e d i Ç Ã o e s p e c i a l ditados na...

59
Ditados na Berlinda VANY GRIZANTE HELENA FRENZEL ED. E D I Ç Ã O E S P E C I A L

Upload: others

Post on 22-Sep-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Ditados na Berlinda

VANY GRIZANTEHELENA FRENZEL ED.

E D I Ç Ã O E S P E C I A L

Page 2: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Ditados na Berlinda, Coletânea, Vany Grizante, 1a. Edição, Helena Frenzel Ed. Dezembro 2013.

Copyright © 2013 Todos os direitos sobre as crônicas estão reservados à autora: Vany Grizante, São Paulo, SP, Brasil

(www.recantodasletras.com.br/autores/vanygriz)Apresentação: Pedro Galuchi, autor gentilmente convidado.A editora optou por manter as escolhas de grafia nos textos

individuais. Os textos aqui reproduzidos são de autoria e responsabilidade de seus respectivos autores, que detêm os direitos autorais sobre os mesmos, e não representam, necessariamente, a opinião da editora.

Edição e imagem: Helena FrenzelCopyright © 2013 Todos os direitos sobre esta edição eletrônica

estão reservados à editora: Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha ([email protected])Todos os textos aqui usados com a permissão dos autores

participantes. Esta edição pode ser livremente distribuída sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso não comercial - Vedada a criação de obras derivadas 2.5 Brasil, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas.

Obra disponível para baixar em: quintextos.blogspot.com

CRÉDITOS

i

Page 3: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Ditados na Berlinda

Coletânea, 1a Edição

Textos de

Vany Grizante

Apresentação: Pedro Galuchi, autor gentilmente convidado.

Edição: Helena Frenzel

Dezembro de 2013

Esta publicação é parte do site Quintextos

(quintextos.blogspot.com)

Venda proibida

SOBRE O VOLUME

ii

Page 4: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

CRÉDITOS (i)

SOBRE O VOLUME (ii)

NOTA DA EDITORA (v)

PREFÁCIO (vii)

TAMANHO É DOCUMENTO? (9)

GOSTO SE DISCUTE? (11)

A MENTIRA TEM PERNAS CURTAS? (13)

HÁ MALES QUE VÊM PARA O BEM? (15)

QUEM VÊ CARA NÃO VÊ CORAÇÃO? (17)

DINHEIRO NÃO TRAZ FELICIDADE? (19)

DEVAGAR SE VAI AO LONGE? (21)

CÃO QUE LADRA NÃO MORDE? (23)

CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU? (25)

CABEÇA VAZIA, OFICINA DO DIABO? (28)

QUEM PROCURA, ACHA? (30)

QUEM NÃO ARRISCA, NÃO PETISCA? (33)

PERGUNTAR OFENDE? (36)

SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO COME? (39)

VÃO-SE OS ANÉIS, FICAM OS DEDOS? (41)

A FÉ REMOVE MONTANHAS? (43)

QUANTO MAIOR A ALTURA, MAIOR O TOMBO? (45)

SUMÁRIO

iii

Page 5: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

QUEM SEMEIA VENTO, COLHE TEMPESTADE? (47)

QUANDO UM NÃO QUER, DOIS NÃO BRIGAM? (49)

GATO ESCALDADO TEM MEDO DE ÁGUA FRIA? (51)

DE GRÃO EM GRÃO, A GALINHA ENCHE O PAPO? (53)

EM BOCA FECHADA NÃO ENTRA MOSQUITO... (55)

SOBRE A AUTORA (57)

iv

Page 6: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Há muito tempo coleciono ditos da sabedoria popular, cresci ouvindo vários deles lá no Maranhão, terra de muitos poetas, como Ferreira Gullar, escritor dado a aforismos e autor da célebre frase: “A crase não foi feita para humilhar ninguém“. Verdade, a crase existe para marcar encontros, bem como os ditados existem para registrar o senso comum porque “a voz do povo é a voz de Deus”. Será? E buscando divertimento, o que sempre busco nas artes aliás, pedi um ditado a cada um dos leitores em um dos meus sites e VANY GRIZANTE ofereceu-me generosamente vinte e um de uma coleção particular de crônicas escritas e publicadas em sua escrivaninha no Recanto das Letras de 2008 a 2011. Gostei tanto e muito e tanto que só poderia ter querido compartilha-los em minha biblioteca virtual, claro.

Pedi à autora autorização para fazê-lo e, juntas, contamos com o apoio de Pedro Galuchi, que tão gentilmente atendeu ao convite da VANY e nos presenteou com uma bela apresentação para esta coletânea.

VANY GRIZANTE é dona de uma escrita rica, sensível e muito elegante, como poderão comprovar durante a leitura, e algumas das crônicas que aqui estão são parte de Abelhas sem Teto e outras crônicas, livro lançado em 2010 pela All Print Editora apenas em formato de livro impresso. Li este livro, o qual me foi carinhosamente enviado pela autora, e ter gostado do diálogo inteligente que tive com os textos é razão mais que suficiente para querer em minha biblioteca outros textos da VANY.

NOTA DA EDITORA

v

Page 7: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Como a boa escrita fala por si mesma, paro por aqui com as apresentações. Tome este ebook com gosto então e se deixe levar pelo som de boa conversa de cada texto e da sabedoria que cada ditado traz. Boa leitura!

Helena Frenzel

vi

Page 8: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Essa paulistana se diz arquiteta. Entretanto, confessa escrever “amadoramente” desde criança.

Talvez daí, dessa união, tanta criatividade e sutileza. Desfiar elogios a essa parceira não seria condizente com suas

criações literárias, pois não traria novidade. Diferentemente de seus textos, quase sempre com finais surpreendentes, causando até surpresa, quando algum final é o esperado pelo leitor.

Como imaginar uma discussão ligando uma grandiosa ponte a um utensílio de informática? E a gostosa dúvida entre a resposta ser verdade ou mentira?

Não fique em cima da ponte: Dê asas à imaginação e viaje.Leve na bagagem uns textos dela para o caso de algum imprevisto,

como ficar preso no trânsito, perder o vôo, etc.. Ao invés do estresse, poderá rir com o humor bem dosado pela

inversão de um sorriso sem dentes, ou emocionar-se, ao envolver-se em detalhes de sua infância ou cicatrizes.

Aliás, em “Quem vê cara... “, talvez, sem querer — no fundo, acho que ela quisesse mesmo confessar — o leitor chegue à conclusão de que a genética paterna seja a origem dela escrever tão bem. Pode uma coisa dessas? Um velho proteger um cachorro? Só se for para que o Leão não seja mordido por um gato. Desses que se escondem no telhado.

Não! O gato que mordia estava na carroça que abalroou o retrovisor. Ou não?

PREFÁCIO

vii

Page 9: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Estou fazendo uma confusão. Pudera! Ela é culpada. Não dá para interromper a leitura de seus textos e,

pela avidez de novidades, do quero mais, acaba-se tendo um pouco de pressa e misturando-se os ingredientes das histórias.

Aí, para colocarmos ordem, só relendo. Que bom! Sem esquecer, que ao lermos e relermos, podemos encher a cabeça

com novas idéias, como “A galinha que enche o papo de grão em grão”.E diferentemente de achar-se uma vaga para estacionar, nem se

precisa procurar muito por novas idéias. Há de sobra em cada um dos ditados postos na berlinda.

Um alerta! Se por um desses acasos, o leitor descobrir alguma idéia não

explorada, desconfie... Provavelmente, ela guardou para um próximo texto.

É nessa linha de freqüentes novidades que tenho quase certeza — já disse impossível ter-se certeza com ela —: mesmo seus leitores mais assíduos, entre os quais me incluo, ficam desconfiados até a última palavra qual será a surpresa.

