   de S.  Pau/03•   Nele,

cordo da afirmac;eo do presidente Fernando Henrique

da realiza~60 desta entrevista, houve a elei~oo municipal de 3 de

outubro de 1996.   E   claro que houve em diversas regi6es, especialmente no

do pais, crescimento politico de partidos que tem posi~6es e programas

esquerda, incluindo neles a reforma agraria. Mas, houve retrocessos

not6rios, especialmente em regi6es importantes para a hist6ria das lutas

sociais dos trabalhadores rurais. Uma delas foi a do Araguaia mato-gros-

sense, lugar de lutas memoraveis nos anos setenta, ainda durante a

ditadura, lugar em que teve infcio   0renascimento das lutas populares no

campo.   E   de um iornal do Araguaia este comentario: "Essas elei~6es

mostraram que as atuais administra~6es noo conseguiram eleger seus

candidatos, exce~ao feita a Querencia e Alto Boa Vista.   0quadro atual do

regioo noo e muito animador. A direita, com seus metod os de sempre, onde

 pouco lugar fico para a etica, se fortalece, e invade siglas que, na regioo,

tiveram um caroter de esquerda, como 0 PMDB e 0 PDT". Eespecificamente,

quanto ao municipio de Vila Rica, reduto de gauchos imigrados nos ultimos

Cardoso de que 0 Movimento representa 0 arcaico contret t d d t d l

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Cardoso de que 0 Movimento representa 0 arcaico contret

o moderno. Ora, 0 modemo e 0 Movimento dos Sem Terra

mesmo que, de fato, os parlicipantes do Movimento na6i

saibam disso nem estejam expressamente preocupados

com isso.  0Movimento dos Sem Terra e que e 0 porlador 

e 0 agente do moderno porque questiona a estrutura de .

 propriedade e por meio dela questiona a estrutura de

 poder: questiona a propriedade concentrada injustamen_ te, anti-social, e, em consequencia, questiona 0 poder 

oligarquizado e, no fundo, antidemocr6tico.   0Movimento

e 0 unico agente social a proclamar todos os dias que a

questao agr6ria nao e s6 nem predominantemente Uma

questao economica. Ela e uma questao polftica. Mesmo

grupos atuantes, da maior relevoncia hist6rica e polltica,

como a Comissao Pastoral da Terra, onde ali6s nasceu 0

Movimento dos Sem Terra, j6 se equivocam na sua missao

e no alcance de seu trabalho ao anunciarem na pr6tica a

 precedencia das questoes economicas e tecnicas em rela-

~60 as questoes propriamente sociais e polfticas. H6 al uma

cerla renuncia aos pr6prios objetivos, uma cerla rendi~60

a 16gica dos grupos e classes dominantes, a sua ideologia

tecnicista e economicista e a sua proposta de moderniza-

~60 excludente, pois nela se proclama a precedencia do

economico em rela~60 ao social e polftico. Enquanto que

o que tem dado sentido e vida a CPT e exatamente a 16gica

oposta.

A   medida que 0 Movimento dos Sem Terra questionao injusto e anti-social regime de propriedade, a medida

que, ao reivindicar, cria impasses   politicos   criativos para os

governantes e 0 Estado, a medida que obriga 0 Estado,

anos, antigos pequenos agricultores obrigados a migrar por falta de terras no

Rio Grande do Sui: "Esta elei~ao mostra clara reiei~ao   a   administra~ao atual

(PDT/PT) que muito investiu em educa~ao e em saude publica, investimentos que

nao rendem votos. Fica claro que 0 eleitor esta mais preocupado com obras que

apare~am ou com beneffcios particulares do que com seriedade administrativa.

