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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Tatiana Pontes de Oliveira

Caminhar, fotografar, fabular

Entre a cidade e a fotografia

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo 2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Tatiana Pontes de Oliveira

Caminhar, fotografar, fabular

Entre a cidade e a fotografia

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara.

São Paulo 2017

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

À Professora Lucrécia D´Alessio Ferrara pela excelente e dedicada

orientação, pelas inspiradoras aulas e conversas que marcaram a trajetória

dessa pesquisa e meu olhar como pesquisadora.

Ao Professor Norval Baitello Jr. pelas aulas estimulantes e pelas

observações na qualificação da tese. À Professora Marlivan Moraes de Alencar

pela cuidadosa leitura da tese e apontamentos na banca de qualificação e por

todos os outros momentos de diálogo.

Aos fotógrafos Daniel Ducci, Felipe Russo, Fernando Cohen e Weslei

Barba, pela generosidade e conversas sobre seus processos de fotografar a

cidade.

Aos companheiros do grupo de pesquisa ESPACC, pelos ricos diálogos e

debates, pela pesquisa coletiva e colaborativa que tanto influenciou essa tese.

Aos amigos Camila Garcia, Ed Figueiredo, Fernanda Romero, Maína

Fantini, Paulo Rossi, por estarem sempre perto para diálogos, leituras e críticas

que contribuíram para este trabalho.

Aos meus pais, Plinio e Rosaura, pelo amor e apoio de sempre e em todos

os sentidos. Ao Lourival e Ivonete pelo apoio e carinho.

Aos queridos Nana, João e Sandro pela sempre ótima companhia e pelos

melhores momentos de descanso nos intervalos da pesquisa.

Ao Daniel, meu companheiro para a vida, por todo amor e por tudo que

estamos construindo juntos.

E à CAPES, pela concessão de bolsa de estudos que permitiu a

realização desta pesquisa.

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Resumo

Esta pesquisa trata das relações entre a fotografia e a cidade, tendo como objeto de estudo a

fotografia contemporânea produzida pelo caminhar na cidade. O ponto de partida da pesquisa é a

pergunta “Como se dá a interação entre a cidade e a fotografia, tendo em vista o caminhar como

procedimento usado pelos fotógrafos como estratégia para se colocarem em comunicação com a

cidade?”. As principais hipóteses levantadas por essa questão se constituem do seguinte modo: a)

Por ter simultaneamente um caráter documental e ficcional, a fotografia é meio comunicativo

ambivalente; b) A cidade também se caracteriza pela ambivalência por ser um ambiente onde se

processam vivências interativas e hábitos regidos por programas de ordem mediativa; c) A

interação entre as ambivalências da linguagem fotográfica e as da cidade potencializa a criação

de imagens que tornam visíveis os processos da cidade e o imaginário do fotógrafo afetado por

ela. A fim de verificar as hipóteses da pesquisa, realizou-se ampla revisão bibliográfica para

fundamentar a análise empírica das relações entre cidade, imagem e comunicação, além da

natureza da linguagem fotográfica e sua ambivalência caracterizada por traços documentais e

ficcionais. A fundamentação teórica acompanha o objetivo de cada capítulo, de modo que, no

capítulo 01, a Imagem é estudada a partir de uma rede que conecta três autores: Warburg,

Benjamin e Flusser. O estudo do conceito de imagem tem por objetivo fundamentar os capítulos

seguintes, nos quais é tratada a relação entre a fotografia e a cidade. No capítulo 02 a

fundamentação teórica relaciona conceitos para pensar a cidade e seus processos comunicativos

mediativos e interativos, e suas dimensões de tecnosfera e psicosfera, como proposto,

respectivamente, por Ferrara e Santos. Há também uma investigação sobre a ambivalência e as

especificidades da linguagem fotográfica considerando as relações entre as obras de Barthes,

Dubois, Kossoy, Soulages e Fontcuberta. Por fim, o capítulo 03 analisa o procedimento de

caminhar, usado pelos fotógrafos como estratégia poética para se colocar em contato com a cidade

e apreender suas manifestações. Tendo como objeto de estudo os trabalhos fotográficos de Daniel

Ducci, Felipe Russo, Fernando Cohen e Weslei Barba, o foco de análise se colocou sobre o modo

como os fotógrafos fabulam sobre a cidade criando novas possibilidades de entendimento das

imposições e espontaneidades propostas por ela, considerando as experiências de fotografar e

fabular como gestos de resistência.

Palavras-chave: imagem; fotografia; cidade; linguagem fotográfica; fabulação.

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Abstract

This research addresses the relationship between photography and the city, having as its object of

study the contemporary photography produced by walking in the city. The starting point of the

research is the question "How does the interaction between the city and the photography happen,

considering walking as the procedure used by photographers as a strategy to establish

communication with the city?". The main assumptions raised by this question are as follows: a)

for having both documentary and fictional features, the photography is an ambivalent means of

communication; b) The city is also characterized by ambivalence for being an environment in

which interactive experiences and habits are governed by mediative order programs; c) The

interaction between the ambivalences of the photographic language and the city enhances the

creation of images that make visible the processes of the city and the photographer's imaginary

affected by it. In order to verify the hypotheses present in this research, an extensive literature

review was carried out to support the empirical analysis of the connections between the city,

image and communication, as well as the nature of the photographic language and its ambivalence

characterized by documentary and fictional traits. The theoretical foundation follows the goal in

each chapter, therefore, in Chapter 01, the image is studied out of a network that connects three

authors: Warburg, Benjamin and Flusser. The study of the image concept aims to support the

following chapters, in which the relationship between photography and the city is addressed. In

Chapter 02, the theoretical foundation links concepts for thinking on the city and its

communicative mediative and interactive processes, as well as its dimensions of technosphere

and psychosphere, as proposed respectively, by Ferrara and Santos. There is also an investigation

on the ambivalence and the specificities of the photographic language taking into account the

connections among works by Barthes, Dubois, Kossoy, Soulages and Fontcuberta. Finally,

Chapter 03 analyzes the procedure of walking, used by photographers as a poetic strategy to put

themselves in touch with the city and seize its manifestations. Having as object of study the

photographic works by Daniel Ducci, Felipe Russo, Fernando Cohen and Wesley Barba, the focus

of analysis is on how photographers "fable" about the city by creating new possibilities for

understanding its impositions and spontaneity proposals, considering the experience of

photographing and “fabling” as gestures of resistance.

Key words: image; photography; city; photographic language; “fabling”.

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Caminhar, fotografar, fabular

Entre a cidade e a fotografia

Introdução -------------------------------------------------------------------------------------- 09

Capítulo 01

Pensar por imagens: entre a imobilidade das superfícies e a mobilidade

do olhar ----------------------------------------------------------------------------------------- 13

A Arqueologia como estratégia metodológica ----------------------------------------- 14

A pós-vida da imagem ----------------------------------------------------------------------- 23

Atlas Mnemosyne como pensamento visual ------------------------------------------- 28

Nachleben, Pathosformel e Fotografia -------------------------------------------------- 33

A imagem como lampejo -------------------------------------------------------------------- 40

Imagem dialética e Atlas Mnemosyne --------------------------------------------------- 45

Imagem dialética e Fotografia ------------------------------------------------------------- 50

A imagem como superfície ----------------------------------------------------------------- 57

As superfícies do Atlas Mnemosyne ----------------------------------------------------- 62

As superfícies das fotografias ------------------------------------------------------------- 65

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Capítulo 02

A cidade e a fotografia: ambivalências como potência comunicativa ----- 73

Imagem, Visualidade e Visibilidade ------------------------------------------------------- 74

Ambivalências ---------------------------------------------------------------------------------- 78

Cidade: entre o programado e o vivido --------------------------------------------------- 81

Fotografia: a fabulação entre o documento e a ficção ------------------------------- 98

Capítulo 03

Interações entre a cidade e a fotografia: caminhar, fotografar, fabular -- 117

Articulações entre a Cidade e a Fotografia --------------------------------------------- 120

O caminhar, o fotografar e a construção de lugares --------------------------------- 130

O fotografar como gesto de resistência ------------------------------------------------- 161

Montagem e desmontagem da cidade ------------------------------------------------- 178

Para não concluir: Confabular -------------------------------------------------------- 184

Referências ---------------------------------------------------------------------------------- 194

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Introdução

Esta pesquisa tem como ponto de partida um questionamento acerca das

relações entre a produção fotográfica contemporânea e a cidade. O interesse

por esse objeto de estudo é impulsionado por dois movimentos entrelaçados: a

pesquisa teórica e conceitual sobre o campo da imagem e da fotografia e minha

pesquisa e produção como fotógrafa. Essas duas dimensões do meu

envolvimento com a fotografia não se separam, mas se afetam e se alimentam

mutuamente.

Como fotógrafa e pesquisadora meu olhar se volta para a cidade com um

interesse não só sobre sua materialidade visível, mas também sobre suas

relações com o acaso, com as vivências e os rastros de quem a habita. Desse

contexto surge a pergunta que norteou o processo da pesquisa: “Como se dá a

interação entre a cidade e a fotografia, tendo em vista o caminhar como

procedimento usado pelos fotógrafos como estratégia para se colocar em

comunicação com a cidade?”.

As principais hipóteses levantadas por essa questão são as seguintes: a)

Por ter simultaneamente um caráter documental e ficcional, a fotografia é meio

comunicativo ambivalente; b) A cidade também se caracteriza pela ambivalência

por ser um ambiente onde se processam vivências interativas e hábitos regidos

por programas de ordem mediativa; c) A interação entre as ambivalências da

linguagem fotográfica e as da cidade potencializa a criação de imagens que

tornam visíveis os processos da cidade e o imaginário do fotógrafo afetado por

ela; d) As fotografias produzidas pelo procedimento de caminhar constituem

olhares interativos, ou seja, decorrem do mútuo contato entre cidade e fotografia

e registram os rastros de ambas naquele processo.

Para verificar as hipóteses de trabalho esta pesquisa desenvolveu uma

ampla revisão bibliográfica e com a análise de diferentes trabalhos fotográficos

desenvolvidos por quatro fotógrafos que vivem e produzem em São Paulo:

Daniel Ducci, Felipe Russo, Fernando Cohen e Weslei Barba. Todos os trabalhos

têm a cidade como objeto de investigação e o caminhar como procedimento

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poético, mas se desenvolvem de modos muito distintos, registrando e inventando

cidades próprias a partir da cidade vista, vivida e fotografada.

Desde o início da pesquisa ficou claro que, pela natureza indeterminada

e movente dos objetos estudados – a cidade, a fotografia contemporânea e a

própria comunicação – seria necessário uma estratégia metodológica e

epistemológica que estivesse em diálogo com essas indeterminações, assim, a

pesquisa se fez por um percurso arqueológico, tendo como fundamentação

teórica as propostas de Foucault e Agamben, que entendem a arqueologia não

como uma busca da origem do fenômeno, mas como um modo de investigar as

assinaturas e rastros dos processos dos objetos, de modo a desmontá-lo e

analisá-lo em sua emergência presente num diálogo com sua trajetória anterior,

a partir da montagem de uma rede de relações.

O desenvolvimento da pesquisa toma forma e se materializa em três

diferentes capítulos. O primeiro, nomeado como “Pensar por imagens: entre a

imobilidade das superfícies e a mobilidade do olhar”, tem o objetivo de investigar

o conceito de Imagem a partir da construção de uma rede que coloca em relação

o pensamento de três autores: Warburg (imagem como fórmula de pathos),

Benjamin (imagem dialética) e Flusser (imagem como superfície). A proposta é

perceber as aproximações e estabelecer relações acionadas pelas assinaturas

apreendidas em cada um dos conceitos. As formulações sobre a imagem dão

subsídios conceituais para se pensar a imagem fotográfica e suas relações com

a cidade nos capítulos seguintes.

O capítulo 02, “A cidade e a fotografia: ambivalências como potência

comunicativa”, trata as especificidades da cidade e da fotografia a partir do

conceito de ambivalência como definido por Bauman, para refletir sobre como

essas características atuam nos modos de constituição como linguagem e nos

processos comunicativos dos dois objetos. As ambivalências da cidade são

analisadas num diálogo com os conceitos de mediação e interação e de

tecnosfera e psicosfera como propostos, respectivamente, por Lucrécia Ferrara

e Milton Santos.

Para investigar a fotografia e sua potencialidade para documentar e criar

ficções, as principais referências teóricas são as obras de Barthes, Dubois,

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Kossoy, Soulages e Fontcuberta, que analisam o ato fotográfico, a fotografia

como meio comunicativo, o papel do fotógrafo como agente que transfigura o

mundo e a relação da fotografia com o real. Assim, a cidade é vista como um

laboratório para vivências e processos comunicativos tanto de caráter mediativo

como interativo. A fotografia é entendida como linguagem ambivalente sempre

atravessada por duas possibilidades que se sobrepõem, a de documentar

enquanto também cria ficções.

Ainda no segundo capítulo, o gesto de fotografar é investigado por suas

relações com a ação de fabular. A fabulação é pensada como um modo de narrar

que não se prende à verossimilhança, nem a um eixo narrativo linear, mas como

um modo de comunicar da fotografia que ao traduzir a cidade, ativa uma série

de tensionamentos, onde se misturam documento e ficção, visível e invisível.

O terceiro capítulo, nomeado “Interações entre a cidade e a fotografia:

caminhar, fotografar, fabular”, aborda a fotografia contemporânea e suas

estratégias para percepção da cidade a partir do procedimento de fotografar ao

caminhar. Os trabalhos fotográficos analisados atuam como fabulações e fazem

surgir imagens escondidas nas frestas do visível, imagens que pensam a cidade

pela sua pluralidade e indeterminação. O caminhar presente na produção

fotográfica que se faz pelo contato com a cidade é ainda uma estratégia poética

da fotografia contemporânea que atualiza a flanerie do século XIX e a deriva

situacionista.

O fabular é gesto que opera numa rede entre imagem, visualidade e

visibilidade, fazendo com que a fotografia materialize uma inscrição visível dos

processos da cidade e crie conhecimento a partir deles. Mais do que fabular, os

fotógrafos estudados confabulam com a cidade, num gesto de resistência contra

o afastamento do ambiente da cidade e em contraposição às imagens midiáticas

que apresentam uma cidade padronizada, pronta a ser consumida.

Como afirmado no início, essa pesquisa é também influenciada pela

minha produção como fotógrafa, desse modo, a presença das imagens da série

Asfalto que abrem alguns capítulos da tese pontuam esse envolvimento duplo

com a fotografia, que tem tanto uma vertente epistemológica como também a de

um fazer fotográfico. Essas imagens também se constroem por um processo

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arqueológico de escavar a cidade e explorar a fronteira ambivalente da

fotografia: são documentos da existência dos objetos encontrados presos à

superfície do asfalto e são também uma ficção sobre a cidade, um modo de

fabular sobre os rastros encontrados, que são carregados de marcas das

vivências e movimentos da cidade. Nessa fabulação se configura uma coleção

que emerge do chão da cidade, que se constitui como uma espécie de repositório

de materiais rejeitados, perdidos e esquecidos, quase invisíveis, mas

impregnados de histórias. A cidade que se mostra como um organismo vivo,

constituído por inúmeras camadas faz perguntar: Qual a história de cada objeto

encontrado? Como ele foi parar no asfalto? Responder imaginariamente a essas

perguntas só faz buscar por mais objetos, num processo contínuo de vasculhar

o asfalto e inventariar vestígios sobre quem transita pelas ruas.

Da mesma forma, a investigação dos processos de criação e das imagens

produzidas por Russo, Ducci, Cohen e Barba impulsiona novas perguntas sobre

o modo como a cidade e a fotografia se afetam, sobre a trama que se faz entre

caminhar, fotografar e fabular.

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CAPÍTULO 01

Pensar por imagens: entre a imobilidade das superfícies e a mobilidade do

olhar.

A Arqueologia como estratégia metodológica

A pós-vida da imagem

Atlas Mnemosyne como pensamento visual

Nachleben, Pathosformel e Fotografia

A imagem como lampejo

Imagem dialética e Atlas Mnemosyne

Imagem dialética e Fotografia

A imagem como superfície

As superfícies do Atlas Mnemosyne

As superfícies das fotografias

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A Arqueologia como estratégia metodológica

Para entender os meandros da imagem, este trabalho propõe uma

investigação arqueológica ativada por rastros que impulsionam inferências com

base no pensamento de três autores que se dedicaram ao estudo da imagem:

Aby Warburg, Walter Benjamin e Vilém Flusser. Antes, porém, é necessário

tratar do conceito de arqueologia.

Em As palavras e as coisas e A arqueologia do saber, Michel Foucault

desenvolveu uma pesquisa arqueológica, já iniciada em obras anteriores, e

caracterizada por uma análise não do conhecimento científico apoiado em

paradigmas estabelecidos, mas do saber. Isso significa que a arqueologia, que

Foucault não define como uma teoria, mas como um método, é operacionalizada

pelo autor sempre numa relação com a epistemologia, mas com uma autonomia

que lhe é própria:

A arqueologia, reivindicando sua independência em relação a qualquer ciência, pretende ser uma crítica da própria ideia de racionalidade; [...] a história arqueológica, que estabelece inter-relações conceituais no nível do saber, nem privilegia a questão normativa da verdade, nem estabelece uma ordem temporal de recorrências a partir da racionalidade científica atual. Abandonando a questão da cientificidade – que define o projeto epistemológico – a arqueologia realiza uma história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma história do progresso da razão (MACHADO, 2009: 9).

A arqueologia se ocupa da análise dos saberes em sua existência no

presente, não a partir do seu passado ou num apontamento de seu futuro

possível (MACHADO, 2009: 139). A história arqueológica não é evolutiva, mas

admite e absorve as descontinuidades dos acontecimentos para perceber como

fenômenos de diferentes períodos podem conectar-se.

A arqueologia pensada por Foucault tem como proposta a análise dos

discursos1 a partir de sua própria materialidade:

1 Foucault destaca que suas definições não correspondem ao uso corrente. Em A Arqueologia

do saber, discurso é um conjunto de enunciados que se apoia num mesmo sistema de formação; o enunciado, por sua vez, não se confunde com uma frase ou proposição, é a condição de existência de diferentes conjuntos significantes, e deve ser entendido não como um acontecimento passageiro, mas como materialidade repetível (FOUCAULT, 2012: 131- 133).

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em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico: poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento (FOUCAULT, 2012: 8, 9).

O discurso não é visto como documento ou representação, "como signo

de outra coisa, como elemento que deveria ser transparente" (FOUCAULT,

2012: 169, 170), mas é investigado em seu "volume próprio, na qualidade de

monumento" (Idem), ou seja, como algo a ser desmontado na sua interioridade

e trabalhado num campo de relações estabelecidas pelo pesquisador. Desse

modo, o discurso ganha novos sentidos dada a perspectiva pela qual é

explorado.

Ao explicitar que a pesquisa arqueológica não busca a origem dos

discursos, Foucault evidencia que não se trata de um método interpretativo de

viés fenomenológico:

Não procuro encontrar, por trás do discurso, alguma coisa que seria o poder e sua fonte, tal como em uma descrição de tipo fenomenológico, ou como em qualquer outro método interpretativo. Eu parto do discurso tal qual ele é! Em uma descrição fenomenológica, se busca deduzir do discurso alguma coisa que concerne ao sujeito falante; tenta-se encontrar, a partir do discurso, quais são as intencionalidades do sujeito falante – um pensamento em via de se fazer. O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico, em que o poder está implicado e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder (FOUCAULT, 2010: 253).

Os discursos estão implicados em relações de poder justamente porque

os documentos não são neutros ou transparentes, mas, ao serem vistos como

monumentos, carregam uma opacidade que deve ser atravessada para que se

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encontre "a profundidade do essencial" (FOUCAULT, 2012: 170). A relação de

poder também se estabelece pelo destaque de determinado documento, que

apresenta certo discurso e não outro e, evidentemente, pela escolha e relações

que o pesquisador faz ao analisar e conectar diferentes discursos.

Em aproximação ao pensamento de Foucault, Giorgio Agamben (2010)

também afirma que a arqueologia está relacionada à análise crítica do fenômeno

constatado, e não à busca de sua origem, como se vê em suas observações:

Podemos llamar provisoriamente ‘arqueología’ a aquella práctica que, en toda indagación histórica, trata no con el origen sino con la emergencia del fenómeno y debe, por eso, enfrentarse de nuevo con las fuentes y con la tradición (2010: 121).

O processo arqueológico também indica implicações no modo de pensar

e fazer pesquisa:

La emergencia es aquí, pues, a la vez objetiva y subjetiva y se sitúa, más bien, en un umbral de indecidibilidad entre el objeto y el sujeto. Ésta nunca es el emerger del hecho sin ser, a la vez, el emerger del propio sujeto cognoscente: la operación sobre el origen es, al mismo tiempo, una operación sobre el sujeto (2010: 121).

Desse modo, propor a pesquisa como um processo arqueológico significa

o entendimento da indeterminação do objeto e de que, para apreendê-lo, é

necessário mais que sua descrição fenomenológica, mas uma operação

cognitiva que não pode dispensar um olhar atento para sua ocorrência no

presente em diálogo com sua trajetória no passado.

Para isso, Agamben afirma que é necessário investigar as assinaturas dos

objetos e fenômenos pesquisados. O autor faz um longo percurso arqueológico

para analisar o pensamento de diversos autores que definiram, em momentos

distintos, o conceito de assinatura. Por meio de uma rede que coloca em diálogo

Paracelso, Michel Foucault, Aby Warburg, Enzo Melandri, Walter Benjamin,

entre outros, Agamben define as assinaturas: “la signatura es aquello que,

habitando en las cosas, hace que los signos mudos de la creación hablen y se

vuelvan efectivos” (2010: 57), e acrescenta: “la signatura es el lugar donde el

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gesto de leer y el gesto de escribir invierten su relación y entran en una zona de

indecidibilidad. La lectura se hace aquí escritura y la escritura se resuelve

íntegramente en lectura” (2010: 74).

Agamben esclarece ainda que a assinatura não se confunde com o signo,

mas é aquilo que faz com que o signo seja cognoscível (2010: 56). Assim, é

possível perceber que as assinaturas são rastros, elementos invisíveis

impregnados nos objetos do mundo. Trabalhar com as assinaturas significa pôr

em relação essas camadas não visíveis que se colocam sobre as coisas, para

que seja possível entender seu modo de ser. Esse processo acontece pela

construção de sentido que é sempre múltipla, nunca dada previamente, mas

produzida pelas possíveis relações traçadas entre as assinaturas.

Assim como Foucault, Agamben também aponta que a operação

arqueológica implica uma relação de poder que envolve o pesquisador:

El historiador no elige de modo casual o arbitrario sus documentos de la masa indeterminada y inerte del archivo: él sigue el hilo sutil y inaparente de las signaturas, que exigen aquí y ahora su lectura. Y de la capacidad de leer estas signaturas, que son por naturaleza efímeras, depende justamente, según Benjamin, el rango del investigador (2010: 98).

Em outras palavras, o pesquisador tem tanto a possibilidade de escolha

sobre os caminhos de sua investigação, como, ao mesmo tempo, é impulsionado

a tomar determinado caminho por força do objeto, pela potência das assinaturas

que se impõem. Perceber o que pulsa nas assinaturas é o que está em jogo,

entre o visível e o invisível, entre o dito e o não dito. Para apreender as possíveis

inferências suscitadas pelas assinaturas, é necessário estar aberto e atento a

esses processos que constituem a pesquisa arqueológica: "Sólo un pensamiento

que no esconde su propio no-dicho, sino que de manera incesante lo retoma y

lo desarrolla, puede pretender eventualmente ser original" (AGAMBEN, 2010:

10).

Neste sentido, a arqueologia se faz, nesta pesquisa, numa via dupla, que

tanto busca entender como o conceito de imagem é pensado por diferentes

autores como, num processo de meta-arqueologia, procura compreender a

própria estratégia metodológica que constrói a pesquisa. Assim, antes de tratar

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da imagem propriamente, ainda serão abordados outros aspectos e dimensões

do pensamento arqueológico.

Como já foi mencionado, Foucault adverte que os acontecimentos que

formam os discursos não se dão de forma evolutiva, mas ocorrem de modo

imprevisível, com base em uma lógica própria:

cada formação discursiva não passa, sucessivamente, pelos diferentes limiares como pelos estágios naturais de uma maturação biológica em que a única variável seria o tempo de latência ou a duração dos intervalos. Trata-se, de fato, de acontecimentos cuja dispersão não é evolutiva: sua ordem singular é um dos caracteres de cada formação discursiva (FOUCAULT, 2012: 225).

Assim, a arqueologia prioriza a investigação que leva em conta as

descontinuidades, de maneira que a história é percebida em sua complexidade,

com suas rupturas e latências, e não numa forçada linearização sequencial.

Nesse sentido, Foucault faz uma crítica ao pensamento instituído pela história

como disciplina, que, ao invés de se ater às perturbações da continuidade do

tempo causadas pelos diferentes acontecimentos, parece deliberadamente

apagá-las em favor da manutenção de estruturas falsamente fixas (FOUCAULT,

2012: 6, 7).

Em Arqueologia da mídia, Siegfried Zielinski trabalha numa perspectiva

próxima à de Foucault no que diz respeito ao modo de entender as

descontinuidades temporais. Como afirma Norval Baitello Junior na

apresentação do livro, Zielinski "foge ao lugar comum de uma concepção linear

que enxerga no contemporâneo o ápice da complexidade, e no arcaico o vale

das simploriedades" (In: ZIELINSKI, 2006: 14). Zielinski afirma que é

fundamental abandonar a noção de progresso contínuo (2006: 22) e celebrar as

heterogeneidades:

Essas excursões pelo tempo profundo da mídia não representam uma tentativa de expandir o presente, nem contêm um pleito em favor da desaceleração do ritmo. O objetivo é revelar momentos dinâmicos no registro arqueológico da mídia, rico em heterogeneidade, e celebrar essa heterogeneidade para entrar desse modo num relacionamento tensional com diversos momentos atuais, relativizá-los e torná-los mais significativos (2006: 27,28).

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O autor propõe que se investiguem as diversas camadas que se

sobrepõem aos objetos midiáticos em busca de seu "tempo profundo", isto é,

para que seja possível compreender o presente, é necessário partir da

observação de acontecimentos anteriores que, de modo dinâmico rompem com

a pretensa linearidade da história. Tais acontecimentos, em uma interação de

mão dupla com o presente, provocam e sofrem tensionamentos e estabelecem

relações que, de modo algum, seguem uma ideia de linearidade preestabelecida,

ou a ideia de causa e efeito.

Zielinski trabalha sua arqueologia visando "manter o conceito de mídia tão

aberto quanto possível" (2006: 51). Essa busca por abertura pode ser

relacionada com o modo de operar da arqueologia como pensada por Foucault,

que não busca nem a origem de um determinado fenômeno, nem um significado

predeterminado por trás de sua existência.

Ao escavar o universo da mídia, Zielinski também trabalha com as

assinaturas, com as marcas impregnadas nos meios e mediações que investiga.

As relações que traça entre essas marcas do passado e o que elas podem nos

dizer sobre a mídia do presente constituem seu processo arqueológico que

sempre deixa claro que tais meios e mediações não se fazem por um progresso

constante, mas ao contrário, estabelecem-se por descontinuidades

heterogêneas formadas por fluxos e movimentos imprevisíveis que

potencializam novos arranjos e configurações.

Para Zielinski, "pistas não são fenômenos simples. São impregnações de

eventos e movimentos" (2006: 44). A essa afirmação segue a de que o

arqueológo atribui significados ao que procura, encontra e classifica. O autor

acrescenta que tais significados podem ser distintos daqueles que os objetos

tinham em sua origem. Nesse sentido, fica evidente que essas "pistas" são

também assinaturas que podem mostrar o modo como os objetos se apresentam

ou são compreendidos para compor uma relação mais complexa do que a da

causalidade: "La relación expresada por la signatura no es, pues, una relación

causal, sino algo más complicado, que tiene un efecto retroactivo sobre el

signador y que es lo que, precisamente, se trata de comprender" (AGAMBEN,

2010: 45). Portanto, as assinaturas não se fecham em si mesmas, mas se

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constroem de modo dialógico, afetando e sendo afetadas pelo processo de

desmontagem e ressignificação.

A pesquisa arqueológica deve compreender a distinção entre índices e

rastros, explorada com clareza por Lucrécia D´Alessio Ferrara (2015), por meio

de conexões entre o pensamento de autores como Agamben, Foucault e Carlo

Ginzburg:

Se índices possibilitam identificar o objeto ou o fenômeno de que são sinais ou marcas, rastros não assinalam um referente imanente, mas se referem à lógica que se pode estabelecer entre traços que, distantes no tempo e no espaço fenomênico e empírico, permitem desenhar o diagrama de inteligibilidade do mundo com o qual nos comunicamos (FERRARA, 2015: 132).

Os índices operam numa dinâmica causal, de "perspectiva claramente

hermenêutica" (FERRARA, 2015: 127), que decorre da conexão física com seu

objeto referente, e que se afasta da proposta arqueológica como entendida pela

rede de autores estudados. Essa relação causal, intrínseca ao índice, faz dele

marca de um evento do passado e impulsiona uma busca por um significado

oculto, original, fechado em si mesmo.

Por outro lado, os rastros ou assinaturas atuam de modo a provocar uma

operação cognitiva que abre possibilidades de inferências:

Essas posições nada têm a ver com produções de sentido ou de significados que, escondidos sob os índices, esperam a competência do pesquisador para revelá-los. Ao contrário, os rastros nada escondem, porque nada querem dizer se distantes da competência do pesquisador para fazê-los falar através de hipóteses, apenas possíveis e nunca necessárias (FERRARA, 2015: 129).

Assim, perceber os rastros é também questionar o objeto pesquisado, é

tecer vínculos – inesperados, mas possíveis, porque suscitados pelas

assinaturas. Trabalhar com os rastros possibilita a operação arqueológica, pois

longe de ser apenas um exercício de descrição fenomenológica, o que está em

jogo é a criação de uma rede de associações que constrói significados não a

partir dos próprios rastros, mas entre eles, o que possibilita "não transformar o

discurso em um jogo de significações prévias; não imaginar que o mundo nos

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apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas", como nos diz

Foucault (2014: 50).

Carlo Ginzburg parece apontar nessa mesma direção. Para o autor,

escavar os meandros dos textos pode fazer surgirem "vozes incontroladas"

(2007: 11). Essa "escavação" é feita por Ginzburg a contrapelo, é como sugerido

por Walter Benjamin, e no sentido de tecer fios entre os rastros que todo texto

deixa atrás de si (2007: 12). Tais rastros são entendidos como zonas opacas,

que se tornam visíveis a partir das relações constituídas entre eles, pelas

hipóteses que o pesquisador constrói no confronto entre os elementos

percebidos.

Essa operação fica bastante clara, por exemplo, no texto de Ginzburg

sobre Siegfried Kracauer2: ali estão traçados o percurso deste último para

elaborar relações entre a história, o cinema e a fotografia, suas referências, os

autores que ecoam em seu trabalho, presentes explícita ou implicitamente.

Esses elementos não são apenas descritos por Ginzburg e muito menos

aparecem como simples modo de mapear a origem do texto de Kracauer, mas

são explorados pelo historiador de maneira a criar um panorama complexo da

rede de conceitos, observações e análises que, entrelaçados, formam o trabalho

e propõem perguntas para além dele. Inclusive, Ginzburg vale-se da ideia da

necessidade de oscilar entre macro e microanálises, ou de explorar os

acontecimentos históricos por diversos ângulos de visão como pensado por

Kracauer (GINZBURG, 2007: 269).

É possível perceber, então, relações entre a arqueologia como proposta

por Foucault e Agamben e a pesquisa histórica que lança mão dos rastros como

disparadores de inferências, como pensada por Ginzburg: são estratégias

metodológicas que levam em consideração a emergência de determinado

acontecimento e o analisam na sua interioridade, com atenção aos seus

aspectos aparentemente banais que podem, tanto passar despercebidos, quanto

2 GINZBURG. Carlo. “Detalhes, primeiros planos, microanálises. À margem de um livro de Siegfried Krakauer”. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 231-248.

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servir de brecha, de abertura para que se entenda como determinado fenômeno

se constitui.

Se essas estratégias de pesquisa exploram os rastros/assinaturas e não

exatamente os índices, conforme foi afirmado anteriormente, tem-se como

consequência, o afastamento de uma dinâmica antropocêntrica, porque as

assinaturas não escondem um significado predefinido a ser desvendado, mas

impulsionam a uma prática inferencial. Ferrara trata dessa relação entre os

índices e um conhecimento que se pretende "seguro":

os indícios são elementos que, de modo eficiente, estão no lugar reservado à segurança do conhecimento e podem atuar como instrumento objetivo para alcançá-la ou dela aproximar-se: uma clara tendência de natureza antropocêntrica que atua sob a égide do sujeito e sua argúcia em perceber os índices, apreendê-los na sequência de causalidades e decifrar possíveis sentidos que poderão ter (FERRARA, 2015: 127, 128).

A arqueologia praticada por Zielinski e nomeada "Anarqueologia da mídia"

vincula-se ao termo anarchos, cujo significado é "ausência de líder" ou, ainda,

"falta de restrição ou disciplina" (ZIELINSKI, 2006: 44). Nesse sentido, ela

também se conecta com a vertente epistemológica que se afasta do

antropocentrismo e busca, pelo exercício inferencial, a construção de um

conhecimento que parte dos rastros que atuam num âmbito de indeterminação

e à revelia do desejo do pesquisador.

Diante desses apontamentos e da tentativa de conectar o pensamento

dos autores citados – Warburg, Benjamin e Flusser –, é necessário afirmar que

este trabalho tem a arqueologia não como um método a priori, mas como

estratégia metodológica que emerge de seu próprio objeto. Ou seja, estudar a

imagem faz surgir a necessidade do percurso arqueológico, por se tratar de um

objeto com múltiplas dimensões, poroso e de difícil apreensão. Assim, é

necessário estar atento às assinaturas e tratar a imagem não a partir de um

pensamento único, mas numa rede criada pelos rastros de pensamentos

diversos que ora se aproximam, ora se distinguem.

Como afirma Baitello (2010: 70), "toda tentativa de reduzir as imagens a

tipologias e categorias lógicas e racionais vai sempre se deparar com a

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impossibilidade, com o oceânico, com o incomensurável de seus paradoxos e de

sua história", portanto, a proposta que se faz aqui não é definir o que é uma

imagem, mas relacionar os autores que a estudaram, em busca de entendimento

maior sobre sua natureza ambivalente e múltipla.

A pós-vida da imagem

Tempo; força; forma; transformação; movimento; dialética. São esses os

elementos que, implicados, entrelaçados, constituem os conceitos de Nachleben

e Pathosformel, pensados por Aby Warburg durante toda sua vida. A Nachleben

pode ser traduzida como sobrevivência ou vida póstuma das imagens e refere-

se ao modo pelo qual as imagens perduram, a como podem "assombrar"

períodos posteriores à sua criação. A Pathosformel, ou fórmula de páthos,

constitui-se como a encarnação da Nachleben, é sua materialização enquanto

imagem.

Toda a obra de Warburg é marcada pela busca de uma concepção de

história que "acolha as descontinuidades e os anacronismos" (Waizbort, In:

WARBURG, 2015: 17). Esse anacronismo presente no pensamento do autor

pode ser entendido no modo como se dá a sobrevivência das imagens:

A forma sobrevivente, no sentido de Warburg, não sobrevive triunfalmente à morte de suas concorrentes. Ao contrário, ela sobrevive, em termos sintomais e fantasmais, à sua própria morte: desaparece num ponto da história, reaparece muito mais tarde, num momento em que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido, por conseguinte, no limbo ainda mal definido de uma memória coletiva (DIDI-HUBERMAN, 2013: 55).

Didi-Huberman (2013: 67) afirma também que a Nachleben se caracteriza

por um modelo de tempo próprio das imagens, um tempo marcado por uma

"impureza" que se estabelece por sobreposições, embaralhamentos, repetições

e pelo retorno das imagens e de seus conteúdos simbólicos. A impureza está

relacionada com um tempo complexo que não se deixa simplificar pela

linearização. Warburg buscou ampliar os limites da história, incorporando saltos,

intervalos, latências.

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As imagens também estão carregadas de uma força. Didi-Huberman

(2013: 85) nos diz que Warburg queria entender a vida das imagens e não

apenas a sua significação. Essa "vida" está relacionada à força ou poder das

imagens:

Em suma, aquilo de que as sobrevivências se lembram não é o significado – que muda a cada momento e em cada contexto, em cada relação de forças em que é incluído –, mas o próprio traço significante. É preciso entender bem: trata-se menos do traço como contorno da figura figurada que do traçado como ato – ato dinâmico e sobrevivente, singular e repetido, ao mesmo tempo – da figura figurante (DIDI-HUBERMAN, 2013: 158).

Desse modo, pode-se compreender a imagem muito mais como um

processo que como um objeto acabado. Didi-Huberman (2013: 173) comenta

que o pensamento de Aby Warburg traz algumas contradições que não devem

ser entendidas como falhas, mas como uma aposta para se estudar a imagem

sem esquematizá-la. Warburg sistematicamente renunciou a dar uma definição

precisa da "força" das imagens (DIDI-HUBERMAN, 2013: 85), mas é essa força

que altera sua forma, a imagem se faz de sua força e do movimento para

perdurar.

É preciso identificar as forças atuantes na constituição das imagens, como se fossem uma resultante em um complexo jogo de forças. São então, por assim dizer, pontos de passagem ou parada (cristalizações, formas): de forças que vêm do passado e prosseguem, na superfície e/ou no subsolo, consciente e/ou inconscientemente, para além de sua cristalização, para além desse objeto de que estamos falando (eis aí a Nachleben) (Waizbort In: WARBURG, 2015: 19).

A imagem é maleável e transforma-se por movimentos de forças que

atuam em tensão, nunca se fixa numa forma acabada, ao contrário, se altera-se

no e pelo tempo. Esse processo funciona como eixo da Nachleben, que se dá

justamente pela plasticidade que reage às forças e se abre ao devir. O tempo

opera na plasticidade e na permanência das imagens.

Neste ponto, parece importante relacionar o processo pelo qual a imagem

se constitui com o próprio pensar. Waizbort (In: WARBURG, 2015: 19) diz que,

para Warburg, as imagens são tanto objetos materiais como formas de

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pensamento, enquanto Didi-Huberman (2013: 141) afirma que o pensamento de

Warburg é plástico por excelência, age por lembranças e metamorfoses

entrelaçadas, é um pensar que nunca se fixa como um saber absoluto.

Imagem e pensamento acontecem em fluxo, há um movimento intrínseco

nos dois processos que resulta numa trajetória contínua sempre em

transformação. A imagem nos provoca e nos causa também um movimento,

"chama-nos para um contato material, depois nos rechaça para a região

semiótica dos distanciamentos" (DIDI-HUBERMAN, 2013: 164, 165), ou seja, o

contato material, com a forma, pode desencadear processos de sentir e de

pensar que são atravessados pela imagem.

Warburg (2015: 365) pensa ainda, que as imagens têm, em sua

configuração, uma "função polar" descrita como uma oscilação entre a "fantasia

imersiva" e a "razão emersiva". Imersão-Emersão – novamente a presença do

movimento é clara. Nachleben e Pathosformel são marcados por uma dialética,

já mencionada, em relação ao conflito entre forças que agem na imagem, mas

também por uma dialética que se dá como ambivalência, no sentido de que

fantasia imersiva e razão emersiva não se opõem, não se excluem, ao contrário,

atuam como oscilação, entretanto estão presentes simultaneamente, num

"regime duplo":

a imagem foi pensada por Warburg segundo um regime duplo, ou segundo a energia dialética de uma montagem de coisas que, em geral, o pensamento considera contraditórias: o páthos com a fórmula, a potência com o gráfico, em suma, a força com a forma, a temporalidade de um sujeito com a espacialidade de um objeto etc (DIDI-HUBERMAN, 2013: 173).

Warburg tem como uma de suas referências teóricas a obra de Nietzsche

e trata da dialética presente na imagem com base na polaridade nietzschiana

entre "apolíneo" e "dionisíaco" (DIDI-HUBERMAN, 2013: 132, 133). Porém, Didi-

Huberman esclarece que Warburg não concordava com certa oposição que

Nietzsche faz entre "artes da imagem" e "artes de festa", de modo que, para

Warburg, não é possível separar essas dimensões quando se trata da imagem

e de suas raízes antropológicas. Assim, o autor estabelece o regime duplo da

imagem, que atua por uma força ambivalente.

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A dialética da imagem é, para Warburg, como comenta Didi-Huberman

(2013: 400), "proliferativa" e vem substituir qualquer ideia de dialética unificadora

ou reconciliadora. Há uma tensão que é própria das imagens relacionada com a

percepção de Warburg de que a cultura e suas representações simbólicas têm

sempre uma faceta de mal-estar, um "continente negro", que faz com que a

Nachleben se estruture numa fundamental dialética: o que sobrevive numa

cultura é tanto o mais morto, mais obscuro, como também o mais vivo, mais

pulsional (DIDI-HUBERMAN, 2013: 134, 136).