Isto se esta palavra não vier seguida de um ponto não final, mas de reticências ou interrogação.

De certo é a exclamação:“Vany! que coisa boa ler um só de seus textos...” A união deles, então...

Pedro Galuchi

viii

Page 10: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Perdi meu pen drive. Até há bem pouco tempo atrás eu não saberia dizer o que é isso, mas a necessidade me apresentou a ele, e desde então ele faz parte de minha vida de forma indissociável. Uma pecinha minúscula que, conectada no local certo do computador — a entrada USB, olhem só que erudição tecnológica! — funciona como um disco rígido (!) externo. Trocando em miúdos: plugamos, armazenamos (ou tiramos dele) um monte de coisas, sacamos e o levamos embora. Para outro computador, se quisermos.

Quando eu digo pequeno, é pequeno mesmo. O que perdi era uma minúscula caixinha de uns quatro centímetros de comprimento por menos de dois de largura, fininho como só ele. E com uma tampinha, o gracioso. Mas o pequeno tamanho, como em muitos outros assuntos polêmicos, não significa má performance: o danadinho podia armazenar um gigabite dentro dele. O que significa fotos de incontáveis viagens, ou uma bela biblioteca recheada de bons livros — e dos grossos. Ou ambos.

Vinha dirigindo pela marginal do Rio Pinheiros pensando nele com saudade (não necessariamente saudade do pequeno artefato tecnológico, mas do prazer que os textos que escrevi nos últimos seis anos e que estavam contidos dentro dele me proporcionavam) quando me deparo com a obra da Ponte Estaiada. Quem mora na cidade já deve ter visto, ou ao menos ouvido falar. “Estaiada” significa que a ponte é suspensa por estais, ou conjuntos de cabos de aço, sendo que esta ponte ainda tem a particularidade de ser curva; segundo consta, a única da América Latina. Tudo nela é grandioso: terá 144 estais, que consumirão 500 toneladas de

TAMANHO É DOCUMENTO?

1

9

Page 11: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

cordoalha de aço — se a esticássemos a partir daqui, chegaria bem pertinho de Curitiba. O mastro central, que divide a ponte em duas partes de cerca de 900 metros cada, terá uma altura de 138 metros, apenas dez mais baixo que o ponto (construído) mais alto de São Paulo, que é o prédio do Banespa. E cerca de seis quarteirões ficarão flutuando, literalmente pendurados sobre o Rio Pinheiros.

Não dá para não notar, e também para não se admirar com a grandiosidade do conjunto. Uma obra de engenharia e tanto. Por conta de minha formação profissional, fico sempre pensando na quantidade de cálculos, plantas, desenhos, descrições técnicas e demais detalhes que são necessários para tal construção. Um mundo de documentos! Porém, na mesma hora, faço a associação que me espanta: todo este portentoso material gráfico e técnico caberia inteirinho no meu minúsculo pen drive...

Portanto, continuo na dúvida. Tamanho, afinal, é ou não é documento? A gigantesca ponte diz que sim, meu minúsculo pen drive diz que não. Eu, particularmente, acho que tudo é função do momento e do objetivo. Mais não digo; reservo-me o direito de abster-me de opinar sobre a grande (?) polêmica do tamanho. Prefiro, portanto, ficar em cima do muro — ou melhor, da ponte.

10

Page 12: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Tenho uma postura profissional um pouco diferente de uma parte de meus colegas arquitetos. Para mim, o profissional que lida com criação, em especial a criação de espaços que serão utilizados diariamente por seus proprietários, tem o dever de tentar traduzir, da forma mais fiel possível, os desejos deles — e jamais impor seu gosto pessoal. Por isso, não me conformo muito (e nem gosto) quando o cliente me diz algo como “você é quem sabe”, “escolha você”, o que você fizer está bom”. Por sorte (ou porque não sou uma profissional de “grife”, cujas obras já vêm pré-aprovadas desde o projeto, independentemente de seu resultado estético), isso não me acontece com freqüência. Mas, quando acontece, fico lisonjeada pela confiança depositada — porém internamente acredito que, das duas, uma: ou o cliente está totalmente alheio à transformação pela qual seu espaço vai passar, ou então prefere se abster para depois poder criticar livremente caso não aprove o resultado. Ambas as posturas são cômodas para ele.

Gosto quando as escolhas suscitam discussões entre o profissional e o cliente. Na minha opinião, o arquiteto (e o decorador, o estilista, o publicitário, o cabeleireiro, a manicure, o maquiador, o cirurgião plástico, enfim, qualquer profissional que lide com transformações estéticas que sejam a expressão de outrem) deve apenas direcionar as escolhas do solicitante. Temos a técnica, temos a visão global, temos a experiência, temos um certo apuro estético advindo da educação, da informação e da prática — mas o gosto pessoal continua sendo único e, de certa forma, insondável. Assim, quando o cliente ainda não tem uma

GOSTO SE DISCUTE?

2

11

Page 13: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

idéia formada sobre o que gostaria de ver instalado em seu espaço, gosto de sondá-lo, extrair dele a maior quantidade possível de informações e apresentar-lhe soluções variadas — e assim pedir sua opinião, possibilitando-lhe escolher a opção que melhor se adapte ao seu gosto, direcionado pela coerência estética e funcionalidade prática. O resultado é sempre melhor do que o simplesmente imposto pelo gosto pessoal do cliente, sem direcionamento, ou pela pretensa bagagem do marketing estético-cultural do arquiteto, sem questionamento.

Minha prima Maria Alice, também do Recanto (a mesma que, no excelente conto "Clandestino" imaginou uma busca sem sucesso por um cartão sem dizeres) me contou que ela e a filha andaram por aí à procura de um fichário para a garota, e em meio a dezenas de possibilidades nada encontraram que fosse do gosto delas. Admito que minha prima é uma pessoa culta e de estilo “clean”, assim como sua filha, e que, num mercado abarrotado de apelos televisivos e publicitários, um fichário sem a foto de um pretenso ídolo juvenil ou todo enfeitado com ícones da adolescência não teria uma aceitação muito grande. Mas, onde ficam os consumidores mais exigentes, como elas? Por que se nivela o gosto por baixo, popularizando o “kitsch” em detrimento da simplicidade? E não é verdade que esta minha última frase já vem tendenciosamente carregada de impressões pessoais?...

Realmente, a discussão sobre estética pode render muitos e muitos textos, já que lida com o imponderável: o gosto pessoal, que mescla bagagem cultural, experiência pessoal, personalidade individual, tendência a deixar-se envolver em modismos e inconsciente coletivo. Assim, só me resta citar uma pessoa muito querida que, inteligentemente, costuma dizer: “Gosto não se discute. Lamenta-se”.

12

Page 14: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

A revista Veja da semana de carnaval de 2008 trouxe uma reportagem muito interessante sobre o programa “Nada além da verdade”, exibido pelo SBT(1) , no qual atores e atrizes são submetidos a uma batelada de perguntas sobre sua vida pessoal, às quais têm de responder ‘sim’ ou ‘não’ e cuja veracidade da resposta é verificada por um polígrafo — aparelho que detecta variações fisiológicas muito sutis em quem mente. Paralelamente, mostra a visão de pensadores sobre a mentira através da história, comentando desde Platão e sua tolerância a ela até Nietzsche e sua idéia de ilusão, passando por Santo Agostinho e Kant, estes adeptos fervorosos da verdade.