U Cf. Alvorada, Ano   26, n.   194, Sao Felix do Araguaia (MT), set./out.   1996,  p.  4.

concretas de ocupa~ao de terras, de alguma

que tangencialmente, a tomar providencias

a negociar, a fazer reformas t6picas, nessa

Movimento questiona 0 Estado 0lig6rquico e

. Assim agindo, 0 Movimento dos Sem Terra atua

d e democratizar a propriedade da terra e deoirum fator de persistencia da mentalidade 0lig6r-

sse sentido ele e essencialmente modemizador,. modemizador do que 0 capital que se compos

nde propriedade fundi6ria.

disso, a vida nos acampamentos promove uma

 periencia de ressocializa~60 de seus membros e

ntes. Netes se cria uma especie de sociabilidade

que significa que dal decorre mais do que a

d~60 de terra.   0Movimento tem que abranger,

mais do que 0 acesso   a   terra, algo que corres-

horizontes aberlos por essa nova sociabilidade.Movimento propoe nesses projetos de coopera-

trabalho, de moderniza~60 das rela~6es sociais.

modo, pode-se dizer que nessa experi€mcia h6

reinven<;60 do mundo campones em eases

h6 pouco, na revista Atenqoo!, uma bem feita

la sobre 0 modo de vida desse campesinato que

da luta pela terra4•   E   uma proposta sofisticada. Nem

guesia brasileira, que supostamente tem 0 mandatorico da moderniza~ao,   e  capaz de propor algo seme-

te nessa escala de atividade economica. A burguesia

Heira deveria aprender com   0Movimento dos Sem

q,   pelo menos no que diz respeito a agricultura. Ela

 percebe que, de fato, a iniciativa do trabalho gerencial

 boa qualidade na agricultura familiar, da coisa que

Cf .   Ricardo Kotscho e loao R. Ripper, A terra que queriam ver dividida, in:

Aten~60!, Sao Paulo, out.   1995,  p.   30-41.

funciona, que do certo, esto hoje nas maos de grupos ossibilidade da alternativa controria Qualquer coisa

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, q , j g p

 populares. 0 Movimento dos Sem Terra esto provando isso.

Eles nao tem a mesma capacidade gerencial, a mesma

competencia que   0 pessoal desses assentamentos est6

demonstrando. Os nossos empres6rios, que estao quase

sempre se queixando e esperando privilegios do governo,

especial mente os empres6rios rurais, exercitam sua capa-

cidade gerencial em condic;6es de favorecimento politico.J6   0Movimento dos Sem Terra exercita sua capacidade

gerencial em condic;6es adversas e conflitivas, sem apoio

material e sem apoio dos orgaos de formac;ao da opiniao

 publica, num ambiente quase de guerra. So por isso, as

inova~6es que implantam e difundem ja representam uma

competencia maior.

 Na verdade, estamos em face de um duplo movimento

social protagonizado pelos membros de uma mesma orga-

nizac;ao, que e   0Movimento dos Sem Terra. De um lado,   0

movimento propriamente politico, que alcanc;a as ralzes do

sistema de poder. Nao alcanc;a com exito, mas alcanc;a e

desafia. E, de outro lado, a ressocializa~ao da popula<;ao

rural alcan<;ada pelo Movimento para se integrar no mundo

moderno de uma maneira decente, de uma maneira digna,

 porque   0 que   0 capitalismo esta oferecendo para essa

humanidade e a integra<;ao excludente e a marginalizac;ao.

 No mundo inteiro esto assim. Aumenta   0numero de casos

de trabalho escravo, sac seis milh6es de escravos no mundo

hoje, conforme   0relatorio da Organiza<;ao Internacional doTrabalho de 1993. Nao e a mesma escravidao do passado.

E   a escravidCio que nasce no interior do capitalismo moderno,

que exclui e degrada (na India ho pais que vendem os

filhos em troca de comida). 0 lado monstruoso do capi-

talismo esta aparecendo agora nessas modalidades de

degrada<;ao do homem.   E   a contrapartida do ultradesenvol-

vimento que alguns paises, algumas regi6es, algumas clas-

ses estao conhecendo e vivendo em nossos dias.

Movimentos populares, camponeses, como os que seabrigam no Movimento dos Sem Terra, estao anunciando

ossibilidade da alternativa controria. Qualquer coisa

oferec;a as novas gerac;6es, as crianc;as, a possibilidade

rn sorriso que nao seja falso, vale a pena.