A Pathosformel, como encarnação da Nachleben, também se faz por uma

via dupla, na qual, como aponta Giorgio Agamben, não se pode separar forma

de conteúdo:

(Pathosformel) designa o indissolúvel entrelaçamento de uma carga emotiva e uma fórmula iconográfica, revela que seu pensamento não pode jamais ser interpretado em termos de oposições superestimadas do tipo forma/conteúdo ou história dos estilos/história da cultura (AGAMBEN, 2009: 132).

Portanto, a Pathosformel também não pode ser simplificada,

esquematizada ou categorizada por contornos muito demarcados. Warburg

trabalhou justamente para ampliar os limites do entendimento sobre a imagem,

defendendo um "alargamento metódico das fronteiras da ciência da arte, em

termos materiais e espaciais" (WARBURG, 2015: 127). Esse alargamento das

fronteiras marca o esforço do autor contra o pensamento dicotômico e sua

proposta de criar uma ciência da cultura3, na qual a imagem não é exclusividade

do contexto da história da arte, e é entendida como um modo de pensar, que

pulsa e se transforma.

Didi-Huberman (2013: 253) afirma que, na ciência sem nome de Warburg,

a Nachleben é caracterizada como modelo de tempo e a Pathosformel como

modelo de sentido. Os dois conceitos só podem ser pensados numa trama em

que a imagem é tida como uma força que promove um movimento. Desse modo,

3 Warburg desenvolveu uma disciplina que não chegou a nomear e que, em alguns momentos,

chamou de "ciência da cultura". Essa ciência recusava-se a seguir o modelo estetizante da história da arte e a consideração apenas formal das imagens (AGAMBEN, 2009: 132).

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a imagem não tanto transmite um significado, mas formas que estão em

movimento no tempo.

Para Warburg, o tempo deve ser visto por seus entremeios,

anacronismos, portanto distante de uma linearidade. Esse tempo se estabelece

por uma continuidade sem passado ou futuro, por simultaneidades –

ambivalências – e não em sequências lineares. Como tempo entre tempos,

próximo da heterotopia pensada por Foucault (2013: 24), que tem por regra

justapor espaços que seriam incompatíveis, o tempo da Nachleben também

justapõe, e até mesmo sobrepõe e embaralha distintos tempos, como uma

heterotopia ligada ao tempo, "não ao modo da eternidade, mas ao modo da festa:

heterotopias não eternitárias, mas crônicas" (FOUCAULT, 2013: 25).

O movimento no tempo promove a emergência da pathosformel em

distintos momentos, dando à imagem múltiplos sentidos, pois ela é objeto aberto,

instável, que se transforma. Ao se observar a análise arqueológica que Warburg

(2015) faz das pinturas renascentistas, fica claro como esse movimento no

tempo ocorre – Botticelli recorre a formas já vistas anteriormente, mas não

apenas, ele atualiza e transforma formas usadas na Antiguidade. Assim, a

Nachleben aparece como imagem, como uma força que age por polaridade.

Para Baitello, tal polaridade se relaciona com a "natureza paradoxal" das

imagens e também caracteriza a Nachleben como "pós-vida" das imagens:

algo como um cerne arcaico que sobrevive na cultura, como um fundamento da memória, contudo sempre ambivalente ou dicotomizado, esquizoide, oscilando em diferentes épocas entre universos de forças antípodas. A cultura se constitui, portanto, como um campo de permanente conflito de tensões e jamais como uma sucessão ou fluir de momentos, tal qual se concebe na historiografia (BAITELLO, 2010: 76).

A imagem é paradoxal justamente por ser ambivalente, "presença de

grandes ausências" (BAITELLO, 2010: 78), e a "função polar" da Nachleben de

que nos fala Warburg extrapola seus próprios polos, ou seja, o autor usa o termo

polar, mas o modo pelo qual conceitua o tempo e a ação da Nachleben não se

enquadra na perspectiva de atuação de um valor ou posição – positivo/negativo

– a cada vez, isoladamente.

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Warburg observou que "o pensamento concreto e o pensamento abstrato

não se opõem com nitidez, mas, ao contrário, determinam um círculo orgânico

da capacidade intelectual do homem"4, da mesma maneira, há na Nachleben

uma complexidade que a faz simultaneamente positiva e negativa, porque nesse

tempo complexo da imagem atuam tanto a "fantasia imersiva" como a "razão

emersiva", numa dinâmica de conflito e instabilidade que perdura no tempo.

Atlas Mnemosyne como pensamento visual

O Atlas Mnemosyne5 criado por Warburg é um modo de pensar e

estabelecer relações entre diferentes imagens. Agamben (2009: 137) aponta que

o atlas se configura como um modelo adequado à ciência sem nome porque

opera de maneira distinta dos esquemas e modos tradicionais da história da arte.

O atlas se constitui como uma coleção de imagens para estudo da Nachleben e

Pathosformel: ao colocar lado a lado, e em diálogo, imagens de períodos tão

diferentes, Warburg trata dos anacronismos e impurezas do tempo, e das formas

que se metamorfoseiam e perduram.

Warburg havia compreendido que devia renunciar a fixar as imagens, assim como um filósofo precisa saber renunciar a fixar suas opiniões. O pensamento é uma questão de plasticidade, de mobilidade, de metamorfose (DIDI-HUBERMAN, 2013: 389).

A própria constituição do atlas, com sua mobilidade intrínseca, deixa clara

a intenção de Warburg de se afastar de uma simplificação ou esquematização

das imagens, para tentar dar conta não só de sua complexidade, mas também

das relações que se estabelecem entre elas:

4 Warburg, em carta ao irmão Max, datada de 5 de setembro de 1928 (citada por Didi-Huberman, 2013: 410). 5 Mnemosyne é um atlas de imagens desenvolvido por Warburg entre 1924 e 1929. Era composto por 79 painéis recobertos por tecido preto, sobre os quais eram colocadas imagens diversas (de reproduções de obras de arte de vários períodos a peças de publicidade). As imagens eram agrupadas de modo que podiam ter sua posição alterada. Em conexão com a sobrevivência ou a pós-vida das imagens, Warburg também chamava o atlas de "Histórias de fantasmas para gente grande". (A grafia foi mantida conforme encontrada em cada obra consultada, por isso, pode aparecer como "Mnemosyne" ou "Mnemosine").

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As imagens jamais estão fechadas em si mesmas, como mônadas: elas se abrem para processos de constelação – de que o Atlas Mnemosine seria o exemplo perfeito: imaginando um diálogo de imagens, e de uma forma em que pudessem ser, a cada momento, deslocadas e postas em outras posições, sugerindo novos diálogos com novas imagens, em um processo infindo (Waizbort In: WARBURG, 2015: 18).

Sobre essa característica da constituição do atlas, Philippe-Alain Michaud

(2013: 137) nos lembra que Warburg não só olha as imagens justapostas, mas

também as manipula com o intuito de produzir seu próprio material de estudo.

Assim, diz o autor, uma pintura a óleo ou um afresco, quando fotografados para

tomar parte no atlas, passam a remeter não apenas à cena que representam,

mas têm seus sentidos reconfigurados pelas imagens que lhes são justapostas.

Didi-Huberman destaca a importância da fotografia, que na sua

capacidade de reprodução técnica, permite a Warburg ter todas as imagens que

deseja pesquisar na composição do atlas. A reprodutibilidade permite colocar

lado a lado imagens da antiguidade clássica, provenientes de obras tão distintas

como pinturas, esculturas, tapeçarias, e imagens do cotidiano do período pós-

revolução industrial, como cartazes e anúncios publicitários.

Desse modo, o atlas é formado pelos diálogos, aproximações e

afastamentos entre as imagens no tempo e no espaço. Ele permite

comparações, sobreposições e abre-se para a criação de sentidos não

previamente delimitados, mas construídos nas junções e a cada novo

deslocamento da imagem. Todo o conhecimento proveniente do atlas se faz por

montagem, entendida como "modo de expor visualmente as descontinuidades

do tempo" (DIDI-HUBERMAN, 2013: 400).

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Atlas Mnemosyne – Painel 39

Na montagem operada por Warburg percebe-se a manifestação da função

polar das imagens: a simultaneidade de diversos tempos presentes nas imagens

provoca imersões e emersões, movimentos do olhar e do pensar. O autor

entendia o próprio tempo como "montagem de elementos heterogêneos" (DIDI-

HUBERMAN, 2013: 406), ou seja, a montagem não é apenas um modo de

construção do atlas, mas o próprio espaço epistemológico no qual

anacronismos, sobrevivências, latências e descontinuidades atuam.

A montagem de Mnemosyne está relacionada com um processo

arqueológico. Como esclarece Foucault, "a contemporaneidade de várias

transformações não significa sua exata coincidência cronológica" (FOUCAULT,

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2012: 212), assim, as descontinuidades, os distintos tempos e as recorrências

se juntam por montagem e por afinidade de suas fórmulas de páthos.

Mnemosyne se constitui como um método para perceber as assinaturas nas

imagens. Agamben (2010: 76) deixa isso muito claro quando afirma que a

pathosformel não é um signo ou um símbolo, mas uma assinatura, e a ciência

sem nome, uma arqueologia.

Esse processo arqueológico ocorre porque Nachleben e pathosformel

exigem serem tratados não por meio de coincidências cronológicas, mas por

uma abertura que contemple suas múltiplas possibilidades de criação de

sentidos, que não coincidem com um tempo ou forma predeterminados. As

imagens, em sua pós-vida, são marcadas por rastros de sua existência anterior,

que não são indícios de um modo predefinido de ser, muito menos rastros de um

sentido oculto na imagem, são assinaturas que permitem perceber como as

imagens são abertas, maleáveis e regidas por uma força de transformação.

Didi-Huberman (2013: 412, 413) aponta que o atlas apresenta muitos

detalhes – partes das imagens que Warburg desloca para examinar melhor. Os

detalhes não são provocados por ampliação, mas exatamente pelo

deslocamento ou recorte de determinados fragmentos da imagem.

Atlas Mnemosyne – Painéis 41a e 43

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Nesse sentido, percebe-se, primeiro, que o trabalho de Warburg com o

atlas não é o de deciframento de imagens, mas o de articulação dos rastros a

fim de compreender como as imagens sobrevivem e se transformam. Outro

aspecto que deve ser destacado é que a montagem e os detalhes que são

operacionalizados em Mnemosyne produzem conhecimentos a partir de novas

espacialidades, ou seja, é a espacialidade própria do atlas que dá visibilidade

para o conhecimento impregnado nas imagens. Os rastros são mudos e

precisam ser animados, as diferentes espacialidades provocadas pela

mobilidade do atlas dão voz aos rastros para que seja possível entender os

percursos e a pós-vida das imagens que ele contém.

Por último, em se tratando dos detalhes presentes no atlas, Didi-

Huberman (2013: 413) destaca que eles são importantes por portarem incerteza

e desorientação. Como visto anteriormente, os rastros não estão prontos ou

acabados, mas são construídos pelas possíveis relações traçadas no processo

arqueológico. Os detalhes destacados em Mnemosyne provocam desorientação

porque provêm de imagens, que são objetos com alto grau de indeterminação.

Mas a possibilidade de visualizá-las inteiras simultaneamente aos seus detalhes

gera condições de análises e comparações que só a dimensão específica do

atlas carrega. É essa especificidade que propicia a emergência dos rastros e o

estudo aprofundado da Nachleben.

Os detalhes relacionam-se entre si e com outras imagens pelos intervalos

presentes na superfície de Mnemosyne. As imagens são dispostas sobre tecido

preto que as envolve e, ao mesmo tempo, as separa, criando um ambiente

próprio:

O meio escuro deve ser entendido, portanto, como o Umwelt – o mundo ambiental – das imagens montadas nas telas do atlas: como um oceano em que destroços vindos de tempos múltiplos se juntassem no fundo das águas tenebrosas (DIDI-HUBERMAN, 2013: 416).

Esse ambiente implica um intervalo entre as imagens que tanto está

relacionado com o tempo múltiplo e desigual que as caracteriza, quanto também

constitui as montagens. Warburg também definia o atlas como uma "iconologia

do intervalo", portanto, o espaço entre as imagens se configura como

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possibilidade de cognição, como espaço epistemológico que sustenta e gera

entendimento sobre as imagens.

Os entremeios negros do atlas vinculam-se diretamente aos intervalos

temporais presentes na Nachleben das imagens: a distância das polaridades, as

impurezas do tempo com todas as suas oscilações se expressam por meio

desses intervalos.

Nachleben, Pathosformel e Fotografia

No livro O instante contínuo (2008), Geoff Dyer constrói uma história da

fotografia particular que, em certa medida, se aproxima do modo pelo qual as

imagens são exploradas no Atlas Mnemosyne. Dyer deixa claro, desde o início

do texto, que não é um fotógrafo e muito menos um especialista na história da

fotografia, mas se interessou pelo assunto buscando "olhar fotografias para ver

que novos conhecimentos poderia extrair delas" (DYER, 2008: 17).

O livro, como o Atlas de Warburg, trata a história sem convertê-la numa

linear sucessão de eventos, mas de modo que os acontecimentos são

relacionados por sobreposições, aproximações, afastamentos e ressurgimentos.

O autor, evoca a sobrevivência das imagens analisando a história da fotografia

pelas imagens que reaparecem, sobretudo, pelos assuntos que, de forma não

linear, são recorrentes e constroem diálogos entre as fotografias.

Dyer criou uma taxonomia própria que foi inspirada em "uma certa

enciclopédia chinesa" como pensada por Jorge Luis Borges. Essa taxonomia

contraria a ideia inerente a todo princípio de classificação – o de que haja uma

clara separação entre as categorias – fazendo com que nela exista "muita

infiltração ou tráfego entre as categorias" (DYER, 2008: 16). Os princípios

organizadores dessa classificação difusa são os objetos e assuntos que

reaparecem nas cenas fotografadas: cegos nas ruas, chapéus, mãos, portas,

janelas, estradas, cercas, bancos de parques, homens usando sobretudos,

camas, entre outros temas.

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Nesse sentido, o livro pode também ser visto como uma arqueologia da

história da fotografia, pois se constroi pelo estudo dos rastros dos objetos

fotografados, que são analisados nas suas junções, em príncípio invisíveis, que

surgem de imagens tão diferentes, quanto distantes em tempo e espaço. Essas

junções são percebidas pelo autor que cria uma rede de inferências e conexões

aparentemente improváveis entre as imagens. O olhar atento para esses rastros

invisíveis fica claro quando o autor afirma que a "pista é vital exatamente porque

pode passar desapercebida" (DYER, 2008: 70).

O livro é pensado para provocar uma leitura não linear, o autor afirma que

pretendia, tanto quanto fosse possível pelas características próprias do objeto

livro, promover a experiência que se tem ao remexer uma pilha de fotografias

(DYER, 2008: 47). O livro é proposto como "um negativo do qual se pode fazer

uma ampla variedade de cópias – semelhantes mas sutilmente diferentes umas

das outras" (DYER, 2008: 47). Desse modo, o livro se aproxima do Atlas

Mnemosyne, que é transformado e transforma as imagens a cada nova

configuração. E ao dar ao leitor a autonomia de seguir trajetos distintos ao longo

das páginas, o autor propõe que um processo arqueológico seja desenvolvido

pelo leitor, que pode buscar seus próprios rastros e criar suas próprias relações

entre as imagens.

Dyer, em nenhum ponto do livro, cita o Atlas Mnemosyne ou faz qualquer

menção a Warburg, mas o modo como analisa as recorrências e a permanência

de elementos nas fotografias separadas no tempo e no espaço, provoca uma

inevitável conexão com o pensamento warburguiano.

Ao analisar várias fotografias distintas de cegos tocando acordeom nas

ruas de Nova York, o autor nos diz que um personagem registrado numa imagem

de Ben Shahn, feita em 1932, abriu caminho na pequena multidão que o assistia

e caminhou em direção a um encontro, que aconteceu quarenta anos depois,

numa imagem do fotógrafo Garry Winogrand (DYER, 2008: 33). Essa afirmação

conecta-se à de Philippe-Alain Michaud, que, ao analisar o estudo de Warburg

sobre a personagem Maria Portinari, retratada em três pinturas do século XV,

comenta: “não parece que os pintores, uns após os outros, tenham tratado o

mesmo modelo, e sim que o próprio modelo transita de quadro para quadro e

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colhe em seu ser de imagem as modificações de seu ser de carne e osso”

(MICHAUD, 2013: 135).

Como discutido anteriormente, para Warburg, a imagem é maleável, tem

sua forma transformada no e pelo tempo. A Nachleben se dá como sobrevivência

da imagem, que, aberta ao devir, se transforma e perdura. O tempo envolvido

nesse processo não se estrutura de forma linear, é um tempo marcado por

sobreposições, anacronismos, saltos, recorrências.

Esses traços da Nachleben pensada por Warburg estão presentes na

história da fotografia criada por Geoff Dyer, que afirma: "Pessoas são

fotografadas, pessoas morrem. E depois voltam e são fotografadas de novo, por

outra pessoa. É uma espécie de reencarnação. [...] A fotografia, de certa

maneira, é a negação da cronologia" (2008: 127). Em outras palavras, a

fotografia, como imagem, também se faz por reelaborações e citações de

imagens de outros tempos. A Nachleben, como relação de forças entre o tempo

e a forma das imagens, opera de modo a intervir nas fotografias fazendo com

que gestos, objetos e cenas de momentos diversos "assombrem" imagens de

tempos desconexos.

Essas relações ficam evidentes nos encontros entre fotografias

promovidos por Dyer. O livro inicia-se com uma fotografia de Paul Strand, que

retrata uma mulher cega, numa rua de Nova York, em 1916. Todo o percurso do

livro, ou os vários percursos que podem se desenvolver terminam numa imagem

de 11 de setembro de 2001, um retrato feito por Regina Fleming, também em

Nova York.

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Fotografia à esquerda: Paul Strand: Blind, Nova York, 1916

Fotografia à direita: Regina Fleming: After death, what?, Nova York, 2001

Baitello (2010) afirma que a Nachleben atua nas imagens quando seus

elementos se transportam de uma cultura e de uma época para outra, e que isso

"confere às imagens um enorme potencial de captura do olhar, da atenção, em

suma da recepção; portanto, uma enorme expressividade, uma carga energética

que não se pode ignorar" (2010: 60). Essa expressividade carregada de sentidos

parece se propagar nas imagens e entre elas, numa junção que é também um

intervalo – mais de oitenta anos separam os personagens, as ruas de Nova York,

e a pós-vida das imagens os aproximam.

Nas duas imagens, os personagens trazem consigo uma placa com seu

"título-legenda". As fotografias nos mostram, ao modo de Warburg, como se dá

o movimento que distorce e altera as formas que, mesmo transformadas,

perduram. As duas fotografias, vistas juntas, evocam a sobrevivência da

imagem, tanto pela composição formal que se repete, como também porque

explicitam os inúmeros caminhos que as imagens percorrem em sua errância

pelo tempo. Essas fotografias são rastros do tempo e da força das imagens.

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"Nós as encontramos... Vou reformular a frase: nós encontramos essa

figura – pois na realidade só existe uma, identificável imediatamente pelo

sobretudo e pelo chapéu, que eclipsam qualquer outra característica definidora"

(2008: 155). Com essa proposição, Dyer nos apresenta um personagem que

sobrevive em muitas imagens feitas em diferentes momentos da história da

fotografia. O personagem aparece em fotos de Alfred Stieglitz, André Kertész e

outros. É um homem que caminha sem pressa, em diversas fotografias

produzidas em diferentes lugares e momentos. Como no atlas de Warburg, ao

olharmos essas imagens juntas, podemos perceber a metamorfose das formas

e do personagem que insiste em estar presente.

Alfred Stieglitz, Nova York, 1900

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Fotografia à esquerda: André Kertész, Bocskay-tér, Budapeste, 1914

Fotografia à direita: André Kertész, Nova York, 1954

Ao analisar essas imagens em conjunto, percebemos os anacronismos e

as impurezas do tempo: um tempo que se expande para envolver todas as

aparições do homem de sobretudo, como acontecimentos únicos, separados, e

um tempo que se contrai, para aproximar os distintos momentos de aparição do

tal homem. Aqui parece necessário lembrar que a Nachleben diz respeito ao

problema da "transmissão do antigo" e não opera como um simples modelo de

imitação (DIDI-HUBERMAN, 2013: 130).

Dyer percebe essas dilatações e contrações temporais como uma "regra

estranha da fotografia", pois, "nunca vemos pela última vez alguém ou alguma

coisa. Eles desaparecem ou morrem, mas, anos depois, reaparecem,

reencarnam, em outra objetiva" (2008: 162). Esses estranhos reaparecimentos

continuam impregnando a história da fotografia, tanto que imagens produzidas

em São Paulo fazem ressurgir o personagem visto pela última vez numa

fotografia de Kertész. Cristiano Mascaro e Daniel Ducci registraram o

personagem com sua vestimenta e a aparente falta de pressa com a que já

apareceu em outras cidades, como Budapeste e Nova York.

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Daniel Ducci

Cristiano Mascaro

Para Warburg, uma mesma imagem pode circular por diferentes obras,

tanto dentro das fronteiras da arte, como fora dela, em imagens gráficas e

fotográficas do contexto da comunicação, da publicidade ou do jornalismo. Esse

movimento ocorre por uma espécie de vida da imagem, como se os corpos e

objetos representados tivessem uma existência própria, justamente

sobrevivendo, transformando-se, perdurando em sua pós-vida, pela força e pelo

tempo que lhe são característicos, não como objetos acabados, mas como

processos em fluxo permanente.

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A imagem como lampejo

Philippe-Alain Michaud afirma que a proposta de montagem do atlas de

Warburg está conectada com as imagens dialéticas como pensadas por Walter

Benjamin, que as entendia como um "fenômeno de fulguração" (MICHAUD,

2013: 330). Nas palavras de Benjamin, a imagem dialética é uma imagem que

salta:

Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética – não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta [...] (BENJAMIN, 2007: 504 [N 2a, 3]).

No célebre trecho destacado do livro Passagens, o filósofo apresenta a

imagem dialética relacionada à imobilidade, numa relação temporal que não se

caracteriza por uma progressão contínua. Toda a obra de Benjamin é marcada

pela construção de um pensamento que se opõe ao historicismo ou historiografia

progressista, que se apoiam na ideia de um tempo "homogêneo e vazio", que

corre de modo cronológico e linear. Para o autor, a história tem lugar num "tempo

saturado de 'agoras'" (BENJAMIN, 1994: 229). A imagem dialética na sua

imobilidade é o ponto central da teoria e filosofia da história de Benjamin, com a

qual ele se opôs ao fascismo e à ideologia do progresso.

Em lugar de apontar para uma "imagem eterna do passado", como o historicismo, ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador deve construir uma "experiência" (Erfahrung) com o passado (Gagnebin, In: BENJAMIN, 1994: 8).

Essa experiência com o passado está relacionada com um tempo que se

imobiliza num lampejo, numa espécie de paralisação temporal que cristaliza na

imagem dialética os vários "agoras" saturados por diferentes temporalidades.

Dessa maneira, a dialética, para Benjamin, se distingue do conceito hegeliano,

pois não visa a uma dinâmica que busca uma síntese, nem a um movimento

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rumo ao progresso, mas opera pela imobilidade monadológica de

temporalidades distintas que emergem no presente.

Tão logo o progresso se torna a assinatura do curso da história em sua totalidade, o seu conceito aparece associado a uma hipótese acrítica, e não a um questionamento crítico. Este último se reconhece, no estudo concreto da história, pelo fato de conferir ao retrocesso contornos tão nítidos quanto a qualquer progresso (BENJAMIN, 2007: 520).

A imagem dialética que se rompe no presente é marcada por um tempo

não sucessivo que não cessa de reconfigurar passado, presente e futuro, e

justamente por isso dá a ver o próprio tempo, abrindo brechas para um

pensamento crítico sobre a história.

Jeanne Marie Gagnebin trata da influência de Marcel Proust na obra de

Benjamin e de como a estética proustiana influenciou o método do “historiador

materialista" porque trata da busca por relações entre passado e presente, e não

de lembranças estáticas:

Proust não reencontra o passado em si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença do passado no presente que já está lá, prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que se esvai sem que possamos segurá-lo (Gagnebin, In: BENJAMIN, 1994:15).

Esta relação está clara também nas palavras de Benjamin: "Assim

também o historiador hoje tem que construir uma estrutura – filosófica – sutil,

porém resistente, para capturar em sua rede os aspectos mais atuais do

passado" (BENJAMIN, 2007: 501 [N 1a, 1]). Perceber os modos pelos quais o

passado se atualiza no presente exige uma operação epistemológica que

absorva as descontinuidades temporais, as rupturas, os anacronismos, ou seja,

é preciso afastar-se de uma pretensa linearidade cronológica, como também

propõem, como foi visto anteriormente, a arqueologia foucaultiana e a ciência

sem nome de Warburg.

A arqueologia nos apresenta a ideia de investigar um fenômeno a partir

de sua emergência no presente, considerando os rastros de seu percurso (não

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linear) no tempo; da mesma forma, Benjamin afirma que é preciso ler a história

a contrapelo (1994: 225), o que significa não se ater apenas aos registros da

historiografia tradicional, que está diretamente vinculada ao discurso dos

"vencedores", mas perceber os rastros subjacentes a esse discurso, aquilo que

escapa à narrativa oficial, ou seja, buscar arqueologicamente as assinaturas dos

acontecimentos passados no presente.

Gagnebin comenta que o método desenvolvido por Benjamin:

transforma o passado porque este assume uma força nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não a descobrirmos, inscrita nas linhas do atual (Gagnebin, In: BENJAMIN, 1994:16).

Para Benjamin, o processo histórico deve ser pensado pela possibilidade

de imobilização do processo temporal, que ocorre justamente por meio das

imagens dialéticas. Nesse sentido, a imagem não tem uma história sequencial,

mas está relacionada a uma ruptura no hábito de ver, a uma quebra da

causalidade linear, a um salto ou lampejo que a fazem explodir no presente: há,

assim, a superposição de vários tempos complexos, um encontro do presente

com um passado latente, que "sobrevive" nas imagens, assim como na

Nachleben pensada por Warburg.

Outras aproximações entre a imagem dialética, a Nachleben e a

Pathosformel podem ser traçadas. Tanto para Warburg como para Benjamin, as

imagens são também formas de pensamento, embora haja uma distinção

apontada por Michaud (2013: 330): Warburg parte de imagens para produzir

conceitos, ao passo que Benjamin, inversamente, parte de textos para produzir

imagens. A imagem dialética, tal como concebe Benjamin, ocorre como insight,

um clarão que surge quando o pensamento, fluxo contínuo e repleto de tensões,

se imobiliza:

Ao pensamento pertencem tanto o movimento quanto a imobilização dos pensamentos. Onde ele se imobiliza numa constelação saturada de tensões, aparece a imagem dialética. Ela é a cesura no movimento do pensamento. Naturalmente, seu lugar não é arbitrário. Em uma palavra, ela deve ser procurada

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onde a tensão entre os opostos dialéticos é a maior possível. Assim, o objeto construído na apresentação materialista da história é ele mesmo uma imagem dialética. Ela é idêntica ao objeto histórico e justifica seu arrancamento do continuum da história (BENJAMIN, 2007: 518 [N 10a, 3]).

Essa cesura do movimento do pensamento pode ser relacionada com a

abdução6, o raciocínio vinculado à produção de inferências hipotéticas. A

imagem dialética surge nos intervalos imóveis do fluxo do pensar. Ali, a produção

de conhecimento acontece numa constelação, de um pensamento a outro, num

percurso entre inferências.

Em um texto sobre a imagem dialética, Giorgio Agamben (2012: 40)

destaca que o termo Stillstand, traduzido como paralisação, não indica apenas

isso, mas um "limiar entre a imobilidade e o movimento". É possível pensar,

então, que a imagem dialética é constituída por uma ambivalência, pois surge

num espaço entre tempos. Como foi discutido anteriormente, as imagens que

sobrevivem, encarnadas como fórmulas de páthos, também são ambivalentes

porque carregam, ao mesmo tempo, uma originalidade e uma recorrência, pois

transformam e mantêm algo de imagens de outros tempos.

O encontro com as imagens (as Pathosformeln) acontece nessa região nem consciente, nem inconsciente, nem livre, nem não livre, na qual, contudo, estão em jogo a consciência e a liberdade do homem. [...] Com as imagens dialéticas em Benjamin e o símbolo em Vischer, as Pathosformeln [...] são recebidas em um estado de ‘ambivalência latente não polarizada’ (unpolarisierte latente Ambivalenz), e, somente desse modo, no encontro com um indivíduo vivente, podem readquirir polaridade e vida (AGAMBEN, 2012: 46).

No ponto em que a imagem encontra com um indivíduo vivente, este pode

perceber o conflito entre forças que agem nela, que é, para Warburg, o

movimento que transforma e a faz perdurar sobrevivendo em diferentes tempos.

Para Benjamin, de modo semelhante, esse ponto de ambivalência também se

6 De acordo com Eduardo Fernandes Araújo, Charles Sanders Peirce defendia que a abdução

"era a única forma de raciocínio, a despeito da dedução e da indução, capaz de oferecer e estabelecer novas ideias e hipóteses científicas, ou ainda, a abdução é a inferência investida na melhor explicação plausível e razoável" (ARAÚJO, 2016: 46).

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relaciona a "um campo de forças no qual se processa o confronto entre a história

anterior e a história posterior" (BENJAMIN, 2007: 512 [N 7a 1]), de modo que um

fato histórico se polariza sempre de novo e nunca da mesma maneira. Essa

transformação atua na imagem dialética porque esta se dá sempre na relação

do passado com a atualidade, ou seja, nunca da mesma forma, porque é

estabelecida pela efemeridade do presente.

Agamben (2012: 46) aponta que, tanto para Warburg como para

Benjamin, a ambivalência gera uma "zona central" ou uma "zona de indiferença

criadora" na qual se processam atos de criação que surgem do contato entre o

indivíduo e as imagens. Assim, na relação com a Pathosformel e com as imagens

dialéticas há, igualmente, a possibilidade de produção de conhecimento pelo

intenso fluxo de inferências que as imagens provocam e do qual surgem novas

imagens.

Carlo Ginzburg destaca uma declaração autobiográfica feita por Siegfried

Kracauer na abertura de seu livro History: The Last Things before the Last7,

nessa passagem, é possível perceber a descrição do surgimento de uma

imagem dialética, o lampejo que ilumina o pensamento de Kracauer quando se

dá conta de relações entre a história e a fotografia, presentes em seu trabalho:

A essa altura me dei conta num lampejo [in a flash] dos muitos paralelismos que podem ser estabelecidos entre a história [history] e os meios fotográficos, entre a realidade histórica [historical reality] e a realidade da câmera [camera-reality]. Reli recentemente, por acaso, meu artigo sobre fotografia e notei com enorme espanto que já a partir desse artigo dos anos 20 eu havia estabelecido uma comparação entre o historicismo [historism] e a imagem fotográfica (Kracauer apud GINZBURG, 2007: 233).

Se a imagem dialética é também uma imagem que surge no próprio ato

de pensar, ela é, também uma imagem endógena. Em Antropologia da imagem,

Hans Belting (2009) propõe pensar a imagem além do contexto da arte, tendo

em vista uma abordagem antropológica. O autor define que há sempre uma

7 Referência bibliográfica conforme citada por Carlo Ginzburg (2007: 412): S. Kracauer, History.

The Last Things before the Last, completed after the death of the author by Paul Oskar Kristeller, Princeton, 1995.

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relação entre nossas imagens internas – endógenas – que são míticas, oníricas

e mentais; e as imagens externas – exógenas – que são materializadas em

distintos meios.

Belting (2009: 27) destaca que há um intercâmbio entre as imagens

externas e as do nosso corpo, e acrescenta que, para cada imagem que “vemos”

materializada em algum “corpo técnico”, há uma série de imagens internas, tanto

individuais, que se formam na mente, como imagens coletivas, que permeiam a

cultura.

As imagens dialéticas participam desse trânsito entre suportes materiais

que formalizam a imagem por meio de distintos códigos e de nosso próprio

corpo. Didi-Huberman destaca que a imagem dialética é pensada por Benjamin

como forma e transformação, e também como conhecimento e crítica do

conhecimento; ela pertence tanto ao universo do artista quanto ao do filósofo;

não é nem somente “mental”, nem simplesmente “reificada” num quadro ou

poema: “Ela mostra justamente o motor dialético da criação como conhecimento

e do conhecimento como criação” (2005: 179). Assim, a imagem relampejante

que surgiu no processo de pensamento de Kracauer tomou outra forma em suas

palavras e segue se transformando e fazendo surgir novas imagens no

entendimento de cada leitor.

Imagem dialética e Atlas Mnemosyne

Rolf Tiedemann, filósofo e editor da edição alemã de Passagens, afirma

que os fragmentos encontrados no imenso volume de Walter Benjamin podem

ser comparados “ao material de construção de uma casa da qual apenas se

preparou o alicerce” (Tiedemann, In: BENJAMIN, 2007: 14). Como se sabe, o

livro planejado por Benjamin nunca chegou a ser desenvolvido, sua morte

precoce, resultado lamentável dos horrores da Segunda Guerra, o impediu de

concretizar sua proposta de fazer um livro sobre a cidade de Paris no século XIX.

O que restou do grandioso projeto é um conjunto de fragmentos de textos,

comentários e citações encontrado na Biblioteca Nacional de Paris após o fim da

guerra. Tiedemann afirma que os fragmentos “raramente permitem perceber

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como Benjamin imaginava que seriam interligados”, e que não faltam notas

“contraditórias” ou “incompatíveis” (Tiedemann, In: BENJAMIN, 2007: 15).

Desse modo, Passagens constitui-se como uma obra inacabada e aberta

a inúmeras possibilidades de entendimento, sempre limitada pela

impossibilidade de saber como Benjamin a teria efetivado. Ler o Livro das

Passagens torna-se uma operação eminentemente arqueológica, trata-se de

estabelecer conexões entre os rastros deixados pelo filósofo:

A obra é um enigma que, por não se ter resolvido em livro, deixa abertos muitos caminhos que o livro teria fechado definitivamente. Em vez de Passagens, temos A oficina de Walter Benjamin, que nos convoca à arqueologia. Mas se trata de uma arqueologia inversa: em vez de reconstituir, a partir dos resquícios, uma totalidade perdida, devemos trabalhar sobre as ruínas de um edifício jamais construído (SARLO, 2015: 33).

Assim, a coleção de textos elaborada por Benjamin aproxima-se da

coleção de imagens reunidas no atlas de Warburg, também uma obra aberta e

mutável. Passagens e Mnemosyne são construídos pela lógica da montagem.

Por entre as imagens do atlas ou no entremeio dos textos, se processa um

conhecimento que se dá pela via das associações, pelas conexões entre rastros,

pelas imagens dialéticas.

Para Eisenstein “montagem é conflito” (2002: 43). O cineasta russo

opunha-se à ideia de montagem como ligação, na qual cada plano é um

elemento da montagem e opera de modo a criar linearmente o filme, ligando os

planos como se estes fossem “tijolos” reunidos um a um, lado a lado. O autor

entendia a montagem como colisão entre dois fatores determinados da qual

nasce um conceito (2002: 42). Nesse caso, o plano é uma célula da montagem

e deve ser considerado do ponto de vista do conflito, o que significa que não se

trata de um encadeamento sequencial de planos, mas de um choque entre os

elementos contidos em cada um deles. Assim, o conflito interno de um plano tem

potencial para se expandir para além dos limites da moldura do fotograma e

colidir com os conflitos de outros planos.

Esse princípio da montagem-colisão está intimamente relacionado à

montagem em Passagens e no Atlas Mnemosyne. No atlas, de acordo com

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Michaud, a distância que existe entre as imagens faz surgirem relações inéditas,

uma vez que os painéis que lhes dão sustentação são entendidos como “campos

de força atravessados por tensões” (MICHAUD, 2013: 295). Essas tensões estão

presentes tanto nas imagens em sua forma individual, como transbordam pelos

intervalos negros do atlas, o que propicia as “colisões” entre diferentes imagens.

Em Passagens, os fragmentos também são dispostos numa montagem que cria

“constelações”. As duas obras são marcadas por um caráter instável, pelas

transformações possíveis a cada nova configuração.

Michaud (2013: 296) afirma também que, pela disposição dos conjuntos

de imagens no atlas, se processa a ativação das propriedades dinâmicas das

imagens, que vistas isoladamente têm essa característica apenas latente. Desse

modo, é possível pensar que as imagens carregam uma potência para a

montagem, trazem em si uma capacidade para o diálogo ou relação umas com

as outras. Imagens parecidas retiradas de diferentes fontes, de tempos distintos,

fazem surgir conhecimentos que as mesmas imagens sozinhas não

provocariam.

A iconologia warburguiana visa a produzir algo como uma imagem dialética das relações entre as imagens: trabalha por desmontagem do continuum figurativo, com “foguetes” de detalhes abruptos, e por remontagem desse material em ritmos visuais inéditos (DIDI-HUBERMAN, 2013: 415).

Assim, o atlas é uma espécie de “estação de despolarização e

repolarização" (AGAMBEN, 2012: 47), na qual se juntam camadas temporais

distintas, imagens que perderam seu sentido e que podem tanto se atualizar pelo

movimento das fórmulas de páthos, como ficar em suspensão, sobrevivendo

para tomar novos sentidos, dados também pelos intervalos, espécie de

imobilização desse movimento.

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Atlas Mnemosyne – Painéis B e 39

Ao tratar do que Benjamin define como imagem dialética, Didi-Huberman

fala em imagem crítica:

Uma imagem em crise, uma imagem que critica a imagem – capaz portanto de um efeito, de uma eficácia teóricos –, e por isso uma imagem que critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente (DIDI-HUBERMAN, 2010: 172).

Assim são as imagens do atlas, imagens que não se fecham em si

mesmas, são dialéticas, críticas, porque propõem relações, estão abertas, não

são imagens diante das quais apenas se pode estar, elas nos provocam porque

“dialetizam” o tempo, culturas e outras imagens. As imagens de Mnemosyne são

dialéticas porque são autocríticas, na medida em que Warburg as usa para

investigarem a si mesmas e suas relações com o tempo e seus novos sentidos.

A Nachleben como sobrevivência e transformação das imagens se

aproxima da imagem dialética como detalhada por Didi-Huberman: “há uma

estrutura em obra nas imagens dialéticas, mas ela não produz formas bem-

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formadas, estáveis ou regulares: produz formas em formação, transformações,

portanto efeitos de perpétuas deformações” (2010: 173). Assim, reafirma-se que

tanto as imagens dialéticas quanto as Pathosformel são estruturas abertas,

caracterizadas por uma relação temporal tramada por superposições, nunca por

uma progressão contínua ou linear.

Ao estudar a imagem pelo Atlas Mnemosyne, podemos perceber surgir

entre as imagens ali fixadas, essas transformações e deformações, o atlas não

promove a decifração das imagens, mas cria possibilidades de entendimento por

meio dos rastros que se fazem entre elas, e daí a percepção da imagem na sua

complexidade. Os intervalos negros são fundamentais nesse sentido, pois são a

estrutura epistemológica do atlas, abrem espaço para as associações possíveis,

permitem que por entre as imagens surjam os lampejos, o conhecimento que se

processa impulsionado pelas imagens dialéticas, sobre elas e seu modo de ser

e de comunicar. Dessa maneira, não só as imagens que compõem o atlas são

dialéticas, como também o são as imagens que surgem das conexões entre elas.

Em mais um célebre trecho de Passagens, Benjamin observa:

O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas, sobretudo, que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo o presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. [...] A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura (BENJAMIN, 2007: 504, 505 [N 3, 1]).

As imagens só se tornam legíveis em determinado momento e atingir essa

legibilidade é um ponto crítico de seu movimento. A sobrevivência das imagens,

como pensada por Warburg, parece relacionar-se fortemente com essa

observação de Benjamin. É como se a Nachleben permitisse que a imagem, ao

se transformar, fosse também traduzida para o tempo presente. A força e a

maleabilidade da imagem a fazem encontrar uma forma no presente e, em seu

movimento de transformação, ela, carregando em si outros tempos, se atualiza

e se relaciona com seu próprio tempo. O lampejo ou a possibilidade de produzir

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conhecimento ocorrem justamente nesse momento crítico, quando a imagem

rompe o presente.

Didi-Huberman destaca que essa legibilidade não pode ser tratada como

redução da imagem aos seus “temas” ou “conceitos”. “A legibilidade

benjaminiana deve ser compreendida como um momento essencial da imagem

mesma – que ela não reduz, posto que dela procede –, e não como sua

explicação, por exemplo sua explicação iconológica” (DIDI-HUBERMAN, 2010:

182). Como Benjamin considera a imagem “aberta” e “inquieta”, tal legibilidade

está aberta ao devir, ou seja, está sempre se constituindo a cada olhar, pelo

modo como é olhada e pela maneira como olha o “olhante”.

Imagem dialética e Fotografia

As imagens dialéticas, as fórmulas de páthos regidas pela Nachleben e

também as fotografias são atravessadas pela instância da memória. Boris

Kossoy afirma sobre a fotografia:

Fotografia é memória enquanto registro da aparência dos cenários, personagens, objetos, fatos; documentos vivos ou mortos, é sempre memória daquele preciso tema, num dado instante de sua existência/ocorrência. É o assunto ilusoriamente re-tirado de seu contexto espacial e temporal, codificado em forma de imagem (KOSSOY, 2007: 131).