Internamente, confesso, admiro a capacidade dos que mentem de forma profissional. Não que os aceite ou apóie, apenas admiro porque é uma faculdade e tanto. Ver os nossos políticos dizendo para as câmeras e para todo o país, sem uma alteração sequer na voz, que é o último mandato, que a reeleição está descartada, que seu nome não consta dos projetos do partido, que a coerência ou a fidelidade partidária é uma virtude inerente ao bom político, que a verba está sendo destinada para esta ou aquela obra, que a vida de tal figura pública é irrepreensível, que está havendo uma perseguição infundada, que se eleito trabalhará apenas pelo povo, sem nenhum interesse pessoal... Enfim, todas estas frases que ouvimos diuturnamente e que, por experiências repetidas, sabemos que são mentiras deslavadas. E ainda assim muitos de nós acreditam e dão novamente aos mentirosos profissionais mais uma chance nas urnas, justamente porque são extremamente convincentes na arte de mentir. Se

A MENTIRA TEM PERNAS CURTAS?

3

13

Page 15: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

houvesse um ruborzinho que fosse, uma sutil mudança no tom de voz, um leve tremor apenas... ah, um polígrafo bem calibrado nesta hora!

Pode parecer mentira, mas não é: o fato é que não sei mentir. Fico vermelha, engasgo, gaguejo. Mas não posso mentir dizendo que minha incapacidade de dizer inverdades está baseada apenas e unicamente em motivos de ordem moral. A verdade, nua e crua, é que tenho uma memória pouco prodigiosa demais para ficar inventando lorotas. Uma memória excepcional é fundamental para aqueles que mentem, pois precisam se lembrar do fato exato que foi narrado, ainda mais quando envolve detalhes: datas, horários, nomes de pessoas, álibis diversos. Uma escorregada e pronto, está instalada a incoerência — um passo para o desmascaramento.

Assim, ciente de minha dificuldade, prefiro não mentir nunca. E desta forma descobri a delícia que é viver de fato, sem ter que ocultar nada de ninguém, sem dívidas de ordem moral com quem quer que seja. Uma vida plena, para mim, é poder encarar as pessoas de frente, andar de mãos dadas em público com quem quiser, contar a mesma versão de uma história sabendo que ela não tem outras versões. Sem necessidade de álibis, e o melhor, sem ter que ficar me lembrando exatamente o que foi que disse, e a quem...

Independente de concordar ou não com o fato de que mentir às vezes pode ser uma estratégia de sobrevivência, convenço-me de que a mentira não tem pernas curtas: ela nem sequer tem pernas, pois precisa ser empurrada por quem a conta. A verdade não: esta tem asas, e chega sempre ao destino, mais cedo ou mais tarde.

(1) Nota da Editora: SBT - Sistema Brasileiro de Televisão é uma emissora de televisão brasileira.

14

Page 16: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Cena 1:— Fui despedido... — Isso é bom, agora você vai poder assistir à Sessão da Tarde

comendo pipoca! — Mas isso é ruim, porque vou engordar. — Não, isso é ótimo, porque você vai parecer mais saudável! — Mas pode ser ruim, porque posso ter problemas cardíacos... — Sim, isso será bom! Assim você vai poder ir ao consultório daquela

cardiologista gatíssima que você sempre cobiçou e... — ... é verdade! Fui despedido! Que ótimo, agora vou poder azarar a

médica!

Cena 2:— Droga, perdi o avião... — Desculpe, amigo. Ouvi você dizer que perdeu o avião. Isso é bom,

porque eu soube que aquela aeronave andava com problemas na fuselagem. E haverá outro vôo em apenas 4 horas.

— Nossa! Isso é horrível! Vou perder a reunião... — Pense bem, amigo. Isso é bom! Você estava indo para Fortaleza...

e ia ficar fechado numa reunião? Agora você chega no final, poderá ir à praia e...

— ... e serei despedido!? — Bem, isso é ruim... — Ruim nada! É ótimo, vou poder azarar a médica!!

HÁ MALES QUE VÊM PARA O BEM?

4

15

Page 17: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Cena 3:— Que chato, pus a cerveja no congelador e a esqueci lá, a garrafa

quebrou! Agora vou ter que limpar toda a geladeira. — Isso é ótimo. Tem muita coisa antiga lá, precisa mesmo de uma

limpeza, jogar comidas estragadas fora... — Não, isso é péssimo! Tanta gente sem ter o que comer, e eu

desperdiçando comida... vou me sentir muito mal jogando comida no lixo.

— Não, isso é bom: a partir dessa sua contrição, vá ao supermercado e compre apenas o necessário, procurando com cuidado os melhores preços. Você vai evitar desperdícios e se sentir melhor.

— Mas para isso vou ter que demorar muito mais no supermercado, isso é ruim... ainda mais que posso me atrasar e perder meu vôo...

— Bem, isso é ruim mesmo. — Ruim? Ruim nada, vou poder azarar a médica!!!

Como se vê, há males que vêm para o bem.

16

Page 18: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Perto de minha casa andava um senhor maltrapilho. Caminhava pela calçada com um pedaço de pau na mão, fumando e segurando um cão vira-latas preto, grande, feioso e desengonçado, pela coleira. Dizia que tinha "cruza" com pastor alemão. O homem, quando havia alguém por perto, puxava o animal energicamente para si — como para garantir que ele não fosse sair correndo e morder a primeira vítima que passasse à sua frente — e chamava-o em voz alta de Leão.

Esse senhor muitas vezes se sentava em frente ao portão de nossa casa. Usava umas calças velhas quase sempre caindo, camisas rotas e sujas de graxa; e suas mãos não raro também estavam assim. Seus dedos eram escuros e cheio de cicatrizes, resquícios do manuseio de máquinas e do consumo constante de cigarro. Nos dedos mindinhos, as unhas eram longas e escurecidas. Às vezes também o rosto tinha graxa ou tinta, e seus óculos, emendados com fita crepe, tinham as lentes embaçadas por gordurosas e antigas impressões digitais. Nos cabelos grisalhos e encaracolados muitas vezes podia-se ver brilhar algumas limalhas de ferro, resíduos de trabalho num torno. Às vezes envergava um velho e seboso chapéu de palha.

Do portão para dentro havia meu pai. Estudou até o equivalente à quinta série, mas tinha muitas habilidades, em especial com as mãos. Virginiano, era detalhista e metódico, e ao mesmo tempo em que tinha conhecimentos técnicos de eletrônica, eletricidade, mecânica, química e tudo o mais que posso me lembrar, era um artesão habilidoso, fotografava muitíssimo bem, desenhava lindamente e amava de forma

QUEM VÊ CARA NÃO VÊ CORAÇÃO?

5

17

Page 19: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

quase devota a natureza. Era um artista que, um dia, apaixonado pela belíssima mulher que minha mãe havia sido, ensaiou também alguns passos na poesia. Acrósticos, trovas, sonetos — um caderno cheio de textos românticos escritos com sua caligrafia caprichada, com uma antiga caneta tinteiro...

Se meu pai tivesse tido oportunidade de estudar, não sei o que teria sido. Engenheiro, físico, químico, fotógrafo, biólogo, tantas coisas... Cinegrafista foi o que ele foi. Filmava para os noticiários televisivos na época em que ainda era necessário revelar os filmes antes de exibi-los. Se tivesse consciência hoje, adoraria conhecer as câmeras digitais e certamente teria muita habilidade com a informática. Pois dominava, há dez anos atrás — e já contando com mais de setenta anos de idade — a linguagem dos cartões eletrônicos, suas senhas e seus caixas automáticos.

Meu pai, para desespero total da esposa caprichosa — minha mãe, a guardiã da imagem da família — era o senhor maltrapilho que fumava enquanto vagava pela calçada. O pedaço de pau que ele segurava na mão era para defender o cachorro, que, apesar de grande, não sabia morder: se ameaçado, defendia-se dando focinhadas. Foi um dos meus cães da infância, e não se chamava Leão, mas sim Xuxu. Assim mesmo, com X.