_ Voce e   conhecido   como   defensor da agricultura

War, solitario por algum tempo. Hoje   0modelo de

 Icultura familiar tem sido retomado, ate   como   umaosta de modernizat;ao. Euqueria que  voce   falasse

 pouco   sobre isso, ate porque, na 16gicado Movimen-¢lepois de toda uma discussao de cooperativar, de

halho coletivo,   se descobre outras formas de coope-o que integram a agricultura familiar   e,  pelo que

onheci disso, acho que e  a melhor solut;ao, porquevai   em cima daquela mentalidade camponesa quegosta de fkar sob cabresto, horarioenao sei  0que.

mbem porque propoe uma alternativa para eles nao. rem  sufocados   pelo esquema que esta montado ai, falta de espat;o economico para eles. Entao como  e

voce   enxerga isso, assim, a agricultura familiar ser cada agora,   num  outro patamar,   numa   outra discus-

.ose   de Souza Martins -   Meu primeiro projeto de

uisa, de 1964, tratava, justa mente, dos obstocClos a

ernizac;ao da agricultura, dos processos que recriavam

raso econ6mico e social. E abrangia tanto a grande

nda quanto a pequena agricultura de familia, inclusive

areas atrasadas, como   0Alto Paraiba, em Sao Paulo.

 Nunca fui defensor da agricultura familiar pela agricul-

familiar, do tipo volta a pequena unidade de produc;ao,

mae e filho trabalhando na roc;a, solitarios e isolados.

cp fui defensor do atraso social e econ6mico, porque

 pessoal e diretamente   0que ele significa. Venho de

familia de pequenos agricultores pobres, e eu proprio

a roc;a, quando menino. Boa parte de minha familia

rna ainda esta na ro~a. Sempre achei que a experien-

a familia rural estavel, que e capaz de sobreviver com

idade e sem passar fome, e uma experiencia que tem·Ser resgatada socialmente, que nao pode ser "jogada

fora" Porq e a alternati a para ela no circ nstancia at al ante noo aceitam a logica de ma cooperac;oo irrea

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fora". Porque a alternativa para ela, no circunstancia atual,

e a proletariza~ao e a miseria. Isso aconteceu no minha

familia. Quem nao ficou no ro~a, foi para a fabrica. Eu

mesmo ainda menino trabalhei em fabrica, cresci dentro

de uma fabrica. So fui estudar porque os donos do empre-

sa, que era muito grande, a familia de Roberto Simonsen,

eram pessoas esclarecidas e mandaram estudar os meni-

nos que 0 quisessem. Eles pagavam a escola noturna para

as crian~as que trabalhavam durante 0 dia. Por uma

cilada da vida, essa familia, que era muito correta com

seus operarios e ja foi riquissima, perdeu tudo que tinha.

Recentemente, Iinuma grande revista a noticia de que um

filho do homem que fora meu patrao estivera no Federa-

~ao das Industrias procurando emprego, pois nem mesmo

tinha dinheiro para pagar 0 metro e retornar para casa.

Uma coisa que aprendi em coso mesmo, no ro~a, com

meus avos, meus tios e meus primos, e que a agriculturafamiliar e, sobretudo, uma forma basica de coopera~ao

economica e e, tambem, uma comunidade. Nos momen-

tos de colheita, quatro gera~6es do familia se reuniam

 para executar 0 trabalho dos mais fracos, sobretudo dos

velhos. Eram muitas semanas de muito trabalho e tambem

de muita alegria. Um momento, propriamente, de comu-

nhoo.

Se voce propuser alguma coisa mais complicada paraessas pessoas, algo teoricamente sofisticado, complicado

e pouco inteligfvel para qualquer um, inclusive para os

 proprios inteleduais, como gostam de fazer os economis-

tas de esquerda, e tambem os sociologos, a proposta noo

chega a funcionar na pratica. Ate porque suas propostas,

mais do que transformadoras, sac destrutivas. E levam   005

famosos desastres do coletiviza~oo fidicia e boba. Nos quase

vinte ones em que fiz pesquisas periodicas no Amazonia,

mas tambem em Sao Paulo, vi muitas tentativas fracassa-

das de tornar real a fic~oo do trabalho coletivo. Essestrabalhadores rurais noo entendem e, sobretudo, pruden-

ante noo aceitam, a logica de uma cooperac;oo irrea-

que se sobrepoe   a   coletivizac;ao realista, de fundo

ral, que ha no coopera~ao familiar. Em areas de imi-

c.;:Oorecente, como e   0caso do regioo amazonica, a

lidade estrutural da familia extenso, que continua pre-

te no cultura e no mentalidade da popula~ao do cam-

, perde visibilidade, porque 0 pesquisador so ve nos

yoados e nas ro~as aglomerados de familias nucleares.