A afirmação trata a fotografia como imagem que fixa ou documenta

determinada cena num dado momento, mas esse aspecto deve ser entendido

como apenas uma das possibilidades intrínsecas da fotografia, é preciso

considerar também que a fotografia transforma aquilo que registra ao codificar

um objeto em imagem. Kossoy também trata a fotografia como uma imagem do

campo da ficção, portanto, uma memória que não é estável ou absoluta porque

também pode ser transformada de diversas maneiras, pelos diferentes meios e

suportes nos quais se materializa, pela finitude ou deterioração desses suportes

e, mais importante, essa memória não é fixa, porque depende do contexto no

qual será rememorada.

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No Atlas Mnemosyne, a fotografia perde um equivocado entendimento de

imagem fixa ou acabada, porque o atlas é instável, inacabado, sempre aberto a

ser transformado, assim como as imagens pensadas pelo viés da Nachleben. A

sobrevivência das imagens está vinculada à memória que carregam, uma

memória viva que, num processo conflituoso desperta elementos latentes, faz

adormecer elementos ativos, é uma memória não acabada e em fluxo constante.

Ao investigar as relações entre a comunicação, a cultura, o tempo e o

espaço, Lucrécia Ferrara trata também da distinção entre lembrança e memória:

“lembranças são dados estanques definitivamente inscritos no passado”

(FERRARA, 2008: 105). Já a memória, “como marca do presente, constrói, no

espaço do seu exercício, um outro tempo-agora” (FERRARA, 2008: 133). As

lembranças por pertencerem ao passado, são fixas, não evoluem, enquanto que

a memória está relacionada ao presente e pressupõe um movimento, uma ação.

A memória proporciona um diálogo com o passado, mais que isso, transforma-o

em presente. Como na afirmação do jornalista Eugênio Bucci, sobre uma

temporalidade própria das imagens dos álbuns de família: “Passado, futuro, ora,

essas coisas não existem. Tudo o que sou e tudo o que vivi está aqui no

presente” (Bucci, In: MAMMI, 2008: 74). É nesse sentido que a memória se

relaciona com a imagem dialética:

Não há portanto imagem dialética sem um trabalho crítico da memória, confrontada a tudo o que resta como ao indício de tudo o que foi perdido. Walter Benjamin compreendia a memória não como a posse do rememorado – um ter, uma coleção de coisas passadas –, mas como uma aproximação sempre dialética da relação das coisas passadas a seu lugar, ou seja, como a aproximação mesma de seu ter-lugar. [...] Deduzia disso uma concepção da memória como atividade de escavação arqueológica, em que o lugar dos objetos descobertos nos fala tanto quanto os próprios objetos, e como a operação de exumar alguma coisa ou alguém há muito enterrado na terra, posto em túmulo (DIDI-HUBERMAN, 2010: 174).

Para pensar as possíveis relações entre imagem dialética, a memória e a

fotografia, retornamos ao livro O instante contínuo de Geoff Dyer (2008). Como

foi visto, a obra faz uma espécie de arqueologia da história da fotografia por meio

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de aproximações entre imagens de tempos e espaços distintos, que se juntam

pela conexão de rastros de personagens ou cenas.

Ao tratar de mãos como um dos temas que servem como princípio

organizador de sua classificação particular da história da fotografia, Dyer

comenta que, em razão da conhecida dificuldade de se desenharem mãos, o

surgimento da fotografia foi um modo de superar essa limitação e, numa

afirmação aparentemente irônica, como muitas ao longo do livro, o autor diz que

a câmera fotográfica “é tanto um meio de mostrar a mão humana quanto de

superar suas incertezas e limitações” (DYER, 2008: 61).

Se a câmera supera a mão humana no que diz respeito a fazer uma

representação mais fidedigna do objeto retratado, por outro lado, tanto quanto o

olho, a câmera “vê” de modo fragmentado, ou seja, nunca é absolutamente fiel

ao que registra, porque o faz sempre parcialmente. Tendo isso em vista, é

possível pensar sobre algumas imagens do conjunto de fotografias do livro, que

têm nas mãos seu elemento expressivo principal.

Dyer destaca uma fotografia muito conhecida de Dorothea Lange,

fotógrafa americana que trabalhou para o governo na década de 1930, num

projeto intitulado Farm Security Administration8. A imagem retrata uma mãe com

seus três filhos em situação de miséria. Não se vê o rosto de nenhuma das

crianças, apenas o da mãe, que tem o olhar perdido e, num gesto que Dyer

descreve como de ansiedade, mas que talvez seja também de desesperança,

leva a mão à boca. O autor analisa essa fotografia junto a outra, feita por James

Nachtwey, e diz que o gesto não se alterou em sessenta anos.

Nachtwey é um fotógrafo também americano, que se especializou em

registrar guerras. A fotografia analisada foi feita no Kosovo, durante o regime de

Slobodan Milosevic, que impôs uma violenta campanha de ataques a minorias

étnicas.

8 O projeto tinha por objetivo documentar e fazer um levantamento da situação vivida pela

população rural dos Estados Unidos, buscando soluções para a crise social e econômica que ela atravessava. Além de Lange, outros fotógrafos como Walker Evans, Arthur Rothstein e Russell Lee também participaram do trabalho.

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Fotografia superior: Dorothea Lange, Califórnia, 1936

Fotografia inferior: James Nachtwey, Kosovo, 1999

Ao juntar as duas fotografias, Dyer nos faz perceber a sobrevivência das

fórmulas de páthos, pelo gesto que perdura, no olhar perdido das mulheres e,

também entre as duas imagens, no tempo que as separa e pela memória que as

une, memória que é dialética, que se imobiliza num lampejo para juntar

fragmentos de tempos distintos, que ganham lugar no presente. Assim, ao reunir

as duas fotografias, percebe-se uma terceira imagem, que surge numa brecha

entre as duas primeiras, uma imagem dialética que não se torna visível

materialmente, mas que se constitui pelos rastros que emergem no presente e

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que decorrem do tempo que age e transforma, enquanto também mantém o

gesto das mulheres.

Eugene Smith fotografou, em 1955, um menino deixando marcas de suas

mãos numa parede. Dyer percebeu uma relação estreita entre essa imagem e

outra produzida por Nachtwey, novamente na guerra do Kosovo, Pec, em 1999.

Na fotografia, há marcas de mãos feitas com sangue sobre a parede de uma

casa.

Eugene Smith, Pittsburg, 1955

James Nachtwey, Pec, Kosovo, 1999

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[...] da mesma forma como uma cidade às vezes é considerada ‘irmã’ de outra, a milhares de quilômetros, em outro país, também fotografias separadas por muitos anos, tiradas por diferentes fotógrafos e com diferentes intenções em mente, podem tornar-se tão intimamente associadas que o significado de uma ou de ambas muda de maneira irrevogável (DYER, 2008: 70, 71).

A afirmação de Dyer nos remete mais uma vez à montagem. Como já foi

discutido, a montagem em curso no Atlas Mnemosyne atua de modo que as

imagens ampliem seus sentidos porque não se fecham em si mesmas, mas são

permeáveis a outras imagens. Na história da fotografia não linear de O instante

contínuo, essa mesma lógica traz à tona a complexidade das imagens. É a

montagem construída pelo pesquisador num processo arqueológico que atua

para permitir que a porosidade das imagens seja ativada e que seus sentidos

sejam transformados pelas associações.

Como diz Didi-Huberman, “a memória é montadora por excelência:

organiza elementos heterogêneos, escava fendas na continuidade da história”

(2013: 419). Pois é numa dessas fendas temporais que estão as junções entre

essas fotografias. É por essa memória que atravessa as imagens, por essa

montagem entre elementos díspares que se encontram, que emerge um novo

sentido. Assim, essas fotografias podem ser vistas como imagens dialéticas, que

se abrem para criticar a si mesmas e provocar novos olhares.

Para Benjamin, a imagem dialética é “não arcaica”. Didi-Huberman

esclarece que, para a arte ou para a imagem produzida num discurso de

conhecimento, ser arcaica é assumir uma “função regressiva”, é buscar um lugar

no passado (2010: 192). Desse modo, a imagem dialética tem originalidade

porque se faz na emergência do presente. As mãos nas paredes feitas pela

brincadeira do menino, ou pela guerra que destroça a casa de uma família,

carregam rastros das mãos marcadas nas paredes das cavernas, o desejo do

ser humano de se fazer visível e de se perpetuar, mas essas fotografias,

principalmente pelo modo como se juntam, numa “colisão” inesperada, não são

arcaicas, mas “autênticas”:

Quando uma obra consegue reconhecer o elemento mítico e memorativo do qual procede para ultrapassá-lo, quando

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consegue reconhecer o elemento presente do qual participa para ultrapassá-lo, então ela se torna uma ‘imagem autêntica’ no sentido de Benjamin (DIDI-HUBERMAN, 2010: 193).

As marcas sangrentas na parede da casa em Pec carregam um passado

– as mãos nas cavernas e também a fotografia anterior do menino que brinca de

ver a marca de sua mão –, mas essa imagem ultrapassa esse passado e traz à

tona um presente distinto, carregado de dor e marcado pela guerra. A fotografia

critica sua própria imagem, a guerra e a imagem da guerra.

Para Benjamin, como visto, a imagem dialética só se dá pela ação da

memória como uma atividade de escavação arqueológica, na qual o lugar

escavado diz tanto quanto os objetos que nele se encontravam. Assim, a imagem

dialética é também a imagem desse conflito entre o que foi e o que é, num

constante movimento que não a deixa acabada, mas a mantém sempre se

fazendo por essa trama de tempos. As fotografias das mãos nas paredes têm

rastros uma da outra, foram produzidas em momentos diferentes, mas uma se

faz presente na outra, como rememoração ou previsão.

Ao tratar da obra de Warburg, Ginzburg destaca a influência que esta teve

da teoria da evolução de Darwin e as tensões entre as dimensões da cultura e

da evolução que se estabelecem em seu pensamento:

A transmissão das Pathosformeln depende de contingências históricas; as reações humanas a essas fórmulas, porém, estão sujeitas a circunstâncias completamente diferentes, em que os tempos mais ou menos curtos da história se entrelaçam com os tempos bastante longos da evolução (GINZBURG, 2014).

A complexidade da proposta warburguiana se relaciona a essas tensões,

aos entrelaçamentos entre dados evolutivos e culturais. Parece surgir aí um traço

ambivalente das fórmulas de páthos – os gestos humanos que têm raízes

evolutivas são reelaborados pela cultura ao se materializarem como imagens.

As fotografias vistas acima, das mulheres com as mãos apoiadas no rosto, e das

mãos estampadas nas paredes, parecem se relacionar com esses dados

morfológicos e culturais que se inter-relacionam. O gesto humano, que no caso

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das mães desesperadas pela situação de miséria, se faz por um reflexo instintivo

é ressignificado e dotado de um caráter cultural quando registrado em imagem.

Outro aspecto importante do trabalho de Warburg é ressaltado por

Ginzburg (2014): o de que “gestos similares podem assumir significados

opostos”, como os gestos da Antiguidade retomados e reelaborados no

Renascimento com um significado inverso. Assim, percebe-se com clareza que

a Nachleben não só atua na permanência das imagens, mas muito intensamente

na sua transformação, inclusive na recriação e oposição de sentidos. As

fotografias das mãos marcadas nas paredes podem ser relacionadas a esse

aspecto da sobrevivência das imagens, o gesto que as origina é o mesmo, o

rastro deixado pelo contato das mãos sobre a superfície, mas o contexto e o

sentido das imagens se opõem, enquanto na fotografia do menino há um aspecto

lúdico e vivaz a imagem das mãos carimbadas com sangue é carregada de um

prenúncio de morte.

A fotografia feita na guerra pode ainda assumir um sentido completamente

inverso, se não acompanhada das informações do seu contexto de produção.

Sem o conhecimento sobre como se deu o registro da imagem, a fotografia

ganha contornos tão lúdicos quanto a da imagem em que aparece a criança

brincando. A pós-vida da imagem se caracteriza por ser outra(s) vida(s), numa

continuidade não linear, com possibilidades de negações, oposições ou

repetições.

A imagem como superfície

Vilém Flusser afirma que a comunicação humana tem por objetivo

armazenar, processar e transmitir informações e que a cultura é o dispositivo

para esse feito (2014b: 34). Nesse sentido, o ser humano empenha-se numa luta

contra sua própria natureza, contra a certeza da morte. Assim, diz Flusser, a

comunicação humana é a negação de um princípio da física (termodinâmica) e

de um princípio da biologia (legado de informações apenas genéticas) (2014b:

35).

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Para o filósofo, a comunicação é responsável pela cultura (2014b: 45) e

tem distintos modelos epistemológicos ao longo do tempo – a imagem, o texto,

a imagem técnica. O estudo desses mecanismos de armazenamento e

transmissão de informações deixa claro que o interesse do autor não está em

entender apenas por que o homem se comunica, mas também em compreender

como o faz.

Essa investigação é desenvolvida por Flusser pelo estudo dos gestos

humanos, de acordo com um duplo princípio: toda comunicação implica um gesto

e todo gesto implica uma mensagem/comunicação (Bernardo, In: FLUSSER,

2014a: 7). Além disso, Flusser afirma que a teoria geral dos gestos é anti-

historicista, e se diferencia da filosofia da história porque entende que os

fenômenos pesquisados ocorrem em espaço-tempo de quatro dimensões, e não

têm por eixo principal a linearidade do tempo, como ocorre com a filosofia da

história (FLUSSER, 2014a: 24). Desse modo, o pensamento flusseriano sobre a

comunicação, a cultura e os gestos se faz por método arqueológico,

considerando que os objetos são analisados em sua emergência particular, sem

que sejam fixados numa linha evolutiva.

Seguindo o intuito de entender as particularidades do comunicar por

imagem, é possível perceber relações entre os autores estudados, que, como

visto, também operam pelo processo arqueológico: Flusser, Benjamin e Warburg

tratam da imagem como um modo de pensar, com seu sentido não fixo, ou seja,

não há um significado oculto nas imagens, este se constrói arqueologicamente,

pelas inferências que surgem quando as imagens são analisadas. Algumas

relações nesse sentido serão traçadas a seguir, antes, porém, serão feitas

algumas considerações sobre os conceitos de linha e superfície.

Flusser analisa a comunicação humana a partir dos seus principais

códigos de registro – as linhas e as superfícies. As linhas dizem respeito ao modo

pelo qual se processam os textos, já as superfícies estão relacionadas a como

se dão as imagens:

As linhas escritas impõem ao pensamento uma estrutura específica na medida em que representam o mundo por meio dos significados de uma sequência de pontos. Isso implica um estar-no-mundo “histórico” para aqueles que escrevem e que

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leem esses escritos. Paralelemente a esses escritos, sempre existiram superfícies que também representavam o mundo. Essas superfícies impõem uma estrutura muito diferente ao pensamento, ao representarem o mundo por meio de imagens estáticas. Isso implica uma maneira a-histórica de estar-no-mundo para aqueles que produzem e que leem essas superfícies (FLUSSER, 2007: 110).

A citação explicita que os textos e as superfícies, além de serem formas

de registrar o mundo e o conhecimento, são também sistemas epistemológicos

diferentes, na medida em que a comunicação em linha nos faz pensar de um

modo distinto daquele suscitado pela superfície. Tanto imagens como textos são

mediações entre o homem e o mundo, que ocorrem, porém, por diferentes

operações e têm temporalidades distintas.

As imagens representam o mundo em superfícies que, ao serem

observadas, não indicam seu início ou seu fim, não impõem um modo único ou

determinado para sua observação. O tempo de leitura de imagens é “circular”, é

tempo do “eterno retorno” (FLUSSER, 2002: 8) e permite, ao olhar que transita

pela imagem de modo livre ir e vir ou deter-se em algum ponto. Essa operação

regida pelo tempo circular está relacionada à consciência pré-histórica.

Os textos, nos diz Flusser (2002: 9), provêm das imagens que são

rasgadas, desfiadas e alinhadas, fazendo surgir a consciência histórica. Assim,

o mundo passa a ser representado por linhas e de modo processual. O tempo

de leitura das linhas tem começo, meio e fim, é um tempo linear que impõe que

a leitura seja feita de uma maneira específica. O filósofo (FLUSSER, 2007: 113)

afirma que as linhas concebem os fatos ponto por ponto, ao passo que as

superfícies os “imaginam” por meio de plano bidimensional. Em decorrência

dessas diferenças, surgem dois tipos de ficção, a conceitual e a imagética.

As linhas e as superfícies distinguem-se na sua constituição e no modo

pelo qual significam os fatos, geram diferentes ambientes de apreensão do

mundo e influenciam nossa percepção sobre ele. A escritora Noemi Jaffe, em

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sua lida com a palavra, expõe de modo claro e poético essas distintas maneiras

de pensar, num pequeno texto denominado visão9:

meu aprendizado das coisas do mundo é tão absolutamente mediado por palavras, que creio ter desaprendido a praticar o sentido da visão sem esta mediação. para cada trabalho de arte que vejo, quando percebo já estou narrando, pontuando, acentuando, interpretando metáforas. se não consigo fazer isto, quando o apelo sensível é tão forte que me retira as palavras, sinto uma mistura de prazer e abandono. fico só diante de um barulho visual. [...] ver, para mim, é um esforço que precisa combater décadas de letras, palavras, línguas e histórias atabalhoadas, atropelando-se umas às outras, temerosas de cair por terra no momento em que eu conseguir olhar.

O texto de Jaffe aponta diferentes modos de tomar consciência do mundo

e aproxima-se das diversas temporalidades e modos de comunicar da escrita e

da imagem. O tempo da imagem está relacionado a essa espécie de abandono

diante dela, ou seja, uma entrega que não prevê regras, que não modela a

postura, diferente da linha, que dita como se deve ler e nos entrega conceitos

mais bem-formulados que as cenas vistas nas imagens, uma vez que o

entendimento da ficção conceitual é mais pobre que os sentidos da ficção

imagética, embora seja mais claro (FLUSSER, 2007: 115).

Para Flusser a imagem se relaciona com poder mágico, entendendo a

magia como “existência no espaço-tempo do eterno retorno” (FLUSSER, 2002:

78), o tempo circular. Já os textos nos impulsionam sempre para frente, para

seguir a linha ponto por ponto, conceituando e explicando as imagens. E Flusser

relaciona esse progresso linear a algo pejorativo, pois, para ele, só se progride

para a morte.

Além da relação entre os textos e as imagens, o autor também investiga

as características de um terceiro sistema de representação – a imagem técnica:

Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos – o

9Texto disponível no blog da escritora. Acesso em 09/11/2015.

http://nadaestaacontecendo.blogspot.com.br/2010/11/visao.html.

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que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais (FLUSSER, 2002: 13).

As imagens técnicas inauguram o período pós-histórico. No período pré-

histórico, o significado da realidade era expresso pelas imagens tradicionais; no

histórico, passou a ser definido por conceitos, pelos abstratos textos científicos

e, no pós-histórico, a realidade e o sentido do mundo são determinados pelas

imagens produzidas pelos aparelhos. Enquanto as imagens tradicionais,

pictóricas, são “superfícies abstraídas de volumes”, as imagens técnicas são

“superfícies construídas com pontos” (FLUSSER, 2008: 15).

Flusser ressalta a diferença no gesto que produz cada tipo de imagem: a

imagem tradicional se faz pelo gesto de abstrair, a imagem técnica se dá pelo

gesto de concretizar. Essa distinção decorre em nível ontológico próprio para

cada tipo de imagem, como detalhado por Baitello:

A imagem técnica ou tecno-imagem é a imagem pós-escrita, não mais feita de planos ou superfícies, mas de pontos, grânulos, pixels. É aparentemente regressiva ao retornar a uma suposta bidimensionalidade, mas a rigor ela não é feita de duas dimensões como os suportes que a transmitem, as telas de televisores, de monitores. Uma vez que é feita de pontos, é nulodimensional, é da ordem do grau zero do espaço (Baitello, In: FLUSSER, 2008: 10).

Como afirma Flusser (2008: 29), a imagem técnica é superfície aparente,

pois é composta de intervalos, justamente os espaços entre os pontos

formadores da imagem. Mesmo ontologicamente diferente, a imagem técnica,

diz o autor, é tão simbólica quanto a imagem tradicional, deve também ser

decifrada por quem deseja entender seu sentido (FLUSSER, 2002: 14), com a

complexidade de que seu significado não se faz apenas em sua superfície, mas

também pelo programa do aparelho que a gerou.

Assim, como a escrita é “metacódigo da imagem” e decifrar textos é

“descobrir as imagens significadas pelos conceitos” (FLUSSER, 2002: 10), a

imagem técnica é “metacódigo de textos”, porque provém de textos científicos

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que programam os aparelhos, são símbolos muito abstratos, que “codificam

textos em imagens” (FLUSSER, 2002: 14).

Rafael Cardoso afirma que Flusser “prega a novidade urgente de futuro

sem história” (Cardoso, In: FLUSSER, 2007: 9), e isso pode ser entendido como

um futuro em que o pensamento seja desenvolvido pela síntese entre textos e

imagens. Segundo Flusser, “a epistemologia ocidental é baseada na premissa

cartesiana de que pensar significa seguir a linha escrita, e isso não dá crédito à

fotografia como uma maneira de pensar” (2007: 111). Tal afirmação explicita o

pós-histórico como a complexidade da junção entre imagens e textos, e as

relações desses meios com as imagens técnicas.

Ressaltando o caráter não historicista ou não evolutivo de seu

pensamento, Flusser se vale da imagem de espiral para tratar da comunicação

contemporânea:

a civilização contemporânea não parece ser o resultado de um desenvolvimento linear que se origina de uma imagem e vai até um conceito; parece mais o resultado de um tipo de espiral que vai da imagem, passando pelo conceito, à imagem (FLUSSER, 2007: 120).

Esse movimento em espiral abrange as relações entre os diferentes

gestos, diferentes sistemas de representação que atuam na comunicação

humana. A espiral não aponta um fim, mas ao contrário, faz-se num movimento

que abarca complexidades. Da imagem ao texto, à imagem – essas

transformações não tratam apenas de alteração no modo de representar o

mundo, mas são transformações profundas na maneira pela qual o ocupamos e

o acessamos – são transformações que alteram nossa forma de pensar. Nesse

aspecto, Flusser parece em sintonia com Warburg e Benjamin.

As superfícies do Atlas Mnemosyne

Ao tratar do conhecimento produzido pelas imagens, Flusser define um

método para a observação e deciframento das superfícies:

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O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser ‘aprofundar’ o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado de scanning (FLUSSER, 2002: 7).

O scanning é, então, um movimento do olhar que aciona o raciocínio a

partir das relações entre o espaço e o tempo das imagens. O gesto de escanear

faz o observador vaguear pelo espaço da superfície estabelecendo relações

entre os diferentes elementos da imagem. Como o tempo da imagem é circular

e não linear ou sucessivo, os elementos são vistos numa sequência que não está

predeterminada, e que segue a estrutura da imagem, mas também considera “os

impulsos no íntimo do observador” (FLUSSER, 2002: 8). O tempo é estabelecido

pelas relações entre elementos no espaço, é a espacialidade da imagem que

aciona o movimento do tempo. Não é justamente assim que se dá o

conhecimento pela relação entre as diferentes imagens na superfície do Atlas

Mnemosyne?

[...] trata-se para Warburg, de abrir o Atlas para intensidades que nascem da espacialização das imagens, usando a superfície tabular da prancha como um equivalente sincrônico da sucessão diacrônica das imagens na fita cinematográfica: as fotografias dispostas nas pranchas não podem ser consideradas peças isoladas, mas devem ser relacionadas com a cadeia de imagens em que se inscrevem (MICHAUD, 2013: 321).

O sentido que o cinema produz pela sucessão temporal é construído no

atlas pelos movimentos circulares, pelo olhar que vagueia oscilando entre a

superfície da cada imagem e a superfície ampla de cada painel. Como visto

anteriormente, a montagem no atlas se vale da espacialidade das imagens e

também dos intervalos negros entre elas, que são também elementos do espaço

que funcionam como elementos cognitivos. O atlas desfaz qualquer linearidade

da relação entre as imagens – elas são tanto vistas uma após outra, para efeito

de comparação, como também são percebidas simultaneamente, justamente

como o método do scanning flusseriano.

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Didi-Huberman comenta que o atlas é um “meio visual desdobrado” (2013:

387), que permite que o acervo de imagens seja visualizado de modo amplo e

não editado, resumido ou linear, como ocorre, por exemplo, numa apresentação

oral numa conferência. É justamente o caráter de superfície imagética do atlas

que proporciona este modo de expressar e produzir conhecimento pelas

relações entre as imagens.

Flusser observa que a consciência histórica está relacionada à escrita, à

linearidade de processamento dos textos; Didi-Huberman afirma que o formato

do atlas surge também por uma característica “estranha” para um historiador

como Warburg – a incapacidade de contar a história da arte como uma

sequência ordenada de eventos (DIDI-HUBERMAN, 2013: 390). O atlas trata a

história da arte potencializando a consciência a-histórica das imagens, aquilo

que é mesmo seu dado constituinte, sua expressão por superfícies e não por

linhas. Assim, o atlas ativa a circularidade das imagens como um modo de

pensar.

[...] a diferença entre ler linhas escritas e ler uma pintura é a seguinte: precisamos seguir o texto se quisermos captar sua mensagem, enquanto na pintura podemos apreender a mensagem primeiro e depois tentar decompô-la. Essa é, então, a diferença entre a linha de uma só dimensão e a superfície de duas dimensões: uma almeja chegar a algum lugar e a outra já está lá, mas pode mostrar como lá chegou. A diferença é de tempo, e envolve o presente o passado e o futuro (FLUSSER, 2007: 105).

Essa relação temporal que envolve o presente, o passado e o futuro se

dá no modo como percebemos o significado das imagens, do tempo inserido na

sua leitura, como afirma Flusser, e também na maneira como o tempo as

transforma, afetando sua plasticidade e fazendo com que elas sobrevivam, como

pensado por Warburg.

Esse tempo não linear também pode ser relacionado com o tempo

“carregado de agora” como dito por Benjamin. Voltando ao atlas, percebemos

que as superfícies das imagens – de cada imagem individual, como também a

superfície de cada painel que contém várias imagens – são articuladas a fim de

promover uma história da arte que não se vale dos preceitos de uma

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historiografia progressista. O agora de cada imagem ocorre na relação com o

tempo circular que o espaço do atlas põe em movimento.

As superfícies das fotografias

As imagens técnicas se diferenciam das tradicionais pelo seu modo de

produção – são desenvolvidas por aparelhos construídos com base em um

programa, e a compreensão dos seus significados não pode ocorrer sem que

isso seja considerado. A fotografia inaugura a produção das imagens técnicas,

seu caráter de reprodutibilidade mecânica e de produção no interior da caixa

preta.

Flusser analisa a imagem técnica e suas implicações estéticas e políticas,

ressaltando que os programas que definem o funcionamento das câmeras e

outros aparatos de produção de imagens modelam ideias e comportamentos:

os novos meios, da maneira como funcionam hoje, transformam as imagens em verdadeiros modelos de comportamento e fazem dos homens meros objetos. Mas os meios podem funcionar de maneira diferente, a fim de transformar as imagens em portadoras e os homens em designers de significados (FLUSSER, 2007: 159).

Essa emancipação só pode acontecer se houver clareza de que a imagem

técnica provém de um programa, de conhecimento altamente especializado

codificado em linhas. O caráter técnico não pode ser confundido com uma

objetividade ou neutralidade das imagens. Ao contrário, a imagem técnica

carrega, além das intenções de seus criadores, uma camada de significado que

decorre das intenções dos produtores dos programas dos aparelhos.

Flusser diz, ainda, que “o caráter aparentemente não-simbólico, objetivo,

das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem

janelas, e não imagens” (2002: 14). As imagens técnicas são tão simbólicas

quanto as tradicionais e seu deciframento, afirma o autor, depende da

“imaginação”, definida como a “capacidade para compor e decifrar imagens”

(2002: 78). A imaginação articula-se, então, como espécie de lucidez do

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observador diante do programa que define os parâmetros de funcionamento dos

aparelhos. Ter a capacidade de compor e decifrar imagens significa também a

tentativa de jogar contra o aparelho, ter ciência das características da caixa

preta, de seu modo de operar e agir para subverter seu programa.

A imaginação é, portanto, uma capacidade de ação. Quem não tem tal

capacidade só pode agir passivamente em função do aparelho – é um

“funcionário”: “pode-se dizer que o aparelho se apropria da vontade do

funcionário, devorando sua força de decisão” (BAITELLO, 2010: 21). Sair do

estado de passividade alienada exige o desenvolvimento da consciência

imagética ou pós-histórica, a consciência dos processos de codificação das

imagens técnicas.

Essa capacidade imaginativa pode construir conhecimento por imagens,

é o que podemos dizer que ocorre no Atlas Mnemosyne. Como visto, Warburg

apropria-se das características e possibilidades da fotografia para construir o

atlas e estudar a pós-vida das imagens. A reprodutibilidade, a facilidade de

ampliar ou recortar as imagens, a possibilidade de transportá-las para suportes

distintos, todos esses aspectos são explorados no modo pelo qual o atlas se

constrói. Evidentemente, Warburg não estava alheio às características técnicas

e programáticas da fotografia, mas usou a imagem fotográfica de forma

“imaginativa”, explorando sua capacidade de reprodução para aproximar

imagens do contexto da história da arte e perceber as implicações dessas

aproximações.

Seria possível também traçar uma aproximação entre as imagens

técnicas e a sobrevivência das imagens? Flusser afirma que “as imagens que

brilham na tela escondem em si restos de sacralidade pré-histórica e do

engajamento histórico” (2007: 157). De certa maneira, há uma sobrevivência

também nas imagens técnicas, que carregam elementos das imagens

tradicionais e das linhas.

Na particular história da fotografia desenvolvida por Geoff Dyer (2008), o

“instante contínuo” que conecta diferentes fotografias também se constitui por

um pensamento “imaginativo”, capaz de perceber que as imagens fotográficas

não são janelas para o mundo, mas têm seus significados construídos pelo seu

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aparelho gerador e pelo contexto histórico de sua produção. Além disso, Dyer

ressalta o caráter não fixo ou estável da fotografia, com imagens que, longe de

se constituírem como elementos isolados, se juntam em conexões imprevistas

em diferentes tempos e espaços.

Para analisar algumas dessas junções e suas implicações no contexto

das imagens técnicas relacionadas à pós-vida das imagens e às imagens

dialéticas, veremos, a seguir, uma apropriação da estratégia warburguiana de

montagem de painel imagético. O intuito dessa montagem é observar e analisar

imagens que constituem a história da fotografia como elaborada por Dyer, e

também uma continuidade desta, com fotografias produzidas recentemente. A

análise é feita a partir de superfícies que levam em conta também os intervalos

negros entre as imagens, tal como proposto por Warburg em seu atlas.

O primeiro painel foi montado com fotografias de diferentes portas,

analisadas no livro O instante contínuo. Como em outras sequências de imagens

estudadas por Dyer, e já mencionadas neste trabalho, o autor relaciona imagens

de momentos distintos que têm em comum uma estrutura visual e temática.

Tratando especificamente dessas fotografias de portas, o autor comenta

que a história da fotografia parece se fazer de versões de um conjunto de cenas,

de um repertório que não é fixo, que está sempre em expansão, mas que, ao

mesmo tempo, tem elementos que foram definidos ainda no princípio da

fotografia (DYER, 2008: 219). Nesse sentido, é notável que a porta que nos deixa

entrever um espaço interno não muito definido, na fotografia de Talbot, um dos

precursores da técnica fotográfica, persista e sobreviva em outras fotografias

posteriores.

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Painel montado com fotografias analisadas no livro O instante contínuo.

Em sentido horário: Willian Henry Fox Talbot, 1844

Paul Strand, Vermont, 1946, Eugène Atget, 1900

Walker Evan, Maine, 1962

A junção dessas fotografias analisadas por Dyer num painel imagético

abre espaço para que se pense a relação entre as linhas e as superfícies. O

autor deixa claro, desde o início do livro, que sua intenção é tratar da história da

fotografia de um modo não linear, aproveitando-se das recorrências de cenas e

objetos ao longo do tempo para conectar imagens que, em princípio, não teriam

uma relação. Só que isso é feito num livro, ou seja, num meio que se caracteriza

pela linearidade da comunicação escrita.

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Desse modo, não é possível visualizar as distintas imagens

simultaneamente, elas são vistas na sucessão temporal que marca o

pensamento por linhas. Embora o leitor possa fazer retornos ou avanços não

programados pela linearidade, não pode visualizar as fotografias conjuntamente.

A reunião das imagens numa mesma superfície potencializa suas conexões, tal

como pensado por Warburg, a não linearidade das imagens se expressa quando

elas são percebidas e analisadas a partir da montagem.

O segundo painel montado pelo princípio warburguiano apresenta

fotografias produzidas por fotógrafos brasileiros contemporâneos que, apesar de

realizarem trabalhos muito distintos, podem ser conectados momentaneamente

por essas imagens em que portas entreabertas, abertas ou fechadas dão

continuidade às fotografias feitas anteriormente por grandes fotógrafos da

história.

A porta não é apenas um elemento visual que reaparece, mas um rastro

da sobrevivência da imagem que insiste num elemento que levanta várias ideias

e questionamentos. A porta pode ser entendida como passagem, como espaço

intermediário, elemento que não se localiza nem dentro, nem fora. Ao mesmo

tempo, quando fechada, é limite que se interpõe e impede a passagem.

A dialética da imobilidade que desfaz a linearidade do tempo cronológico

atua nessas fotografias de modo a criar em cada uma delas relações com as

imagens do passado e, entre elas, relações que só ocorrem no “agora”, no

presente que se faz por camadas de outros tempos. Em duas das imagens, as

portas já nem são exatamente portas, mas espaço limiar entre dentro e fora. O

tempo transforma a imagem, mas há uma insistência em alguns elementos de

sua forma, como a porta que convida o olhar a ver outro espaço e a luz que é

marcante de diferentes modos em cada fotografia.

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Painel montado com imagens de fotógrafos brasileiros.

Fotografias em sentido horário:

Cristiano Mascaro, Fernando Cohen

Tatiana Pontes, Daniel Ducci, Fernando Cohen

Como observa Flusser, “imagens não são conjuntos de símbolos com

significados inequívocos, como o são as cifras: não são ‘denotativas’. Imagens

oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos ‘conotativos’”

(FLUSSER, 2002: 8). Esse espaço interpretativo relaciona-se com a

compreensão da imagem como gesto arqueológico – o significado não está

pronto, oculto para ser revelado, mas é construído no ato de análise. Desse

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modo, a imagem caracteriza-se como um rastro, sua decifração ocorre como

operação heurística e não hermenêutica.

Para Foucault (2012: 10), a arqueologia não preza pela cronologia

contínua da razão, que tenta sempre remontar à origem dos eventos, mas, ao

contrário, abarca as descontinuidades para tentar perceber a história única de

cada acontecimento, em sua emergência no presente. Essa proposta relaciona-

se à de Flusser quando ele propõe sua comunicologia, que prevê a crítica como

ato que rompe um fenômeno para ver o que está por trás dele (FLUSSER,

2014a: 45). Esta foi a tentativa empreendida aqui: tentar ver o que está por trás

da imagem.

O presente capítulo foi desenvolvido para que fosse possível perceber

arqueologicamente, nas assinaturas de cada texto e conceito, como cada um

dos autores estudados pensou a imagem e como é possível relacionar esses

conceitos para compreender suas aproximações e também diferenças. Nesse

percurso ficou claro que as imagens possuem uma temporalidade própria que

contraria o modelo cronológico. As descontinuidades que atuam no modo de ser

e no modo de entender a imagem também estão presentes no texto, que

relaciona conceitos formulados em diferentes contextos.

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Asfalto, Tatiana Pontes

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CAPÍTULO 02

A cidade e a fotografia: ambivalências como potência comunicativa.

Imagem, Visualidade e Visibilidade

Ambivalências

Cidade: entre o programado e o vivido

Fotografia: a fabulação entre o documento e a ficção

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Este capítulo tem por objetivo investigar a cidade e a fotografia, tendo em

vista suas ambivalências, seus modos de constituição como linguagem e seus

processos comunicativos.

Tal investigação tem como ponto inicial um rastro evidenciado durante a

produção do capítulo anterior deste trabalho: ao estudar o conceito de imagem

e as relações entre o pensamento de Warburg, Benjamin e Flusser, destacou-se

que os três autores consideram a imagem como um processo, um objeto não

acabado, sempre presente, que promove variados fluxos não contíguos,

relacionados com o ver e o pensar. Nesse sentido, a imagem relaciona-se com

as categorias de visualidade e visibilidade, como definidas por Lucrécia Ferrara.

O estudo das relações entre imagem, visualidade e visibilidade será detalhado a

seguir para que seja possível, mais adiante, tratar das características da cidade

e da fotografia.

Imagem, Visualidade e Visibilidade

Ferrara (2002, 2007, 2008) desenvolveu uma ampla e aprofundada

pesquisa sobre o espaço e seus modos de representação – as espacialidades –

que são apreensíveis pelas visualidades e comunicabilidades (2007: 13). Para

possibilitar a observação e análise do espaço, põe-se em ação uma articulação

entre espacialidade, visualidade e comunicabilidade, considerando que as três

categorias são redutíveis entre si:

cada espacialidade supõe distintas visualidades e comunicabilidades, ou seja, se a visualidade põe em evidência a construção sígnica material e propriamente fenomenológica da espacialidade, a comunicabilidade expõe a relação diacrônica e sincrônica que se estabelece entre espacialidades, suas representações visuais e os significados que dela decorrem ou são construídos pelas relações entre indivíduos, suas interpretações e imaginários no plano da cultura e das inscrições históricas (FERRARA, 2007: 13).

Dessa maneira, visualidade articula-se como mediadora entre a

espacialidade e a comunicabilidade, e pode ser entendida como o modo de

aparecer da espacialidade, tanto por suas características como imagem

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percebida pelo olhar, como também por configurações que sensibilizam outros

sentidos. É importante destacar que a visualidade se constitui como dado

material que estimula ou provoca a visibilidade. Assim, visualidade e visibilidade

são categorias que não se separam, mas são discerníveis:

A visualidade corresponde à constatação visual de uma referência e, mais passiva, limita-se ao registro decorrente de estímulos sensíveis. A visibilidade, ao contrário, é propriamente semiótica, pois é compatível com a cognição perceptiva como alteridade que caracteriza e desafia a densidade sígnica (FERRARA, 2002: 101).

A visualidade está relacionada à percepção da materialidade sígnica de

uma imagem, ao passo que a visibilidade se relaciona com o fluxo cognitivo que

decorre dessa percepção: “a consciência da articulação entre espaço, imagem,

imaginário e cultura transforma a visualidade em visibilidade ou juízo daquilo que

se vê e se comunica” (FERRARA, 2008: 64). Assim, a visualidade pode ser

entendida como o modo de aparecer da imagem e a visibilidade é de natureza

cognitiva, não está diretamente ligada à materialidade da imagem, mas se

constrói a partir dela, ressignificando-a. É justamente na passagem da

visualidade para a visibilidade que a imagem se processa como conhecimento.

Para Warburg (2015), as imagens se constituem como um modo de

conhecimento e, assim como o próprio pensar, não se fixam e não produzem um

saber absoluto. Segundo o autor, a imagem é uma força que promove um

movimento. A força e o movimento fazem com que a imagem seja um objeto

aberto, tanto no que diz respeito a uma flexibilidade da sua forma, sua

visualidade, como também em relação à visibilidade. Tal abertura da imagem

para se transformar e vincular-se a outras imagens é propulsora da visibilidade,

pois dispara processos que atuam na produção de conhecimento.

Ao observar a constituição e o modo de comunicar do atlas Mnemosyne,

é possível perceber como as imagens, aliadas aos intervalos negros, operam

para dar visibilidade aos processos que se realizam e se explicitam justamente

pela configuração própria do atlas. Como foi visto, as propriedades formais e as

montagens do atlas possibilitam investigar a pós-vida das imagens. Assim, há

um processo de cognição que vai da visualidade do atlas e de suas imagens

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para a visibilidade – conhecimento construído com fundamento nessa

visualidade específica.

No mesmo caminho, a dialética da imobilidade como proposta por

Benjamin (2007) está relacionada não só com a imagem em si, mas também

com a visualidade na sua passagem para a visibilidade, já que se trata de uma

maneira de pensar, de construir conhecimento por imagens.

Benjamin afirma que a imagem dialética emerge nas rupturas do

movimento do tempo e do pensamento, nos momentos da mais alta tensão surge

a imobilidade que faz eclodir a imagem dialética. Nesse sentido, a imagem

dialética se faz como um insight que estimula inferências, e esse processo pode

ser relacionado com a visibilidade:

Visibilidade que corresponde à elaboração perceptiva e reflexiva das marcas visuais que ultrapassam o recorte icônico para serem flagradas em sutis indícios que, ao se tornarem visíveis, cobram a taxa de uma reação ativa adequada à sua complexa e cambiante materialidade (FERRARA, 2002: 120).