18

Page 20: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Caminhava vagarosamente pela calçada sob o sol do meio dia quando o semáforo fechou. O rapaz de dentro do carro luzidio, ainda mais coruscante sob o efeito dos raios a pino, tinha a cara amarrada. O vidro com película escura estava totalmente aberto, nem sei bem por quê (já que o interior do carro e seus bancos de couro denunciavam a existência de um ar condicionado perfeito), o que me permitiu conferir seu semblante triste e amargurado. Eu diria enfezado, mas não poderia provar cientificamente a eventual prisão de ventre do rapaz atrás de seus grandes óculos escuros.

Repentinamente a moça do fusca que vinha vagarosamente atrás sem querer encostou levemente no pára-choque do bólido reluzente. O rapaz, agora muito mais que enfezado, saiu abruptamente do carro, batendo a porta com força. E nem esperou os pedidos de desculpas que a moça, envergonhada, reiterava. Disse-lhe alguns impropérios em voz alta, conferiu a irrepreensibilidade do pára-choque, olhou em seu relógio dourado e, com a mesma expressão contrariada, novamente entrou no carro. O semáforo voltou a fechar.

Cruzando a rua um carroceiro vinha cantando alto. Sem camisa, descalço, a calça rasgada na altura dos joelhos (uma bermuda customizada?), corria para dar velocidade à carroça que puxava, e depois elevava o corpo num salto e tirava os pés do chão. A carroça quase o fazia voar, o vento penteava seus cabelos e ele gritava “eeeeeeee”, sorrindo muito, ainda que carente de dentes; seu semblante me lembrou o de uma criança num balanço, excitada pela novidade. O seu exercício de

DINHEIRO NÃO TRAZ FELICIDADE?

6

19

Page 21: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

equilíbrio e a sensação de velocidade que a carroça lhe dava pareciam deliciosos.

Assim que o semáforo abriu e o alegre carroceiro-cantor cruzou voando à sua frente, o rapaz do carro partiu, também em alta velocidade e cantando

— os pneus.Não, não vou aqui cair no lugar comum e fazer a apologia da

pobreza, um clichê romântico, pois a miséria — a pobreza que fere a dignidade humana — pode ser qualquer coisa menos merecedora de elogios. Mas confesso que não pude deixar de imaginar a cena: o rapaz da bermuda customizada dentro do carrão, com ainda mais motivos para sorrir (ainda sem se importar com a carência de dentes), e o pobre homem de óculos escuros e relógio dourado puxando a carroça e descobrindo, finalmente, uma justificativa mais do que plausível para sua cara de poucos amigos.

20

Page 22: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Avenida dos Bandeirantes, São Paulo. Quem conhece sabe: um martírio, a qualquer hora do dia (e às vezes da noite). Caminho que leva ao Aeroporto de Congonhas e às duas estradas que ligam São Paulo ao litoral Sul, o que significa Santos e seu movimentadíssimo porto.

Também é a avenida que praticamente corta a zona sul, acessa a Marginal do Rio Pinheiros e interliga um sem número de bairros lotados de edifícios comerciais, cujas empresas que os ocupam se utilizam da agilidade das motocicletas para que documentos e objetos importantes cheguem ao seu destino com rapidez. A Vila Olímpia, numa das pontas daquela avenida, é a campeã das empresas de motoboys da cidade.

Assim, das quatro faixas da avenida, as duas da direita são praticamente exclusivas dos inúmeros caminhões de carga que por ali trafegam diariamente. Comecei a fazer a conta: imaginando humildemente que cada caminhão daqueles meça cerca de 10 metros, teremos, em mil metros, perto de 100 caminhões. Em duas fileiras, são 200. Levando-se em conta que a Avenida dos Bandeirantes tem 8,5 quilômetros de extensão... bem, é só multiplicar.

E, quanto aos motoqueiros, infelizmente a velocidade e a freqüência com que passam por ali impedem qualquer estimativa de quantificação.

Pois era nesse cenário que me encontrava às quatro da tarde, ainda muito longe do fatídico horário do rush, porém ele já estava dando o ar (poluído) de sua (des)graça. Estava praticamente parada na segunda faixa, ao lado da muralha de caminhões, e precisava ir para a primeira, aquela mais à esquerda. Mas não conseguia, pois uma enxurrada de

DEVAGAR SE VAI AO LONGE?

7

21

Page 23: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

motos com a buzina ligada fluía, sem diminuir a velocidade, entre as duas faixas. Quando finalmente as motos deram uma trégua e eu consegui pedir licença a um motorista simpático, entrei à esquerda.

Mas o trânsito, que já vinha muito devagar, parou repentinamente, e eu fiquei naquela posição incômoda e bastante vulnerável de sete oitavos do carro numa faixa e um rabicho na outra. Nisso as motos começaram a voltar, buzininhas estridentes à toda. Porém, felizmente, o carro da frente andou um pouco e eu consegui enfiar o meu inteiro no exíguo espaço que me coube, antes que a enxurrada de motos recomeçasse.

Só que o motoqueiro à frente desta segunda leva ficou inconformado: como este carro ousou cruzar nosso caminho? Como pode quase obstruir nossa “faixa exclusiva”? Para punir minha irreverência, deu um soco no meu retrovisor, entortando-o.

Por um segundo pus de lado meus tantos anos de yoga e, revoltada com a injustiça, enfiei a mão na buzina, num grito de protesto. Mas de nada adiantou, evidentemente, o que só fez com que me arrependesse da atitude. E continuei na toada. Estava há uma hora dentro daquele carro, e pelo andar (?) da carruagem, mais uma hora me aguardava.

Parada no meio do congestionamento, retrovisor direito com problemas visuais, sem música, sem poder falar com ninguém ao celular para não ser multada e com os vidros fechados para evitar assalto, fiquei pensando no ditado: devagar pode-se ir ao longe, sem dúvida, mas na cidade de São Paulo, na enorme maioria das vezes, ao longe só se vai devagar. MUITO devagar.

(A não ser, é claro, que se tenha uma motocicleta...)

22

Page 24: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Na loja de quadros fica difícil prestar atenção aos detalhes. São muitas cores, muitas formas, uma enormidade de interesses visuais. Mas algo se movendo no meio de tanto colorido estático chamou minha atenção: era um gato vira-latas, cinza e amarelo, com um olho torto. Na verdade, uma gata: chamava-se Tarsila.

E era afetuosa, Tarsila. Chegou de mansinho (como chegam todos os gatos) e foi-se esfregando em minha perna. Seu pelo macio era um convite ao carinho: ela subiu na parte superior de uma grande tela abstrata que estava no chão, encostada na parede, e dali passou a ganhar meu cafuné.

Tarsila fechava os olhos, o bom e o defeituoso (a sua pupila vertical, a do olho direito, não era exatamente vertical, mas inclinada para o lado esquerdo, como um quadro pendurado torto na parede) e ronronava de prazer enquanto eu acariciava seu pelo macio. Quando me afastei para olhar um dos quadros de longe, Tarsila, sem mais o que fazer, passou a afiar suas garras no plástico que protegia a tela, encurvando seu corpo e elevando o rabo.

Degas entrou nessa hora. Um lindo gato macho de olhos verdes com uma pelagem branca desmaiada. Chegou de mansinho (afinal, era um gato também) e ficou atrás de uma tela de flores estilizadas que se apoiava no chão. Tarsila chegou perto, rondou-o e depois se foi.

Um garoto que acompanhava os pais na loja encantou-se com ele, mas foi advertido: “cuidado, Degas morde!”. O menino, visivelmente decepcionado, teve que conter sua ternura. Olhou o gato de longe e por

CÃO QUE LADRA NÃO MORDE?