Mas, 0 que ele ve nao e  0que   0 povo vive, pensa e e.

 portanto, ja existe uma base e uma cultura de coope-

00 e de divisao cooperada do trabalho, que se desen-

Ive ou que desaparece em func;ao das circunstancias

toricas e sociais. Nas areas de luta, e de experiencias

cassadas de coletivizac.;:ao do trabalho, por exemplo

raves de cooperativas, com facilidade essa cultura co-

~unitaria e familista produziu experiencias transitorias de

¢60perac;ao que revelaram um modo proprio de cooperar 

cheio de potencialidade modernizadora e transformadora

~apropria agricultura familiar tradicional. Isso os pesqui-

~~dores nao conseguem ver. Por isso entendo que e pos-

·el integrar a familia do pequeno agricultor no mundo

derno de um modo muito mais humanizado e criativo

que atraves da proletarizac;ao e do converseD do

dbalhador em mero bra~o, e nao em cerebro, do traba-

ador coletivo de que falava Marx.

Como voce lembra, neo s6 falei sozinho, mas tambem

muita paulada de intelectuais de classe media desen-

cuio radicalismo noo e   0radicalismo do vida, mas

da leitura diletante, quase sempre ligados aos partidos

esquerda, que conhecem os livros e desdenham a vida.

sempre acharam, e muitos ainda acham, que essa era

 proposta (minha!) e, alem disso, uma proposta rea-

e incompetente. No fundo, eu estaria propondo

volta   00 passado. Um desses ide610gos de facc;oo

olftica, escrevendo sob pseudonimo numa publicac;ooQrtidaria, que estava retornando da Europa, de volta do

"exilio", e que se c1assificava a si mesmo "ministr~. da inicial, eles foram capazes de estabelecer sistemas de

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, q

agricultura" do seu partido politico, chegou a clas:"f,car " I' .. "0 la eleessa compreensao como popu Ismo COlplra. u se ,

me comparava aos populistas russos d.o seculo ~IX, os

cham ados   narodnik,   combatidos por Lenin desde a luven-

tude para sugerir que eu tinha uma compreensao nao-le-

nini:fa e conservadora da realidade do campo e do

campones. Justo eu! Esse era   0unico parametro de qu.eele dispunha para compreender a realidade de nosso pOlS

que, no fundo, nao conhecia.

Trac;o nofavel dessa especie de covardia ideologica foi

que varias dessas figuras escreveram artigos carregad~s

de insinuac;;oes de incompetencia e de depreciac;;ao graful-

ta de minhas interpretac;oes, sem fazer qualquer cifac;;ao

expressa dos trabalhos em que estavam contidas,. q~e me

assegurasse honestamente a possibilidade e   0dlrelto de

contestac;;ao.

o   que eu estava dizendo era olgo completomente

diferente do que eles estovam lendo, porque eles liam com

olhos gerados na leitura de pifios manuais de marxismo

vulgar, que estiveram em moda numa certa ep~ca e que

ainda correm por ai, agora sobretudo nos mOVlmentos e

organizac;;oes populares. 0 que eu estava sugerindo e que

 ja existia uma unidade basica de coopera.<sao no can: po,

unica tradic;;ao que nos temos, nesse senti do, na agrlcul-tura. Nos nao femos a comunidade camponesa tradicio-

nal nos nao temos nenhuma instituic;;ao camponesa como,   .houve na Europa, em varios paises. E essa que resta, e a

unica que nao foi destruida. Entao ela pode ser preservada

e incorporada positivamente num processo de transforma-

c;;aosocial e, inclusive, de transformac;;ao economica.