A visibilidade é, então, o ponto máximo da ação da imagem dialética,

esfera de elaboração reflexiva capaz de articular, nas brechas do tempo, um

pensamento crítico sobre a história, a cultura. Um pensamento que se faz por

uma constelação de imagens em fluxo contínuo, porém não linear, e que

justamente por isso, é carregado de possibilidades de rupturas que dão a ver,

que tornam visível a natureza daquele fluxo.

Como mencionado anteriormente, Benjamin relaciona a imagem dialética

a um processo de “legibilidade” que diz respeito ao ponto crítico do movimento

no interior da imagem. É importante lembrar que essa legibilidade não pode ser

confundida com uma explicação da imagem e que também não se atém somente

aos seus aspectos iconológicos (DIDI-HUBERMAN, 2010: 182). Para Benjamin,

a imagem só pode se tornar legível quando, carregada de camadas temporais

distintas, alcança o presente e comunica-se através da sua pluridimensão

temporal sem cronologia, é nesse “momento crítico” que ocorre a passagem da

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visualidade à visibilidade, momento em que a imagem se faz cognoscível e dá a

conhecer.

A imagem, tem essa capacidade de despertar relações cognitivas, de

comunicar, por meio da sua visualidade, porém, a simples constatação desta

não é suficiente para desencadear processos de construção de conhecimento.

A visualidade é carregada de rastros que necessitam ser ativados. Nesse

sentido, é possível entender a visibilidade como um processo arqueológico, em

que o tornar visível se dá pela apreensão e conexões das assinaturas. A

percepção fenomenológica da visualidade, portanto, não garante o

conhecimento por meio de imagens ou mesmo sobre elas e, para se chegar à

visibilidade que permite tal conhecimento, é preciso caminhar por entre os

rastros para ver além da visualidade, para explorar a potencialidade cognitiva de

ir além do que está formalizado.

Essa capacidade cognitiva está relacionada com a “imaginação”, como

pensada por Flusser (2002, 2007), como a capacidade para criar e decifrar

imagens ou, em outras palavras, a capacidade de ir da visualidade à visibilidade,

da percepção visual a reflexões que produzem conhecimento. O autor vincula a

imaginação com a possibilidade de subverter os programas, tanto os produtores

de imagens, como programas de outras ordens, visando esclarecer o

funcionamento das caixas pretas. Desse modo, a capacidade imaginativa pode

ser entendida como articuladora da visibilidade ou, ainda, como gesto

arqueológico, que não procura um significado oculto nas imagens, mas cria

sentidos a partir de rastros que se produzem nas relações entre a imagem, sua

visualidade, o programa que lhe deu origem e os dados do presente no qual a

imagem é vista.

Warburg, Benjamin e Flusser não tratam da imagem como elemento

fechado, com uma narrativa fixa, mas a investigam por meio de suas várias

visualidades, seus modos de aparecer e de suas respectivas visibilidades,

maneiras de comunicar e de pensar. Imagem, visualidade e visibilidade são

relacionais e esse entendimento é fundamental para a compreensão das

interações entre a cidade e a fotografia por suas ambivalências, como será

discutido a seguir.

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Ambivalências

A construção do pensamento ocidental, ao longo de toda a modernidade,

se baseia num princípio de racionalização, organização e classificação que tenta

erradicar tudo o que é ambivalente e escapa de classificações muito definidas.

Esse princípio está vinculado a uma visão de mundo antropocêntrica, que separa

a natureza da cultura, o corpo da mente, a razão da sensibilidade. Tal lógica

também se estabelece pela noção de progresso e linearidade do tempo. Por

outro lado, a ambivalência relaciona-se com um entendimento do tempo

contínuo, mas não estabelecido por contiguidade, em consequência, a

imprevisibilidade dos acontecimentos não é vista como algo ser domado.

Vale destacar que há uma sensível diferença entre os termos

ambiguidade e ambivalência: o primeiro está relacionado à separação entre duas

possibilidades compreendidas como uma polaridade; o segundo trata da

existência simultânea de aspectos que não se opõem, mas, contraditórios,

convivem em tensão. Assim, a ambiguidade opera pela oposição; a

ambivalência, mais complexa, opera pela via da sobreposição. Nos objetos

ambivalentes, há uma superposição de camadas sígnicas que atuam

simultaneamente.

Zygmunt Bauman (1999) define a ambivalência como a possibilidade de

um objeto ou evento não se restringir a uma determinada categoria, mas ter

características que o fazem pertencer a várias classes distintas. Para o autor,

isso está relacionado ao modo de ser da linguagem ou, ainda, é sua condição

normal e intrínseca, que ocorre de uma falha da sua principal função – a de

nomear e classificar: “A ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua

companheira permanente – com efeito, sua condição normal” (BAUMAN, 1999:

09). O autor adverte que, apesar de o caráter ambivalente ser um elemento

próprio da linguagem, a impossibilidade de classificar com precisão um objeto

que escapa à nomeação ordenadora, tão cara à modernidade, gera a sensação

de incerteza e perda de controle.

Bauman também caracteriza a questão da ambivalência tratando da figura

do “estranho”, aquele que não é nem o “amigo”, nem o “inimigo” (1999: 64). Sua

estranheza reside justo no fato de que pode, simultaneamente, ser ambos ou

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nenhum deles. O estranho distancia-se da oposição bem marcada e, ao não

deixar claro seu posicionamento, gera incerteza e desmonta o poder ordenador

da classificação. O estranho pode ainda se tornar um “inclassificável” que, por

sua natureza indefinível, questiona o princípio da oposição e a fragilidade das

dicotomias. O autor observa que, de acordo com o pensamento moderno, esse

inclassificável deve ser desarmado e exterminado, justamente porque o

ordenamento racional proposto pelo programa moderno tem, na classificação,

um dos seus fundamentos (BAUMAN, 1999: 68).

Apesar de todos os esforços desse modelo de pensamento para conter a

propagação da ambivalência, tal feito é impraticável na medida em que, como

afirma Bauman (1999: 22), novos problemas são gerados sempre pela resolução

de problemas anteriores e a atividade ordenadora é sempre afetada por caos e

complexidade:

Nenhuma classificação binária usada na construção da ordem pode se sobrepor inteiramente à experiência contínua e essencialmente não discreta da realidade. A oposição, nascida do horror à ambiguidade, torna-se a principal fonte de ambivalência. A imposição de qualquer classificação significa inevitavelmente a produção de anomalias (isto é, fenômenos que são percebidos como “anômalos” apenas na medida em que atravessam as categorias cuja separação é o significado da ordem) (BAUMAN, 1999: 70).

O modelo civilizatório ocidental moderno que se orientou na construção

de uma determinada ordem para se sobrepor ao caos tem, evidentemente,

impacto no modo de produção de conhecimento. Assim, vale destacar a

observação de que “para Descartes e para o pensamento moderno, a dúvida

metódica é uma espécie de truque homeopático que, no limite, deseja acabar

com a dúvida para chegar à certeza final” (Bernardo, In: FLUSSER, 2011: 11). O

pensamento cartesiano, como nos diz Flusser, equivoca-se porque duvida para

não mais duvidar, fazendo com que a dúvida seja, paradoxalmente, uma certeza.

Flusser afirma ainda que a saída para a situação da dúvida que visa à

certeza tem a ver com “o reconhecimento de que o intelecto não é um

instrumento para dominar o caos, mas é um canto de louvor ao nunca dominável”

(FLUSSER, 2011: 89). Ou seja, enquanto a racionalidade e a lógica do progresso

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impulsionam à ordenação, ao cálculo de probabilidades dos eventos e à

estabilidade, esse indominável de que fala Flusser está relacionado à

ambivalência, aos elementos que se constituem por processos complexos e

imprevisíveis, nos quais diferentes características estão inseparavelmente

imbricadas.

Enquanto para o pensamento moderno sujeito e objeto são polos opostos

de um eixo linear, a ciência contemporânea tem necessariamente de se rever e

incorporar a complexidade que não dialoga com categorias e compartimentos

previamente definidos nem com a linearidade da causa e efeito.

Nesse sentido, Ferrara afirma que “analogia, ficção, metáfora,

representação são termos que adquirem valor na ciência contemporânea para

designar outra maneira de produzir conhecimento” (2002: 173). A representação,

a ficção, a metáfora e a analogia são modos de tornar os fenômenos do mundo

cognoscíveis, mesmo que de forma parcial, provisória e marcada por

indeterminações. Ferrara também aponta que essa ciência não é determinista

porque recusa a se autodeterminar como verdade, “no caso da ciência

contemporânea, o que se oferece em sacrifício é a própria noção de certeza

científica dominada pela razão iluminista” (2002: 176).

Assim, a ambivalência apresenta-se como indeterminação, como traço

que distancia os objetos de uma simplificação dualista e de uma oposição bem

delimitada e os aproxima da complexidade e indefinição que questionam o

princípio da oposição e das dicotomias. É importante destacar que, como foi

mencionado, a ambivalência não é um traço do momento contemporâneo,

constitui a vida e o mundo desde sempre, mas foi sistematicamente amenizada

pelas tentativas de ordenação. Sua emergência na contemporaneidade deve ser

vista por outros ângulos, pelo modo como impulsiona a superar posições

cristalizadas, a lidar com a efemeridade, a incerteza e com os acontecimentos

do mundo em processo.

É com esse olhar, entendendo que a ambivalência constitui e embebe os

acontecimentos do mundo, e que sua indeterminação e imprevisibilidade não

podem ser erradicadas, mas ao contrário, devem ser percebidas como potência

e complexidade dos fenômenos, que serão detalhados, a seguir, alguns

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importantes traços da cidade e da fotografia. Para tratar dessas ambivalências,

o melhor seria que o texto que se segue fosse construído de modo a deixar que

essas características da cidade e da fotografia fossem lidas simultaneamente.

Na impossibilidade de constituir o texto de tal modo, pelos limites “linearizadores”

da construção verbal/textual, o texto irá tratar primeiro da cidade e, logo após,

da fotografia.

Cidade: entre o programado e o vivido

As cidades modernas desenvolveram-se intensamente no século XIX com

base em um projeto que visava suprir as necessidades de manutenção do

sistema capitalista e da revolução industrial. A configuração da cidade

contemporânea, evidentemente, carrega esses rastros e ainda está vinculada a

esse projeto.

Desde o século XIX, o Estado atua na tentativa de moldar o espaço da

cidade e o comportamento de seus habitantes. Tal atuação está ancorada num

temor de que a livre ação dos cidadãos possa ser prejudicial para os interesses

do Estado e do Mercado. Esse controle do espaço é feito pela programação

urbana, baseada na racionalidade, na tentativa de instalar a ordem e na

determinação de usos e funções do espaço público.

Nesse sentido, o urbanismo se faz por esquemas funcionalistas que

padronizam as cidades e impõem modos de usá-la e de ir e vir que rejeitam a

diferença, o espontâneo e o imprevisível. Porém, por mais racional e controlador

que seja, esse programa de instrumentalização da cidade não pode conter ou

estancar totalmente o surgimento de ações imprevistas.

O mundo é ambivalente, embora seus colonizadores e governantes não gostem que seja assim e tentem a torto e a direito fazê-lo passar por um mundo não ambivalente. As certezas não passam de hipóteses, as histórias não passam de construções, as verdades são apenas estações temporárias numa estrada que sempre leva adiante mas nunca acaba (BAUMAN, 1999: 189, 190).

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Essa ambivalência própria das coisas do mundo está integrada ao modo

pelo qual Milton Santos conceitua o espaço, como “síntese, sempre provisória,

entre conteúdo social e formas espaciais” (SANTOS, 1996: 88). O autor também

afirma que, como o espaço é resultado da inseparabilidade de sistemas de

objetos e sistemas de ações, deve-se eliminar o equívoco epistemológico da

modernidade que tinha como pretensão trabalhar com conceitos puros (1996:

81). Assim, o espaço é mais que a configuração geográfica do território, é

também ação e processo social.

Tendo em vista essa abordagem epistemológica que busca lidar com as

ambivalências dos fenômenos e dos conceitos que tentam compreendê-los,

Santos propõe as categorias de tecnosfera e psicosfera para tratar das distintas

esferas que compõem e permeiam o espaço composto por fixos e fluxos. A

tecnosfera está relacionada ao sistema de objetos, ao conhecimento técnico e

tecnológico e tem caráter racionalista e regulador. A psicosfera está vinculada

ao sistema de ações, aos sentimentos e às ideias livres.

A tecnosfera se adapta aos mandamentos da produção e do intercâmbio e, desse modo, frequentemente traduz interesses distantes; desde, porém, que se instala, substituindo o meio natural ou o meio técnico que a precedeu, constitui um dado local, aderindo ao local como uma prótese. A psicosfera, reino das ideias, crenças, paixões e lugar de produção de um sentido, também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, estimulando o imaginário (SANTOS, 1996: 204).

Santos nos diz ainda que “tecnosfera e psicosfera são redutíveis uma à

outra” (1996: 204), ou seja, não se pode entender essas categorias como

dualidades, mas, sim, como esferas que se entrelaçam e que existem não como

polos opostos, mas como camadas que se sobrepõem e se tensionam

mutuamente. Assim, na cidade, a esfera do vivido só ocorre numa dinâmica

interativa com a esfera do programado.

Esse traço ambivalente da cidade se estabelece porque sua constituição

a faz permeada por ações e vivências espontâneas que escapam de

predeterminações e tentativas de controle, e, ao mesmo tempo, é caracterizada

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pelas imposições e planejamentos do programa urbano. Desse modo, há uma

distinção entre o que se caracteriza como cidade e como urbano:

Na realidade, há duas coisas que estão sendo confundidas gratuita e alegremente, isto é, a cidade e o urbano. O urbano é frequentemente o abstrato, o geral, o externo. A cidade é o particular, o concreto, o interno. Não há que confundir (SANTOS, 2013: 66).

Ferrara também trata dessa distinção e afirma que urbano e cidade se

pressionam no cotidiano, mas não se confundem porque são categorias

científicas distintas: "Se o que caracteriza o espaço urbano é sua definição de

território, a cidade, ao contrário, se define como relação comunicativa"

(FERRARA, 2015: 138).

O urbano está relacionado ao território que é controlado por práticas

ordenadoras que regulam a infraestrutura, os deslocamentos e interferem no

comportamento dos cidadãos, ao passo que a cidade, mais concreta, se faz

pelas relações comunicativas, afetivas, ocupações não previstas e por distintas

maneiras de usar, vivenciar e se apropriar continuamente do espaço.

O urbano e a cidade manifestam-se em complementaridade e

interdependência. Simultaneamente, produzem entre si uma ambivalência que

marca o espaço e a vida nas cidades. Vale, portanto, destacar que o pensamento

crítico que questiona as ações do urbano não visa rejeitá-las totalmente. Esta

seria, inclusive, uma atitude contraditória por amputar uma dimensão da

ambivalência que se estabelece entre urbano e cidade. O que se quer dizer é

que a ação projetiva que pauta o desenvolvimento urbano não é em si nociva, já

que há a necessidade de algum grau de organização para facilitar a vida coletiva.

O problema é o uso que se faz desse planejamento, que, muitas vezes, cede

aos interesses do capital e se transforma em ferramenta de controle que não

acolhe as diferenças.

Com a presente democracia de Mercado, o território é suporte de redes que transportam as verticalidades, isto é, regras e normas egoísticas e utilitárias (do ponto de vista dos atores hegemônicos), enquanto as horizontalidades levam em conta a totalidade dos atores e das ações (SANTOS, 1996: 207).

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Essas verticalidades são moldadas como imposição do poder, por meio

das planificações do urbano; as horizontalidades ocorrem como ações

individuais e coletivas que se contrapõem a esse poder. Nesse sentido, o

planejamento urbano, que busca atender necessidades como deslocamento e

habitação, quando se veste de tecnocracia centralizadora, tem como resposta,

por sua própria falibilidade em tudo controlar, a emergência de ações que

decorrem da dimensão dos desejos e insatisfações que propõem outros

caminhos para apropriação e uso da cidade:

Submetido ao uso e à vida, o espaço urbano funcional se defronta com a instantaneidade do múltiplo inespecífico que o projeta perante a cidade, concentrada em atuações sociais como elementos centrais da experiência humana que lhe permitem ultrapassar o espaço como materialidade controlada, para atingir o cotidiano imprevisível: o espaço urbano transforma-se em cidade, e a função utilitária, em relação social, na qual nada se integra funcionalmente e tudo se coletiviza (FERRARA, 2015: 140).

A cidade é atravessada pela tecnosfera e psicosfera e nessas esferas

estão imbricados elementos fixos e ações em fluxo. “Os fluxos são um resultado

direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando

a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, se

modificam” (SANTOS, 1996: 50). Nesses processos de embate entre a

tecnosfera e a psicosfera, ou pelas movimentações dos fluxos sobre e ao entorno

dos fixos, surge o lugar, “ponto onde se reúnem feixes de relações” (SANTOS,

1996: 77).

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 1996: 258).

Pela afirmação de Santos, percebe-se o lugar como uma dimensão

ambivalente na qual as ações condicionadas estão presentes, mas não podem

conter o surgimento de outras ações da ordem do espontâneo e do diverso; no

lugar “cooperação e conflito são a base da vida em comum” (SANTOS, 1996:

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258). O lugar distingue-se do território, não é uma localização geográfica, mas

espaço no qual emergem processos comunicativos e resistências, a partir do

fluxo contínuo de apropriações criativas e espontâneas, que são do âmbito da

cidade, e subvertem funções previamente definidas, mesmo que à revelia da

programação urbana.

Em diálogo com Santos, Ferrara afirma sobre os lugares:

O lugar tende a exacerbar a identidade que exige ser enfrentada como definição em movimento e lhe empresta diversas caracterizações. No projeto global, o lugar é múltiplo nas suas dimensões, nas suas durações e nas suas formas. Um lugar autônomo, autodeterminado e imprevisível, mas que se deixa descobrir nos percursos do espaço da cidade, embora suas faces sejam várias e próprias (FERRARA, 2002: 18).

A cidade constitui-se pela emergência dos lugares, nunca estáveis ou

completos, mas sempre em transformação. Pela manifestação dos lugares, a

cidade se constrói e reconstrói continuamente, não se limitando à sua

configuração física nem ao que o urbano lhe impõe, embora essa dimensão

também faça parte desses processos. Nos lugares originam-se os conflitos entre

o individual e o coletivo, entre programação e vivências, que ressignificam a

cidade e o programa urbano, conforme as novas funcionalidades que são

geradas pelos diferentes usos.

Assim, os lugares surgem como brechas do atrito entre a cidade e o

urbano, são aberturas que possibilitam, por um lado, sentir, ver, tatear e construir

a cidade por caminhos múltiplos e singulares, e, por outro aspecto, evidenciam

a ambivalência que constitui o espaço como complexidade, formado pela

materialidade concreta e por desejos e ações. Para compreender essa tessitura,

uma aproximação à literatura pode ser esclarecedora:

Esse Marcovaldo tinha um olho pouco adequado para a vida da cidade: avisos, semáforos, vitrines, letreiros luminosos, cartazes, por mais estudados que fossem para atrair a atenção, jamais detinham seu olhar, que parecia perder-se nas areias do deserto. Já uma folha amarelando num ramo, uma pena que se deixasse prender numa telha, não lhe escapavam nunca: não havia mosca no dorso de um cavalo, buraco de cupim numa mesa, casca de figo se desfazendo na calçada que Marcovaldo não observasse e comentasse, descobrindo as mudanças da

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estação, seus desejos mais íntimos e as misérias de sua existência (CALVINO, 1994: 7).

Como se sabe, Italo Calvino é um exímio criador de fábulas sobre a

cidade. Seu personagem Marcovaldo é um operário sonhador que não se atém

às prescrições urbanas. Tudo o que o personagem faz é interagir com o que lhe

é apresentado pelo espaço urbano como programação a ser seguida, como uma

bula que define modos de usar e agir, para ultrapassar essas diretrizes e abrir

frestas para perceber a cidade em sua relação com a natureza e com as

delicadezas que passam despercebidas pela vida que segue a automaticidade

e a funcionalidade predeterminadas. Assim, sua vivência qualifica o espaço no

qual transita e habita e o transforma em lugar, ao seu modo particular – “Cada

lugar é, à sua maneira, o mundo. [...] Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente

imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos

demais” (SANTOS, 1996: 252).

Dessa forma, destaca-se a advertência de que não há modelos para

explicar os lugares:

A complexidade gerada pela tensão entre plano geral e o particular característico, adverte, de imediato, que a ciência do lugar deve declinar, de um lado, de toda pretensão que seja capaz de, dedutivamente, produzir modelos que contenham e expliquem os lugares; de outro, a diferença que cria o lugar é estrutural e isto quer dizer que não pode ser entendida como variável de um todo (FERRARA, 2002: 18).

Os lugares são propriamente ambivalentes, não cabem em

categorizações precisas e modelizantes. São indeterminados, abertos ao devir

e têm configuração espacial e duração temporal fluidas e cambiantes.

Compreender isso é vital para entender o modo de ser e de comunicar da cidade.

Ferrara aponta uma distinção entre processos comunicativos e ressalta

que os termos mediação e interação não podem ser tomados como sinônimos:

O domínio da mediação caracteriza uma comunicação que, em via de mão única, se padroniza como código e mensagem a se irradiar de um emissor para um receptor unidimensional, inerte

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e, portanto, frágil na sua capacidade reativa à exuberância daquele código (FERRARA, 2015: 13).

O domínio da interação caracteriza uma comunicação que se homologa como possibilidade ou tentativa incerta do comunicar ao processar-se entre um emissor e um receptor, entendidos no intercâmbio e porosidade dos seus papéis enunciativos e culturais, sempre prontos a serem superados, revistos ou reescritos (FERRARA, 2015: 14).

Como visto, o urbano e a cidade se distinguem, mas não se separam, se

tensionam continuamente, e podem ser relacionados a esses diferentes

processos comunicativos. O urbano está ligado aos processos mediativos,

comunicação linear e decorrente de relações hierárquicas previstas pela

ordenação do ambiente. A cidade constitui-se por uma comunicação interativa,

caracterizada por descentralização e espontaneidade. Os processos

comunicativos também são impregnados pela ambivalência, portanto, mediação

e interação não se excluem, mas se sobrepõem, ou ainda, podem ocorrer em

imprevisível alternância.

Nos lugares da cidade, manifestam-se os processos de interação de

modo inesperado e criativo, enquanto que, nos domínios do urbano, a

comunicação institucionalizada se impõe pela mediação como comunicação

midiatizada e espetacular. A mediação é, então, a comunicação modelada e

modelizante, programada para ordenar, ser consumida e propor o consumo. Já

a interação, é vinculada ao comunicar dos que vivenciam e constroem o

cotidiano da cidade e surge mais complexa nas bordas e entremeios das ordens

e dos planejamentos.

Processos comunicativos mediativos-interativos, fixos-fluxos, cidade-

urbano, tecnosfera-psicosfera, essas categorias se mostram como arranjos que

contemplam a ambivalência, que não tentam isolar ou simplificar a complexidade

das relações entre o programado e o vivido. É esse o pensamento que pode

tornar possível a compreensão das relações entre a cidade e a fotografia,

também uma linguagem carregada de ambivalências como se verá a seguir.

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Fotografia: a fabulação entre o documento e a ficção

O problema da ambivalência da fotografia há muito tem causado

inquietação e fomentado pesquisas acerca de sua constituição como imagem e

objeto da arte e da comunicação. Mesmo que a literatura e os estudos teóricos

que tratam da fotografia não a abordem ou não a nomeiem pela noção de

ambivalência, vários autores apontam para uma espécie de fronteira porosa e

não limitante que atua no âmago da linguagem fotográfica e faz da fotografia um

objeto marcado por certa indeterminação ao ocupar espaços distintos como arte,

mídia, vida íntima.

Esses diferentes usos parecem estar muito relacionados a essa

constituição essencialmente ambivalente que já se mostra em alguns termos

usados para investigar a fotografia: Imagem e Imagem técnica (Flusser),

Efêmero e perpétuo (Kossoy), Perda e permanência (Soulages). Parece vir

também daí o impulso para as pesquisas sobre a especificidade da fotografia,

que tanto marcaram os estudos sobre o fotográfico na segunda metade do

século XX, e que ainda são referências, como os trabalhos de Barthes e Dubois.

Tais modos de nomear a fotografia e o que se refere a ela, além da

necessidade de estudá-la por suas particularidades, sugerem a hipótese de que

o viés da ambivalência pode ser epistemologicamente adequado para que se

percebam as características e potencialidades da linguagem fotográfica, sem

que se criem dicotomias ou se reduza a fotografia a definições fechadas. Assim,

os trabalhos dos autores citados e os termos definidos por eles são rastros

apreendidos no contexto deste estudo e a partir deles pretende-se desenvolver

uma argumentação que relaciona a ambivalência e o modo de ser e comunicar

da fotografia.

A imagem fotográfica caracteriza-se por ser o registro de um objeto real,

pela luz que dele reflete, é, assim, um documento da existência de tal objeto ou

cena. Por outro lado, a inevitável transformação desse objeto em imagem, que

é da natureza da linguagem, faz da fotografia também uma ficção.

A câmera escura reproduz as aparências do mundo justamente no momento em que se separa delas: fecha-se para o exterior enquanto cria num espaço fechado a ilusão de uma

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profundidade ilimitada. Não apenas os objetos inanimados, mas também os seres vivos se transmudam em imagens, nesse universo subtraído da natureza por uma espécie de ficção cosmológica [...] (MICHAUD, 2013: 45).

Assim, a fotografia é um documento no que diz respeito ao vínculo que

guarda com o evento real que lhe serve como ponto de partida. É um documento

porque recorta, estanca e registra para que se veja, reconheça e memorize o

mundo. E é também uma ficção porque esse fragmento que congela e dá a ver

também sugere, provoca novas ideias sobre o que se vê, não descreve com

exatidão, mas apresenta uma parcialidade.

Esse modo duplo de ser da fotografia não foi precisamente explorado nos

seus primeiros momentos. Como se sabe, por ter se desenvolvido no século XIX,

a fotografia foi vista pela lente da objetividade e impregnada por um

entendimento que muitas vezes só levou em conta sua face documental. Mais

que isso, com o pensamento moderno e seu ímpeto de ordenar o mundo, criou-

se um mito em torno da fotografia, o de que ela seria capaz de registrar objetos

e situações com fidelidade e exatidão.

O pensamento racionalista só pôde ver, num primeiro momento, a

possibilidade técnica implicada na produção da fotografia, deixando de dar

atenção a toda a dimensão de construção interpretativa e criativa também

envolvida na produção da imagem fotográfica. Isso fez com que intelectuais e

artistas negassem à fotografia o estatuto de linguagem artística, como afirmou o

poeta Charles Baudelaire:

É necessário, portanto, que ela se limite ao seu verdadeiro dever, que é de ser a serva das ciências e das artes, mas a humílima serva, como a imprensa e a estenografia, que não criaram nem suplantaram a literatura. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e restitua a seus olhos a precisão que faltaria à sua memória; que enfeite a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, até fortaleça com algumas informações as hipóteses do astrônomo, que seja, enfim, a secretária e o bloco de notas de quem quer que necessite de uma absoluta exatidão material em sua profissão, até aí nenhuma objeção. Que salve do esquecimento as ruínas pendentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma vai desaparecer e que exigem um lugar nos arquivos de nossa memória, é algo que se lhe agradecerá e aplaudirá. Mas se lhe for permitido invadir o

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campo do impalpável e do imaginário, aquilo que vale somente porque o homem aí acrescenta algo da própria alma, então, pobres de nós! (BAUDELAIRE, 1995a: 803).

Baudelaire, como artista sensível e muitas vezes contraditório, afirmava

também que não se podia crer na ideia de que a fotografia fosse capaz de

registrar o mundo fielmente, mas, por seu caráter industrial, ela foi tomada por

ele como extremamente banal e sem a grandeza da pintura.

A revolução industrial transformou a estrutura da sociedade da época

fazendo surgir a cidade urbanizada que crescia com o intenso movimento de

êxodo rural. Esse movimento era impulsionado pelo desenvolvimento do

capitalismo, alimentado por sua aliança com o Estado que, associando-se ao

Mercado, gerenciava e promovia o consumo.

Esse é também o cenário do surgimento da fotografia. Enquanto a

articulação Capital-Estado-Mercado se configurava como dispositivo para fazer

com que o homem tivesse seu comportamento modelado, consumindo

passivamente sua própria produção, a fotografia, também filha da indústria e da

técnica, era entendida não como linguagem expressiva, mas apenas como modo

de reproduzir o mundo com exatidão. E não poderia ser diferente, já que, além

de sua construção ótica e mecânica, a possibilidade de reprodução em série,

outra de suas características fundamentais, é elemento básico do pensamento

moldado pela linha de montagem.

Como apontado anteriormente, a ambivalência é algo que escapa às

tentativas de controle, assim, mesmo que a fotografia tenha sido vista

primeiramente pelo viés da reprodução do real, foi também explorada pela sua

possibilidade de transfiguração do mundo. Ainda no século XIX e início do XX,

destacaram-se nesse panorama os trabalhos dos pictorialistas e de fotógrafos

como Man Ray, László Moholy-Nagy, Edward Weston, André Kertész.

Para entender essas relações ambivalentes, passaremos, a seguir, a

considerações de alguns pesquisadores importantes para o estudo da fotografia.

Convém ressaltar que compreender a fotografia como ambivalente, destacando

sua dupla face documental e ficcional, não significa aproximação a um esquema

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dualista. Conforme já foi observado, a ambivalência está relacionada a um

tensionamento e sobreposição. Logo, entender a fotografia por esse viés não

consiste em fechá-la num esquema classificatório, trata-se, ao contrário, de abrir

possibilidades de perceber que a imagem fotográfica se manifesta por vias

plurais, com uma força para existir de diversas formas, inclusive como fabulação

sobre o mundo.

De acordo com o que foi exposto no capítulo anterior, Flusser define a

fotografia não exatamente como uma imagem, mas como imagem técnica. A

diferença é essencial para que seja possível compreender que a fotografia é

imagem que provém de aparelho, o que significa que é produto de texto científico

e seu significado só pode ser decifrado pelo conhecimento do programa que rege

o aparelho.

Essa distinção entre imagem e imagem técnica também aponta que a

fotografia carrega algo do modo de ser das imagens – sua manifestação como

superfície – e também algo dos textos, uma vez que provém de conhecimento

científico. Ou seja, a fotografia é uma linguagem complexa e impura, que deve

ser analisada pelos tensionamentos que propõe entre aquilo que representa

como imagem, o aparelho e o programa que lhe dão forma. É essa trama de

relações que parece ter suscitado pesquisas sobre o que constitui

essencialmente a fotografia, e que hoje ainda é um estímulo ou provocação para

a produção fotográfica contemporânea, que busca esgarçar os limites entre o

documental e o ficcional e entre a fotografia e outras linguagens.

Roland Barthes escreveu A Câmara Clara em 1979, na tentativa de definir

a especificidade da fotografia, como afirma logo na primeira página: “eu era

tomado de um desejo ‘ontológico’: eu queria saber a qualquer preço o que era a

fotografia ‘em si’” (2015: 13). Também já de partida, o autor avisa que logo

percebeu a dificuldade em tratar da fotografia, uma vez que ela “se esquiva” de

classificações. Apesar de tentar definir o específico, o autor afirma o

inclassificável, ou seja, aponta certa ambivalência que coloca a fotografia num

espaço de indeterminações que dificulta uma clara categorização.

O texto de Barthes é carregado de subjetividade, já que ele decide

investigar a Fotografia levando em conta algumas fotografias que lhe eram

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pessoalmente importantes, inclusive uma de sua mãe que nunca chega a ser

apresentada ao leitor. Talvez por essa conexão afetiva do autor com as imagens

analisadas, a questão da relação entre a fotografia e seu objeto referente surja

com tanta força, afinal, como ele propõe, ver essas fotografias é ter contato com

uma “emanação do real passado” (2015: 75).

Barthes afirma que o “referente adere” à fotografia (2015: 15) e que ela,

em sua conexão com o objeto que registra, mostra sempre que “Isso foi” (2015:

68). O autor ressalta a relação inescapável da imagem produzida com a coisa

real que esteve diante da câmera no momento em que foi fotografada, o traço

que documenta o acontecimento e a existência no passado de tal objeto. Para

destacar essa questão Barthes menciona, ainda, uma fotografia que mostra

escravos sendo vendidos e que lhe causava horror justamente porque, em se

tratando de um registro fotográfico, sabia-se que aquilo realmente acontecera.

A partir do entendimento da relação que se estabelece entre a fotografia

e a cena ou acontecimento que lhe é ponto de partida, o autor faz outras

afirmações, algumas desconcertantes: a fotografia “jamais se distingue do seu

referente” (2015: 14); a fotografia “tem algo de tautológico: um cachimbo, nela,

é sempre um cachimbo, intransigentemente. Diríamos que a fotografia sempre

traz consigo seu referente” (2015: 15). Essas afirmações causam desconforto,

porque Barthes considera predominantemente a face de registro documental da

fotografia. Ora, o referente compõe ou está presente na construção da fotografia

de modo que a imagem não poderia existir sem ele, porém, a fotografia não se

limita a essa conexão física com o objeto referente e nem o mostra por um

princípio de exatidão.

Nesse ponto, Barthes até mesmo faz uma crítica a autores

contemporâneos a ele que também tratavam da fotografia:

Hoje, entre os comentaristas da Fotografia a moda é da relatividade semântica: nada de ‘real’ (grande desprezo pelos ‘realistas’ que não veem que a foto é sempre codificada), [...] a Fotografia, dizem eles, não é um analogon do mundo; o que ela representa é fabricado, porque a óptica fotográfica está submetida à perspectiva albertiniana e a inscrição no clichê faz de um objeto tridimensional uma efígie bidimensional (BARTHES: 2015, 75).

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Contrariamente a esse posicionamento, o autor define-se como um

“realista” e afirma que considera a fotografia não como uma cópia do real, mas

como emanação, e diz ainda que, na fotografia o poder de autenticação se

sobrepõe ao de representação.

Ao tratar da fotografia pela via da ambivalência, entende-se que a

concepção barthesiana tem o problema de considerar a fotografia

preponderantemente por um de seus aspectos, a sua relação com o real. Os

autores que ele critica a consideram pelo outro viés, o da ficcionalização do real,

mas também só levam em conta esta possibilidade isolada. Afirmar a

ambivalência da fotografia é perceber que as duas concepções são

complementares, de modo que o que a fotografia carrega de constatação não se

sobrepõe de modo hierárquico ao que tem de representação, mas essas

dimensões se apresentam como concomitantes, numa lógica de alternância e

não como alternativas excludentes.

Para Barthes, a fotografia só pode ser arte quando seu noema “Isso foi” é

esquecido (BARTHES: 2015, 97). Se considerarmos a fotografia como

ambivalente, ela pode ser entendida como uma linguagem artística também pelo

que tem de conexão com o real e com o passado que registra. A partir desse

noema, alguns fotógrafos e artistas desenvolvem trabalhos para questionar e

tensionar as relações da imagem fotográfica com o real que lhe serve de matéria-

prima.

Ao abordar a produção de conhecimento e as estratégias de pesquisa que

operam para “desconstruir e ler as diferenças”, Ferrara esclarece:

A representação do texto como rede que encobre e revela traços que se constituem em complementaridade, é aquela que reconhece, sob a aparência, uma outra realidade encoberta, sobreposta, dobrada, pois todo texto diz ou pode dizer mais do que aquilo que pretende dizer literalmente, sugerindo, portanto, uma espiral infinita de interpretações (FERRARA, 2002: 176).

É nesse sentido que esta pesquisa se vale da busca de rastros e

assinaturas nos textos e objetos que analisa, e é partir dessa proposição que é

possível pensar que, apesar de destacar intensamente a relação da fotografia

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com seu referente, em alguns momentos do texto, Barthes se aproxima da

dimensão ambivalente que ela apresenta. Num desses trechos, o autor trata do

seu processo de pesquisa:

no momento de chegar à essência da Fotografia em geral eu bifurcava; em vez de seguir o caminho de uma ontologia formal (de uma lógica), eu me detinha, guardando comigo, como um tesouro, meu desejo ou meu desgosto; a essência prevista da Foto não podia, em meu espírito, separar-se do ‘patético’ de que ela é feita, desde o primeiro olhar (BARTHES, 2015: 26).

O autor afirma sua relação afetiva com as imagens que analisa e, nesse

sentido, destaca que as imagens afetadas pelo objeto referente o afetam

justamente pela conexão que têm com tal objeto. Por outro lado, ao destacar as

“bifurcações” surgidas na pesquisa aponta a ambivalência da fotografia, ou seja,

ao não se definir com clareza, justamente por não ser só emanação do referente,

a fotografia dificulta e até impede que o caminho de pesquisa seja tão lógico

quanto Barthes propunha no início.

Tratando diretamente da fotografia e não de seu processo de pesquisa,

destaca-se uma afirmação na qual a ambivalência é considerada por Barthes

como algo estranho:

A Fotografia torna-se então, para mim, um médium estranho, uma nova forma de alucinação: falsa no nível da percepção, verdadeira no nível do tempo: uma alucinação temperada, de certo modo, modesta, partilhada (de um lado, ‘não está lá’, do outro, ‘mas isso realmente esteve’): imagem louca, com tinturas de real (BARTHES, 2015: 96).

A fotografia é “verdadeira” no nível do tempo, pelo que apreende do objeto

que registra, e pelo que evidencia sobre a existência deste no passado. Por outro

lado, é “falsa” no nível da percepção por tudo que pode nos dar em termos de

transformação, recriação e até transfiguração do objeto real fotografado. Como

Barthes está mais interessado e é tomado pelo que a fotografia tem daquilo que

chama de verdadeiro, as outras possibilidades de entendê-la aparecem no texto

com o acento da falsidade e da mentira: “ela jamais mente: ou antes, pode mentir

quanto ao sentido da coisa, na medida em que por natureza é tendenciosa,

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jamais quanto a sua existência” (BARTHES, 2015: 73), mas é ao afirmar esse

modo tendencioso de comunicar da fotografia que Barthes menciona

implicitamente sua ambivalência.

Evidentemente, a fotografia pode, e sempre pôde, ser usada para

manipular cenas, objetos e situações com intuito de criar algo falso, mas há que

se considerar também como essa manipulação atua no sentido da construção

de outros modos de ficção, como comenta François Soulages, também tratando

da fotografia:

A palavra ‘ficção’, em francês, remete a dois sentidos: o que é mentiroso e falso e o que é imaginado e inventado, sem vontade de enganar. A ideologia realística faz como se só o primeiro sentido existisse, ou melhor, como se os dois sentidos coincidissem. [...] Ora, a ficção pode ser fonte de verdade – não sendo essa noção retomada no sentido realístico (SOULAGES, 2010: 115).

Assim, a complexidade da fotografia está entrelaçada por possibilidades

múltiplas para transformar, “ficcionalizar” e comunicar.

Ao considerar a ambivalência da fotografia, que, como foi visto, aparece

de algum modo no texto de Barthes, considera-se a maneira pela qual a

fotografia é aberta a se transformar pelos processos que se dão entre visualidade

e visibilidade. A visualidade da fotografia, sua forma de constituição como

imagem, tem como ponto inicial o momento do registro fotográfico, mas todos os

processos geradores de visibilidade que decorrem da visualidade da imagem

não se atêm àquele momento passado, ocorrem no presente, sempre que a

imagem fotográfica é acessada. Assim, mais que ao “Isso foi”, a fotografia parece

se conectar melhor a um Isso está sendo10, numa aproximação à temporalidade

própria da imagem, que não cessa de se transformar a cada olhar.

Em O ato fotográfico, Philippe Dubois (1993) faz uma análise da fotografia

também por um viés ontológico e tendo como uma de suas referências o trabalho

desenvolvido por Barthes. Dubois caracteriza a fotografia como algo que não se

10 Maurício Lissovsky trata dessas distintas temporalidades da fotografia, propondo diferentes

tempos: A fotografia foi, fora, poderia ter sido, ainda é (LISSOVSKY, 2011: 8).

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constitui de forma unívoca, mas por de três possibilidades de entendimento que

o autor define como “a fotografia como espelho do real”, “a fotografia como

transformação do real” e “a fotografia como traço de um real”. Dubois estabelece

esses diferentes entendimentos fundamentando-se em um percurso histórico

que retoma posições defendidas por diferentes teóricos. Nesse sentido, a

fotografia foi primeiramente entendida como mimese:

O efeito de realidade ligado à imagem fotográfica foi a princípio atribuído à semelhança existente entre a foto e seu referente. De início, a fotografia só é percebida pelo olhar ingênuo como um ‘analogon’ objetivo do real. Parece mimética por essência (DUBOIS, 1993: 26).

Num segundo momento, a fotografia passa a ser compreendida como

imagem culturalmente codificada:

Logo se manifestou uma reação contra esse ilusionismo do espelho fotográfico. O princípio de realidade foi então designado como pura ‘impressão’, um simples ‘efeito’. Com esforço tentou-se demonstrar que a imagem fotográfica não é um espelho neutro, mas um instrumento de transposição, da análise, de interpretação e até de transformação do real, como a língua, por exemplo, e assim, também, culturalmente codificada (DUBOIS, 1993: 26).