8

23

Page 25: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

ele foi olhado, até que o animal se cansou e seguiu Tarsila para dentro da loja.

Voltei ao local dois dias depois e, enquanto esperava o preenchimento de um formulário, Degas subiu sobre a mesa à qual eu estava sentada e ficou me orbitando. Ronronando baixo, esfregava seu pelo suave em meu braço. Hesitei na distribuição de carinho, afinal, Degas mordia, foi-me dito. Mas não me contive: como um gatinho assim carinhoso poderia morder? Então, passei a retribuir o toque, ao qual ele agradecia com um ronronar delicado e afetuoso.

Ficamos nesse idílio uns bons 10 minutos, nos acariciando, quando sem nenhum motivo e nem aviso prévio ele se virou abruptamente e mordeu minha mão. Soltei um grito, não de dor, pois o dentinho do felino (e sua fraca atuação) não foram suficientes para me machucar além de um quase imperceptível furo, que nem chegou a sangrar; mas gritei de susto. Fui pega à traição! Enquanto o acarinhava, no meio do cafuné, o traidor me mordeu... e pulou para longe em seguida, aparentemente satisfeito com sua atitude. Degas ficou escondido entre um pôster do Fred Astaire e outro da Ginger Rogers, com sua imagem duplicada por um grande espelho de molduras com pátina.

Bem mais tarde, conversando com um amigo, entendi tudo: o ditado está completamente correto. Se cão que ladra não morde, isso significa que cães que não ladram mordem. Ora, gatos não ladram, portanto...

24

Page 26: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Quem leu no meu perfil sabe, quem não leu saiba agora: sou arquiteta. Não é lá grande coisa, apenas uma profissão como outra qualquer — até o momento em que você se aventura a fazer sua própria casa. Aí a coisa adquire uma dimensão diferente: fico imaginando um advogado tentar fazer a vez da defesa em seu próprio julgamento, um médico se apalpar e ver o resultado de seus próprios exames, um psicólogo tentar aliviar seu próprio trauma. Não funciona, é melhor que um colega o faça.

Mas, em virtude das restrições orçamentárias em que nos encontrávamos, fui obrigada a projetar, administrar e fiscalizar a obra. Sozinha, claro. Desta forma, também em virtude da minha pouca experiência à época, a minha casa serviu de cobaia para que os erros que eu cometi nela não fossem cometidos nas próximas obras — e assim orgulho-me de, nas outras, ter cometido apenas erros absolutamente inéditos.

Como o engenheiro que calculou a estrutura, à época meu parceiro de trabalho, foi contratado por um valor compatível ao que eu estava ganhando, creio que não tenha se empenhado muito nos cálculos, e assim, além de “esquecer” de uma viga — que teve de ser construída acima do piso pronto, e hoje fica dentro do armário e serve como um utilíssimo apoio de sapatos — ele também “esqueceu” de um degrau à entrada, o que fez com que a escada ficasse um pouco íngreme. Mas nada que minha tia não pudesse subir em pouco menos de meia hora.

CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU?

9

25

Page 27: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Evidentemente, depois destes eventos, acabei ganhando um ex-parceiro de trabalho.

Os profissionais que contratei também foram um caso à parte. Tinha o seu João, o encanador. Gastei horas e mais horas fazendo o projeto da passagem da tubulação pelas paredes da casa, e assim que ficou pronto entreguei-o ao Cinderela (assim ele se auto-intitulou um dia, fazendo referência ao Fusca cor de abóbora que possuía). No dia seguinte, ao ir ver a obra, constatei que nenhum dos canos passava por onde o projeto determinava. Quando questionei Seu João, ele serenamente disse: “Calma, doutora, nóis sabe trabalhar”. Só me restou medir, redesenhar e tirar fotos do que foi executado para que, depois, ao tentar colocar um quadro na parede ou fixar com parafusos uma estante, não criasse também uma cachoeira artificial.

Tinha também Joãozinho, o eletricista. Este, pelo contrário, pecava pelo excesso de zelo. Pediu-me para comprar cabos de todas as cores imagináveis, pois queria usar uma cor para cada circuito da casa. E olhe que imaginou muitos! Sempre assobiando “Hey Jude”, Joãozinho fez o quadro de luz parecer o painel de comando de uma nave espacial de filme de ficção, tamanha a quantidade de disjuntores — todos, evidentemente, discriminados com sua letra impecável: “tomadas da sala”, “luz do corredor e do quarto da esquerda”... Porém tenho certeza que meu mundo particular não se acabará em fogo, pois curto-circuito aqui não terá vez. Já em água, quem sabe...

E Dija, o empreiteiro — um rapaz muito competente — tinha rompantes de arquiteto. Tentei passar a ele o que imaginava para a minha casa: o estilo rústico das casas típicas do interior entre as quais passei minha infância, na fazenda em que meu avô trabalhava. A cada explicação sobre os acabamentos — tijolos de demolição irregularmente assentados, argamassa apenas desempenada nas paredes, batentes fazendo as vezes de caixilho — ele punha a mão no meu ombro e dizia:

26

Page 28: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

“escuta, você é arquiteta, esta é a SUA casa — por que você não faz direito??”

Bem, apesar do sofrimento e do longo tempo que durou a obra, a casa ficou pronta — ou semipronta. Muitas coisas ficaram por terminar, em virtude do dinheiro ter terminado bem antes. E uma delas foi o alçapão que dá acesso ao forro da cobertura e ao telhado. Este acesso fica numa saleta onde colocamos a tevê, e para que o buraco não ficasse totalmente aberto, fechei-o provisoriamente com um pedaço de papelão, enquanto não tivesse dinheiro para fazer um alçapão decente.

Noite alta, todos já dormindo, ouvimos um barulho que nos assustou. Eu e meu filho saímos dos respectivos quartos e demos de cara com um lindo gato preto, grande, gordo e de pelo brilhante, andando atordoado pela casa. Havia entrado no forro através do telhado, pisado no fechamento de papelão e caído (provavelmente de pé) no chão da saleta. O pobre gato, assustadíssimo, corria de um lado a outro, querendo sair. Como não via outra opção e recusava nossos chamados, subiu na estante da tevê e voltou, pelo buraco, ao forro da casa, onde permaneceu miando até altas horas.

Acho que preciso me programar para mandar fazer o alçapão. Afinal, dez anos se passaram... Tudo bem que toda obra tenha lá seus "gatos", mas com este ditado eu não gostaria de ter que concordar, por motivos óbvios.

27

Page 29: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Desde que ouvi pela primeira vez alguém dizendo que “a ociosidade é a mãe de todos os vícios”, fiquei tentada a acreditar e, o que é pior, nunca me dar espaço para o nada fazer. Evidentemente, nos dias atuais, mesmo que eu queira um espaço minúsculo desses, é com muita dificuldade que o consigo, e sei que esse é um mal (ou um bem, de acordo com o ditado) que afeta a todos nós hoje em dia.

Mas a vivência, muito além da degradação física, tem lá suas vantagens. A vida me ensinou que não, que a ociosidade sadia é fonte de idéias novas e de recuperação mental. Domenico De Masi, sociólogo italiano, não só defende esta tese como desenvolveu-a de forma brilhante em seu livro “O ócio criativo”. Para ele, é necessário termos um tempo só nosso, no qual possamos fazer coisas que nos dão prazer e que abram nossas mentes para o novo. Ele ainda afirma que os tempos vindouros e o desenvolvimento da tecnologia da informação farão com que o ser humano tenha mais tempo livre, que será usado em benefício próprio. E que, em breve, as pessoas não farão tanta distinção assim entre trabalhar, estudar e se divertir: as coisas se misturarão e o homem, segundo sua promissora tese, será mais feliz e menos escravo de seu trabalho.