A experiencia dos sem-terra que salram da Encruzilha-

da Natalino, no RioGrande do SuI, depois de conseguirem

a terra, foi uma experiencia historica. Eu nao acompanheio caso mais tarde, em seus desdobramentos. Mas, na fase

cooperac;;ao sem interferir no processo imediato de produ-

c;;ao.A cooperac;;ao se desenrolava em outros pianos, como

acontece em muitos assentamentos. Nao e precise fazer 

a tolice de estabelecer    0trabalho coletivo em serie para

assegurar que os camponeses estao entrando no mundo

moderno (e socialista!!). Eles podem estar entrando, isso

sim, no que de pior existe na produc;;ao coletiva que e aalienac;ao completa, mental e flsica.

Certos tipos de cultivo, ainda por cima, sac incompa-

tlveis com essas modalidades de coletivizac;;ao. E a pequena

agricultura familiar e ao mesmo tempo altamente eficien-

te. Mesmo num sitio tradicional do Alto Paraiba, aqui em

Sao Paulo, um dos 6ltimos redutos da complexa cultura

caipira, as familias aproveitam absolutamente tudo, nao

so as coisas, mas tambem   0tempo. Estamos em face de

um sistema de maximizac;;ao da eficiencia. So que nao esta posta em termos da logica do moderno, do mundo da

 produc;;ao moderna. 0 fato de que a produc;;ao seja propor-

cionalmente alta, devido ao bom aproveitamento do tempo

e tambem do espac;;o, e de que os resultados financeiros

sejam minguados, nao deveria confundir os tecnicos inteli-

gentes, capazes de perceber que esse desencontro decorre

de   fatores   que estoo fora   do mundo caipira   e   do mundo   da

 pequena agricultura familiar,   e nao dentro. Essa confusao

resulta de preconceito e ignorcmcia e esta muito longe de ter 

uma base cientlfica respeitavel.

Penso, po is, que e posslvel incorporar essa competen-

cia no mundo modemo.   E   0que propoe, no meu modo

de ver,   0Movimento dos Sem Terra e tenta realizar nos

assentamentos: a inserc;;ao desses trabalhadores numa

16gica economica mais ampla, racional, apoiada na ideia

de retornos economicos modern os e reciprocidades sociais

 basicamente tradicionais, na ideia de formas amplas de

cooperac;;ao nao so economica, mas tambem de solidarie-

dade comunitaria revigorada. Com base, enfim, na socia-

bilidade gerada na partilha daquilo que nao e propriaLefeb~vr~e a que questiona a redu~ao da realidade ao

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 bilidade gerada na partilha daquilo que nao e propria-

mente economico, pois e neste ambito que as pessoas tem

mais dificuldade para aceitar propostas de coopera~ao.

Essa  e  uma caraeterfstica disseminada das popula~6es

camponesas. Visitei, na Italia, areas camponesas antigas,

onde   0 Partido Comunista sempre teve uma presen~a

muito forte, como a Emilia Romagna. Ali os campones

es

sac economicamente muito modernos. Continuam man-

tendo a base familiar, que e tambem   0maximo de coope-

ra~ao possivel no caso deles, desdobrada por varias

gera~6es que vivem e trabalham juntas, no minimo avoS,

filhos e netos. Essa combina~ao vem de suas tradi~6es e

de sua visao politica.

 JST _ Para voce deve ser interessante, porque   numa

epoca pichado por defender   uma questao   e, hoje, ter-se

encontrado   que   a alternativa era essa.   Porque 0 proprio Movimento, depois   de muito  tempo   nao discutindo a

questao   do individual,   passou a discutir isso, a incorpo-

rar isso  com mais   seriedade. Eu acho que   passou um

 pouco   a   febre... lsso   em termos de   utopia, porque   0

movimento acaba   tendo um reflexo local, solutjoes   10-

cais. Morreu a chance,  0capitalismo esta   cada   vez maisselvagem,   as pessoas perderam   amistica,   i5S0 e visivelhoie.   Comovoce enxerga esse  mundo contempor6neo e

a   aparente falta   de   alternativa   de mudant;a,   alem   das

alternativas locais?

Jose de   Souza Marlins -   Penso essa questao em

grande parte com a cabe~a de Henri Lefebvre, um autor 

com cuja obra trabalhei muito ate aqui. Durante anoS

mantive, na Universidade, um seminario semanal sobre a

obra dele. Ele e   0grande marxista contemporaneo. Eu

cheguei a trocar umas ideias com ele por correspondencia.