Por fim, Dubois propõe que a fotografia seja entendida como traço de um

real:

Por sua gênese automática, a fotografia testemunha irredutivelmente a existência do referente, mas isso não implica a priori que ela se pareça com ele. O peso do real que a caracteriza vem do fato de ela ser um traço, não de ser mimese (DUBOIS, 1993: 35).

Como se sabe, a concepção de Dubois marca profundamente os estudos

sobre a fotografia, principalmente no que diz respeito às suas relações com o

real e às atribuições de realismo e valor documental da imagem fotográfica. O

problema dessa concepção parece ser o modo progressivo pelo qual as três

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posições são apresentadas pelo autor. Comentando a proposta de seu livro após

vinte anos da sua produção, Dubois afirma numa entrevista11:

Eu diria que é um livro que foi forçado, no início dos anos 80, a refletir sobre a grande pergunta que todos faziam: o que caracteriza a imagem fotográfica, em oposição aos outros tipos de imagem: cinema, pintura, televisão? Era o tempo em que se refletia sobre especificidades; era típico dos anos 80 e do espírito pós-estruturalista. Atualmente, o estruturalismo não domina mais as ciências humanas nem o discurso sobre a especificidade. Eu próprio já escrevi mais de uma vez que não existe especificidade, que a única coisa interessante na fotografia ou no cinema ou mesmo na pintura são os problemas transversais, isto é, aquilo que os três têm em comum, muito mais do que aquilo que os separa: refletir sobre os problemas do espaço, do tempo, do enquadramento, da profundidade na imagem. [...] é porque lidam com categorias transversais que podemos fazer perguntas pertinentes. Não mais perguntas sobre especificidade, mas questões de transversalidade, que podemos avançar na reflexão sobre esse tipo de problema [...].

É possível pensar que essa transversalidade pode atingir, além das

relações entre a fotografia e outros tipos de imagens, a própria concepção das

características da linguagem fotográfica, de modo que a fotografia não seja vista

como mimética, simbólica ou indicial de forma excludente, mas que se perceba

nela essas diferentes características a uma só vez, ou se manifestando com

alguma predominância, dependendo do contexto. É nesse sentido que podemos

afirmar a ambivalência da fotografia, entendendo que a imagem fotográfica tem

traços de documento, um vínculo irredutível com o objeto referente presente em

sua origem, mas não se restringe a isso, pois é também e indiscutivelmente

forjada por invenções e ficções.

Boris Kossoy (2007) é outro autor que desenvolve pesquisa sobre a

fotografia com base em indagações sobre as relações entre realismos, ficções e

o tempo inserido na produção fotográfica. Para o autor, a fotografia se faz numa

dupla relação temporal, marcada, por um lado, pela efemeridade do ato

11Entrevista com Philippe Dubois. [2 de setembro de 2003]. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, v. 34, julho-dezembro de 2004, p. 139-156. Entrevista concedida a Marieta de Moraes Ferreira e Mônica Almeida Kornis. Tradução de Lucia Hippolito.

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fotográfico – do encontro entre o fotógrafo, a câmera e a cena fotografada – e,

por outro, pela perpetuação imagética dessa situação:

Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, o da primeira realidade, instante único da tomada do registro no passado, num determinado lugar e época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segunda realidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em sua trajetória de longa duração. O efêmero e o perpétuo, portanto (KOSSOY, 2007: 133).

Nesse sentido, abre-se um espaço para observação da ambivalência da

fotografia: enquanto o momento efêmero, nomeado pelo autor como “primeira

realidade” é aquele vinculado ao encontro real que dá origem a um dado

documental que a fotografia carrega, a perpetuação da cena como imagem está

relacionada à interpretação, ou seja, à criação do que o autor designa como

“segunda realidade”. É importante destacar os termos usados: ao chamar a

imagem de segunda realidade, o autor força uma distinção, a segunda é

diferente da primeira, é outra. Assim, mesmo marcada pelo objeto que a originou,

a fotografia não se dá como duplo do real que registra, mas como um modo de

pensar essa realidade, como uma parcialidade que guarda algo dessa primeira

realidade, mas a transforma, adicionando sobre ela camadas de ficção.

Kossoy diz ainda que a segunda realidade, que é a realidade da

concretude da imagem, se dá também pela construção de interpretação do

receptor que, ao observar a fotografia, constrói novas ficções (2007: 139). Assim,

a fotografia pode ser pensada como imagem aberta que provoca e dispara

processos de sentir, pensar e recriar, como também aponta François Soulages:

Aquele que vai olhar uma foto não a receberá mais como uma reprodução. Deverá reconhecer que ela está, antes de tudo, do lado da ficção. E isso é verdadeiro por duas razões: primeiro, porque toda foto pode produzir ficção, e, em seguida, porque toda recepção de uma foto tende à ficção. O último ponto é decisivo: a ficção está não só do lado da produção (portanto, do lado do objeto, da foto e do fotógrafo), mas também do lado da recepção [...] (SOULAGES, 2010: 115, 116).

Em Estética da fotografia, Soulages (2010) também investiga as relações

da fotografia com o real e com o tempo, além de pensar sobre a materialidade

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que dá suporte às imagens fotográficas e seus respectivos processos. O autor

define como “fotograficidade” aquilo que marca o que é fotográfico na fotografia:

A fotograficidade é essa articulação surpreendente do irreversível e o inacabável. É a articulação, por um lado, da irreversível obtenção generalizada do negativo – constituída em primeiro lugar pelo ato fotográfico, ou seja, por esse confronto de um sujeito que fotografa com algo a ser fotografado [...] e em seguida pela obtenção restrita do negativo [...] e por outro lado, do inacabável trabalho com o negativo – a partir do mesmo negativo inicial, pode-se obter um número infinito de fotos totalmente diferentes [...] (2010: 131, 132).

Para Soulages, a fotografia é, então, “a articulação entre o que se perde

e o que permanece” (2010: 132), entendendo que o que se perde se relaciona

com as condições do momento em que a fotografia é produzida, instante finito

que não retorna; há perda também porque a imagem fotográfica registra essas

circunstâncias de modo parcial, tanto pelo tempo de duração do registro, quanto

pelo enquadramento que fragmenta espacialmente o que se vê. Já o que

permanece se relaciona ao que fica gravado na matriz12 e que pode ser

explorado infinitamente para a confecção de novas imagens.

Em sua própria essência a fotografia é mista, pois articula o irreversível e o inacabável. Como consequência, ela é duplamente aberta: primeiro, o momento do irreversível abre-se irreversivelmente ao momento do inacabável; em seguida, este, ao se colocar especificamente do lado do matricial e não do lado do reprodutível, abre-se à diferença e à alteridade. [...] em sua própria natureza, ela está aberta à hibridação e à impureza; é uma consequência do inacabável (SOULAGES, 2010: 140).

Desse modo, o conceito de fotograficidade explicita que a ambivalência

constitui o que é essencialmente fotográfico: enquanto o irreversível deixa uma

marca irrevogável que decorre do encontro entre o objeto fotografado, a câmera

e o fotógrafo, o inacabável relaciona-se às inúmeras possibilidades de alteração,

12 No artigo A revolução paradigmática da fotografia numérica, Soulages (2007) afirma que a

fotograficidade também pode ser pensada na fotografia digital e que “nessas imagens o acento é colocado sobre a exploração da segunda dimensão da fotograficidade, a interminável exploração da matriz”.

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manipulação, invenção que são possíveis a partir da imagem registrada

inicialmente.

A matriz fotográfica faz-se, portanto, como um processo aberto ao devir e

não como cristalização de uma dada situação. A fotografia escapa da imposição

da reprodutibilidade em série para se expressar de maneiras imprevistas,

inclusive na junção da fotografia com outras linguagens. A face inacabável da

produção fotográfica está ligada à exploração do suporte fotográfico como um

meio comunicativo, ou seja, não só por suas qualidades técnicas, mas numa

exploração da materialidade que, para comunicar, cria vínculos entre a própria

materialidade, a sensibilidade, a forma e o sentido.

Joan Fontcuberta também é um autor importante para os estudos sobre a

fotografia e suas relações com o real e com as ficções criadas a partir desse real

fotografado. Algumas afirmações do autor, em diferentes textos, podem ser

conectadas para um entendimento sobre a ambivalência da imagem fotográfica:

O objeto representa a si próprio, mediante a luz que reflete. A imagem não é mais que o rastro do impacto dessa luz sobre a superfície fotossensível: um rastro armazenado, um rastro-memória (FONTCUBERTA, 2010b: 52).

E ainda,

Toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira. Contra o que nos inculcaram, contra o que costumamos pensar, a fotografia mente sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa (FONTCUBERTA, 2010b: 13).

Fontcuberta afirma que seu interesse primordial como pesquisador está

“em torno da ambiguidade intersticial entre a realidade e a ficção” (2010b: 9).

Seus pensamentos citados acima dialogam com a compreensão da fotografia

como linguagem ambivalente. No primeiro trecho, fica evidente a condição de

índice, de conexão física com o objeto referente, mas, no segundo, o autor

relaciona a ficção fotográfica à sua possibilidade de “mentir”, ou seja, à sua

capacidade de transfigurar, transformar, opinar, sobrepor e manipular, que está

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intimamente ligada ao recorte fotográfico, ao modo como a fotografia se constitui

como imagem parcial, e a todas as possibilidades de criação de imagens que

dali surgem.

Apesar de também afirmar a relação física ou indicial da fotografia com os

objetos que registra, Fontcuberta dá mais ênfase ao caráter simbólico da imagem

fotográfica e critica, com muita razão, o pensamento ingênuo que, desde o início,

marcou a fotografia como se ela fosse uma cópia neutra dos objetos

fotografados:

El dibujo construye la imagen, la fotografía la genera. Esta diferencia radical instauró uma revolución en la orden de la comunicación humana que institucionalizó la creencia de que ese nuovo modus operandi garantizaba que el resultado era un reflejo de la realidade, un reflejo inmaculado y virginal, la consecuencia tautológica de um ‘lápiz de la naturaleza’. La teoría de la fotografía como huella nace justamente ahí. Y todavia más importante: también nace ahí la idea de que la imagen fotográfica está revestida essencialmente, imperativamente, fatalmente, de uma naturaleza documental (FONTCUBERTA, 2010a: 184).

É evidente que entender a imagem fotográfica como documento fiel de

uma realidade fotografada é um equívoco baseado no mito essencial e positivista

da objetividade ou neutralidade da fotografia. Mas não se pode negar que a

fotografia guarda algo de um encontro real – o da câmera e do fotógrafo com o

objeto fotografado. A fotografia é essa linguagem complexa que surpreende já

na sua constituição aberta à construção de sentidos, mas vinculada, em maior

ou menor grau, às cenas e objetos que registra. Sem dúvida, a fotografia não

pode ser vista como “lápis da natureza”, mas como revogar completamente seu

caráter documental?

Assim, pensar a fotografia como ambivalência significa afirmar que ela

tem também algo de documento, mas isso não se confunde com afirmações

sobre uma suposta objetividade. O entendimento da linguagem fotográfica como

ambivalente parece abrir possibilidades de compreensão da fotografia como

construção subjetiva, invenção, manipulação e, inclusive, como documento e

memória. O fascínio que a fotografia lança sobre nós desde sua primeira

materialização no século XIX, e que segue presente nas imagens da fotografia

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contemporânea, parece residir aí, na sua ambivalência e potência para

documentar e inventar.

Porém, esse entendimento parece divergir da proposta de Fontcuberta,

quando o autor pensa a fotografia digital e a nomeia, como “pós-fotografia”

(2010a: 10). O autor nos diz que a fotografia ao passar a ser produzida em

suporte digital se transforma de modo radical, a ponto de se distanciar totalmente

da ideia de vestígio e memória tão marcantes na fotografia analógica, produzida

com filmes à base de prata. De acordo com Fontcuberta, na pós-fotografia, “o

índice se evapora” (2010a: 63). Sem dúvida, há muitas diferenças entre os

suportes fotográficos analógico e digital, no que diz respeito à materialidade ou

à nulodimensão (Flusser) e ao tempo envolvido na produção, porém, se essas

diferenças têm impactos no modo de criação, de compartilhamento das

imagens, no processo criativo dos fotógrafos e na linguagem fotográfica, essas

distinções não anulam a relação que a fotografia necessita estabelecer com as

cenas e objetos que fotografa, ao menos para que seja possível o surgimento da

imagem.

O que se quer dizer é que mesmo que a fotografia digital tenha como

matriz um arquivo decorrente do sensor que transforma os impulsos luminosos

em informação numérica, que pode ser totalmente transformada, pixel a pixel

nos processos de pós-produção da imagem, esse arquivo só pode ser gerado

fotograficamente, ou seja, pelo encontro da câmera que documenta determinado

objeto, como comenta Wagner Silva: “a imagem de uma câmera digital torna-se

números no momento do registro e adquire esta virtualidade, mas nesse mesmo

momento ela ainda mantém relação com os dados brutos do real, quando

praticada da forma convencional” (SILVA, 2016: 84). É evidente que esse contato

com o objeto é apenas o ponto de partida da produção da imagem, que pode ser

muito alterada, a ponto de se distanciar completamente do objeto que lhe deu

origem, porém, a imagem pode também ser trabalhada de modo a criar uma

memória do objeto ou situação que registra, assim, a fotografia digital pode ainda

ser explorada pela conexão que guarda daquilo que atuou na sua criação.

Fontcuberta trata a pós-fotografia numa aproximação com a pintura, ao

comparar os pixels com as pinceladas, no sentido de que sobre o pixel ou sobre

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cada pincelada se pode operar individualmente (2010a: 187). Nesse sentido, a

fotografia digital se aproxima da pintura, pois sua construção pode se dar de

forma mais intensa na etapa do processamento por software de tratamento de

imagem do que na do próprio registro. As múltiplas possibilidades de

intervenção, manipulação e retoques contidas no processamento das fotografias

digitais inserem na produção uma tendência à experimentação, que pode

transformar a imagem trabalhada numa única versão do arquivo original e, no

seu caráter experimental, irreprodutível.

Porém, não se pode esquecer que transformações e intervenções sobre

a imagem fotográfica também são possíveis na produção com a fotografia

analógica. Essas possibilidades estão bem marcadas na fala de Dubois que

afirma que desde o século XIX manipulações feitas sobre o registro fotográfico

são possíveis, como se vê na produção dos pictorialistas, que já aproximavam a

fotografia da pintura ao fazerem inúmeras manipulações em processo de pós-

produção das imagens em laboratório (DUBOIS, 1993: 167). Inclusive essas

alterações podem ser feitas também no negativo, transformando a própria

matriz.

Assim, é possível pensar que a fotografia digital evidencia os

procedimentos de manipulação e criação de sentidos da imagem, mas essas

possibilidades estão presentes em qualquer produção fotográfica, independente

do suporte utilizado. Essa explicitação dos processos que o digital provoca não

demole a relação que a fotografia tem com o objeto que registra e muito menos

as relações que traçamos entre a imagem fotográfica e a construção de uma

memória sobre o contexto fotografado.

Como visto, Soulages afirma que a fotograficidade é uma marca da

fotografia presente tanto nas imagens produzidas analogicamente como nas

digitais. O autor afirma ainda que, a imagem digital permite uma exploração mais

rica e mais complexa da face inacabável do processo fotográfico, porque tem

possibilidades infinitas de intervenção na pós-produção e até de hibridação mas,

como no negativo, essa matriz é gerada pela sua relação com o real

(SOULAGES, 2010: 134). Assim, fica claro como os meios fotográficos analógico

e digital guardam muitas distinções, mas têm também proximidades. A

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ambivalência faz da fotografia uma ficção, criada pelo irreversível registro e

recriada infinitamente pela inacabável exploração da imagem-matriz; e, como

outra face inseparável da ficção, a fotografia é um documento da irreversibilidade

do que ocorreu diante da câmera, e do modo como o acontecimento foi

registrado.

O termo “pós-fotografia” como proposto por Fontcuberta parece atuar no

sentido de uma demarcação das diferenças entre a fotografia analógica e digital,

mas é preciso entendê-lo como um modo de apontar as transformações do meio

fotográfico que se dão como ganho de complexidade e não como uma ruptura

absoluta. Como afirma McLuhan, os meios comunicativos herdam

características materiais e o modo de comunicar dos meios anteriores, num

processo contínuo de transformação. Fontcuberta, em alguma medida, parece

exagerar no apontamento das distinções, por exemplo, ao propor que a fotografia

digital não deveria ser denominada como fotografia, mas como “pintura digital

realista” (2010a: 188), ou, que a fotografia digital abandona sua relação com a

memória e se aproxima da “construção de sentido” (2010a: 63).

Essas duas afirmações do autor provocam alguns questionamentos.

Primeiro, o termo “pintura digital realista” parece se adequar mais a uma imagem

produzida de modo autônomo, o termo parece mais apropriado para se pensar

a criação de imagens de síntese, totalmente desenvolvidas por programas

digitais. No caso da fotografia digital, mesmo que de modo distinto da fotografia

fílmica, ainda há um vínculo inicial entre a imagem e o mundo fotografado.

A segunda afirmação provoca um estranhamento, afinal, a construção de

sentido também não está presente na produção de imagens por meio da

fotografia fotoquímica? Fontcuberta é excessivo na afirmação para destacar que

na produção fotográfica contemporânea não cabe o equívoco de considerar a

fotografia como uma cópia do objeto referente, como uma imagem que registra

de modo neutro. Mas há inúmeros trabalhos que desde o século XIX se

relacionam com a imagem fotográfica e suas possibilidades ambivalentes de

modo a criar novos sentidos e questionar sobre aquilo que é fotografado, e sobre

a natureza da fotografia, esse não parece um atributo apenas da chamada pós-

fotografia.

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Entender a fotografia contemporânea pelo prefixo “pós” tem também o

problema do estabelecimento de uma proposta de linearidade, o pós supõe um

antes, supõe uma demarcação por contiguidade, como se a produção atual

pudesse ser claramente separada da produção fotográfica anterior, como se

suas características fossem absolutamente distintas. Se, de um lado, o

posicionamento barthesiano, que vincula a fotografia predominantemente ao que

ela tem de relação com o objeto referente, não parece suficiente para entender

a complexidade da imagem fotográfica, por outro lado, a pós-fotografia como

uma completa oposição a esse pensamento também não oferece um caminho

promissor, no sentido de dar conta dessa complexidade.

É nesse sentido que esta pesquisa propõe entender a fotografia numa

aproximação ao conceito de ambivalência, para que seja possível perceber a

multiplicidade de sentidos atrelados à imagem fotográfica e a sua potencialidade

para documentar enquanto cria ficções sobre o mundo.

A fotografia digital certamente traz mudanças significativas para o

contexto das imagens técnicas, como a hibridação com outros meios e

linguagens, o acento dado à pós-produção, a rapidez tanto na produção como

no compartilhamento das imagens, mas essas transformações se fazem num

espaço de diálogo com os recursos e entendimentos que já compunham a

produção fotográfica e o modo de comunicar da fotografia. Como afirma Ronaldo

Entler13, não há grande contradição entre o uso da fotografia como documento e

o reconhecimento de sua nova natureza escancaradamente codificada, uma vez

que esse caráter documental é dado também por uma construção cultural e

social. Entler diz que o aspecto volátil da imagem formada por dados numéricos

e suas infinitas possibilidades de alteração também são absorvidos pelo modo

como entendemos a fotografia como uma forma de documentar os

acontecimentos.

Assim, é possível pensar que a ambivalência própria da fotografia é

acentuada pela fotografia digital, uma vez que ela pode se afastar

13 “Sobre pixels e cicatrizes de guerra: a sobrevivência do testemunho na fotografia digital”. Disponível em: www.iconica.com.br/site/sobre-pixels-e-cicatrizes-de-guerra-a-sobrevivencia-do-testemunho-na-fotografia-digital/ Acesso em: 20/01/2017

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deliberadamente do objeto que lhe deu origem, ao ser manipulada pixel a pixel,

mas também pode seguir atuando pela lógica da produção documental e da

criação de memória, sempre entendendo que essa documentação é parcial,

precária e lacunar.

E mais, entender a fotografia à luz do conceito de ambivalência significa,

sobretudo, a compreensão de que documento e ficção não se distinguem de

modo claro, mas se mesclam e se contagiam, impregnando e tensionando a

imagem fotográfica. Ao analisar o contexto da fotografia contemporânea e digital,

Wagner Silva comenta que, perceber uma fotografia como uma ficção antes de

vê-la como um documento significa “notar o caráter ficcional de qualquer

documento e o caráter documental de qualquer ficção” (SILVA, 2016: 144).

Essas sobreposições também ocorrem na fotografia analógica, que, impõe

lembrar, ainda é produzida por artistas e fotógrafos que pesquisam a linguagem

fotográfica.

Assim, a ambivalência da fotografia se caracteriza pela presença

simultânea do registro e da invenção, e essa simultaneidade se dá como

potência – a fotografia é potencialmente documental e ficcional. Como

possibilidades, essas dimensões estão abertas e, de modo tensivo, de acordo

com diferentes fatores, as imagens tomam forma com predominância do

documento ou da ficção: mesmo documental, a fotografia tem traços de criação

ficcional e, quando ficcional, não escapa de ter algo de registro documental.

Nesse sentido, é fortíssimo o diálogo com a afirmação de Fontcuberta de que “el

límite entre lo real y lo imaginario es más imaginario que real” (2010a: 53).

Ferrara (2000), ao falar sobre Imaginário e Imagem da cidade, também

trata dessa fluida fronteira entre real e imaginário. A pesquisadora aborda o

pensamento científico ocidental e as dicotomias que o caracterizam, destacando

as rigorosas divisões que ele apresenta e as dicotomias e limites que a tradição

cultural insiste em estabelecer entre imaginário e real, fantasia e expressão,

sentido e imagem, e ressalta que a coerência racional desses limites pode ser

abalada (2000: 116). A fotografia, com a complexidade que lhe é característica,

parece abalar essa racionalidade insistentemente. Se imaginário e real são

instâncias separadas forçadamente pelo pensamento ocidental moldado pela

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racionalidade cartesiana, a dupla possibilidade que a fotografia oferece pode nos

fazer perceber como imaginário e real se influenciam e muitas vezes se

confundem.

Ao final deste breve percurso que evidenciou significativas teorias e

estudos acerca da fotografia, fica claro que compreendê-la como ambivalente

ressalta que não se pode reduzir toda a teoria da fotografia à teoria do traço e

do vestígio e, nem tampouco, pensar que o fotográfico nada tem de criação

documental ou de memória. Como a fotografia não é apenas um registro ou uma

imagem precisa do mundo, mas também um modo de contar, sua ambivalência

também se refere ao modo como suas possibilidades de criação se expandem

para além da narrativa e recaem no campo da fabulação.

Em tese sobre a relação entre a cidade e a obra do quadrinista Will Eisner,

Marília Borges (2012) explorou a diferença entre o narrar e o fabular. A

pesquisadora investigou a narração com base em autores como Walter Benjamin

e Marie-Laure Ryan, que propõem, respectivamente, que o propósito do ato de

narrar e do narrador é o de partilhar experiências, suas e dos outros e que a

narrativa está relacionada a ações cognitivas que organizam e tornam

compreensíveis as experiências humanas (BORGES, 2012: 196).

Borges afirma que o conceito de narrativa conforme trabalhado pelos

autores citados é amplo e dá conta da diversidade das narrativas, porém, carrega

um peso formalista e estruturalista que demanda um novo termo – fabulação –

para tratar de narrativas que tensionam paradigmas e formalismos:

Nessa proposta epistemológica, o fabular supõe narrar de outra maneira, especulando sobre as coisas de um modo novo e surpreendente. Enquanto na narração a narrativa está dada, cristalizada, trazendo um claro sentido fechado, que simplesmente é informado ao receptor – que pouco tem a fazer porque os nexos já estão amarrados –, na fabulação a narrativa está em contínua e constante produção e expansão, apresentando-se de forma aberta, incompleta e permitindo múltiplas conexões que demandam ampla participação do receptor (BORGES, 2012: 198).

Nesse sentido, pode-se vincular a fabulação ao movimento que vai da

visualidade à visibilidade: a fotografia pode ser fábula porque registra as

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espacialidades do mundo como visualidade, criando pontes para visibilidade,

que é processo aberto ao devir, sempre em transformação. A fotografia tem,

então, certo grau de indeterminação que vem de sua condição de ambivalência,

o que a torna um meio comunicativo potente para abrir brechas para que se veja

além do óbvio visível. Borges também afirma que, “[...] enquanto o narrar

canônico remete a uma ideia de fidelidade, descrição, o fabular dialoga com a

tradução como experiência cognitiva e recriação” (2012: 200). Assim, o fabular

pode expandir a dimensão ambivalente da imagem fotográfica fazendo com que

ela atue para além da narração documental e ficcional.

O fabular, como proposto por Borges, aproxima-se do modo como

Jacques Rancière (2013) pensa a “fábula cinematográfica”. O autor faz uma

análise da maneira própria de comunicar do cinema, que pode também ser

relacionada com a fabulação na produção fotográfica.

Rancière toma como ponto de partida para sua discussão um texto

intitulado Bonjour cinéma, escrito em 1921, pelo cineasta Jean Epstein, que

propõe que o cinema seria a arte capaz de reestruturar a fábula no sentido

aristotélico, que prevê a construção ordenada da trama, numa narrativa em que

os acontecimentos são dispostos de tal modo a parecerem verossímeis

(RANCIÈRE, 2013: 8). Rancière diz ainda que, para Epstein, essa lógica das

ações agenciadas marca toda uma ideia de expressividade da arte, mas se trata

de uma lógica ilógica, pois contradiz a própria vida que pretende imitar:

A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para fins, mas somente situações abertas em todas as direções. Ela não conhece progressões dramáticas, mas um movimento longo, contínuo, feito de uma infinidade de micromovimentos. Essa verdade da vida encontrou, enfim, a arte capaz de expressá-la: a arte em que a inteligência que inventa mudanças de sorte e conflitos de vontades se submete a outra inteligência, a inteligência da máquina que não quer nada nem constrói histórias; mas registra a infinidade dos movimentos que faz um drama cem vezes mais intenso que qualquer mudança dramática de sorte (RANCIÈRE, 2013: 8).

Na perspectiva de Rancière, o enredo aristotélico ocupa posição central

no regime da arte denominado como representativo ou mimético, que se

distingue tanto do regime ético como do estético. O autor propõe o regime

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estético da arte como aquele em que a ficção se constrói não mais a partir de

uma determinação dada por uma hierarquia dos acontecimentos e temas, mas

se faz de modo autônomo e desobrigado de qualquer regra específica,

subvertendo o ordenamento do sistema representativo (RANCIÈRE, 2009: 33).

A proposta de Epstein alinha-se ao entendimento do filósofo, pois

aproxima o cinema do contexto do regime estético, porém, Rancière adverte que,

se o cinema se opõe à fábula aristotélica, essa característica vem, antes, do

teatro e da literatura: “os jogos do cinema com seus recursos só podem ser

entendidos num jogo de troca e de inversão com a fábula literária, a forma

plástica, ou a voz teatral” (RANCIÈRE, 2013: 8). Assim, o autor analisa a

proposta de Epstein e discorda dela na medida em que não vê o cinema como

único meio capaz de desmontar a lógica representativa, uma vez que este faz o

que já estava sendo desenvolvido por outras linguagens. Além disso, para

Rancière, não é possível deixar de perceber que o cinema não se distancia

totalmente da narrativa do sistema representativo, pois também opera pela

lógica do encadeamento linear das ações e dos enredos predefinidos, no

entanto, o cinema também pertence ao regime estético da arte:

até as formas cinematográficas mais clássicas, mais fiéis à tradição representativa das ações bem encadeadas, dos caracteres bem destacados e das imagens bem compostas são marcadas pelo intervalo que assinala o pertencimento da fábula cinematográfica ao regime estético da arte (RANCIÈRE, 2013: 20).

Esse intervalo que marca a conexão do cinema ao sistema estético está

relacionado ao princípio da arte cinematográfica, ao seu “duplo poder do olho

consciente do cineasta e do olho inconsciente da câmera” (RANCIÈRE, 2013:

14). Essa ambivalência própria do cinema se refere àquela já explorada nesse

texto ao tratar da fotografia – o cinema, pelo aspecto inconsciente do aparato,

vê o que o olho humano não percebe, registra cenas pela pura conexão material

da câmera com os objetos, mas esse registro só ocorre pela presença consciente

do cineasta que decide o que e como filmar, a câmera está “necessariamente a

serviço da inteligência que a manipula” (RANCIÈRE, 2013: 15).

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Nesse sentido, Rancière comenta que, da natureza técnica até a sua

vocação para arte, o cinema passou por um percurso que não se deu em linha

reta. Assim, a fábula cinematográfica é uma “fábula contrariada”, uma vez que

“seus procedimentos artísticos devem construir dramaturgias que contrariam

seus poderes naturais” (RANCIÈRE, 2013: 16).

Essa contrariedade da fábula cinematográfica pode ser entendida pela

eminente ambivalência do cinema, primeiro, no que diz respeito ao que Rancière

chama de passividade da câmera e atividade do fotógrafo, o que vincula o

cinema à dupla e simultânea possibilidade de produção documental e ficcional –

a passividade da câmera estaria relacionada ao seu modo de documentar o

mundo inconscientemente e a ação do fotógrafo à consciência sobre os

processos de codificação. Outro ponto relacionado à fábula contrariada se

relaciona ao que Rancière propõe como uma tensão provocada pelo cinema

entre os sistemas representativo e estético. Por seu modo próprio de comunicar,

que atinge a percepção sensível com a potência da imagem e do som, o cinema

teria toda condição de realizar os anseios do regime estético e, de fato, o faz.

Porém, também resgata e aprimora a ordem representativa da narrativa

tradicional aristotélica, como bem demonstra o cinema produzido pelo circuito

mais comercial.

Também é importante destacar que Rancière relaciona a fábula

cinematográfica a construções paradoxais no que diz respeito à encenação,

enquadramentos, movimentos e contramovimentos que se ajustam e ao mesmo

tempo subvertem o roteiro (RANCIÈRE, 2013: 20). Um dos impactos dessa

lógica de contrariedades é o tensionamento e apagamento dos limites entre o

documental e o ficcional (RANCIÈRE, 2013: 21). Nesse sentido, o autor faz uma

análise do filme Listen to Britain de Humphrey Jennings, documentário produzido

durante a Segunda Guerra como peça de propaganda do governo da Grã-

Bretanha em apoio aos aliados, e que se constrói pela alternância de cenas de

suspense, de ação e cenas em que os soldados aparecem em momentos de

lazer e paz, sobre essas oscilações aparentemente estranhas, o autor comenta:

[...] esse estranho ‘documentário’ acusa a costumeira ambivalência desse jogo de trocas entre a ação verossímil, própria da arte representativa, e a vida sem razão, emblemática

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da arte estética. O comum, o grau zero da ficção cinematográfica, é a complementaridade dos dois, a dupla atestação da lógica da ação e do efeito de realidade. O trabalho artístico da fábula consiste, ao contrário, em fazer variar seus valores, em aumentar ou reduzir sua divergência, em inverter seus papéis (RANCIÈRE, 2013: 21, 22).

Rancière diz ainda que “essa fábula do cinema é consubstancial à arte do

cinematógrafo” (2013: 11), ou seja, a fábula é própria da ambivalência que se

constitui tanto pelo modo de ser do aparato técnico, como pelo modo como ele

é explorado na criação de imagens e filmes que embaralham e sobrepõem o

documento e a ficção. Em virtude disso, a fabulação pode também ser pensada

como aquilo que, ao esgarçar esses limites, deixa o olho incerto do que vê, pois

se apresenta como indefinição que contraria a linearidade da narrativa

tradicional, a crença na imagem como documento fiel de uma realidade

registrada e, também, a descrença que só vê na imagem a pura ficção.

A diferença entre narrar e fabular, como proposta por Borges, vincula a

narrativa a um sentido fechado que se relaciona com a fábula aristotélica e seu

agenciamento das ações de forma previsível, que evita os acasos e tudo aquilo

que não se pode controlar. Já o fabular se faz de forma aberta, incompleta, com

transformações contínuas e se relaciona com a fábula cinematográfica como

propõe Rancière, fábula contrariada e criada pela exploração do suporte

cinematográfico como um meio comunicativo, ou seja, uma fábula que se

constrói justamente pelas possibilidades técnicas do cinema quando usadas

como elementos que constituem linguagem.

A fabulação tecida pela fotografia também tem como condição de

possibilidade a ambivalência da linguagem. Assim, ela não se dá apenas porque

a fotografia pode ser ficcional, mas também por sua característica de documentar

o que se vê e, ao fazê-lo, evidenciar também o que se deixa de ver. Como se

percebe, essas dimensões estão inseparavelmente relacionadas. A fabulação,

esse modo de investigar sobre o que se vê, traduzindo, transformando e

recriando as coisas pelo fotografar, não se faz de modo apartado ou descolado

do real, o fabular surge da experiência empírica, do confronto entre o real, os

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desejos e entendimentos do fotógrafo, e das possibilidades da materialidade da

imagem e do processo do trabalho que se constrói.

Evidentemente, nem todo trabalho fotográfico é desenvolvido pela

perspectiva da fabulação. Há aqueles que se apoiam em narrativas lineares ou

têm uma clara preocupação em salientar um traço de verossimilhança com o que

fotografa. Como o objetivo desta pesquisa recai sobre as interações entre a

fotografia e a cidade a partir de suas ambivalências comunicativas, interessa

analisar e perceber como a fabulação atua na fotografia que se faz na e da

cidade.

Essa ambivalência entendida como uma potência comunicante pode ser

explicitada pela análise de um dos trabalhos do fotógrafo Cássio Vasconcellos,

que, em seu livro Noturnos (2002) apresenta uma cidade silenciosa e muito

subjetiva. Sua busca foi por encontrar lugares escondidos, frestas, aquilo que

não se vê, mas sobre o que se pode fabular.

Noturnos, Cássio Vasconcellos

No texto de abertura do livro, o fotógrafo comenta: "Fui envolvido pelo

lirismo noturno, que é quando os sonhos se fazem. A poesia e a atmosfera única

captadas nas imagens não são encontradas, na mesma proporção, à luz do dia"

(VASCONCELLOS, 2002: 8). O fotógrafo diz ainda que suas imagens mostram

uma cidade fantástica que parece criada e não fotografada. Nesse sentido, nota-

se como a linguagem fotográfica se desdobra na sua ambivalência essencial: o

fotógrafo explora a cidade existente, concreta, e extrai dela aquilo que imagina

como sua face mais inquietante. Dá visibilidade ao banal, fotografando linhas,

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traços da arquitetura, restos de placas, tapumes, criando relações entre os

elementos que compõem a cidade, não se limitando a descrevê-la, mas

fabulando sobre essa realidade efêmera e repleta de incertezas.

Desse modo, essas imagens operam num espaço em que se dá um

confronto entre a dimensão do urbano e da cidade. O interesse recai numa

cidade desconstruída à margem dos processos de ordenação. As dimensões da

cidade como um lugar são percebidas pela visualidade própria dessas

fotografias que especulam sobre o que não se vê e dão visibilidade à trama de

fixos e fluxos da cidade.

Nelson Brissac Peixoto, ao comentar o ensaio Noturnos afirma:

Cássio Vasconcellos não pretende mostrar onde estão as coisas, mapear. A luz intensa que joga sobre as coisas, na verdade, cega. Ela lhe permite andar pela cidade como se estivesse de olhos bem fechados. Sua empresa é essencialmente tátil. É o que lhe possibilita descobrir a presença, palpável, de tudo aquilo que, a princípio, não se pode ver (Peixoto In: VASCONCELLOS: 2002, 24).

Noturnos, Cássio Vasconcellos

Assim, em várias imagens, o fotógrafo concentra seu olhar nas

espacialidades construídas entre planos, muitas vezes olhando para o alto,

vislumbrando novas possibilidades para uma construção visual da cidade. A luz

que cega é também uma estratégia do fotógrafo que ilumina a cidade com cores

improváveis, criando outra cidade através da visualidade particular que surge da

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exploração do suporte fotográfico polaroid. Há um uso das particularidades

técnicas do suporte como um meio expressivo para comunicar uma visualidade

e disparar processos de visibilidade. Essas fotografias se atêm à realidade da

cidade, mas a transformam com camadas de poesia e invenção, que possibilitam

outros caminhos para conhecê-la.

“O plano do vivido sustenta um imaginário que produz mais fabulações do

que narrativas” (FERRARA, 2015: 154). Ao percorrer espaços desertos, à noite,

fora do fluxo convencional da cidade, o fotógrafo aproxima seu gesto fotográfico

de uma vivência particular que a investiga pelas bordas, a despeito do prescrito,

do indicado como modo seguro de estar nesse espaço. As imagens fotográficas

produzidas nesse processo estão abertas ao fabular, são da esfera da interação,

da construção de lugares pelo uso cotidiano.

As fotografias de Noturnos carregam uma outra ambivalência: aquela que

se estabelece entre o visível e o invisível. O ensaio fotográfico conecta-se a uma

afirmação de outro fotógrafo e artista, Cao Guimarães, que diz que seu fascínio

pela imagem também vem do que não se pode ver. Em seu livro Cao (2015),

que compreende um conjunto de seus trabalhos fotográficos desenvolvidos ao

longo de vários anos, há, ao final, um glossário produzido pelo pesquisador e

curador Moacir dos Anjos, e um dos verbetes é Ver:

‘Ver é uma fábula’, diz Paulo Leminski em seu livro Catatau. Frase que sugere o poder que cada visada particular do mundo tem de tecer histórias sem o amparo de qualquer outra linguagem. Enunciado que igualmente implica, porém, que as narrativas visuais assim criadas são frutos do embate infindo entre o desejo de algo novo e tudo aquilo que aí já está, pondo em destaque o poder emancipador que a visão possui. Afinal, quem fabula sonha com algo que não encontrou lugar ainda para existir; [...] (CAO, ANJOS, 2015: 270, 271).

Ver é uma fábula quando se busca pelo invisível, porque assim se

transforma o visto. A fotografia pode fabular quando cria tensões entre o que

registra e o modo como registra, entre aquilo que está disponível na

materialidade do real e como isso é transformado e ganha um novo lugar na

materialidade da imagem.

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Assim, nas fotografias de Noturnos, é possível observar que, ao olhar para

a cidade buscando o que é invisível, o fotógrafo a transforma pelo modo como a

olha e pelo que encontra naquilo que carrega em suas memórias.

O objeto, o sujeito e o ato de ver jamais se detêm no que

é visível, tal como o faria um termo discernível e

adequadamente nomeável. (...) O ato de ver não é o ato

de uma máquina de perceber o real enquanto composto

de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato

de dar evidências visíveis a pares de olhos que se

apoderam unilateralmente do ‘dom visual’ para se

satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre

inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre

uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida,

inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo uma

névoa, além das informações de que poderia num certo

momento julgar-se o detentor (DIDI-HUBERMAN, 2005:

76).

Por essa fenda, podemos entrever que as fotografias analisadas são

construídas numa fronteira porosa que compreende diferentes camadas que se

sobrepõem e interagem: o mundo concreto, a cidade com todos os seus

movimentos e imprevisibilidades, o imaginário do fotógrafo, as ambivalências da

linguagem fotográfica. Ao ver e fabular sobre a cidade, a fotografia põe em jogo

afetividades, trocas, confrontos entre o que se vê e o que a fotografia pode

mostrar e esconder.

A seguir, essas relações serão mais detalhadas e pensadas a partir de

outros trabalhos fotográficos, para que seja possível um entendimento sobre as

interações entre a cidade e a fotografia.

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Asfalto, Tatiana Pontes

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CAPÍTULO 03

Interações entre a cidade e a fotografia: caminhar, fotografar, fabular.

Articulações entre a Cidade e a Fotografia

O caminhar, o fotografar e a construção de lugares

O fotografar como gesto de resistência

Montagem e desmontagem da cidade

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“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio

condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas

perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa”.

Italo Calvino

Como se dá a interação entre a cidade e a fotografia contemporânea?

Como cidade e fotografia se afetam? Esses questionamentos norteiam toda esta

pesquisa e serão adiante investigados a partir do procedimento de caminhar,

usado por muitos fotógrafos como uma estratégia poética para se colocarem em

contato com a cidade e apreender suas manifestações.

A cidade e a fotografia têm uma relação estreita desde o século XIX, com

intensos diálogos e vínculos. Tendo em vista que a arqueologia leva em

consideração as assinaturas para que seja possível entender como os

fenômenos se apresentam e gerar conhecimento a partir deles, o interesse deste

capítulo é o de buscar e analisar os rastros das relações entre a fotografia e a

cidade e os gestos de caminhar, fotografar e fabular.

Agamben (2010: 85, 86) afirma que as assinaturas marcam e

caracterizam os signos no seu nível de existência, e deixam claro que eles não

são neutros, puros ou unívocos, mas significam justamente por carregarem uma

assinatura que revela a qualidade invisível que eles trazem em si. As assinaturas

são rastros que dão a conhecer o que está na raiz dos objetos, e encontrar esses

rastros é o que caracteriza a arqueologia, ou “ciência das assinaturas”. Também

é importante reiterar que as assinaturas não são fixas, mas constituídas por

relações ou, conforme pensado por Agamben, elas se constroem como

possíveis, num espaço de indecidibilidade (2010: 49).