Espero que De Masi esteja certo. Mas já sei que minha professora de yoga também está: a cabeça vazia não é, de forma nenhuma, a oficina do diabo. Ela é a sala de estar de Deus. Porque apenas esvaziando por completo a nossa mente somos capazes de nos conectar com o divino, de ter consciência de nossa pequenez e, ao mesmo tempo, de nossa grandeza: isso se chama meditação. Diferentemente do senso comum, a

CABEÇA VAZIA, OFICINA DO DIABO?

10

28

Page 30: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

meditação não é o pensamento insistente num determinado assunto, que nos leva a tomar decisões; meditação é pensar em nada, absolutamente nada — coisa dificílima para nós, ocidentais, mais ainda para os urbanos e ainda mais para os ansiosos. Meditar é conseguir desconectar nossas mentes e simplesmente ouvir a respiração ou o batimento cardíaco, sem pensar em nenhum instante na dívida do cartão de crédito, no cesto de roupas sujas ou na vizinha gostosa — apenas sentir o corpo como um todo, e não partes (salientes) dele.

Assim, na próxima vez que alguém lhe disser algo do tipo “você é um cabeça oca”, devolva um belo sorriso de agradecimento: finalmente alguém reconheceu que você é um meditabundo profissional! E se quiser, responda com classe: “Na minha cabeça oca cabem muitas idéias novas. Já na sua cabeça superpovoada...”

29

Page 31: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Cem por cento das mulheres acham que são ou já foram traídas por seus namorados, noivos ou maridos algum dia. Exagero típico feminino! Está provado estatisticamente que apenas 99,99% dos homens traem as mulheres. Portanto, existe uma confortável margem de 0,01% na qual seu homem pode estar. Assim, não há motivo para preocupações.

Mas digamos que você, mulher, é uma dessas exageradas. Existem duas atitudes que podem ser tomadas: uma é apenas relaxar, pois se a realidade for mesmo essa, não há o que fazer. Estamos todas no mesmo barco, e essa é a natureza masculina, com a qual devemos apenas nos conformar e seguir adiante como se as protuberâncias que se avolumam em nossa cabeça fossem apenas um penteado novo. E, pensando bem, se tantos homens traem, deve ter uma porcentagem grande de mulheres que também o fazem... Mas se você é: 1. daquelas fiéis e inconformadas, 2. das que buscam comprovação científica, ou 3. apenas das curiosas, vai procurar. E como diz o ditado: quem procura, acha.

Certo, você achou. Não vou falar de sutilezas que a deixam ainda mais na dúvida, como um leve perfume diferente na sua camisa, um email engraçadinho mandado só para ele com um beijo ou o fato dele nem sempre atender ao celular quando está com você depois de checar o número no visor; mas de evidências inegáveis — por exemplo, uma foto dele abraçado com outra mulher na entrada de uma cidade romântica à qual vocês estão programando ir há tempos, mas ainda não foram. E bem naquele fim de semana em que ele disse que ia visitar uma tia doente em Nhocuné da Serra, e que não queria lhe perturbar com visitas familiares

QUEM PROCURA, ACHA?

11

30

Page 32: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

protocolares, assim seria melhor que ele fosse sozinho. Iria num pé, voltaria no outro. Ele só não comentou que o pé se afundaria na jaca pelo caminho.

Começa a primeira fase, a do tremor. Seu corpo treme involuntariamente, você olha aquela foto inúmeras vezes como se para se certificar de que não é uma montagem em Photoshop. Se você é das impulsivas ou estiver de TPM(2) neste dia, vai pegar o telefone e imediatamente ligar para o pobre coitado, não importando horário, e descascar o abacaxi aos berros, pondo fim na relação sem dar-lhe chance de explicação. Mas, para dar continuidade e sentido ao texto, vamos falar das que conseguem respirar antes disso.

Assim que o tremor passa, segue-se a fase da auto-ilusão. Aquela mulher deve ser a neta mais nova da irmã da tia doente de Nhocuné da Serra. Ou a filha de algum primo que ele não via há tempos. O lugar não é aquele que você pensa, deve ser Nhocuné mesmo, afinal você não conhece a tal cidade...

Mas quando a ficha cai, segue-se a fase do questionamento. Por quê? E, imediatamente ligada a esta fase, a da comparação: será que é porque é mais nova, com tudo em cima?... ou porque é mais velha, mais experiente?... Olha melhor, e se afunda: é mais bonita! É mais magra!! É mais jovem!!! Sua auto estima despenca e fica mortalmente ferida. E vem a fase posterior, que é a da tristeza profunda.

Esta é a fase negra da coisa toda. Choro compulsivo primeiro, chorinho constante depois. Não consegue dormir, não consegue trabalhar, não consegue estudar, não consegue comer. Bem, pelo menos nem tudo é tão terrível assim, porque em uma semana você perde aqueles insistentes dois quilos extras. E sem ginástica.

Então as amigas entram em cena — na verdade já entraram desde o primeiro minuto, mas só agora você consegue ouvi-las. Seguem-se as frases clássicas, que as amigas, na melhor das intenções, costumam

31

Page 33: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

dizer: ele foi um idiota, não sabe o que está perdendo, você merece coisa melhor, ela não chega aos seus pés, você dá de dez a zero nessa baranga gorda... A história é contada e recontada tantas vezes, e com tantos detalhes, que você passa a achá-la natural, e paga com prazer a sua astronômica conta de telefone no final do mês.

Agora, com a história já assimilada, cinco quilos mais magra e com a auto estima levantada pelas santas amigas, você se olha no espelho e percebe mesmo que é melhor do que a outra. Vai ao cabeleireiro, à manicure, às compras; ou, se o dinheiro não dá, apenas toma banhos mais demorados e compra um batom novo. Segundo as pesquisas, batom novo é um verdadeiro guindaste para a moral feminina. Sai às ruas e começa a prestar atenção à sua volta... e às cabeças masculinas que se voltam à sua passagem. E de repente a vida começa a ressurgir, até que você percebe que pode se apaixonar de novo por outra pessoa, ou até mesmo aceitar seu amado traidor de volta!

Mas aqui fica um alerta: já que é da natureza masculina contabilizar conquistas, sem necessariamente envolver amor verdadeiro, pare de procurar. Por dois motivos: primeiro porque, quem procura, realmente, acha. E segundo porque, mesmo que você não ache, isso não garante a fidelidade do seu amado. A não ser que ele seja um dos 0,01%. Um daqueles protegidos pelo Ibama, que fica literalmente (e nunca em sentido figurado) pulando de galho em galho com uns poucos micos-leões dourados.

(2) Nota da Editora: TPM - Tensão Pré-Menstrual.

32

Page 34: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Numa visita extremamente gratificante à página da excelente Miriam Olivera, após me deliciar com sua crônica-resenha “A Viagem do Elefante”, soube que o autor José Saramago, Nobel de Literatura de 1998, estaria em São Paulo na noite da quinta-feira seguinte, ou seja, em exatamente uma semana, autografando justamente o livro sobre o qual a Miriam havia escrito. Imediatamente, após agradecê-la pela preciosa dica, fui me informar onde seria o evento.

Pela internet descobri que a noite de autógrafos seria no SESC Pinheiros, perto de minha casa (em se tratando de São Paulo). E descobri também que seriam distribuídos ingressos gratuitos para o evento a partir das dez horas da manhã da sexta-feira, o dia seguinte às minhas descobertas. Feliz e quase incrédula com a possibilidade concreta de apertar a mão do autor do maravilhoso “O Ano da Morte de Ricardo Reis” — que já li três vezes — e de obter seu livro novo enfeitado com seu cobiçado autógrafo, resolvi arriscar e ajustei minha agenda para passar no SESC Pinheiros exatamente às dez da manhã do dia seguinte, para garantir meus dois ingressos. Quem levaria comigo era um detalhe no qual pensaria depois, mas tinha certeza de que não faltariam candidatos.