Morreu faz poucos anos. Ele trouxe   0marxismo para a

segunda metade do seculo   xx .   E com isso atualizou a

 pro posta de reden~ao do homem das necessidades que   0

transformam em objeto, em vitima, proposta propria domarxismo de Marx. Uma tese importante na obra de

q q

eco.n~m.lco o~ ao politico, e a de que todas as rela<;6es

SOCIalS,mcluslve as rela~6es cotidianas, tendem a se trans-

formar em poder. 0 poder tende a aparecer em todos os

lugares, em todas as rela<;6es, na rela<;ao marido-mulher 

na rela~ao pai-filho, na rela<;ao professor-aluno em casa',   ,

na rua.

. Mas ~efebvre ensina ao mesmo tempo que nem tudo

e capturavel pelo poder. Por isso, para ele, a concep~ao

da revoluc;ao social nao se confunde com golpe de Estado

mas ~ a revolu<;ao no modo de viver, no modo de pensa:'

naquJlo que pode nos tornar mais humanos, nos humani-

zar, no sentido de libertar-nos de carencias e miserias. Para

ele, a r~volu~ao esta no que chama de encontro e junc;ao

dos reslduos, daquelas rela~6~s e situac;6es, que nao

foram ca~turadas pelo poder. E no residual que esta a

fonte ~a hberdade, do socialismo, de uma outra vida, deuma vIda nova. Como   0imaginerio e manipulevel ele

t~mbe.m di~ que e preciso opor a imagina~ao ao ima~ina-

~IO.   A.Imagmac;ao e residual em relac;ao ao imaginerio. A

~ma~II~.ac;~oe   0 insubmisso de nossa cabe~a, de nossa

mte"gencla, de nossa sensibilidade para a vida de nossa

consci~ncia, de nossa compreensao da vida e do mundo,

de mUltas de nossas relac;6es socia is. .

. Ente~do que a utopia hoje se p6e nesse plano. A utopia

e   0 posslve!. Para Lefebvre,   0 posslvel e   0eixo da luta e daconsciencia de quem luta. A utopia e a proposta de uma

tra~sforma.~ao do mundo alicer~ada no posslve!. A utopia

est a no reSIdual, esta naquilo que nao pode ser capturado

 pelo poder e pelos que tem poder. He coisas que neo

 p.~de~ ser capturadas, na nossa vontade, na nossa cons-

clen~I~, no nosso modo de viver, naquilo que nos achamos

q.ue e Justo, no nosso trabalho. He um irredutivel em nossa

vida.

Essa compreenseo da realidade historica do homemganha sentido em sua tese de que neo he reprodu<;eo de

rela<;oes SOCialS sem uma certa produ<;oo de rel04;;oes

i i O j d d li d

estilo que herdaram de meus avos, e que eu

b Al f t d U d l bi t d

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sociais. Ou seja, quando ocorre a reprodu<;oo ampliada

do capital, ocorre tambem a reprodu<;ao ampliada das

contradi<;oes socia is. A tend€mcia   a   aparente perpetua<;oo

do capitalismo, de sua explora<;ao e de suas rela<;oes de

 poder nao se repete sem reproduzir consigo aquilo que a

nega e que propoe, no proprio boio da explora<;~o ~ da

opressao, a liberta<;ao.   0 poder absoluto. do capltahsmonao existe, e u ma farsa e u ma fraude. E um sonho de

capitalistas.

JST -   Posso voltar   um   pouquinho atras? Voce tem origem

numa familia de camponeses ...

 Jose   de Souza Martins -   Sao camponeses do sui da

Espanha que vieram para   0Brasil no come<;o do seKulo na

grande onda de substitui<;ao dos escravos nas fazendas de

cafe, que come<;ara j6 antes da aboli<;ao da escravatura.

Vieram como imigrantes subsidiados, pobres, sem dinhei-

roo Da Hospedaria de lmigrantes, em Sao Paulo, foram

mandados para a esta<;ao de Bragan<;a Paulista e 16 reco-

Ihidos por um fazendeiro que precisava de trabalhadores.