A arqueologia é, então, entendida tanto como estratégia metodológica,

quanto como caminho epistemológico. Além disso, não se restringe a escavar

para classificar, muito menos é um exercício de escavação para encontrar um

significado predefinido e esquecido: é, antes, uma arqueologia das conexões

entre os rastros, não preocupada em estabilizar, mas em lidar com a emergência

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dos fenômenos no presente e em devir, e, ao mesmo tempo, com as relações

desses fenômenos com seu passado.

Dessa perspectiva, o exercício arqueológico aproxima-se da crítica como

compreendida por Flusser: “a crítica é o ato graças ao qual um fenômeno é

rompido para que se veja o que está por trás dele. Quando uma criança abre a

barriga de uma boneca para olhar dentro dela, isso é um ato de crítica”

(FLUSSER, 2014b: 45). E dentro do que se quer olhar? Para o interior dos

processos de fabulação produzidos por uma fotografia da cidade que se faz num

espaço ambivalente. A crítica que se pretende, olha para dentro dos diálogos

entre as imagens fotográficas, seus processos de criação e a cidade, para, a

partir de seus rastros, entender como se constituem essas interações e o modo

como a cidade e a fotografia se afetam mutuamente. Essa busca também levará

em consideração a diferenciação que Walter Benjamin faz entre o vestígio e a

aura:

O vestígio é aparecimento de uma proximidade, por mais distante que esteja aquilo que o deixou. A aura é o aparecimento de uma distância, por mais próximo que esteja aquilo que a suscita. No vestígio, apossamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós (1989: 226).

A concepção de vestígio de Benjamin pode ser relacionada aos rastros e

assinaturas. Buscar pelos vestígios das fotografias da cidade equivale a

entender o que do objeto referente permanece na imagem e como este se

transfigura criando e recriando novas cidades na superfície da fotografia. Se, no

capítulo anterior, a cidade e a fotografia foram tratadas separadamente, no intuito

de melhor caracterizar as ambivalências de cada objeto, neste, serão

investigadas por suas conexões, diálogos e pela maneira como interagem.

Tal interação é apreendida pelo estudo de trabalhos fotográficos

desenvolvidos pelo procedimento de caminhar na cidade. Serão analisados os

processos de criação e os trabalhos de quatro fotógrafos – Daniel Ducci, Felipe

Russo, Fernando Cohen e Weslei Barba – que têm a cidade de São Paulo como

espaço e matéria para a criação de suas imagens.

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Articulações entre a Cidade e a Fotografia

O vínculo inicial da fotografia com a cidade deve-se a fatores culturais,

sociais e também ao surgimento da fotografia no contexto da revolução

industrial, ao período em que a tecnologia passou definitivamente a influenciar e

a transformar a cultura. Desde o século XIX, como precursora do

desenvolvimento das imagens técnicas, a fotografia passou a fazer parte do

cotidiano das pessoas, influenciando o modo como nos relacionamos com

imagens e com o mundo.

Considerando que o registro da imagem fotográfica depende da

sensibilização de um material fotossensível pela luz que reflete dos objetos e

cenas e que, no início da fotografia, o grau de sensibilidade dos materiais era

mínimo, o registro fotográfico era feito por longos tempos de exposição, o que

praticamente impedia que se registrassem objetos em movimento. Desse

impedimento técnico, surge uma exploração visual da cidade, que, na sua

imobilidade arquitetônica, passa a ser registrada por diversos fotógrafos.

Como lembra Joan Fontcuberta (2010a: 105), desde Niépce e Fox Talbot,

muitas fotografias foram feitas com a câmera apontando para a cidade a partir

de uma janela. Esse olhar, segundo o autor, pode estar ligado a uma intuição

que nos leva a identificar a visão pelo visor da câmera com aquela obtida através

de uma janela. É histórica a fotografia de uma vista feita pela janela de Niépce –

imagem que inaugura a linguagem fotográfica e seu olhar para a cidade.

Heliografia – Joseph Nicéphore Niépce, 1826

Vista da janela de sua casa em Chalon-sur-Saône, França

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Durante o século XIX, o olhar para a cidade também esteve conectado ao

desenvolvimento da prática da flânerie, um modo de estar na cidade proposto

por Charles Baudelaire como uma resposta às transformações do espaço

urbano, como o surgimento das galerias de Paris, o consumo, a aglomeração de

pessoas, a velocidade. Sua poesia foi construída, como afirma Leda Tenório da

Motta na apresentação do livro O Spleen de Paris,

[...] pelo trabalho de por em prosa a poesia que só ele sabia tirar de uma deriva melancólica, mas infinitamente produtiva pela cidade. Perambulação ela também inaudita enquanto gesto de escritor, espécie de atenção flutuante avant la lettre, a que o poeta chama flânerie (Motta In: BAUDELAIRE, 1995b: 10).

O flâneur não é um simples passante, transeunte na cidade, é um homem

da multidão, como apresentado por Edgar Allan Poe, cuja obra, traduzida por

Baudelaire, muito o influenciou. O flâneur não adere ao simples ir e vir na cidade,

ele anda a esmo, sem direção preestabelecida, deixa-se levar pelo fluxo aleatório

e surpreendente, mas está com os sentidos em alerta para investigar, recolher

impressões sobre o que vê, sobre o espaço e seus habitantes, afinal, “quanta

coisa estranha não se pode ver numa grande cidade quando se sabe passear

por ela e olhar” (BAUDELAIRE, 1995b: 142).

A poesia e a prosa poética que Baudelaire desenvolve estão muito

relacionadas à linguagem da cidade. O poema A uma passante, do livro As flores

do mal (1985), é um marco da expressão poética dos frenéticos e efêmeros

acontecimentos da cidade:

A uma passante14

A rua em torno era um frenético alarido.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

Uma mulher passou, com sua mão suntuosa

Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

14 Tradução de Ivan Junqueira.

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Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.

Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia

No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,

A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade

Cujos olhos me fazem nascer outra vez,

Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!

Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,

Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

O poema mostra com clareza a ambivalência que impregna as relações

no espaço urbano moderno: a dupla possibilidade de deleite e frustração; a

chance de encontrar a paixão numa fração de segundo e, no segundo seguinte,

seu derradeiro fim. A cidade, com sua velocidade e multidão, faz nascer, como

diz Benjamin, o amor não à primeira, mas à última vista (1989: 43).

Quando Benjamin analisa a obra de Baudelaire, afirma que “a cidade é o

autêntico chão sagrado da flânerie” (1989: 191). A flânerie está conectada ao

auge do capitalismo, à constituição da cidade pelas programações do

planejamento urbano e pela massificação do consumo que só pode ocorrer

nesse espaço. A cidade do século XIX que dá origem à flânerie é Paris, com

suas galerias, tomadas por Benjamin como um meio-termo entre a rua e o interior

das casas. Assim, “a rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas

dos prédios, sente-se em casa” (1989: 35), ou seja, a flânerie acontece num

espaço intermediário, construído entre o público e o privado, entre o exterior e o

interior.

Benjamin também afirma que, mesmo mergulhado na multidão, o flâneur

“está sempre em plena posse de sua individualidade” (1989: 202). Assim,

também o caracteriza por meio de uma dupla relação entre o indivíduo e o

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coletivo. O flâneur é o homem que faz parte da multidão nas ruas das grandes

cidades, mas não se perde nela, pois seu método de estar na cidade o faz atento

aos acontecimentos e à sua própria individualidade. Tal método é também

constituído por uma oscilação entre o ócio e o estudo, o flâneur parece vagar à

toa, despreocupado, mas, ao mesmo tempo, estuda os movimentos da cidade e

da multidão. Ele não só habita a cidade, mas também a investiga, embriagando-

se pela ação de vagar pelas ruas, percebendo simultaneamente seus estímulos.

Público-privado, exterior-interior, indivíduo-coletivo, ócio-estudo: é

possível perceber nessas relações que a prática da flânerie é dotada de uma

ambivalência essencial, destacada por Benjamin como um movimento dialético

que faz do flâneur um ser que vê e é visto: “por um lado, o homem que se sente

olhado por tudo e por todos, simplesmente o suspeito; por outro, o totalmente

insondável, o escondido” (Benjamin, 1989: 190). Desse modo, o flâneur é

impactado e modificado pelos acontecimentos da cidade, é percebido por outros

flâneurs, ao mesmo tempo em que passa despercebido para muitos que circulam

no mesmo espaço.

Tendo essas ambivalências como elementos intrínsecos, a flânerie torna

o flâneur um precursor do detetive (BENJAMIN, 1989: 219), que se atém aos

vestígios do que se esconde na multidão para perceber as ocorrências,

estranhezas e banalidades no auge do próprio acontecimento. A caracterização

do flâneur chegou à produção fotográfica na figura de fotógrafos como Eugène

Atget, que desenvolveu trabalhos relacionados a esse caminhar na cidade

pautado pela dúvida e pelo questionamento, e não apenas pela passiva

contemplação.

Atget foi ator de teatro e pintor antes de começar a fotografar Paris.

Durante trinta anos andou sem destino pelas ruas buscando, como diz Benjamin,

“coisas perdidas e transviadas” (1994: 101). Seu olhar escapou dos retratos

produzidos à época em grande quantidade e deteve-se no que a rua tinha de

menos explorado, a simplicidade e o mistério da sua banalidade:

Quase sempre Atget passou ao largo das ‘grandes vistas e dos lugares característicos’, mas não negligenciou uma grande fila de formas de sapateiro, nem os pátios de Paris, onde de manhã à noite se enfileiram carrinhos de mão, nem as mesas com os

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pratos sujos ainda não retirados, como existem aos milhares, na mesma hora, nem no bordel da rua... nº5, algarismo que aparece, em grande formato, em quatro diferentes locais da fachada (BENJAMIN, 1994: 101, 102).

Essa investigação da cidade em sua face mais banal pode ser percebida

pela escolha dos temas a serem fotografados – a preferência por bairros

decadentes se opõe à iluminada Paris em desenvolvimento. Mas, mais que isso,

o trabalho chama a atenção pelo modo como as ruas foram fotografadas. Nas

imagens de Atget, a cidade não se presta a cenas espetaculares nem a grandes

ocorrências, ao contrário, está vazia, silenciosa.

Eugène Atget

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Em uma de suas séries, os reflexos da cidade sobre as vitrines que

anunciam o consumo tornam as imagens repletas de camadas que podem ser

entendidas como rastros, elementos que pulsam nas imagens e que indicam

possíveis leituras da cidade registrada.

Vemos interior e exterior da vitrine na mesma superfície, numa imagem

carregada de assinaturas das ambivalências tanto do espaço da cidade, quanto

da fotografia ou do fotógrafo: Atget nos mostra a pluralidade de Paris ao mesmo

tempo em que esclarece o quanto a fotografia lhe permite recriar o mundo que

lhe serve de ponto de partida. As imagens das vitrines juntam, num mesmo plano

de foco, algo que o olho humano insistentemente separa: nessas fotografias

estão, numa mesma superfície, uma camada com os produtos no auge de sua

exponibilidade voltada ao consumo e outra de informação que desvia nosso olhar

do objeto a ser consumido.

Analisar essas imagens pelos rastros contidos nelas mesmas é um

exercício arqueológico que evidencia que as escolhas do fotógrafo repercutem

de modo a dar visibilidade aos processos da cidade por meio da visualidade da

imagem. Assim, é possível imaginar que essas fotografias seriam totalmente

distintas se Atget tivesse feito outras escolhas, como fazer o foco num único

plano, apenas no interior ou no exterior da vitrine, por exemplo. A escolha por

deixar nítido o plano do vidro, com os reflexos do lado de fora sobre os elementos

internos constitui uma assinatura elaborada tanto pelo processo fotográfico como

pela própria cidade, que assina a imagem através da sobreposição de diferentes

espaços, luzes, sombras, arquiteturas e formas consumo.

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Eugène Atget

As ruas desocupadas, outro elemento marcante das fotografias de Atget,

são também resultado de um limite técnico – a necessidade de longos tempos

de exposição para a produção das chapas fotográficas. Atget nem mesmo usava

o equipamento mais desenvolvido disponível em sua época, fotografava com

uma antiga câmera de madeira que produzia negativos no formato 18x24 cm.

Para além da impossibilidade técnica, as imagens apresentam uma

cidade viva em suas próprias brechas, vista por um olhar que escapa das cenas

previsíveis e já vistas nos cartões postais. Nesse sentido, a afirmação de

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Benjamin (1994: 102) de que Atget não fotografa lugares solitários, mas, sim,

privados de toda atmosfera, como uma casa que ainda não encontrou

moradores, pode ser pensada como um apontamento à ambivalência da

fotografia, à sua potencialidade para materializar não o mundo tal como está,

mas um outro, constituído por rastros de uma complexa elaboração entrelaçada

pelo fotógrafo, sua câmera e a fluidez do mundo ao redor.

Buscando traçar um pequeno percurso arqueológico da fotografia da

cidade, para que seja possível investigar as interações entre a cidade e a

fotografia contemporânea, é possível pensar no trabalho de Henri Cartier-

Bresson, que, assim como Atget, também atualizou a flânerie pelas ruas de Paris

e de muitas outras cidades, já no século XX. Cartier-Bresson dizia que, para ser

fotógrafo, é necessário “envolver-se com a totalidade do mundo” e suas

abordagens a diferentes temas tinham a cidade como um elemento comum,

como lugar que exige voltar o olhar para os diversos aspectos da cultura e da

sociedade.

O fotógrafo ficou muito conhecido pela força de suas imagens e também

pelo seu modo de fotografar, baseado no que denominou momento decisivo. Em

O imaginário segundo a natureza (2004), Cartier-Bresson define o que entendia

pelo termo:

Há quem faça fotografias previamente arranjadas e há os que vão à descoberta da imagem e a captam. A máquina fotográfica é para mim um bloco de esboços, o instrumento da intuição e da espontaneidade, a senhora do instante, que em termos visuais, questiona e decide ao mesmo tempo. Para ‘significar’ o mundo, é preciso sentir-se implicado no que se descobre através do visor (2004: 12).

O momento decisivo não está relacionado ao congelamento de uma cena

pela capacidade técnica da câmera fotográfica, mas, sim, a uma postura do

fotógrafo diante do mundo e ao seu envolvimento com o que fotografa. O que

move o fotógrafo é uma reflexão que o faz analisar, interpretar e transformar o

que vê. Essa transformação se dá justamente num espaço de contato entre o

mundo fotografado e as possibilidades da fotografia, que envolvem suas

propriedades técnicas e, muito além disso, seu traço ambivalente, sua

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constituição como meio comunicativo, muito mais amplo e complexo que o

suporte técnico.

Quando Cartier-Bresson explicita sua estratégia fotográfica diante de uma

cena dizendo que “é preciso aproximar-se sigilosamente como um gato, mas ter

o olhar agudo. Nada de atropelos; não fustiga-se a água antes de pescar” (2004:

19), se evidencia como seu trabalho era desenvolvido também pela

especificidade do equipamento que utilizava – a câmera Leica – usada por ele

como uma “extensão de seu olho”, que lhe propiciava passar despercebido pelas

cenas que fotografava. Sobre esse aspecto, Alberto Tassinari comenta:

Bresson perderia a imagem que antevê se o instantâneo não lhe proporcionasse versatilidade e velocidade. O instantâneo, como meio, encontra assim seu objetivo: a fixação rápida e conjunta de momentos de séries independentes de acontecimentos. (In: MAMMI; SCHWARCZ, 2008: 13).

Nesse sentido, o autor desenvolve a proposta de que o trabalho de

Cartier-Bresson é feito de montagens, mas não de diferentes fragmentos de

imagens distintas, ao contrário, ele relaciona acontecimentos distintos dentro de

uma mesma imagem. O momento decisivo aproxima-se, então, de um ato

arqueológico, um modo de construir imagens que busca pelo invisível dos

acontecimentos, por aquilo que o fotógrafo antevê nas fissuras da materialidade

visível das coisas. Assim, pela percepção dos rastros ou assinaturas do fluxo da

cidade, surgem imagens impregnadas por esses rastros da vida da cidade.

Nesse processo, o aparato técnico é ferramenta indispensável, mas

nunca suficiente em si mesmo. As qualidades da câmera fazem da fotografia a

imagem técnica por excelência, porém, o gesto fotográfico não se reduz à

operação desse aparato. No caso de Cartier-Bresson, a possibilidade do registro

instantâneo dada por sua câmera abre espaço para a criação das imagens com

certa especificidade, mas a complexidade das montagens que o fotógrafo cria

no próprio ato fotográfico vem muito mais do que se pode chamar de olhar

interativo: um olhar que vai além da passividade perceptiva, um olhar que pensa,

que atua para além da construção da visualidade da imagem, como gerador de

visibilidade, que propicia conhecimento sobre o que fotografa.

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Cartier-Bresson também não fazia um único registro de cada cena que

fotografava, como o termo momento decisivo levou a pensar. Nos contatos de

seus filmes, é possível encontrar sequências de fotogramas feitos de uma única

cena, o que deixa claro que a produção fotográfica se dá em processo e não se

reduz ao ato de disparar a câmera no instante do registro, que não é decisivo

nem único, mas pode se fazer por momentos distintos e pela multiplicidade dos

acontecimentos que se fotografa. O fotógrafo William Klein diz que “todos os

momentos são decisivos” e essa não parece uma afirmação distante do modo

de operar de Cartier-Bresson. Muito da produção fotográfica do século XX foi

influenciada pelo trabalho de Cartier-Bresson, mas grande parte dessa influência

foi marcada pelo mito do registro único e perfeito.

A fotografia contemporânea desconstrói de vez essa ideia ao abraçar a

diversidade de técnicas e procedimentos, desde imagens extremamente

elaboradas e produzidas pela pose, que pode ser aparente ou dissimulada, até

imagens que são intensamente manipuladas e alteradas pela edição após o

registro, embora, desde o século XIX, a linguagem fotográfica já se fizesse num

campo de possibilidades de elaboração da imagem na pós-produção, com

experimentos em laboratório e alteração da imagem no negativo e nas cópias.

Henri Cartier-Bresson

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A análise dessa clássica fotografia de Cartier-Bresson aponta para vários

elementos a serem pensados. Primeiro, a maneira pela qual o fotógrafo se

apropria da linguagem da cidade, da visualidade e dos fluxos que a constituem,

como um flâneur, ele não a observa passivamente, mas em uma relação

interativa, ou seja, é a partir dessa relação de vivência com a própria cidade que

a imagem é construída.

A fotografia também destaca o pensamento formal, a preocupação com a

composição da imagem tão cara a Cartier-Bresson – o movimento da escadaria

e do seu corrimão parece ter continuidade na linha da calçada e no movimento

do ciclista que passa. Assim, ao mesmo tempo em que registra, o fotógrafo

transforma a cidade em outra, organizada sensivelmente pelo seu olhar.

Também se percebe o quanto o momento decisivo está relacionado a um

cruzamento de elementos: a rapidez proporcionada pelo aparato fotográfico, a

percepção e o gesto do fotógrafo, os acontecimentos da cidade. A imagem

explicita a montagem ou o olhar interativo que evidencia o movimento intrínseco

à cidade pela junção do movimento do ciclista ao movimento circular da

escadaria. Assim, a cidade configura-se como um laboratório infindável para as

vivências do fotógrafo e se faz ver nas fotografias com toda a intensidade de

seus fluxos, acasos, situações imprevistas que o fotógrafo tenta capturar.

O caminhar, o fotografar e a construção de lugares

Do século XIX ao XXI, tanto a cidade quanto a fotografia passaram por

diversas transformações. A cidade de moderna à pós-moderna; a fotografia, dos

seus variados e rígidos suportes à digitalização, das placas de metal, papel,

chapas de vidro e negativos de acetato aos impulsos elétricos transformados em

informação. Em todos esses momentos, a fotografia sempre foi explorada como

um meio comunicativo para pensar e dar visibilidade aos fluxos da cidade.

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Essa íntima relação entre a fotografia e a cidade é marcada por Maurício

Lissovsky15 que observa essa aproximação como um vínculo ou uma espécie de

atração:

Nas cidades, tudo conspira contra a contemplação. A cidade exige de nós velocidade, instantaneidade, decisão. [...] De fato, nesta tensão entre o hábito, e mesmo o tédio, por um lado, e a agilidade que requer ‘reflexos rápidos’, constrói-se esta ‘afinidade eletiva’ entre fotografia e cidade que só fez crescer ao longo do século XX. A cidade tornou-se o fotografável por excelência, em uma relação similar à que ocorreu entre a xilogravura e a ruína, ou entre a aquarela e a marina.

A fotografia contemporânea segue investigando a cidade. O olhar

interativo percebido na produção de Cartier-Bresson também se faz presente,

mas de modos distintos, no fazer de fotógrafos que exploram caminhos que se

fazem ao caminhar pelas ruas de São Paulo. Assim como Atget e Cartier-

Bresson já criavam imagens como fábulas da cidade, a produção fotográfica,

como um processo contínuo, também pode ser percebida pelos novos sentidos

que a figura do flâneur, surgida no século XIX, assume na produção fotográfica

contemporânea.

Nesse sentido, é importante definir o que se entende, nesta pesquisa, por

fotografia contemporânea, que está em sintonia coma afirmação de Ronaldo

Entler16:

Tudo pode ser feito em termos de técnicas, de procedimentos, de linguagem. Apenas um dado é irrevogável: a consciência desse tempo presente, e de algumas de suas conquistas. Não é mais cabível mistificar o meio, desconhecer seu sentido cultural, seu modo de funcionamento. Uma fotografia pode voltar a ser documental, pode abordar a realidade e a memória, mas deve estar ciente da intervenção gerada pelo dispositivo. Entenda-se como dispositivo não apenas o aparelho, mas os comportamentos e os rituais que ele gera, as dinâmicas de seu mercado, as formas de diálogo com outras linguagens, seus meios de difusão, suas formas de recepção. Portanto, a

15 Do artigo “A cidade como autorretrato”. Disponível em: http://iconica.com.br/site/a-cidade-como-autorretrato-parte-i/. Acesso em: 09/06/2014. 16 Do artigo “Sentimentos em torno da fotografia contemporânea”. Disponível em: http://www.iconica.com.br/site/sentimentos-em-torno-da-fotografia-contemporanea/ Acesso em: 29/03/2013.

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fotografia contemporânea não é um tipo de imagem, mas uma postura que se pode ter diante de qualquer imagem.

O contemporâneo não é tomado como uma unidade de tempo nem por

uma característica específica da imagem. É possível pensar que a fotografia

contemporânea deve ser aquela produzida por fotógrafos lúcidos quanto ao

modo de funcionar de seu aparelho (Flusser) e quanto à ambivalência da

fotografia, sobretudo, às suas simultâneas potencialidades de documentação do

real e de criação de novas realidades.

Assim, tal fotografia também pode ser compreendida pelo sentido de

contemporâneo pensado por Agamben (2009: 58), quando o autor observa que

contemporâneo é aquele que não coincide exatamente com seu tempo e que,

justamente por isso, é mais capaz de percebê-lo. Em outras palavras, o fotógrafo

contemporâneo é aquele que desconfia do presente e que dialoga com o

passado para a produção desse presente. E a fotografia contemporânea é

aquela que está se fazendo, que está por se fazer, mas em diálogo com uma

produção fotográfica anterior e já feita.

A produção fotográfica contemporânea se constrói por uma infinidade de

caminhos, pela exploração da tecnologia digital e pelo resgate de processos

fotográficos históricos; por hibridizações e diálogos com outras linguagens como

o cinema, o vídeo, a performance; por trabalhos que exploram o traço

documental e de construção de memória, ou outros que enfatizam as

possibilidades ficcionais da imagem fotográfica. De todo modo, a

imprevisibilidade do que ocorre na cidade desperta interesse e aguça o olhar do

fotógrafo. Desse interesse surgem muitos trabalhos que pensam a cidade vista

e transformada por um fotografar que se dá ao caminhar.

No livro Walkscapes: o caminhar como prática estética (2013), Francesco

Careri investiga a prática do caminhar desde a antiguidade até sua absorção por

artistas a partir do dadaísmo e afirma:

A que é descoberta pelas errâncias dos artistas é uma cidade líquida, um líquido amniótico em que se formam espontaneamente os espaços de alhures, um arquipélago urbano a ser navegado indo à deriva. Uma cidade em que os

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espaços do estar são ilhas do grande mar formado pelo espaço do ir. (2013: 28).

Esse líquido amniótico que envolve o artista, ou o fotógrafo, produz e é

produzido pelo ambiente da cidade. Se a cidade não é estática, mas repleta de

fluxos e inconstâncias, o caminhar por seus espaços, como um gesto que se

reelabora permanentemente no seu próprio ato, se faz também como um dos

fluxos da cidade, de modo a ressaltar que não é possível falar de uma cidade

fechada ou determinada de alguma maneira específica, uma vez que é um lugar

em construção, percebida de modos distintos a depender do olhar que se lança

para ela, do trajeto do percurso feito por suas ruas, dos pontos de parada, da

aderência ou não às regras propostas pelo programa urbano.

Daniel Ducci17 desenvolve uma pesquisa fotográfica sobre a cidade tendo

como procedimento fotografar ao caminhar pelas ruas, sem um destino

predefinido, quase sempre pelos bairros onde vive ou trabalha. A cidade é o

objeto para diferentes ensaios fotográficos conduzidos principalmente a partir de

dois eixos de interesse: o cotidiano banal das ruas e a exploração do suporte

fotográfico como um meio comunicativo, por meio de experimentações e testes

dos limites e possibilidades dos suportes, tanto de filmes em película como da

fotografia digital.

Lapa, Daniel Ducci

17 As afirmações do fotógrafo, as informações sobre seu processo criativo e suas imagens, quando não referenciadas de outra forma, têm como fonte diversos diálogos com a pesquisadora ao longo do desenvolvimento desta tese.

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No ensaio Lapa, o fotógrafo, estimulado pelo processo de substituição de

espaços industriais, alguns já abandonados, por edifícios de alto padrão,

registrou o bairro de São Paulo de forma singular, dedicando-se a olhar para o

que restava dessa região tradicionalmente popular e industrial.

Maurice Blanchot propõe que o cotidiano é o que nos escapa:

Quaisquer que sejam os seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial: não se deixa apanhar. Ele escapa. Ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível (BLANCHOT, 2007: 237).

O autor também afirma que o cotidiano é, ao mesmo tempo, o estranho e

o familiar, é o que passa despercebido e o que, por ser sempre visto, não pode

nunca ser visto pela primeira vez, só pode ser revisto. Há nessa definição um

traço de ambivalência que caracteriza o cotidiano como pulsante e

simultaneamente quase imperceptível. É significante justamente por nada

significar. Dar-se conta do cotidiano seria algo próximo do surgimento de uma

imagem dialética, que se percebe como espécie de extraordinário, mas que,

efêmero, já se dissolve em ordinário, sem que as dimensões de ordinário e

extraordinário sejam colocadas como opostas.

Essa proposta parece interessante para pensar o trabalho fotográfico de

Ducci, uma vez que Blanchot também nos diz que o cotidiano é essencialmente

humano e está diretamente relacionado ao ambiente da cidade, pois foi

necessário existirem as grandes aglomerações urbanas para que pudéssemos

alcançá-lo (2007: 241).

O ensaio Lapa foi desenvolvido durante percursos livres para a

exploração das ruas e vielas do bairro. As paisagens e os acontecimentos do

cotidiano do local definiam o trajeto a ser seguido. Nesse sentido, o fotógrafo

aproxima-se da ação do flâneur, que se deixa envolver pela atmosfera e fluxos

da cidade sem se deixar anestesiar e sem se entediar com a banalidade dos

acontecimentos ao redor. Algumas das fotografias do ensaio foram feitas numa

mesma quadra, mas em momentos ou dias distintos. Ao caminhar muitas vezes

pelos mesmos lugares, Ducci buscava ver o que ainda não havia visto, ou que

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poderia ser revisto, numa estratégia de escavar a superfície da paisagem para

perceber o que havia passado como invisível.

Lapa, Daniel Ducci

Blanchot nomeia “homem da rua” essa figura que se depara com o

cotidiano e afirma que ele é “indiferente e curioso, atarefado e desocupado,

instável, imóvel, e esses traços opostos, mas justapostos, de um lado não

procuram conciliar-se, de outro não se contrariam sem tampouco se

confundirem” (2007: 242). Essas características superpostas fazem do homem

da rua um ser também ambivalente que busca por algo indefinido e encontra o

que não procura. Nota-se tal ambivalência em outra fala de Blanchot:

O cotidiano escapa. Por que ele escapa? É que ele não tem sujeito. Quando vivo o cotidiano, é o homem qualquer que o vive, e, propriamente falando, o homem qualquer não sou eu nem é o outro, ele não é nem um nem outro, e é ambos em sua presença intercambiável [...] (BLANCHOT, 2007: 243).

O homem da rua que tenta perceber o cotidiano é o ser eminentemente

ambivalente, o estrangeiro na sua própria cidade, que pode ser relacionado com

o estranho na acepção de Bauman, que, como visto no capítulo anterior, o toma

como um ser indefinível, que escapa de qualquer possibilidade de classificação,

uma “premonição daquele ‘terceiro elemento’ que não deveria ser” (BAUMAN,

1999: 68).

O fotógrafo da cidade pode ser pensado como esse ser ambivalente, que

tanto pertence, como se faz estranho ao seu ambiente e, ao fotografar, atua com

um gesto que não faz parte do previsto para aquele espaço, pois a cidade é

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pensada, inicialmente, para o ir e vir, para o fluxo do transporte que conecta

diferentes pontos, para a habitação e o comércio. O fotografar abre espaço para

que se veja além da camada superficial e visível, para que se perceba o que a

cidade mostra e também o que esconde. Nesse sentido, é importante destacar

que a cidade não é um objeto passivo, mas, ao contrário, reage às investidas,

não só é vista, como “vê” o fotógrafo. É nesse espaço que a fotografia pode ser

desenvolvida como fabulação, que pode ter sua potencial ambivalência

explorada de modo a gerar conhecimento sobre a cidade pela invenção de novas

cidades imaginárias e presentes na imagem fotográfica.

O trabalho fotográfico de Ducci opera nesse âmbito em que a fotografia

ao mesmo tempo confronta e dialoga com a cidade. Está implícito nas imagens

do bairro da Lapa um questionamento às ações impostas pela dimensão do

poder, que tem, com a especulação imobiliária, uma via para se expandir pela

cidade.

A tecnosfera (SANTOS, 1996) atua, nesse caso, de maneira a dar vazão

à ação tecnocrática que vê, nos galpões e espaços que já foram indústrias,

apenas um terreno que não poderia ser outra coisa senão o território para a

construção de empreendimentos imobiliários para “renovar” o bairro,

encarecendo a vida no local e afastando pessoas que antes trabalhavam ou

moravam ali. Ao mesmo tempo, a dimensão da psicosfera continua pulsando, as

ações das pessoas comuns seguem acontecendo no anonimato do cotidiano, no

ir e vir e na ocupação dos espaços, e é justamente para essa esfera que Ducci

lança seu olhar.

As fotografias mostram a vida que corre paralela à programação urbana:

trabalhadores, transeuntes, vendedores ambulantes, carros antigos, placas de

estabelecimentos, galpões, fios de eletricidade que cortam o céu, a arquitetura

das casas desgastadas pelo tempo, cartazes e pichações sobre os muros,

pessoas simples que tradicionalmente moram no bairro. As imagens não só

documentam essas vivências que seguem ao redor dos novos edifícios e

comércios limpos e padronizados, como criam uma fabulação sobre elas, no

sentido de que o fotógrafo opera distante de um registro descritivo ou exato e,

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explora os acontecimentos criando uma atmosfera “suja” que se contrapõe aos

tais empreendimentos imobiliários, mesmo sem nunca mostrá-los.

Lapa, Daniel Ducci

O bairro é transformado num lugar imaginário, pelos registros de

fragmentos dos espaços e pessoas anônimas que andam pelas ruas, habitam

os lugares, mas quase não são vistas, vagam pelas imagens em situações

solitárias, muitas vezes pelas sombras. Essas questões são evidenciadas por

uma escolha técnica que resultou num elemento estético fundamental para a

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construção do ensaio: as fotografias foram feitas com negativo 35mm, os filmes

foram subexpostos e depois super-revelados, o que resultou em imagens muito

contrastadas, profundamente densas, carregadas por uma atmosfera particular

criada pelo imaginário do fotógrafo em contato com os personagens e paisagens

do lugar.

Lapa, Daniel Ducci

Esse procedimento é bastante comum na produção fotográfica com

filmes, porém Ducci fez testes de subexposição e super-revelação específicos

para esse trabalho, utilizando os filmes no limite da sua possibilidade, criando

uma estética própria, em que praticamente não há informação nas áreas de

sombras e a granulação é extrema. Percebe-se que há uma busca por criar uma

visualidade particular para as imagens que visam comunicar de modo específico

as impressões do fotógrafo sobre o que vivencia nos percursos pelo bairro.

Muitas das fotografias mostram claramente o caminhar do fotógrafo pelas ruas,

seus encontros fugazes com outros transeuntes na rapidez de uma rua

atravessada ou num cruzamento de uma esquina.

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Lapa, Daniel Ducci

Essa conexão entre o fotógrafo e os acontecimentos da cidade pode ser

compreendida pela definição da fotografia como um gesto, defendida por Vilém

Flusser. No texto O gesto de fotografar (1994), o autor trata da produção

fotográfica analisando uma situação hipotética em que um homem fotografa

outro, que está sentado numa poltrona, fumando um cachimbo. Flusser descreve

tal cena afirmando que, aparentemente, se pode pensar que o fotógrafo tenta

congelar uma cena fixa (o homem sentado fumando), mas, ao contrário, o que

ele faz é “fixar uma situação móvel” (1994: 103). Outro equívoco que Flusser

esclarece: muitas vezes o fotógrafo pensa estar fora da situação que fotografa,

já que a observa, quando, na verdade, também a constitui.

Portanto, de acordo com Flusser, é necessário que o fotógrafo se perceba

também dentro da cena que fotografa, pois assim é possível entender o

fotografar como um gesto filosófico, ou seja, um gesto intelectual e reflexivo:

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Se trata de una serie de decisiones teóricas, tendentes al examen de la situación, que consecuentemente es el movimiento concreto de la duda metódica y que su estructura se define tanto por la situación considerada como por el aparato y por el fotógrafo, en forma tal que impide cualquier aislamento de cada uno de los factores mencionados (FLUSSER, 1994: 110).

Assim, o que move o fotógrafo é a dúvida, um gesto intelectual que

analisa, interpreta e transforma o mundo que vê. Se o fluxo temporal que incide

sobre os objetos do mundo faz de uma situação como a de um homem sentado

numa poltrona uma cena em movimento, o que dizer dos fluxos da cidade?

Embrenhado nas ruas, o fotógrafo não só vê, mas participa desse fluxo intenso,

é atravessado tanto por ações do acaso como por ações determinadas pela

organização urbanística. De todo modo, o fotógrafo tem a experiência de ocupar

o espaço, seu corpo compõe o organismo da cidade, ele tanto recebe como

emite estímulos, é impactado pela cidade e sua presença ativa exerce um

impacto sobre ela.

No trabalho de Ducci, a criação das imagens se dá pela estratégia de

transformar o cotidiano em matéria para pensar a cidade como um lugar a ser

construído sensivelmente, que é entendido como propõe Ferrara:

Entre a estabilidade dos fixos e dinâmica de fluxos faz-se a cidade. O lugar corresponde ao eixo dos fluxos e supõe, portanto, uma instabilidade que prevê cisões e imprevistos que indiciam o jeito de ser de uma cidade e do cotidiano que escreve a história dos instáveis sentidos dos lugares. Os lugares da cidade não são passíveis de construção, mas produzem-se, sem planos ou previsões (FERRARA, 2002: 127).

Assim, percebe-se que o modo de operar do fotógrafo se dá por um

vínculo com os acontecimentos da cidade, pelo olhar interativo, que pode ser

relacionado com o do visionário como pensado por Brissac Peixoto: “A

percepção do visionário é uma experiência que resulta do ofuscamento do olhar

habitual, o excesso que acompanha a falta de visão comum. Ele fala por

enigmas” (2003: 40). E o que seriam esses enigmas? Parece possível relacioná-

los justamente com as assinaturas da cidade nas imagens. São os rastros que o

olhar interativo trata de perceber nela e traduzir em fotografias. Assim, o gesto

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fotográfico se faz também como gesto arqueológico que escava o visível em

busca de novas relações possíveis, novos processos de visibilidade.

Nessa escavação, o fotógrafo encontra-se com imagens que não

necessariamente procurava, a busca é por percorrer caminhos e descobrir a

cidade que está no limite do invisível:

A percepção do lugar não depende da forma da cidade, mas do olhar do leitor capaz de superar o hábito e perceber as diferenças: um olhar que se debruça sobre a cidade para perceber suas dimensões e sentidos, que estabelecem o lugar como fronteira entre a cidade e o sujeito atento (FERRARA, 2002: 128).

Em consonância ao entendimento da fronteira18 entre a cidade e o sujeito

vista como um espaço poroso que permite trocas, Careri destaca que estas

podem se dar especialmente pelo caminhar:

O caminhar revela-se um instrumento que, precisamente pela sua intrínseca característica de simultânea leitura e escrita do espaço, se presta a escutar e interagir na variabilidade desses espaços, a intervir no seu contínuo devir com uma ação sobre o campo, no aqui e agora das transformações (2013: 32, 33).

Nesse sentido, o caminhar do fotógrafo coloca-se como um meio

comunicativo que interage com a cidade e com a fotografia, também entendidas

como meios comunicativos. Estabelece-se uma fronteira fluida que permite

intercâmbios entre o caminhar como mecanismo construtor de lugares, o espaço

da cidade e a fotografia. Desse modo, volta-se ao gesto de fotografar de Flusser,

ao entendimento de que o objeto ou cena fotografados também estão em ação

– a cidade é um contraponto ao próprio agir do fotógrafo que caminha, é meio

comunicativo não estático. Ela se constitui de fluxos, é movente: dá respostas

ao modo pelo qual é ocupada e olhada, ao mesmo tempo em que formula

perguntas ao fotógrafo, instiga-o a procurar e fabular.

18 A fronteira é entendida neste trabalho de acordo com a definição de Lotman: não como um

limite, mas como um espaço de troca, como um mecanismo de tradução (1996: 26/27).

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As fotografias de Ducci também podem ser pensadas a partir do método

da Deriva desenvolvido pelos Situacionistas na década de 1960. No texto Teoria

da Deriva, Guy Debord a caracteriza:

[...] técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio (Debord In: JACQUES, 2003: 87).

A deriva se define como caminhadas para exploração da cidade sem um

percurso predefinido, nas quais os estímulos, encontros e surpresas do próprio

ambiente vão apontando o caminho e chamando a atenção para o que parece

invisível. Assim como a flânerie é composta por uma ação de simultâneo ócio e

estudo, a deriva, afirma Debord, se constitui tanto por um deixar-se levar como

pela sua contradição, a tentativa de domínio e cálculo das possibilidades dos

acontecimentos em determinado espaço (Debord In: JACQUES, 2003: 87). A

deriva pode, portanto, também ser entendida como método carregado de

ambivalência, pois não se trata somente de andar ou explorar a cidade ao acaso,

mas de criar situações para romper com a funcionalidade da programação

urbana.

A flexibilidade e a ambivalência do método da deriva se ajustam às

ambivalências da cidade, assim ele se torna uma estratégia para que se

apreendam os distintos processos comunicativos, tanto da ordem da mediação,

das imagens espetaculares ligadas ao consumo e que padronizam uma face

mais visível da cidade, como também dos sutis rastros de uma comunicação

interativa, mais indefinida, feita por trocas assimétricas e imprevistas.

Flânerie e deriva têm também diferenças, pertencem a contextos

históricos distintos. O flâneur floresceu na cidade da multidão e o situacionista

derivante em meio à massa consumidora; diferente da flânerie, a deriva tem uma

clara preocupação de romper com estruturas de poder:

[...] eles propunham a busca de identidades, da individualidade e da diversidade, sobretudo das pessoas comuns e reais das ruas das cidades existentes. Contra a homogeneidade e

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simplicidade ideais modernas, eles propunham a heterogeneidade e a complexidade ligadas à vida cotidiana. Contra a grande escala e autoridade do Estado e dos próprios urbanistas ligados às pretensões modernas, propunham uma volta à pequena escala, à escala humana e à participação dos habitantes (JACQUES, 2003: 27).

Ducci não vincula sua pesquisa fotográfica diretamente à proposta da

Deriva, mas a análise de suas estratégias fotográficas e sua relação com a

cidade apontam para essa aproximação. O fotógrafo à deriva faz parte da cidade,

mas não se perde nela. Perde-se em seus caminhos, mas não pelo hábito ou

pela passividade de quem mira e não vê. Ele não está a passeio, ao contrário,

está em ação de reconhecimento da cidade e de construção de outras cidades

por meio da fotografia.