Sexta-feira, dez horas, ligeiramente atrasada. Peguei meu carro e rumei para Pinheiros, empolgada e ansiosa. O que não contava era com a reforma das calçadas da região. Um trânsito ainda mais infernal, ainda mais incomum, me fez levar meia hora para chegar ao local, ao invés dos dez minutos que levaria caso São Paulo estivesse de bom humor. Assim que apontei com a frente do carro no estacionamento do SESC, lembrei-

QUEM NÃO ARRISCA, NÃO PETISCA?

12

33

Page 35: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

me, estarrecida, que não tinha nenhum dinheiro em minha inutilmente enorme bolsa... portanto, não teria os cinco reais para pagar o estacionamento na saída!

Mais uma vez amaldiçoei minha natureza absolutamente desligada das questões práticas. Cinco reais! Nem juntando as moedinhas espalhadas pela bolsa. A alternativa era parar na rua mesmo, e assim dei meia volta e fui buscar meu lugar ao sol. E que sol! Iria assar como frango de padaria na volta, mas não me incomodei. E nem me importei com o terrorismo que meus amigos fazem sobre os perigos de se estacionar o carro na rua, ainda mais na região de Pinheiros: meu caro tem seguro, se o levassem eu conseguiria outro. Mas ingresso para apertar a mão do Saramago, não.

Meia hora depois (trânsito infernal para sair da rua Paes Leme, interdição de parte da rua Fernão Dias, caminhões invadindo o bairro, nenhuma vaga próxima...), ou seja, às 11 horas da manhã, consegui uma vaga a cerca de 800 metros do meu destino. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem dinheiro — mas feliz — , finalmente subi as escadas do moderno edifício do SESC Pinheiros.

Para constatar, por meio de um cartaz escrito à mão, que os ingressos para a noite de autógrafos de José Saramago estavam esgotados. Dois homens conversavam com o atendente, cujo diálogo peguei no meio:

— A fila às dez horas virava o quarteirão... — Mas os ingressos não seriam distribuídos apenas nesta unidade? — Não, nas outras unidades também.Intrometi-me:— Esgotados, então?— Sim, respondeu-me o atendente. Os ingressos se esgotaram em

três minutos.Três minutos! E eu, mais de uma hora depois, ainda acreditando...

34

Page 36: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Confesso que minha decepção não foi imensa, pois bem lá no fundo, em algum momento, achei mesmo que estar frente a frente com José Saramago era muita areia para meu caminhãozinho. Muita árvore para meu vasinho. Uma lista telefônica inteira para minha agendinha de bolso.

Arrisquei, mas não petisquei. Porém a viagem não foi inteiramente perdida: à saída, ganhei uma amostra grátis de cera depilatória. Já teria o que fazer na próxima quinta-feira à noite!

35

Page 37: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Descobri uma nova técnica para legitimar atitudes que, ditas assim de supetão, causariam impacto negativo. Dei à técnica o nome de “Imposição Coparticipativa” — sem hífen, para felicidade da nova ortografia e horror de meus olhos ainda desacostumados ao fim do simpático tracinho. Mas pode ser chamada também de "Perguntar não ofende".

É muito simples: digamos que você tem que dar a notícia de uma decisão que tomou e que, você já sabe, irá causar uma surpresa negativa no seu interlocutor. Ao invés de simplesmente chegar e contar, arriscando-se a ouvir impropérios, você convoca seu companheiro de diálogo a ajudá-lo na decisão — que só você sabe que já está tomada há tempos. E usa uma pergunta que abre portas: “Posso te pedir uma opinião?”

Vejamos um exemplo banal. Digamos que você é uma mãe ou um pai separado que está namorando, mas que sabe que os filhos adolescentes são resistentes à idéia. Ao invés de chegar e dizer simplesmente “estou saindo com tal pessoa”, você chega de mansinho e diz:

— Meu filho (a), posso te pedir uma opinião? Seguinte: tenho me sentido muito só ultimamente... meio triste, sabe... então, o que você acha que eu devo fazer? Você acha que eu tenho direito de recomeçar minha vida ao lado de alguém legal, para voltar a ser feliz e de bem com a vida... ou você acha que eu devo suportar a solidão, para moldar meu caráter e me tornar uma pessoa mais rígida e séria? Seja sincero(a) comigo, está bem?

PERGUNTAR OFENDE?

13

36

Page 38: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Os adolescentes costumam ser do contra, mas com tais argumentos fica difícil não se comover. Se eles disserem que, é claro, você deve recomeçar — o que parece o mais provável — fica fácil. Alguns dias depois, você apresenta a outra pessoa e ainda dá uma polida na autoestima do (ou da) jovem, acrescentando: “Filho (a), segui sua sugestão, você é mesmo sábio(a)...”, Mas, se eles realmente forem casca de ferida e disserem que preferem vê-lo só, mesmo assim sabe-se que você pediu apenas uma opinião e que não será obrigatório segui-la. Você só perguntou, e perguntar não ofende. E, na pior das hipóteses, já fez os filhos perceberem que você anda olhando para os lados...

Seguem outros exemplos contundentes de Imposição Coparticipativa, neste caso incluídos na subcategoria Convencimentos Sugestivos:

O garoto que quer a chave do carro diz para o pai:— Você é um cara experiente, vivido... queria muito te pedir uma

opinião, posso? Você sempre diz que a vida passa muito rápido. Então, você acha que eu devo ir de carro à casa da minha namorada, para abreviar o tempo de chegada, aproveitá-lo melhor na companhia dela e inclusive voltar mais cedo para casa, ou que devo ir de ônibus e ficar esperando meia hora no ponto e depois encostado na janelinha suja nas duas horas de percurso — na verdade quatro, ida e volta — durante as quais posso ser assaltado?

A mulher que não está muito a fim de cozinhar diz para o marido:— Posso te pedir uma opinião, amor? Você, que entende bastante de

saúde e zela pelo nosso bem estar, acha que devemos pedir uma pizza, já que molho de tomate contém grandes quantidades de licopeno, que previne e evita o câncer de próstata, ou devo fazer bife à milanesa, mesmo sabendo que a carne vermelha tem muito colesterol e as frituras ajudam a entupir as artérias, possibilitando a ocorrência de acidente vascular??

37

Page 39: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Talvez a técnica já exista nos meios publicitários, psicológicos ou de relações humanas, provavelmente com outro nome; mas de qualquer forma, por não ser versada em nenhum destes temas, eu a descobri por mim mesma e isso me faz meio dona dela. Dona o suficiente para batizá-la. Pois, como diz um outro ditado, achado não é roubado.

38

Page 40: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Meu amigo Victor me contou que emagreceu oito quilos. Não que precisasse, mas creio que deve ter ficado muito bem. Digo ‘creio’ porque ele mora longe, a quase dois mil quilômetros do alcance de minha visão, o que infelizmente não me permite conferir seu novo visual.

Antes que lhe perguntasse como conseguiu tal proeza (que eu, com meus três quilinhos extras, não consigo), ele me contou: estava correndo diariamente. De seis a oito quilômetros por dia, uma verdadeira façanha inimaginável para mim e minha preguiça crônica, que mais do que academia duas vezes por semana, às vezes empurrada, não vou. Admirei sua força de vontade e parabenizei-o por ela, ao que ele me comentou: não é força de vontade, é a força da necessidade!