Minha mae, que tinha tres meses nessa epoca, foi a primeira

que saiu da ro<;a, quando se tornou mocinha, para casar,

 pois meu pai era aqui de Sao Caetano, do suburbio

industrial. Meu pai era empregado de f6brica. Ele morreu

logo. Quando ela ficou viuva, foi para a f6brica, unico

meio de sustentar os dois filhos pequenos. Quando fizonze anos, tambem fui para a f6brica e   0mesmo aconte-

ceu com meu irmao. Trabalho h6   46   anos, 38 dos quais

com efetiva contribui<;ao a orgoos de previdencia social.

De m inha vida nao me lembro de nada que nao seja

trabalho.

Uma parte grande da familia ficou no campo. Sempre

tive um vinculo forte com meus avos e tios que ficaram na

ro<;a, morreram na ro<;a. Muitos de meus primos ainda

estao na ro<;a, como pequenos agricultores. Quase todosenvolvidos em esquemas criativos de coopera<;ao familiar,

 bem. Alguns foram estudar. Um deles, bisneto de

avOS, foi ate mesmo para os Estados Unidos durante

110,  com uma bolsa da Cooperativa de Cotia, para se

iarizar com tecnicas modernissimas de agricultura de

fa. Ao voltar, criou uma cooperativa de trabalho em

domlnio com irmaos, primos e cunhados na minuscula

ela de terra da avo, minha prima-irma. Sao culturas

issimas de tomate e pimentao, verdadeiras f6bricas

rfcolas com base numa tecnologia simples, moderna e,

mesmo tempo, sofisticada. Todos mantem suas familias

m bom padrao de vida a partir desse modo de produzir 

 pies e familistico.

Quando pude estudar, decidi que seria professor pri-

'!"hario na ro<;a, 16 no Arri6, na Cachoeirinha, na Rosa

Mendes, na Fazenda Velha, bairros rurais em que viviam

~vivem meus parentes, na regiao da Bragantina, em Sao

Paulo. Ou entao, 16 no fundao da zona rural de Guaiana-

ses, distri to d e Sao Paulo, n o q ue fora an tigamente a

Fazenda Santa Etelvina, on de morei e frequentei a escola

 prim6ria. Era esse meu projeto de vida, meu sonho. Quan-

do fiz   0Curso Normal, ainda no tempo da escola publica

de qualidade exemplar, Ii, por exemplo,   0homem,   de

Ralph Linton, um cJassico da antropologia, todinho. Fazia

 parte do curso, era   0 manual do curso. AI fui "mordido"

 pela sociologia, que era disciplina do curriculo. Resolvi,

entao, fazer    0vestibular para Ciencias Sociais na Univer-sidade de Sao Paulo, sem muita esperan<;a de obter apro-

va<;ao no duro exame oral e escrito perante varias bancas

.constituidas de algumas das melhores cabe<;as da nossa

intelectualidade, e passei. Fui aluno do professor Florestan

Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio

Ianni, de Ruth Cardoso, de Paula Beiguelman, de Marialice

Mencarini Foracchi, de Oliveiros da Silva Ferreira, de

Gioconda Mussolini, pioneira no estudo de popula<;oes

rurais no Brasil, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, deEunice Ribeiro Durhan, de Fernando Antonio Novaes, de

Coelho. Acabei sendo convidado

auxiliar de pesquisa em projetos

7/23/2019 José de Souza Martins. a Questão Agrária Brasileira.

http://slidepdf.com/reader/full/jose-de-souza-martins-a-questao-agraria-brasileira 34/34

auxiliar de pesquisa em projetos

cientistas socia is. Eles desenvolve-

e teorias para explicar os

de nosso pafs num pafs moder-

Esquemas que norteiam as nossas

ate hoje. Nesse grupo havia muita preo-

esse nosso Brasil desencontrado, esse Brasil

de maneira desigual, esse Brasil fundamen-

talmente injusto. Esse era   0Brasil de gente como eu, que

vinha da ro~a e da fObrica, gente como a minha familia

que ainda estava na ro~a e de minha mae, que ainda

estava na fObrica.