Nessa interação, cidade e fotógrafo afetam-se sensivelmente, assim,

“Perder-se significa que entre nós e o espaço não existe somente uma relação

de domínio, de controle por parte do sujeito, mas também a possibilidade de o

espaço nos dominar” (La Cecla apud Careri, 2013: 48). Essa dominância do

espaço está diretamente relacionada à técnica da deriva e também à cidade que

se mostra nas fotografias de Ducci. O fotografar pensado como um gesto

adiciona outra camada de sentido à deriva, que passa a ser usada como modo

de apreender as assinaturas da cidade pela fotografia. Essas imagens se

constituem como rastros da ação da cidade percebida pelo fotógrafo, é a cidade

que, longe de ser um objeto passivo, coloca o fotógrafo em movimento.

No ensaio Fachadas, também desenvolvido por Ducci, o fotógrafo à deriva

se depara com edifícios grandiosos e suas empenas cegas. As faces sem

aberturas, janelas ou qualquer informação que, num primeiro momento, não são

um ponto de interesse na paisagem da cidade se tornam o elemento em

destaque, numa espécie de subversão da ordem do que deve ou não ser visto.

Nesse aspecto, o trabalho tem também a dimensão de contraposição presente

na deriva, ao se construir pelo avesso da imagem espetacular comum das

grandes cidades, com seus edifícios envidraçados e luminosos.

Ao fotografar a empena cega, o fotógrafo volta-se para o que não deveria

ser visto, ou, pelo menos, não deveria ser mostrado: os desgastes do tempo, as

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pichações, os emaranhados de fios de eletricidade. Nesse processo, há um

deslocamento do olhar, um desvio que busca fabular sobre o que a cidade

oferece aos olhos atentos. As imagens se fazem numa trama complexa que

envolve a relação entre o corpo do fotógrafo, o espaço da cidade, os ângulos e

contrastes da fotografia.

Fachadas, Daniel Ducci

Milton Santos afirma que a paisagem é um sistema material e, por isso,

tem uma tendência a ser imutável, enquanto o espaço, como sistema de valores,

se transforma continuamente (SANTOS, 1996: 83). A paisagem estaria,

portanto, mais relacionada ao território e, o espaço ao lugar. As fotografias de

Fachadas não tratam só da paisagem arquitetônica, mas também de lugares

constituídos pelo modo como o fotógrafo a vê, pela relação de escala do corpo

que se depara com a verticalidade dos prédios e pela maneira por meio da qual

o enquadramento fotográfico dá sentido a essa paisagem.

Além da deriva que põe o fotógrafo em contato com as empenas cegas

que estão por toda a cidade, outro aspecto importante na construção dessas

fabulações fotográficas é o tratamento estético dado às imagens. Ducci

investigou um modo de dar a essas fotografias produzidas com equipamento

digital uma mesma visualidade de trabalhos anteriores feitos com filmes. Há uma

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continuidade no uso do alto contraste e na criação de áreas com sombras

profundas. O fotógrafo chega a esse resultado visual trabalhando na pós-

produção da fotografia, com o uso de software de tratamento de imagens. Assim,

fica claro como o ensaio se faz não só no ato fotográfico, mas também é

construído por infinitos processos de transformação da imagem que constituem

a produção fotográfica.

A ambivalência da fotografia manifesta-se também por essas

características do processo de construção da imagem, pela relação entre a perda

e o resto (Soulages). Se o momento do contato com o referente é de perda, pela

sua fugacidade, todos os momentos seguintes ampliam e dão complexidade à

fotografia ao abrirem possibilidades de experimentações e novas elaborações

que apresentam, na superfície da imagem, tanto traços de que algo aconteceu

como também de que continua acontecendo. Considerando a pós-vida ou a

sobrevivência da imagem (Warburg) não é mesmo possível entender a fotografia

presa ou fiel ao momento do registro.

Fachadas, Daniel Ducci

No ensaio de Ducci, essa visualidade traduz e ao mesmo tempo

transfigura os edifícios, que ganham outra estatura na superfície das fotografias.

Os prédios fotografados são desconhecidos, antigos e muitos estão em regiões

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desvalorizadas da cidade, mas surgem grandiosos e imponentes, contrariando

sua própria condição e evidenciando como a fabulação se constitui pela

interação entre a cidade concreta e o modo como aparece nas imagens. Há um

processo de visibilidade em andamento, no sentido de que a fotografia faz ver e

pensar sobre a cidade e sobre a própria fotografia e sua condição ambivalente,

que constitui memória ao registrar a cidade existente, ao mesmo tempo em que

inventa uma cidade não visível, revelada, porém, pela imagem fotográfica. A

fotografia re-conhece a cidade, a redescobre à medida em que a reinventa.

Fachadas, Daniel Ducci

A relação ambivalente, própria da fotografia, que se faz entre documentar

as fachadas dos edifícios ao mesmo tempo em que se inventa uma cidade fictícia

na qual as empenas cegas são o destaque, dá margem para uma construção

fabulativa que não tenta preservar ou registrar com precisão, mas exagera as

nuances próprias da cidade, desencadeando esse processo de visibilidade. Se,

na superfície da imagem fotográfica, há um traço que a vincula a algo que está

concretamente no espaço da cidade e também algo que reverbera de distintos

modos a cada nova mirada, é porque a fotografia se dá num comunicando que

se atualiza constantemente, provocando, a cada olhar, diferentes percepções e

entendimentos sobre a cidade.

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Felipe Russo19 também é um fotógrafo que atua caminhando pelas ruas

e espaços da cidade. Sua pesquisa fotográfica também é realizada num espaço

intersticial entre a documentação e a criação ficcional. Russo afirma que, para

seu trabalho, não interessa se desconectar totalmente do referente nem

tampouco se prender a ele completamente. O exercício que faz é justamente o

de investigar essas fronteiras, perceber até onde ir na exploração da relação

entre a imagem e aquilo que fotografa. O fotógrafo diz ainda que lhe interessa

trabalhar com o que chama de documento ficcional, que seria uma forma de lidar

com o mundo contemporâneo, algo que estaria entre o campo da sensação e o

da racionalização.

Esse modo de entender o trabalho coloca a produção de Russo num

campo de ambivalências no qual não é mais possível manter divisões rígidas

entre a produção fotográfica documental e ficcional ou entre a arte e a ciência.

Se, para o pensamento moderno, faz sentido uma compartimentação que

entende mente e corpo, sentir e pensar, arte e técnica, documento e ficção como

esferas opostas, essa fragmentação não mais se sustenta, pois a produção de

conhecimento cada vez mais se dá entre fronteiras difusas, nas quais essas

esferas se alternam, se sobrepõem e, sobretudo, não se dividem. Assim,

destaca-se novamente a fotografia contemporânea como uma postura que se

pode ter diante da imagem (Entler), que não pode dispensar o entendimento

dessas ambivalências.

A fotografia compreendida como um documento ficcional, como dito por

Russo, aparece em seu ensaio Centro, desenvolvido na região central de São

Paulo e publicado como livro. O nome dado à obra não remete apenas ao centro

da cidade, mas visa a um entendimento mais amplo da noção de centralidade

ou do que se pode definir como elementos centrais. A proposta foi a de um título

aberto, o que parece dialogar fortemente com as imagens que dão a ver uma

cidade múltipla, passível de muitas possibilidades de entendimentos.

19 As afirmações do fotógrafo, as informações sobre seu processo criativo e suas imagens,

quando não referenciadas de outra forma, têm como fonte palestra do fotógrafo em dezembro de 2015 e entrevista concedida à pesquisadora em março de 2017.

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Centro, Felipe Russo

Centro foi produzido durante derivas para exploração da cidade em

caminhadas com e sem a câmera fotográfica. O fotógrafo opera com esses dois

movimentos, dando espaço para que as imagens apareçam também sem a

câmera, outras vezes em percursos circulares, vendo e revendo lugares já

conhecidos. Nesses trajetos, Russo atua com o olhar interativo aberto às

surpresas que a cidade pode oferecer, num gesto que quebra o hábito que torna

invisível o que se passa na cidade, nesse sentido, esse é um olhar inteligente:

Além do ver físico, simples sensação, há um ver inteligente a que se opõe o cotidiano como continuidade perceptiva. Observar é produzir descontinuidade que desfaz o anonimato da vida diária. Produzir essa descontinuidade é desfazer a linearidade e ler por saltos (FERRARA, 2000: 125).

Nem o pensamento, nem o gesto fotográfico, nem as ações da cidade são

lineares, porém o hábito repetido em sua automaticidade impensada os coloca

nessa posição. Desfazer essa linearidade é trabalhar com superfícies, como

definidas por Flusser. Parece então possível falar de um pensamento em

superfície, no sentido de uma conexão entre ver, sentir e pensar que deslineariza

a relação com a cidade por meio da prática de uma flânerie derivante com a qual

é possível recolher rastros da cidade.

Russo afirma que o caminhar pela cidade é um exercício de liberdade no

qual se dá a produção do seu trabalho fotográfico de um modo que suas imagens

nunca surgem por ideias que ele tem sozinho, mas no contato com a cidade. Em

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Caminhar, uma filosofia (2010), Frédéric Gros trata da prática do caminhar e das

relações dessa atividade com a produção de conhecimento e também vincula o

caminhar à liberdade: “a liberdade, caminhando, é não ser ninguém, porque o

corpo que caminha não tem uma história, tem tão somente uma corrente de vida

imemorial” (2010: 14). Parece possível aproximar essa ideia de um caminhante

sem história com aquele homem da rua que se faz estranho por onde anda.

Como afirmado por Bauman, o estranho distingue-se do forasteiro ou do

estrangeiro porque não é temporariamente deslocado, é um “eterno nômade,

sem esperança de jamais chegar” (1999: 89). A liberdade de caminhar é também

a de se fazer estranho, e o fotógrafo contemporâneo pode ser entendido como

esse homem da rua que se faz anônimo e estranho para ver o que escapa

quando se está imerso nas ações cotidianas. É o estranho que caminha sem ter

um ponto de chegada, porque não é esse seu objetivo, caminha para apreender

a cidade num processo que não é linear, mas repleto de repetições, retomadas

e descobertas.

Esse caminhar também se vincula ao que Gros (2010: 37) trata como uma

inversão da lógica da cidade: o caminhar na cidade se dá “fora”, o que

normalmente só acontece quando se quer ir de um “dentro” a outro. Em

situações cotidianas, estar fora é sempre passageiro, tem sempre o objetivo de

chegar a outro ponto dentro, o lado de fora é apenas uma transição. O fotógrafo

que tem o caminhar como um procedimento também subverte essa lógica, estar

fora não é um estado transitório, mas o que constitui seu gesto fotográfico.

Gros ainda relaciona o caminhar a uma lentidão:

A lentidão é bater perfeitamente com o tempo, tanto que os segundo se escoam, pingam por um conta-gotas como um chuvisco sobre a pedra. Esse estiramento do tempo aprofunda o espaço. É um dos segredos da caminhada: uma abordagem vagarosa das paisagens que as torna progressivamente familiares (2010: 43).

Bater perfeitamente com o tempo parece só acontecer quando não se

adere a uma forçada aceleração que cria uma cortina que impede que se

perceba o que ocorre num espaço oculto por essa aceleração artificial. Para

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descortinar é preciso encontrar outro tempo, é preciso “perder tempo para

ganhar espaço”, como afirma Careri, que entende que ganhar espaço é ganhar

informação, ou seja, o caminhar na cidade também está relacionado a uma

maneira de romper com o hábito que impõe a aceleração como regra, buscar a

lentidão para ver o tempo passar é criar uma brecha num modo automatizado de

estar/ver na cidade.

Para Russo, essa lentidão está no caminhar e também no próprio

fotografar, uma vez que faz seu trabalho com uma câmera 4x5 polegadas,

equipamento que induz a um ritmo desacelerado, com fotografias feitas em

chapas individuais. Além disso, o fotógrafo é colocado numa relação íntima com

a imagem da cidade, que é projetada no interior da câmera sobre o vidro

despolido. Essa imagem só pode ser vista quando o fotógrafo está com a cabeça

coberta por um tecido negro e com os olhos perto do suporte de vidro. Para

ajustar o foco, é necessário até mesmo usar uma lupa sobre o vidro, de forma

que o gesto fotográfico se dá com o fotógrafo imerso nesse pequeno ambiente

individual. Ele está na cidade e, ao mesmo tempo, fora dela, pois se fecha na

sua pequena tenda para ver, não mais a própria cidade, mas a projeção luminosa

de sua imagem.

Usar um equipamento como esse é aderir a uma lentidão e a um processo

fotográfico que parece estranho para o tempo da megalópole contemporânea; é

vincular-se a um fazer que não se submete à rapidez ditada pelas imposições

que determinam como estar e usar a cidade; é ser contemporâneo naquela

medida de não se encaixar perfeitamente ao seu próprio momento, é fazer o

presente em diálogo com o passado. Nesse sentido, o fotógrafo afirma20 que a

escolha por esse equipamento já nasce como uma proposição poética, vem de

um desejo de olhar as coisas da cidade com acuidade e com uma postura mais

silenciosa, ou seja, não é apenas uma escolha técnica, mas uma opção por um

modo de se relacionar com a cidade e, consequentemente, um modo de

comunicar.

20 Em entrevista disponível em http://olhave.com.br/2014/01/felipe-russo/ Acesso em janeiro de 2017.

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Milton Santos afirma que o tempo que deve comandar nas grandes

cidades hoje é o dos homens lentos:

Quem, na cidade, tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-la – acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens, frequentemente pré-fabricadas, é sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem, exatamente, do convívio com essas imagens. Os homens ‘lentos’, para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações (SANTOS, 1996: 261).

As imagens pré-fabricadas são da ordem de uma comunicação mediativa

(FERRARA, 2015), que modela comportamentos e estimula o consumo. As

fabulações que podem ser surpreendidas nas bordas e brechas dessa

comunicação espetacular são da ordem dos processos interativos e se fazem

nesse tempo lento que contraria a previsibilidade, a ordenação hierárquica do

espaço e são repletas de marcas de espontaneidade. As fotografias de Centro

são construídas nesse campo das fabulações, na medida em que os diálogos

com a cidade e o procedimento fotográfico fazem surgir imagens em que ecoa

uma mistura de precariedade, estagnação, originalidade, rastros da presença do

homem no espaço, uma cidade viva nas brechas de uma uniformidade

padronizada.

Centro, Felipe Russo

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Cada fotografia parece falar de algo em suspensão, de uma ação

cristalizada não só na superfície da imagem, a sensação é de que se trata de

pequenos fragmentos da cidade que não são atingidos pelo passar do tempo.

Um assento improvisado que visa dar um mínimo de conforto a quem senta

numa estrutura urbana, uma sacola cheia de livros que parece deixada para

quem quiser recolhê-la, os objetos e arranjos encontrados na superfície da

cidade articulam-se como possibilidades outras de vivência, de transformação

do que a cidade oferece, de reestruturações que surgem pela necessidade de

lidar com a precariedade da vida cotidiana. São arranjos em que pulsa uma

criatividade para contornar impossibilidades, são imagens dialéticas com duas

camadas, uma constituída pela ideia que originou a pequena invenção, a outra,

a imagem materializada na superfície da fotografia.

Centro, Felipe Russo

Nesse sentido, Russo também parece atuar num processo arqueológico,

garimpando o espaço da cidade para encontrar rastros de vivências que se

fazem, nas imagens, pelo silêncio, pelo vazio e por detalhes banais que

carregam marcas, assinaturas do gesto anônimo que provoca pequenas

intervenções no espaço da cidade. O gesto do fotógrafo parece fazer surgir o

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lugar também de dois modos diferentes. Considerando o lugar como espaço

apropriado, qualificado, não predeterminado e constituído por experiências e

relações sociais (FERRARA, 2000: 124), os lugares nas fotografias de Centro

emergem primeiro na superfície da cidade, pelo modo como os usuários

interagem e criam novas disposições e apropriações. Há também os lugares na

superfície da fotografia, que documenta e ao mesmo tempo recria, pelo

enquadramento e recursos fotográficos, esses lugares da cidade.

Assim, as fotografias podem ser entendidas como fabulações porque não

registram apenas a materialidade da cidade, mas afetividades, confrontos,

soluções criativas e inesperadas. As espacialidades da cidade aparecem na

imagem como visualidade que estimula a visibilidade dos processos em que a

cidade é tomada e vivenciada, enquanto as fotografias criam ao mesmo tempo

uma memória e uma interpretação desses processos.

Outro aspecto que marca essas fotografias é a relação criada entre as

diferentes escalas do que é fotografado. Há o pequeno detalhe do pavimento ou

da estrutura interna de um poste e também cenas da paisagem grandiosa, como

o skyline dos edifícios. O fotógrafo tem interesse em questionar o que pode ser

considerado como um monumento, a partir da criação de monumentos do

cotidiano que surgem pela desconstrução de uma hierarquia dos espaços.

Centro, Felipe Russo

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Centro, Felipe Russo

O modo de constituição do espaço urbano cria imagens que

desencadeiam um processo de comunicação mediativa: “A imagem hierarquiza

o espaço da cidade à medida que sua referência é a praça central, o edifício pós-

moderno, o monumento histórico [...]. Pela percepção da imagem, ensina-se a

identificar o poder que organiza a cidade e dela se utiliza para perpetuar-se”

(FERRARA, 2000, 129). Esse processo é rompido quando o monumento

construído pelo fotógrafo à deriva está distante da ideia do monumento

tradicional vinculado às estratégias de poder, mas emerge da precariedade de

caixas de frutas empilhadas, da pintura descascada dos edifícios ou das pedras

do pavimento, que, pela falta de cuidado e manutenção, se soltam e formam um

buraco de areia no meio do caminho.

Essas imagens que desmontam a hierarquia do que deve ser visto,

mostrado ou entendido como monumento estão no campo da interação, pois

vêm de um diálogo franco entre a fotografia e a cidade, de um fazer fotográfico

que não fecha os olhos para o que a cidade mostra, ao contrário, abre-se para

estranhar e causar estranhamento. Nesse sentido, o fotógrafo comenta que,

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para fotografar, busca se conectar com a cidade por uma espécie de frequência,

uma sintonia que é da cidade e que ele tenta encontrar e materializar na

superfície das imagens.

Centro, Felipe Russo

Russo diz também que lhe interessa tentar preservar algo do impulso que

levou alguém a intervir na cidade e que, por isso, não interfere ou não altera as

cenas que fotografa em seu espaço concreto. A interferência se dá pelo gesto

fotográfico, pelo modo como esses objetos são registrados. Assim, tal sintonia

com a cidade parece ser produzida também por meio do processo fotográfico

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que documenta os arranjos anônimos, como rastros dos que vivem a cidade, ao

mesmo tempo em que esses rastros se transformam pelo olhar interativo do

fotógrafo e da própria fotografia.

Centro, Felipe Russo

Em outro trabalho, ainda em desenvolvimento21, Russo volta-se para as

árvores que se espalham pelas ruas do centro da cidade. Em caminhadas

recorrentes, o fotógrafo percebeu que a maioria dessas árvores é da mesma

espécie – Sibipiruna. Ao pesquisar sobre elas, soube que se trata de um tipo de

vegetação muito usado em espaços urbanos, justamente por sua característica

de resistência à poda e adaptação em canteiros rasos e pequenos, já que suas

raízes não penetram fundo na terra.

O ensaio tem se desenvolvido por dois caminhos concomitantes: como

uma catalogação das inúmeras árvores e como um modo de perceber as

diferenças entre elas e a relação que é estabelecida entre a árvore e seu entorno.

O interesse do fotógrafo, mais que identificar e registrar a recorrência, está em

21 Em março de 2017, o fotógrafo afirmou em entrevista à pesquisadora que o ensaio ainda está

em seu início. Embora já conte com várias fotografias, ainda não tem uma forma muito definida, está em processo de elaboração. Entretanto, já propõe questões interessantes sobre a interação entre a fotografia e a cidade.

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conceber um espaço para uma vivência afetiva da cidade, nesse sentido, o

trabalho cria uma espécie de coleção das várias árvores encontradas, mas não

se configura apenas como uma catalogação, é também um modo de pensar a

cidade pelos rastros apreendidos na existência repetida do mesmo tipo de árvore

e nas distinções que apresentam.

Felipe Russo

O trabalho de Russo tem um vínculo com o dos fotógrafos Bernd e Hilla

Becher, que, na década de 1960, registraram inúmeras estruturas de

construções industriais, em fotografias em preto e branco e usando um mesmo

enquadramento que centraliza a estrutura fotografada. As recorrências das

formas das construções e do registro fotográfico formam um inventário extenso

sobre esse tipo de arquitetura. A produção dos Becher desenvolve-se numa

fronteira difusa entre a fotografia, a arte e a pesquisa, e a documentação

histórica.

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Bernd e Hilla Becher

A fotografia contemporânea vale-se também da estratégia poética de

inventariar e criar coleções de imagens que atuam nessa fronteira entre o

documental, o ficcional, a arte e a ciência. No caso de Russo, que tem formação

em biologia e trabalhou como fotógrafo no âmbito da pesquisa científica, esse

método de documentação e catalogação aparece também como um vestígio de

suas vivências anteriores. Mas o olhar de cientista é um traço que se mescla ao

do fotógrafo e artista interessado também no que está fora do campo da

objetividade e da exatidão.

Nesse sentido, o fotógrafo faz duas afirmações interessantes sobre seu

processo de criação, primeiro, diz que suas fotografias são mais inteligentes que

ele e que não busca uma explicação sensata sobre por que fotografa o que

fotografa. As imagens são inteligentes, pois uma vez no mundo, fora da ideia e

do olhar do fotógrafo, e fora da câmera, passam a existir como signo

independente, que provoca novos sentidos a cada olhar, podem ser mais, ou ser

outra coisa além do que imagina inicialmente o fotógrafo, podem constituir

problema:

É por isso que a fotografia é interessante: ela não fornece uma resposta, mas coloca e impõe esse enigma dos enigmas que faz com que o receptor passe de um desejo de real a uma abertura para o imaginário, de um sentido a uma interrogação sobre o

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sentido, de uma certeza a uma preocupação, de uma solução a um problema (SOULAGES, 2010: 346).

Pode-se pensar que não há um motivo claro para a escolha do que é

fotografado porque esta não é uma decisão unilateral, a cidade interfere e

também indica ao fotógrafo o que seu trabalho virá a ser. O ensaio sobre as

Sibipirunas teve início pelas caminhadas do fotógrafo durante o inverno, nessa

estação, as árvores ficam sem nenhuma folhagem e foi esse estado, em

contraponto à paisagem da cidade, que provocou no fotógrafo o interesse para

desenvolver o trabalho. A proposta foi elaborada num contato direto com a

cidade, num processo que retoma uma psicogeografia, um efeito do meio

geográfico que age diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos

em derivas pela cidade, como proposto pela Internacional Situacionista (IS In:

JACQUES, 2003: 65).

A estratégia poética de inventariar elementos da cidade não se faz como

uma prática na qual a fotografia se sobrepõe à cidade para sacar dela um

registro, ao contrário, é a cidade que se mostra à fotografia com suas

recorrências, afeta o fotógrafo, estimula a busca e a guarda de um elemento

recorrente. O que as fotografias das Sibipirunas conseguem deixar ver é que,

mesmo se tratando de uma única espécie, as árvores são afetadas pelo fluxo da

cidade de maneiras muito distintas.

Felipe Russo

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A escolha por essa espécie é determinada por uma ação da esfera do

urbano, por uma tentativa de controlar e padronizar o espaço pelas

características que a árvore apresenta, mas as fotografias apontam para

nuances na adaptação e transformação das plantas a cada encontro com os

vários outros elementos do espaço: um tronco que enverga marcado pela

passagem de ônibus, uma árvore que cresce de uma forma específica,

impulsionada pela sombra de um edifício ou outra que se escora na lateral de

uma banca de jornal. Essas fotografias fabulam sobre o modo como, na cidade,

nas brechas de tudo o que é previsível e programado, há sempre um espaço

aberto ao devir, ao inesperado, ao que escapa ao controle. Nessas fendas se

fazem os lugares, construídos pelas afetividades decorrentes das vivências na

cidade.

Felipe Russo

As fotografias da coleção de árvores fabulam sobre e com a cidade,

também baseadas em escolhas que atuam na construção da visualidade das

imagens. Russo trabalha com um procedimento fotográfico distante do registro

instantâneo, as imagens constituem-se pela observação cuidadosa e demorada.

Há também uma busca por comunicar a partir de uma visualidade com o mínimo

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de elementos. Para o fotógrafo, a característica da fotografia de lidar com o corte

(temporal e espacial) é explorada de forma radical, numa busca por cortar todos

os excessos da imagem. Nesse sentido, a fotografia se faz no limite entre

documentar o espaço da cidade e inventar um novo espaço, na medida em que,

ao cortar, o fotógrafo deixa de mostrar alguns aspectos ou elementos que

constituem o espaço original fotografado. O que não aparece na imagem, o que

está no extraquadro (Machado, 2015) também constrói a fabulação.

O fotografar como gesto de resistência

No contexto da investigação sobre as relações entre a cidade e a

fotografia que se faz ao caminhar, durante o processo de análise das imagens e

do processo de criação dos fotógrafos, tanto de Daniel Ducci e Felipe Russo

quanto de Weslei Barba e Fernando Cohen, que serão estudados adiante, uma

pergunta que não estava formulada no início da pesquisa surgiu: Como a

fotografia contemporânea na/da cidade pode se constituir como gesto de

resistência?

A ausência desse questionamento no início do trabalho está relacionada

ao desenvolvimento da pesquisa pelos rastros percebidos nos objetos

estudados. Dessa forma, está aberta a compreender esses rastros e a se

transformar em seu processo, pelas inferências que surgem no próprio gesto de

pesquisar. As fotografias e os procedimentos dos fotógrafos estão repletos de

assinaturas da cidade e das relações entre ela e a fotografia, e essas assinaturas

se constroem, também, pelo modo como são investigadas.

Jacques Rancière, em A partilha do sensível, explora a relação da

linguagem com a ficção como um meio de produção de conhecimento, e afirma

que "o real precisa ser ficcionado para ser pensado" (RANCIÈRE, 2009: 58).

É a circulação nessa paisagem de signos que define a nova ficcionalidade: a nova maneira de contar histórias, que é, antes de mais nada, uma maneira de dar sentido ao universo ‘empírico’ das ações obscuras e dos objetos banais. A ordenação ficcional deixa de ser o encadeamento causal aristotélico das ações ‘segundo a necessidade e a verossimilhança’. Torna-se uma ordenação de signos. (RANCIÈRE, 2009: 54, 55).

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O autor trata de ficção dentro do que denomina regime estético da arte,

que supera o regime ético (Platão) e o poético/representativo (Aristóteles). No

regime estético, a ficção não mais segue regras de representação impostas

hierarquicamente, mas ordena os signos do mundo operando entre "a potência

de significação inerente às coisas mudas e a potencialização dos discursos e

dos níveis de significação" (RANCIÈRE, 2009: 55). Desse modo, a estética é

entendida por Rancière como efetividade do pensamento e não como uma teoria

da arte. O regime estético está também relacionado à ideia de que arte e vida

não se separam.

A revolução estética transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficção pertencem a um mesmo regime de sentido. De um lado, o ‘empírico’ traz as marcas do verdadeiro sob a forma de rastros e vestígios. ‘O que sucedeu’ remete pois diretamente a um regime de verdade, um regime de mostração de sua própria necessidade. Do outro, ‘o que poderia suceder’ não tem mais a forma autônoma e linear da ordenação de ações. A ‘história’ poética, desde então, articula o realismo que nos mostra os rastos poéticos inscritos na realidade mesma e o artificialismo que monta máquinas de compreensão complexas (RANCIÈRE, 2009: 57).

A citação nos faz retornar à ideia de ambivalência presente na linguagem

fotográfica. Rancière não trata exclusivamente da fotografia, mas seu

pensamento abriga também essa linguagem. Tal aproximação pode ser feita na

medida em que o autor afirma que o regime estético se constitui por um

emaranhado no qual se articulam, de modo complexo, realismos e artificialismos,

e é nesse campo que pode ocorrer a fabulação. Como já discutido, essa é uma

marca da fotografia – a sobreposição inseparável de registro documental e

ficcional. A linguagem fotográfica opera com a potência de sobrepor "o que

sucedeu" e "o que poderia suceder", de maneira que o suporte fotográfico seja

sempre sensibilizado duplamente, pela conexão física com o objeto e por toda a

construção de sentido realizada a cada disparo da câmera.

A ambivalência presente na fotografia, na cidade e nos processos

comunicativos atua abrindo espaços intermediários para a criação fotográfica.

Essa fotografia faz-se entre urbano e cidade, entre mediações e interações e

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entre documentação e criação ficcional. A intensa relação entre a fotografia e a

cidade nesses espaços é repleta de possíveis resistências. É importante retomar

que a ambivalência não atua por dicotomias, mas opera exatamente na criação

desses espaços de fronteira porosa, difusa, nos quais as relações entre os

elementos não se distinguem claramente, são tensionamentos que podem

produzir algo novo.

Como percebido nos trabalhos fotográficos de Ducci e Russo, a fotografia

que se faz ao caminhar pelas ruas de São Paulo é notadamente afetada pelos

processos comunicativos da cidade. Mediação e interação se sobrepõem e se

alternam a partir das relações entre urbano e cidade, e a fotografia se faz imersa

nesse ambiente instável e em constante movimento. Caminhar torna-se uma

estratégia poética, um procedimento do fotógrafo que se abre para interagir e

pensar a cidade. Os traços de resistência às imposições do programa urbano e

a ação da fabulação para tecer essa resistência que constrói um lugar na cidade

estão presentes nos trabalhos analisados anteriormente e serão melhor

detalhados a seguir, pela análise de outros ensaios fotográficos.

Weslei Barba22 é um jovem fotógrafo que desenvolve seu trabalho

transitando tanto pelas ruas do centro como das periferias de São Paulo. O

fotógrafo afirma que seu relacionamento fotográfico com a cidade começou

como um meio de desenvolver a técnica fotográfica e, assim, "a fotografia entrou

como uma forma de sair na selva e abrir a floresta a machadada". Essa "luta",

colocada metaforicamente pelo fotógrafo, ocorre em dois âmbitos: em sua

relação com o equipamento fotográfico e também na construção de sua

interação com a cidade. A metáfora nos aproxima da fala de Flusser, que nos

lembra como a condição ambiental/cultural interfere no gesto do fotógrafo:

Os caminhos tortuosos do fotógrafo visam a driblar as intenções escondidas nos objetos. Ao fotografar, ele avança contra as intenções da sua cultura. Por isto, fotografar é gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidade ocidental ou cidade subdesenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrar

22 As afirmações do fotógrafo, as informações sobre seu processo criativo e suas imagens,

quando não referenciadas de outra forma, têm como fonte entrevista concedida à pesquisadora em junho de 2016.

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fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas (2002: 29).

As fotografias de Barba apontam os rastros desses caminhos tortuosos e

seu envolvimento com a cidade e com as pessoas que nela vivem. Seus gestos

como fotógrafo marcam permanentemente suas imagens, porque, como também

afirma Flusser, o gesto é uma presença ativa no mundo (2014a: 19). Barba está

interessado nas relações entre a fotografia, a cidade e a publicidade, ou

elementos do consumo que se expõem no ambiente urbano. Seu olhar se volta

de modo crítico e sensível para situações que, pela via do acaso, envolvem

essas diferentes esferas. Sua presença ativa na cidade o faz perceber essas

relações e seu gesto de fotógrafo as torna visíveis na superfície da imagem.

Ao falar sobre o gesto de pintar, Flusser afirma que todos os momentos

desse gesto apontam o quadro a ser pintado, e que o quadro é o sentido do

gesto e coordena todos os seus movimentos (2014a: 61). Assim, não é

exatamente o pintor que define o quadro, mas o quadro a ser pintado que define

o gesto do pintor. Na relação do fotógrafo com a cidade, algo semelhante ocorre:

não é apenas a fotografia que vê a cidade, também a cidade, com todos os seus

movimentos imprevisíveis, suas redes informais, se mostra ao olhar atento do

fotógrafo e se faz visível pelo seu gesto fotográfico. Vale ressaltar que, nessas

interações entre a cidade e a fotografia, a cidade não é um objeto passivo, ao

contrário, ela se mostra justamente por estar viva, pulsante e, por isso, pode

esconder aspectos que passam imperceptíveis ao olhar do fotógrafo, porque o

movimento ou a constituição da cidade não o deixam ver.

O fotógrafo opera, então, no intenso cruzamento entre mediação e

interação, no entremeio que surge entre os distintos processos comunicativos.

Ao mesmo tempo em que o consumo se expõe das mais diversas maneiras em

produtos, cartazes e anúncios publicitários, caracterizando a funcionalidade da

dimensão urbana, a cidade se faz flexível e em constante movimento pelas

ações dos que passam e a vivenciam.

Ao contrastar produtos do consumo ou cartazes publicitários com ações

imprevistas, o fotógrafo “monta” uma cidade que desmonta a imagem mediativa

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construída de modo controlado. Essas imagens dialogam com as fotografias de

Atget, que, no século XIX, também estava interessado em contrapor, na mesma

fotografia, imagens do universo do consumo às de outros espaços da cidade.

O incômodo de Barba com imagens que buscam chamar a nossa atenção

de todas as formas para nos vender algo é o ponto de partida para criar

fotografias que tensionam as esferas do urbano e da cidade. O fotógrafo parece

não aderir à cidade que se mostra mediativa, ele a questiona e tenta encontrar

possibilidades de desmontar a imagem que apela ao consumo. Resiste a essas

imagens prontas para vender, na medida em que justapõe a elas outros

elementos que claramente destoam da imagem fabricada para o consumo.

Nessas montagens de elementos inicialmente díspares, há espaço para uma

invenção em tom de fábula, que apresenta uma cidade única pela radicalidade

dos encontros imprevistos.

Weslei Barba

Numa das fotografias de Barba, o personagem Papai Noel, que nada tem

a ver com o natal tropical, é confrontado com um passante que se assemelha a

ele, ao mesmo tempo em que seu olhar parece cruzar com o do fotógrafo. Há

também uma resistência nesses encontros que o fotógrafo teima em revelar,

mesmo que o espaço urbano não crie ambiente propício para isso. A estranheza

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ou incômodo com que o retratado encara o fotógrafo evidencia como o gesto

fotográfico soa incompreensível. Fotografar nesse contexto significa perder

tempo, estar fora do sistema que impõe o trabalho em horário comercial e o

andar pela cidade apenas para deslocamentos “úteis”. O fluxo do fotógrafo é

outro, está também relacionado ao ócio, ao caminhar inútil.

Assim, o fotógrafo atualiza o gesto do flâneur, que, segundo Gros, é um

subversivo que subverte a cidade, o consumo e seus valores, e também a

solidão, a rapidez e o ocupacionismo (GROS, 2010: 179, 180). O fotógrafo age

como um flâneur que caminha com nenhuma outra utilidade que não a de

observar, infiltrando-se e ao mesmo tempo se destacando do resto da cidade.

Na cidade cosmopolita contemporânea, esse andar desocupado parece

ainda mais subversivo porque as imposições utilitaristas são ainda mais intensas

e fotografar o outro causa enorme estranhamento, mesmo que a fotografia esteja

fortemente presente pelos inúmeros aparatos que quase todos carregam. Perder

tempo para olhar o outro não é gesto comum. Flanar supõe causar

estranhamento e um desejo pelo estranho, supõe abrir-se para perceber o que

está fora do hábito.

Barba perde tempo para encontrar esses personagens que circulam

invisíveis. Seu caminhar é também um gesto que desfuncionaliza o programa

urbano porque não tem nenhum outro intuito senão o de perder-se e fotografar.

Se a cidade é pensada para funcionar, o caminhar sem destino e sem função do

fotógrafo o faz resistir como uma força que não adere nem aos fluxos previstos

pelo espaço urbano, nem às imagens que, mediativamente, identificam São

Paulo. Nessas fotografias, constitui-se outra cidade – a dos lugares construídos

não local ou geograficamente, mas pelos fluxos que se estabelecem

espontaneamente e que, de modo imprevisível, fazem cruzar, num determinado

tempo e espaço, o retratado e o fotógrafo.

É possível falar, portanto, de uma fotografia mediativa, relacionada à

publicidade ou à comunicação institucional do plano urbano e, por outro lado, de

uma fotografia interativa, que, na contramão da primeira, não está interessada

em publicizar ou propagar uma imagem da cidade com características

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espetaculares, mas abre brechas para ver o que, inclusive, não interessa àquele

programa mediativo.

Weslei Barba

Como as instâncias de mediação e interação não são excludentes nem

se opõem com clareza, mas se sobrepõem, é possível perceber na fotografia de

Barba uma ironia que inclui, na imagem, o cartaz publicitário que propõe um ideal

de beleza, enquanto o personagem retratado, aparentemente um artista que vive

das ruas, se desmonta contrariando a indicação do cartaz que vende, além da

maquiagem, uma imagem a ser seguida.

Nesse contexto, a imagem vincula-se ao que Gros chama de resistência

ambivalente do flâneur, que subverte a modernidade não ao se opor a ela

frontalmente, mas ao contorná-la, desviá-la (GROS, 2010: 179). O encontro

entre o retratado, a peça publicitária e o fotógrafo acontece por um movimento

que tensiona o urbano e a cidade, as mediações e interações, e pode ser

relacionado com o que aponta Ferrara sobre as várias imagens da cidade:

"Parte-se da imagem-cenário da cidade para atingir sua transformação que torna

possível observar o uso que a exibe tal qual um laboratório orgânico e vital.

Parte-se da cidade mediativa para atingir sua força interativa" (FERRARA, 2015:

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156). Essa força interativa está fortemente relacionada à experiência do

fotógrafo na cidade, e a como ele é afetado por ela.

Não é que o fotógrafo apenas revele situações inusitadas ou instantâneos

do cotidiano, mas, ao ser parte da cidade, ele tem condições de perceber o que

a cidade lhe mostra, porque é atravessado por ela. A vivência da cidade pelo

fotógrafo promove as associações que se vê nas fotografias. Ferrara também

comenta como esses processos interativos estão relacionados a um modo de

resistência:

a cidade interativa é aquela da resistência que combate os planos que, de modo hegemônico, estipulam aquilo que a cidade deve ser. Nessa resistência, a cidade interativa é desestruturante e sem ambições midiáticas, mas é o único lugar capaz de sobreviver de modo democrático (2015: 159).

Barba comenta que fotografar o faz conhecer melhor a cidade, que sem a

fotografia conhecia apenas "de passagem" e que "perder tempo" fotografando

lhe trouxe a cidade de volta. O fotógrafo afirma também que escolheu fotografar

a cidade para se aproximar das pessoas, numa espécie de desafio pessoal para

se sentir mais confortável em fazer retratos. Parece haver, na sua prática

fotográfica, uma estratégia de resistência contra um afastamento do outro,

desencadeado pelas características do espaço urbano. Nessa tentativa de

aproximação, o fotógrafo encontra-se com personagens e não se limita a

registrá-los ou descrevê-los, mas os apresenta pelo viés da fabulação.

Weslei Barba

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Tais personagens também contrariam o espaço inóspito da metrópole

com suas ações flagradas pelo olho interativo do fotógrafo. Assim, surge, na

superfície da imagem, uma dama vestida de vermelho, parada numa esquina do

mundo a se questionar sobre o tempo. E um casal apaixonado alheio a toda

precariedade da vida e da pobreza. São cenas que poderiam facilmente compor

um anúncio ou produto da comunicação publicitária, afinal, casais apaixonados

e mulheres em longos vestidos são figuras comuns nesse contexto, mas essas

fotografias são exatamente o avesso disso, seus personagens têm uma

originalidade e espontaneidade que jamais poderia ser construída pelo olhar

mediativo que faz imagens para agradar e vender.

Weslei Barba

Barthes afirma que a fotografia pode ser subversiva não quando aterroriza

ou perturba, mas quando é “pensativa” (2015: 38). Os retratos dos personagens

encontrados por Barba subvertem a imagem de uma cidade que funciona, como

vendida pelas esferas do poder e pela mídia hegemônica, porque são fotografias

que pensam e fazem pensar na potência dos acontecimentos das bordas e das

brechas, nos personagens fictícios com um vínculo estreito com a cidade

concreta que não é vista.

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Fontcuberta nos diz que "El acto fotográfico somete al fotógrafo a una

secuencia de decisiones que moviliza todas las esferas de la subjetividad. El

fotógrafo es un personaje que piensa, siente, se emociona, interpreta y toma

partido" (FONTCUBERTA, 2010a: 186). O partido tomado por Barba parece

claro: suas fotografias podem ser entendidas como resistência a propagar uma

imagem exclusivamente mediativa ou programada para vender ou embelezar a

cidade, apresentam uma cidade escolhida, inventada ou fabulada pelo fotógrafo.

Francesco Careri considera o caminhar como um gesto perceptivo e

criativo, que "ao mesmo tempo é leitura e escrita do território" (2013: 21). O autor

também observa:

Os pontos de partida e de chegada têm um interesse relativo, enquanto o espaço intermediário é o espaço do ir, a essência mesma do nomadismo, o lugar em que cotidianamente se celebra o rito da eterna errância. [...] o nomadismo considera o percurso como o lugar simbólico em que se desenrola a vida da comunidade (CARERI, 2013: 42).

O trabalho do fotógrafo Fernando Cohen23 se constrói nesses "espaços

do ir", suas imagens são impregnadas por suas andanças pelo bairro de

Pinheiros. Cohen afirma que não sai às ruas exclusivamente para fotografar, mas

o faz em meio ao seu cotidiano, perdendo-se ao ir e vir durante afazeres,

compras e deslocamentos diários. Nesse sentido, o fotógrafo levanta a hipótese

de que, se não morasse em Pinheiros, provavelmente seu trabalho seria distinto.

Mas a relação de suas imagens com o bairro vai além do registro de seus

percursos cotidianos, seu interesse está precisamente naquilo que considera

"estranho", naquilo que escapa à homogeneização do bairro.

Pinheiros é um bairro paulistano muito antigo, repleto de casas e prédios

de classe média, estabelecimentos comerciais sempre habitados por pessoas

com características muito variadas, uma vez que é ponto de passagem para

outros lugares da cidade. Nos últimos anos, num processo que se repete em

23 As afirmações do fotógrafo, as informações sobre seu processo criativo e suas imagens,

quando não referenciadas de outra forma, têm como fonte entrevista concedida à pesquisadora em abril de 2016.

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várias zonas da cidade, como visto com o bairro da Lapa no trabalho de Daniel

Ducci, Pinheiros tem passado por grandes transformações, com a chegada de

estações do metrô, obras do plano urbano e empreendimentos imobiliários que

transformam a paisagem e o modo de ocupação do bairro.

Essas características não passam despercebidas, ao contrário, são o

ponto de atenção do trabalho fotográfico desenvolvido por Cohen. Achar brechas

no previsível programa operado pelo urbano constitui sua poética. Como já

comentado, o urbano se relaciona com as ações programadas e instauradas

pelos poderes público e privado que controlam o espaço, e a cidade se faz

exatamente de modo oposto, nos gestos espontâneos, nas ações imprevistas

dos que habitam o espaço e, interativamente, o transformam em lugar. As

fotografias de Cohen se fazem nessa dimensão, são produzidas nesse ambiente

de interações e são profundamente influenciadas por essa atmosfera.

Fernando Cohen

As imagens carregam o estranho buscado pelo fotógrafo e esse traço só

pode aparecer em sua superfície porque Cohen age contra os processos

mediativos que se impõem no espaço urbano. O fotógrafo se incomoda e

contraria o padrão que, relacionado a uma comunicação mediativa, se impõe

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hierarquicamente. Nesse sentido, suas imagens são contrárias à ordem e à

visualidade prevista pela dimensão do urbano, agem como um contradispositivo.

Giorgio Agamben (2009), recuperando o conceito de Michel Foucault, define o

dispositivo:

Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (2009: 40).

Agamben chama a atenção para que não se reduza os dispositivos

apenas ao seu caráter técnico ou tecnológico, pois eles se dão numa rede mais

ampla que envolve também dimensões discursivas, estéticas, políticas.

Enquanto o dispositivo é tudo aquilo que modela e controla os gestos e a conduta

sujeitando os indivíduos aos mandos do dispositivo, o contradispositivo é a

“restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado” (2009: 51), ou

seja, a possibilidade de reconstituição do sujeito, de uma subjetividade que não

se deixa subjugar e controlar pelo dispositivo.

Os contradispositivos atuam por meio de processos interativos, por uma

comunicação não hierárquica, imprevisível e aberta às vivências. Há que se

considerar também que a ação dos contradispositivos não é totalizante, assim,

ao desmontar um dispositivo, outros surgem, num processo contínuo de

tensionamentos e contraposições.

Como já apontado anteriormente, a fotografia pode se fazer como

dispositivo não só pelo seu caráter técnico, mas também pela forma como seu

programa atua nos comportamentos de quem fotografa e de quem é fotografado,

e no modo como as imagens são decifradas. Flusser (2002) esclarece que, a

fotografia, como imagem técnica, é fruto de programa que impõe um modo de

funcionar ao fotógrafo. Para não sucumbir ao programa, é necessário um gesto

imaginativo para jogar contra o aparelho programado.

O gesto fotográfico de Cohen subverte o programa não por uma ação que

visa destituir o poder do aparelho, da câmera que cumpre seu programa ao

realizar fotografias, a subversão se dá no contato do fotógrafo e do aparelho com

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as ações da cidade, o fotógrafo abre uma brecha no programa ao fazer surgir

imagens imprevistas, não do ponto de vista técnico, ou da capacidade da

câmera, mas pela potência imaginativa, pela capacidade de ação que articula

uma interação entre o olho, o aparelho e a imponderabilidade da cidade. A

resistência em aderir ao programa não é só do fotógrafo, mas também da cidade,

que se volta contra planejamentos e tentativas de controle.

Assim, as fotografias de Cohen rasgam o que há de homogêneo na

paisagem de Pinheiros para tratar do que escapa à convenção. São imagens

elaboradas por um processo de "escuta" do que grita na cidade e, muitas vezes,

é silenciado pelos diferentes dispositivos urbanísticos. Sua proposta de

contradispositivo é evidenciada quando o fotógrafo afirma que seu trabalho se

relaciona com "as bibocas, casinhas e locais curiosamente esquisitos que vêm

dando lugar a imóveis de alto padrão e suas promessas de felicidade infinita".

Sua tentativa é a de criar "uma cidade em que haja espaço para idiossincrasias,

para soluções criativas e para a falta de solução"24.

Fernando Cohen

24 Afirmações de um texto não publicado, de autoria do fotógrafo Fernando Cohen.

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Fernando Cohen

Cohen também afirma que desenvolve uma espécie de "arqueologia do

presente, um registro muito mais afetivo que documental"25. Nesse gesto,

destacam-se as possibilidades de exploração do meio fotográfico, que, por sua

natureza ambivalente, permite que o fotógrafo não só registre a cidade, mas a

recrie, ressaltando suas estranhezas. Assim, há uma ação de resistência por

parte do fotógrafo que, contrariando a visualidade dos prédios espelhados e

praças de concreto, se atém ao precário, ao improvisado, ao fora da ordem que

parece misturar camadas de tempos distintos.

Desse interesse pelo que está fora de um padrão almejado pelo bairro

que se pretende moderno e cosmopolita, surge uma fabulação que constrói uma

cidade em que os acontecimentos banais, e muitas vezes desprezados, são

valorizados. O antigo, o vulgar, o descartável e o sujo constituem uma cidade

sem começo ou fim, em imagens que podem ser combinadas e recombinadas

de muitas formas. Em meio a cenários como calçadas, fachadas de lojas, portas

de casas e comércios, surgem personagens com figurinos e olhares de quem

não se preocupa com uma adequação aos padrões sociais ou culturais.

Diferentes cores e estampas misturam-se às texturas das peles – das pessoas

e da cidade. O caminhar permite ao fotógrafo abrir-se a esses encontros, a

recriar a cidade por meio da emergência de lugares que apresentam o diverso e

o espontâneo.

25 Idem.

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Fernando Cohen

A cidade vista e recriada por Cohen explora a linguagem fotográfica como

um meio comunicativo em várias dimensões. O fotógrafo trabalha com a câmera

do celular, usa aplicativos para tratamento das imagens e publica suas

fotografias no Instagram. O uso desses aparatos técnicos não se reduz ao seu

aspecto instrumental, mas é experimentado também como uma espécie de

resistência, numa prática que não se deixa capturar pelas facilidades técnicas

que padronizam as imagens na atualidade, mas explora as qualidades materiais

dos suportes para comunicar uma visualidade própria. Nesse sentido, o trabalho

se vincula com a afirmação de Rancière:

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A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer (RANCIÈRE, 2009: 59).

Como afirma Fontcuberta (2010a: 54), toda fotografia, mais que espelho,

é especulação. As imagens de Cohen especulam a realidade da transformação

do bairro de Pinheiros criando uma fabulação afetiva que trata do

comportamento dos que vivem e ocupam interativamente o espaço. Rancière

usa o termo "partilha do sensível" para denominar,

o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (RANCIÈRE, 2009: 15).

A partilha do sensível tem a ver com a relação entre estética e política,

com a ideia de que arte não se faz numa esfera separada, isolada, mas atua na

mesma esfera do trabalho e da política. Além disso, a proposta de Rancière é a

de que, na partilha do sensível, espaços, tempos e atividades são tanto

determinados pelo poder instituído, por uma ordem hierárquica, quanto

apropriados pelos que estão fora da esfera do poder, de modo que, para além

dos processos mediativos, há espaço possível para interações e construção de

um ambiente comum.

Também de acordo com o autor, entende-se que a produção artística é

uma forma de resistência a uma partilha do sensível que estabelece uma

hierarquia e que impõe modos de ser e de dizer. Assim, é possível pensar que a

partilha do sensível proposta pelo urbano é contraposta e questionada por uma

fotografia que resiste, porque essa partilha é múltipla e, mesmo sendo planejada

por instâncias de poder, pode também ser tomada e tensionada por outras

ações. As possibilidades de criação da fotografia são, nesse caso, uma

potencialidade para refazer essa partilha, já que dão ao fotógrafo espaço para

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transfigurar a cidade e dar visibilidade às vivências que ocorrem nas brechas

daquilo que é imposto pelo programa urbano.

Nesse sentido, toma-se o termo resistência como pensado por Antonio

Negri (2008): como uma força criativa ou como uma condição para a produção

de novas subjetividades:

comprender la creatividad como un momento difuso y versátil, cambiante y potente, constante y siempre reinventado. La resistencia es lo que permite entrecruzar la diferencia y la creatividad (NEGRI, 2008: 122).

O autor afirma que a diferença é a maneira como a resistência se volta

contra o poder, constituindo e afirmando o tecido biopolítico e essa emergência

é sempre impulsionada pela atividade criativa (2008: 124). Negri (2008: 119)

dialoga com Deleuze quando afirma que o sujeito resistente emerge como

inventor de sentidos, de inteligência e cooperação. Assim, o gesto fotográfico

pode ser visto como ato de resistência, pois fotografar a cidade supõe uma

atenção às suas variações, indeterminações e porosidades, e uma resposta

criativa que dê novos sentidos a essa realidade movente, que se faz entre aquilo

que é programado e imposto, e as diferentes vivências da cidade.

Flusser nos diz que o gesto é sempre uma ação que comunica e, ainda,

"é o movimento no qual se articula uma liberdade, a fim de revelar ou de se velar

para o outro" (FLUSSER, 2014a: 17). Os gestos fotográficos de Weslei Barba e

Fernando Cohen parecem articular liberdade para usar a cidade e encontrar o

outro, para fotografar como uma experiência problematizadora, na qual

fotografar e fabular a cidade é também analisá-la e questioná-la. Não se trata de

uma fotografia de denúncia ou crítica social, que se sobrepõe e apenas

documenta os acontecimentos, mas de uma produção que emerge da

subjetividade daquele que é usuário da cidade. Há uma sutileza e ironia que só

é possível porque vem de quem está no mesmo lugar daquilo que é retratado.

Cohen e Barba ocupam a cidade e são por ela ocupados. Não revelam

significados ocultos, mas rastros dos processos comunicativos e do modo de ser

da cidade.

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A fotografia produzida apenas como registro da aparência das coisas

pode ser considerada um dispositivo. O registro puro e simples faz do fotógrafo

um funcionário que se submete aos imperativos do aparelho e age pelo impulso

da automaticidade. A possibilidade de criar ficção abre espaço para subversão

do programa, para desarmar o dispositivo. É a ficção e, ainda mais, a fabulação

que fazem pensar e criar o novo como resistência.

Montagem e desmontagem da cidade

O Atlas Mnemosyne desenvolvido por Warburg opera segundo o princípio

da montagem:

Era preciso mostrar que os fluxos são feitos apenas de tensões, que os feixes amontoados acabam explodindo, mas também que as diferenças desenham configurações e que as dessemelhanças criam, juntas, ordens não percebidas de coerência. Damos a essa forma o nome de montagem (DIDI-HUBERMAN, 2013: 399).

A montagem26 no atlas se dá como um modo de expor visualmente as

descontinuidades do tempo e as irregularidades da forma. A dialética das

fórmulas de páthos é preservada na forma como se processa o conhecimento

acionado pelo atlas: graças aos movimentos de ida e volta, do detalhe ao todo,

esse conhecimento se expande como numa espiral (AGAMBEN, 2009: 138).

As tensões internas de cada imagem ganham complexidade nas

diferentes combinações em que são dispostas, pela a alternância entre

saturação e dispersão, pelos variados tamanhos e pela ordenação própria que

provocam o desencadeamento de contínuas inferências. A configuração de

Mnemosyne deixa claro que não há uma interpretação preexistente sobre as

imagens, ao contrário, o atlas atua como matriz que multiplica possíveis

entendimentos, não guarda um ponto final, muito menos um saber absoluto

(DIDI-HUBERMAN, 2013: 389, 392).

26 Como visto no capítulo 01, a montagem em Warburg aproxima-se do conhecimento pela

montagem e da dialética da imobilidade, como pensados por Walter Benjamin (2007).

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Essa montagem faz com que Mnemosyne não possa ser simplificado

como um conjunto de imagens que narram uma história. Toda a complexidade

da força, da forma e do movimento das imagens se expressa pela/na montagem,

que está diretamente vinculada ao modo pelo qual Warburg entende o tempo –

trata-se de uma montagem anacrônica, com suas próprias sobreposições e

retornos. O tempo linear da narrativa transforma-se numa linha circular ou

elíptica, que se expande em movimento de espiral.

Os ensaios fotográficos de Barba, Cohen, Ducci e Russo são muito

distintos, mesmo tendo a mesma cidade como campo de pesquisa, por outro

lado, têm também vários pontos de contato: as relações entre visualidade e

visibilidade que geram conhecimento sobre a cidade, o fabular, a resistência aos

processos comunicativos mediativos e a conexão com a cidade pela via dos

processos interativos e uma construção que conecta imagens ao montar,

desmontar e remontar o contínuo cotidiano da cidade. Em todos os trabalhos

analisados, há uma cidade que surge pela colisão27 entre várias fotografias numa

montagem própria do meio fotográfico.

Enquanto em Mnemosyne, as imagens são móveis e podem se deslocar

em infinitas combinações, a montagem dos ensaios analisados se dá não só no

agrupamento das fotografias já feitas, mas também muito intensamente no ato

fotográfico: as caminhadas para fotografar disparam processos associativos que

traduzem uma maneira de pensar a cidade e colocam, em processo contínuo e

expansivo, a relação entre o imaginário do fotógrafo, a cidade e as imagens que

decorrem desse diálogo. Ferrara aponta a relação entre os métodos da deriva e

da montagem:

Apreendido nos deslocamentos em derivas, esse método se articula no plural desautomatizante de inúmeros exercícios atentos que, em relações associativas parecem se produzir na mobilidade de uma dialética em montagem. Dilacera-se a cidade para reconstruí-la, descobrindo-as nas marcas de derivas sem tempo e sem história, porque sempre presentes aos olhos atentos do pesquisador em deriva, mas dividido entre derivas (FERRARA, 2015: 167).

27 O termo colisão remete à montagem como pensada por Eisenstein, como visto no capítulo 01.

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O mútuo contato entre a cidade, o fotógrafo e a fotografia, por meio das

derivas, cria um ambiente fecundo para a emergência de imagens dialéticas que

surgem como lampejos que estancam o fluxo contínuo e tenso do pensamento

e se dão como inferências que se montam numa constelação. Essas imagens

atuam duplamente, no processo de conhecimento do fotógrafo sobre a cidade e

na criação das fotografias que decorrem desse processo. Aí surge o que

denominamos olhar interativo, que extrapola a percepção e se vincula ao pensar,

olhar que conhece e gera conhecimento por imagens.

Assim, cada ensaio materializa – pelo uso da linguagem fotográfica – um

distinto olhar que não só vê, mas sente, pensa e interage com a cidade, múltipla

nas suas diversas possibilidades de entendimentos. A junção de imagens de um

bairro em transformação, de fachadas e empenas cegas, de retratos dos

diversos habitantes ou detalhes que passam invisíveis se expressa como um

"sintoma" do modo de ser da cidade. Assim como em Mnemosyne, essas

montagens não se dão de forma linear e não buscam construir uma narrativa

com começo, meio e fim, mas pretendem apresentar a cidade pelas suas

especificidades. Os trabalhos fotográficos iluminam recorrências de hábitos,

vivências, estranhezas, são rastros presentes na própria cidade e escavados

pelos fotógrafos.

Os trabalhos fotográficos não se constituem por imagens isoladas, há

vínculos entre elas que criam uma coerência interna de cada trabalho, seja pelos

objetos ou acontecimentos fotografados, seja pelos elementos da visualidade

sintetizados em cores, texturas, luz, contrastes, tipos de enquadramento ou

pelas características de cada suporte fotográfico. Tais conexões também são

elementos que atuam nas montagens, pois aproximam imagens distintas

oriundas de diferentes contextos, que muitas vezes estão distantes na cidade

concreta e se juntam na cidade fabulada e montada pela fotografia.

Compreender esses ensaios fotográficos pelo viés da fabulação significa

perceber que eles se constroem por outra lógica, que não a da linearização,

ainda fortemente vinculada à narrativa tradicional. Fabular supõe um modo de

narrar que escapa da linearidade que provém do verbal, fabular é operar com

outro tempo que não o cronológico/linear, mas com o tempo das imagens, tempo

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circular das superfícies, como nos diz Flusser, e esse fabular só é possível por

montagem.

Como avesso da narrativa, a fabulação encontra um lugar certo para

acontecer na superfície da fotografia, cuja natureza fragmentária estimula a

montagem que, por sua vez, considera e explora tal caráter e os espaços que

surgem entre as diferentes junções de imagens como um meio comunicativo. A

dialética da montagem nasce da colisão entre diferentes imagens que, ao se

chocarem, fazem surgir outras, não previstas inicialmente.

Além das montagens internas de cada trabalho fotográfico, que associam

imagens numa fabulação sobre lugares sem um tempo cronológico ou espaço

territorial, é possível pensar também numa montagem que ocorre pela junção

desses diferentes trabalhos nesta pesquisa. A análise dos ensaios, que visa

entender como se dá a interação entre a fotografia contemporânea e a cidade,

também se vale do princípio da montagem.

Assim, inspirada no Atlas Mnemosyne, esta pesquisa aproxima trabalhos

que se voltam para a mesma cidade, mas se constroem de formas muito

distintas, têm tempos e espacialidades diversas e se juntam, também ao modo

das colisões, numa montagem realizada como um gesto arqueológico, que visa

perceber e analisar os rastros da cidade em cada obra, e os rastros que se fazem

pelo olhar que investiga as diferenças e aproximações entre elas.

Só a análise de distintos processos e seus diferentes resultados

fotográficos é capaz de dar conta das várias possibilidades de interação entre a

cidade e a fotografia, uma vez que essas interações são múltiplas e

indeterminadas. Ao se voltar para diferentes abordagens fotográficas da cidade,

esta pesquisa também não intenciona criar uma narrativa, mas uma fabulação

que não visa uma relação linear entre os trabalhos, mas questionamentos sobre

as imagens e seus modos de produção. Ao selecionar trabalhos com uma

visualidade e processos tão distintos, a pesquisa buscou perceber como a

fotografia interroga a cidade e as várias respostas que encontra ou produz.

A natureza que escapa da padronização e surge na multiplicidade das

árvores que recobrem o centro da cidade, a face do consumo em confronto com

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a precariedade e a pobreza da vida cotidiana, o bairro da Lapa apresentado

como um lugar imaginário, com seus habitantes vistos por contrastes entre luzes

cortantes e sombras negras, Pinheiros percebido pelas idiossincrasias de seus

moradores e transeuntes, rastros de gestos humanos que marcam e remarcam

a superfície da cidade num palimpsesto de informações. Como em As cidades

invisíveis de Italo Calvino, os fotógrafos montam e remontam cidades diferentes

a cada olhar, cidades que perduram ao se transformarem em outras, assim como

as imagens de Mnemosyne.

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Asfalto, Tatiana Pontes

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Para não concluir: Confabular

Esta pesquisa partiu de um questionamento sobre as interações entre a

fotografia contemporânea e a cidade. O foco de análise se colocou sobre as

imagens produzidas pela estratégia poética de fotografar ao caminhar, e no

modo como fotógrafos fabulam sobre a cidade criando novas possibilidades de

entendimento sobre as imposições e espontaneidades que nela se

desenvolvem. A ambivalência da fotografia, que a faz uma imagem que opera

entre o documental e o ficcional, é explorada pelos fotógrafos de modo a

provocar o pensar sobre a cidade que se expande da cidade existente para

outras imaginárias, numa relação em que a cidade fabulada interroga e é

interrogada pela cidade vivida pelos fotógrafos. Nas fotografias que surgem pela

fabulação a cidade não é descrita como um território, mas como um lugar

construído pelas trocas e experiências cotidianas, assim, a mesma cidade é

explorada pelos quatro fotógrafos estudados, mas surge de formas muito

distintas nas fotografias.

Caminhar, fotografar, fabular, são esses os gestos que se entrelaçam no

processo de criação dos trabalhos fotográficos de Cohen, Barba, Russo e Ducci.

Assim como se entrelaçam, fotógrafo e câmera, e fotógrafo, fotografia e cidade.

No campo dessas relações e conexões, o fabular é gesto que só ocorre pelo

contato com esses vários elementos, a fotografia que fabula sobre a cidade só o

faz num processo em que esta também atua, também é fabulativa. É possível,

então, pensar numa expansão do fabular para o confabular, gesto de fabulação

em via de mão dupla, processo em que fotografia e cidade se afetam, se

absorvem e se transformam mutuamente.

O dicionário28 aponta que confabular se refere a trocar ideias (também em

tom suspeito e misterioso) e, ainda, a combinar, maquinar, tramar. Assim,

confabular supõe uma tessitura que, no caso das fotografias da cidade, surge

pela trama desenvolvida entre o gesto que compõe as imagens e a própria

cidade. E como a fabulação supõe um narrar em que não há roteiro prévio ou

28 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

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um sentido fechado ou predeterminado, há uma outra ponta a ser tecida pelo

observador das imagens, sempre abertas à criação de novos sentidos, que vão

se constituindo por esse confabular.

Assim, propõe-se entender o confabular como um gesto comunicativo da

esfera da interação, numa aproximação à proposta de Ferrara de que a cidade

vivida é efetivamente interativa porque se faz de acontecimentos não planejados,

mas descentralizados, que geram a possibilidade de a cidade se transformar

num meio associativo, no qual o usuário age sobre o meio e é por ele afetado,

transformando-se em parte da cidade e até mesmo se confundindo com ela

(FERRARA, 2015: 159).

O fotógrafo que escava a cidade em busca dos rastros dos

acontecimentos que ali ganham vida se comunica com ela e comunica algo sobre

ela por meio das fotografias. Essas imagens decorrem desses processos

interativos em que fotógrafo e fotografia são atravessados pela cidade ao mesmo

tempo em que a marcam com os rastros do gesto de fotografar. O confabular é,

então, ato não linear, distante de um eixo com início e fim, e que se dá

continuamente.

Falar de uma fotografia interativa só é possível quando se percebe que há

um modo de pensar que se contrapõe às instâncias de controle que constroem

uma imagem da cidade para ser consumida e propagada de modo repetitivo. Há

toda uma produção fotográfica que visa iluminar e valorizar a dimensão do

urbano, sua grandiosidade e pretensa eficiência, são fotografias dos marcos da

cidade estabelecidos midiaticamente, das grandes construções que a identificam

e aproximam de outras grandes metrópoles do mundo, num processo de

homogeneização e mercantilização do espaço.

Mas há também a produção fotográfica entendida como interativa, que se

coloca como resistência à essa imagem mediativa/midiática, como os trabalhos

analisados, que não aderem a um discurso pronto de cidade e desconstroem a

imagem habitual pela qual é mostrada através do olhar interessado nas brechas

do urbano, que fabula sobre acasos, imprevisibilidades e vivências da cidade.

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Nesse sentido, é possível entender que o confabular tem ainda outra

dimensão, a de uma ação ardilosa ou sagaz, na qual o fotógrafo se põe a tramar

ou conspirar contra a imagem convencional da cidade, ao mesmo tempo em que

trama contra o caráter documental da fotografia, uma vez que mais do que um

simples registro, o que cria é uma imagem que escapa do uso automatizado e

programado pelo aparato fotográfico. Tal como Penélope que tece e destece a

fim de escapar de imposições e definir seu próprio destino, o fotógrafo que

confabula cria uma rede na qual interagem sua própria subjetividade, a fotografia

colocada entre o documentar e o fabular, a cidade e as imagens que emergem

dessas interações. O confabular obriga o fotógrafo a ver por dentro do fabular,

exige que ele trame e destrame essa rede para construir fotografias como

imagens dialéticas (Benjamin), imagens que dão a ver, ao mesmo tempo em que

criam lacunas e outras perguntas.

Ver através do fabular coloca o fotógrafo num lugar de resistência às

imagens que entregam uma cidade já vista, uma cidade modelada

midiaticamente. O confabular se relaciona com a fotografia vista como uma

imagem “aintidogmática”, como propõe Soulages: (a fotografia) “é dúvida e

colocação de dúvida; é interrogação sobre a existência e sobre o tempo, sobre

a matéria e sobre a imagem” (SOULAGES, 2010: 346). Se a fotografia não se

adequa a princípios dogmáticos e se abre ao confabular é justamente por sua

ambivalência, pelo modo como, mesmo tendo algum grau de relação com aquilo

que fotografa, o que faz dela um documento, não pode nunca nos indicar uma

realidade precisa, pois é menos atestado e mais ficção, menos transparência e

mais opacidade.

Nos trabalhos analisados, o confabular se coloca como essa tessitura que

tanto reconhece a cidade, como suspeita que ela pode ser outras. Assim,

confabular significa um fotografar como investigação, numa aproximação ao que

Soulages afirma ser um ensinamento tanto da fotografia como da ciência e da

filosofia: “não conhecemos o real, mas devemos interrogar e continuar a

interrogar os fenômenos para ser menos cegos” (SOULAGES, 2010: 346).

Nesse processo de pesquisa e invenção, a fotografia oferece uma inscrição

visível para os processos da cidade, numa relação de mútua afetação, na qual a

fotografia não se sobrepõe à cidade e nem se submete ao simples registro.

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Nas fotografias analisadas, o centro e as margens de São Paulo surgem

em imagens que escapam de uma previsibilidade mediativa e que apresentam a

cidade qualificada, múltipla e constituída pelos usos. É o confabular entre a

cidade, o fotógrafo e a própria fotografia que faz emergir lugares na superfície

das imagens. Ferrara afirma que, ao estranhar a cidade já conhecida pelo hábito,

o fotógrafo cria uma contra imagem que produz um conhecimento sobre a cidade

(FERRARA, 2000: 130).

Assim, o olhar interativo que confabula com a cidade cria anti cartões

postais, nos quais se pode ver, por exemplo, o detalhe do chão onde se pisa e

para o qual não se olha (Russo) ou um carro já distante de ser entendido como

um objeto de consumo (Ducci). Como observa Calvino, “muitas são as cidades

que evitam os olhares, exceto quando pegas de surpresa” (CALVINO, 2000: 86).

Criar um anti cartão postal só é possível por um fotografar que surpreende a

cidade, pelo confabular que trama contra a imagem dada, mas que busca uma

imagem que se esconde abaixo da superfície visível da cidade.

À esquerda: Centro, Felipe Russo

À direita: Lapa, Daniel Ducci

Ao olhar para cidade, a fotografia aponta detalhes, estruturas, embates,

mas também deixa de mostrar uma série de possibilidades, tanto por escolha e

desejo do fotógrafo, pelos encaminhamentos poéticos da criação dos trabalhos

fotográficos, como também pelo modo lacunar como a fotografia comunica. E a

cidade, por se constituir por movimentos que se dão entre fixos e fluxos, altera-

se constantemente, de maneira que ora mostra ora oculta certos traços.

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Mostrar e ocultar são faces ambivalentes de um mesmo movimento, uma

vez que os processos comunicativos interativos são múltiplos e ocorrem em vias

de mão dupla e não unilateralmente. As ambivalências da linguagem fotográfica,

quando em contato com a pluralidade e ambivalências da cidade, geram

imagens também ambivalentes, que simultaneamente escondem e enfatizam

aspectos do que é visto e fotografado.

Ver e fotografar são gestos distintos, e o fabular já se faz no ver, que

seleciona em razão da própria impossibilidade de não abarcar a cidade toda. Há

uma montagem em curso já no ato de o fotógrafo olhar a cidade, e essa

montagem expande-se no gesto de fotografar, que não apresenta nunca a

totalidade da cidade. Assim, a cidade vista na superfície da fotografia esconde

tantas outras, não fotografadas, mas possíveis.

O que se mostra e o que se esconde estão relacionados à ambivalência

da fotografia com sua dupla possibilidade de documentar e ficcionalizar, de modo

que a ficção surge já da precariedade da documentação, sempre parcial e

fragmentada. Convém lembrar que o dicionário afirma que confabular também

significa contar histórias fantasiosas como se verdadeiras fossem, ou ainda,

falsificar memórias. Nesse sentido, a fabulação sobre a cidade também se

constrói como uma ambivalência que explora a capacidade intrínseca da

fotografia para registrar e inventar memórias, como nos diz o escritor Paul

Auster, as fotografias não mentem, mas também não contam a história inteira.

O jogo entre mostrar e ocultar também é ativado pelas relações entre o

urbano e a cidade, a tecnosfera e a psicosfera (Santos), que, inseparáveis,

destacam e encobrem dimensões do vivido e também do programado que se

impõe, não de modo totalizante, justamente porque é contraposto por ações

dinâmicas e inesperadas, que surgem sem aviso e sem aviso se desfazem, num

movimento contínuo.

Warburg usou o termo "sismógrafo" como metáfora para tratar da obra de

dois pensadores que foram referências fundamentais para seu trabalho: Jacob

Burckhardt e Friedrich Nietzsche. Segundo o autor os dois foram sismógrafos

sensíveis que captaram ondas mnemônicas para compreender os

acontecimentos do mundo e do contexto em que viviam, enquanto o sismo

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percebido atingia os próprios aparelhos que faziam sua inscrição (AGAMBEN,

2009: 142). Assim, o sismógrafo sensível transmite o sismo para o exterior e

para dentro de si, numa relação dupla vinculada ao modo como o autor entende

a dialética da imagem (DIDI-HUBERMAN, 2013: 390).

Wim Wenders29 pensa o ato fotográfico de um modo próximo à metáfora

do sismógrafo. Para o cineasta e fotógrafo, fotografar é uma ação em duas

direções, para frente e para trás, na qual o fotógrafo é jogado para si próprio,

quando dispara o botão da câmera.

Em alemão, há uma palavra muito reveladora para esse fenômeno, uma palavra conhecida em uma multiplicidade de contextos: EINSTELLUNG. Significa a atitude com que alguém aborda alguma coisa psicológica ou eticamente, isto é, o modo de você entrar em sintonia e então ‘absorve’ a coisa. Mas Einstellung é também um termo de fotografia e cinema, que significa tanto o take (uma tomada específica e seu enquadramento) quanto o modo como a câmera é ajustada, em termos de abertura e da exposição mediante as quais o homem da câmera ‘tira’ a foto.

Fotografar é, então, um gesto complexo, no qual o fotógrafo é afetado pela

câmera e pela situação que fotografa, ao mesmo tempo em que também afeta a

fotografia e aquilo que fotografa. Wenders, diz ainda que a câmera, ao fotografar

um objeto, fotografa também o desejo e a atitude do fotógrafo em fotografar tal

objeto. Essa atitude e desejo não colocam o fotógrafo numa posição de domínio

sobre o que fotografa, mas numa situação em que deve considerar o modo como

é afetado por aquilo que vê e que o faz refletir e fotografar.

Na interação entre fotógrafo e cidade se estabelece uma relação de troca,

diálogo, só assim o fotógrafo se torna capaz de perceber o que está subjacente,

aquilo que a cidade encobre: o fotógrafo não se sobrepõe à cidade, mas é

desafiado por ela a perceber e analisar o que se faz por entre os fluxos dos

acontecimentos e a fixidez das estruturas urbanas. Ser afetado pela cidade

interfere na cidade apresentada fotograficamente, ao mesmo tempo em que o

29 O texto de Wim Wenders foi publicado pela Revista ZUM (Revista semestral de fotografia publicada pelo Instituto Moreira Salles), Edição #4, de Abril de 2013.

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fotógrafo também intervém e altera a própria cidade e a forma como sua imagem

é registrada.

Nos ensaios fotográficos estudados, o fabular por meio de fotografias e o

confabular que cria uma trama entre o fotógrafo, as imagens e a cidade só é

possível pelo caminhar. A análise das fotografias e do processo de criação dos

fotógrafos faz pensar que a estratégia poética de fotografar ao caminhar perdura,

mesmo com tantas outras possibilidades a serem exploradas.

Na produção fotográfica contemporânea, há espaço para uma fotografia

distante dos acasos e indeterminações das ruas, imagens concebidas e

produzidas de modo totalmente planejado; há trabalhos que se vinculam com

outras linguagens artísticas; imagens que exploram novos suportes tecnológicos

como meios comunicativos; e há até ensaios que exploram a cidade por meio da

sua imagem em plataformas digitais como o Google Street View30; mas, para

além dessa multiplicidade de abordagens, o estar na cidade para fotografar

apropriando-se do espaço e interagindo com ele, não deixa de ser um

procedimento da fotografia contemporânea.

O viés arqueológico, do qual esta pesquisa se aproxima, não tem a

intenção de buscar a origem, mas de apontar que os fenômenos se dão em

processos contínuos, proporcionando assim, possibilidades de uma análise

crítica que gera conhecimento sobre o objeto pesquisado. Olhar para os

trabalhos fotográficos que continuam surgindo pela ocupação e exploração do

chão da cidade torna viável pensar que a fotografia contemporânea se faz do

embate entre o que é produzido atualmente e a tradição. O caminhar como uma

prática estética está relacionado ao início da fotografia, mas é ressignificado

pelos fotógrafos na contemporaneidade porque a cidade se transforma, assim

como a linguagem fotográfica.

As transformações da fotografia não atuam como rupturas absolutas,

entretanto podem ser entendidas como um ganho de complexidade. Assim,

novas possibilidades surgem para o desenvolvimento de imagens e novos

30 Ver o trabalho dos fotógrafos Michael Wolf e Jon Rafman.

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conceitos são explorados num comunicar por fotografias, porém, estratégias

poéticas, procedimentos e suportes desenvolvidos anteriormente não são

necessariamente abandonados, mas, são atualizados em processo contínuo de

criação de novas imagens.

Já as transformações da cidade criam um ambiente que dificulta o

caminhar e fotografar, torna-se difícil até mesmo ver a cidade, pois o olhar

esbarra nas grandes construções que se sobrepõem à linha do horizonte, o

intenso fluxo de automóveis impede uma circulação livre, o espaço urbano não

é pensado para acolher confortavelmente o corpo, nas grandes metrópoles, a

rua é só espaço de passagem rápida que não deve ser ocupado. Nesse sentido,

o andarilho parece figura do passado, porém, como visto, ainda há uma intensa

produção de fotógrafos31 que resistem a esse afastamento e investigam e

conhecem a cidade pela planta dos pés.

Ferrara, ao comentar a prática da flânerie, afirma que ela está vinculada

a uma cidade conhecida pela polissensorialidade, pelo tato, olfato e, a partir

dessas percepções, desenvolvem-se uma série de associações que,

incorporadas como uma montagem, produzem a inteligibilidade da cidade, daí

decorre uma “imagem às avessas mais tato que visão” (FERRARA, 2000: 84).

De uma perspectiva similar, Brissac Peixoto32 observa sobre a relação entre a

fotografia contemporânea e o andar pela cidade:

O fotógrafo encontra-se inapelavelmente mergulhado na cidade, de modo que olhar é também andar, visualizar é tatear por entre muros. Como se o ato de ver acabe sempre pela experimentação tátil de um objeto erguido diante dele e que ele precise contornar. Há um encavalamento entre o visível e o tangível. [...] O olhar apalpa as coisas: estamos no meio do mundo.

31 Há muitos outros fotógrafos que desenvolvem trabalhos pelo caminhar na cidade, além dos estudados nesta pesquisa, entre eles, alguns que também exploram São Paulo: Arnaldo Pappalardo, Cristiano Mascaro, Felipe Bertarelli, Gustavo Gomes, Ivan Padovani, Tatewaki Nio, Tuca Vieira.

32 Artigo “Ver do meio, como mato que cresce entre as pedras”. Disponível em: http://www.iconica.com.br/site/nelson-brissac-ver-do-meio-como-mato-que-cresce-entre-as-pedras/ - Acesso em: 30/05/2015.

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Assim, contrariando o espaço que se fecha, se oculta ao olhar, o fotógrafo

encontra no tatear uma brecha para interagir com a cidade, criando uma conexão

entre o scanning, o olhar e pensar por superfície, e o tatear (Flusser), que é

disparado já pelo contato dos pés com a superfície da cidade. Desse modo,

fotografar é gesto que implica o corpo todo, corpo físico, com os cinco sentidos,

que não se separam do corpo constituído pela cultura e pelo próprio ambiente

da cidade. Caminhar é gesto de reconhecimento da cidade, que faz cruzar

estímulos sensíveis e afetividades, é uma maneira possível de entendê-la na sua

extensão infinita, se não na dimensão de território, na dimensão comunicativa,

nas ilimitadas combinações, na abertura ao acaso, nos acontecimentos

possíveis e inesgotáveis.

Se as cidades atuais se fazem mais para o consumo, carros e fluxos

velozes, que para a lentidão do caminhante, andar à deriva ao modo do flâneur

parece gesto fora do tempo, todavia, trabalhos fotográficos como os de Cohen,

Ducci, Barba e Russo deixam claro que a fotografia contemporânea segue

pensando a cidade não por nostalgia ou saudosismo de uma cidade que não

existe mais, mas por uma necessidade comunicativa, artística e política de

ocupar a cidade pelo caminhar. Atualizar a flânerie e a deriva situacionista é uma

estratégia para apreender os fluxos da cidade, resistir e não aderir cegamente

às imagens e gestos midiáticos.

Nesse sentido, é necessário pensar na história da fotografia ao modo das

imagens dialéticas (Benjamin), que se fazem no presente, reconfigurando

passado, presente e até futuros possíveis, longe de uma linearidade de eventos

sucessivos. Agamben (2010: 9) afirma que o homem contemporâneo pode ler

as assinaturas do seu tempo somente se não se situa totalmente no passado,

nem tampouco coincide inteiramente com o presente. Perceber as assinaturas

requer manter-se numa constelação entre passado e presente. É justamente

nesse espaço intermediário que se produzem as fotografias da cidade

analisadas nesta pesquisa. Os fotógrafos atuam por um procedimento que

poderia ser visto como superado e, assim, colocam-se em contato com a cidade

intempestivamente, meio fora da hora e do lugar para os moldes da configuração

urbana atual.

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Pelo caminhar na cidade, os quatro fotógrafos estudados questionam, de

alguma maneira, as imposições do urbano que limitam e excluem do espaço

quem não se adequa aos seus formatos. O caminhar e o fotografar se fazem

como gestos de contraposição, de criação de novos modos de estar na cidade.

Nesse andar à deriva, há algo de perder-se, deixar-se levar pela cidade, pelos

movimentos dos outros, pelos fluxos que não se controlam. O fotógrafo se perde

e se abre à cidade, procura pelas imagens, mas não está sozinho, tem a cidade

a confabular, a indicar caminhos, e essas indicações vêm das sobreposições e

alternâncias ambivalentes, tanto do planejado quanto do acaso, do que é

explícito e do que se esconde sob a superfície visível das coisas.

Essa pesquisa se construiu por um caminho arqueológico, buscando as

assinaturas da cidade e da própria fotografia nos trabalhos analisados. Nesse

sentido, se valeu da estratégia de contrapor a fotografia contemporânea a outros

trabalhos produzidos anteriormente, para investigá-los na sua constituição de

“monumento” (Foucault), como algo a ser desmontado e analisado num campo

de relações, de modo a dar novos sentidos a esses trabalhos, pela perspectiva

pela qual são vistos.

Como afirma Flusser, o deciframento das imagens técnicas exige uma

ação de imaginação, entendida como a capacidade para compor e decompor

essas imagens, uma capacidade que se articula como conhecimento sobre os

princípios e parâmetros dos aparelhos e dos programas que produzem não só

as fotografias, mas também suas relações com aquilo que é fotografado. Nesse

sentido, essa pesquisa se fez também como um exercício de imaginação ou,

como exercício de confabulação, também a tramar sentidos e possíveis

entendimentos sobre as fotografias e suas interações com a cidade.

O confabular é gesto interativo e, de acordo com Ferrara, as interações

são, sobretudo, ficcionais e fabulativas e, quando absorvidas pelo gesto de

pesquisar e produzir conhecimento, põem “em confronto o rigor científico e a

capacidade imaginativa que exige inventar para conhecer” (FERRARA, 2015:

173). A confabulação acionada nesta pesquisa deixa pontas soltas, a serem

tecidas no futuro, por uma apropriação e transformação dessa tessitura

presente.

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