Para propositalmente provocá-lo — pois sei de sua inteligência e bom humor, e adoro tirar partido disso — perguntei-lhe: mas correndo de quê? Ou melhor, de quem? Imediatamente, ele me listou uma divertida seqüência de possíveis perseguidores. Sugeri que talvez fosse melhor que corrêssemos atrás de novos clientes, já que tanto ele quanto eu dependemos disso para sobreviver. Ele respondeu que sim, seria um ótimo exercício, pois correríamos eternamente em círculos... Porém, depois dessa engraçada, perspicaz e agridoce conclusão, a metáfora que ele usou a seguir me fez pensar, a ponto de tentar exercitar a escrita sobre o tema. Disse-me que sua corrida era uma perseguição e uma fuga ao mesmo tempo: correndo atrás de um prato de comida e fugindo dos canibais!...

SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO COME?

14

39

Page 41: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

À parte as risadas que dei, achei que, no fundo, nossa vida muitas vezes se resume a isso, a busca da sobrevivência e a fuga dos males que invariavelmente nos perseguem. E só. Nem sempre sobra espaço para as alegrias leves, o lazer descontraído, os prazeres inesperados ou os mimos para o espírito. A sobrevivência material nos toma espaço e tempo demais, concluí tristemente. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come... tem que ser sempre assim?

Talvez não. Quem sabe precisássemos descobrir que tipo de bicho nos persegue com tanto afinco... se for algum assemelhado à raça canina, poderíamos andar com uns biscoitinhos de cachorro no bolso. Um felino gigantesco, talvez? Duvido que algumas latas de atum não possam desviar-lhe a atenção por alguns momentos. Até um canibal pode desenvolver o gosto por outras carnes, se a ele for dado experimentá-las. Pode ser, ainda, que os bichos que nos perseguem sejam apenas fruto de nossa imaginação: mais ou menos horríveis, assustadores ou perigosos de acordo com nossa visão de mundo. Enfim, vale tudo para tentar minimizar essa situação de extrema tensão que a vida, muitas vezes, nos impõe.

Nessa corrida sem fim que, cansativamente, nos leva à sobrevivência, deve haver uma forma de aglutinar tudo sem sofrimento. Quem sabe simplesmente parar... Deixar que o canibal alcance o prato de comida e sair de fininho, para tentar ir descolar, junto a uma Eva contemporânea, uma pouco calórica maçã. Assim não haverá mais necessidade de correr, ao menos não para emagrecer.

40

Page 42: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Kevin Johansen é um cantor e compositor que descobri recentemente. Nascido no Alaska, filho de pai americano e mãe argentina, foi criado em nosso país vizinho desde os 12 anos, e suas músicas são irreverentes, divertidas e surpreendentes. Uma que me chamou atenção se chama “Desde que te perdi”, na qual ele fala da perda de um amor — e também, ironicamente, dos inúmeros ganhos advindos de sua recém conquistada liberdade...

Jesus Cristo perdeu sua vida mas ganhou bilhões de adeptos. Napoleão perdeu Waterloo mas ganhou a Ilha de Santa Helena só para si. Sansão perdeu sua força mas ganhou um corte de cabelo moderninho. E uma garotinha de sete anos, num programa de televisão extremamente popular, recentemente ganhou fama nacional — porém, além de ter perdido parte da infância, provavelmente perdeu muitas outras coisas que só o futuro poderá dizer.

Apesar de termos perdido o pião e a amarelinha, ganhamos os videogames. Perdemos o café torrado e moído na hora mas ganhamos o solúvel. Perdemos o hábito de escrever cartas de próprio punho, mas ganhamos agilidade para contatar as pessoas queridas que estão distantes. Perdemos totalmente nossa privacidade, mas ganhamos... bem, algo devemos ter ganho; talvez precise pensar um pouco mais sobre isso.

Perdas e ganhos são mecanismos quase naturais com os quais nos defrontamos diariamente. Assim, melhor para nós acreditarmos que, como reza a física, dois corpos (duas coisas, duas situações, duas

VÃO-SE OS ANÉIS, FICAM OS DEDOS?

15

41

Page 43: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

vivências, duas pessoas) não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Se entra água no copo, o ar sai — e vice-versa. Paralelamente, devemos fazer a redentora associação, para que não nos tornemos amargos quando só as perdas aparecerem: não podemos apenas receber, devemos aprender a abrir mão também, para que os presentes ocupem seu devido espaço.

Como o compositor ianque-argentino que ando ouvindo, Lulu Santos também cantou seus ganhos e perdas, sugerindo que ninguém precisa saber deles. Já Elis Regina nos advertiu que nem sempre ganhamos e nem sempre perdemos, mas aprendemos a jogar. E assim vamos somando às nossas experiências as experiências alheias, em especial esta, que Lavoisier já havia concluído e eu altero em livre interpretação: na vida, de fato, nada se ganha ou se perde — tudo se transforma. Pois as perdas sempre nos levam a ganhos, sejam eles uma inevitável adaptação ou um aprendizado à revelia. O que não podemos perder jamais é nosso olhar de vencedor sobre todas as coisas — as que ficam, as que vão, e até as que insistem em não se mover.

Nota da autora: este texto faz parte do Exercício Criativo Perdas e Ganhos. Saiba mais. Conheça os outros textos: http://www.encantodasletras.50webs.com/perdas_ganhos.htm

42

Page 44: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Sei que sempre pisamos em terreno minado ao abordarmos assuntos polêmicos, como o é este da fé — polêmico por ser tão individual, e baseado não necessariamente em verdades. Mas experiências recentes me fizeram ver alguns lados dela de que até então não me havia apercebido.

O fato é que acreditamos sempre naquilo em que queremos acreditar, quando não há comprovação de fatos. E isto implica em utilizarmos nossas próprias experiências como óculos para enxergar e escolher aquilo em que queremos acreditar. É então que entra toda a individualidade da fé: normalmente acreditamos naquilo que se coordena com a forma como agimos ou pensamos, ou então que nos faça tomar uma atitude conveniente perante a situação, independente da inverossimilhança do assunto ou de quem nos tenta convencer do que quer que seja. Nessa hora, nem sequer damos ouvidos a essas pessoas, por mais honestas que possam ser: o que importa é em que é mais conveniente acreditar.

Este é o lado negro da fé. Nesse sentido, a fé não apenas remove montanhas, mas pode inclusive destruí-las. Esta fé, que chamarei de crença conveniente, tem o poder de magoar corações, atrapalhar planos, mudar o rumo de vidas. Por isso acho que escolhas baseadas em crenças só são válidas para construir, edificar, elevar; assim, o fanático que amarra bombas em seu corpo crendo apenas em sua própria salvação e não se incomodando com as outras inúmeras vidas que vai destruir, na minha opinião escolheu a crença errada, ou levou a sua até o ponto

A FÉ REMOVE MONTANHAS?

16

43

Page 45: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

máximo do egoísmo, que não combina com a fé — pois ela, para mim, tem um caráter religioso.

Recentemente me foi dado ouvir um trecho do Evangelho, acho que de Marcos, e só agora me lembro dele para fazer a associação com minhas recentes experiências acerca da fé. Conta uma passagem em que Cristo, certa feita, foi pregar e fazer seus milagres no próprio local em que cresceu. Todos ali o conheciam, e conheciam sua família, e por isso não conseguiam acreditar que ele tivesse algum poder especial. Era uma pessoa tão comum! ‘De onde vem a sabedoria dele?’, perguntavam. Então Marcos diz que Cristo “... não pôde fazer ali nenhum milagre. Curou apenas alguns doentes, impondo-lhes as mãos. E ficou admirado com a falta de fé deles.” Muito provavelmente tenha advindo daí o outro ditado: santo de casa não faz milagre...

A lição que tiro disto é que não basta que alguém seja verdadeiro em seus princípios ou propósitos: é ainda mais necessário que seja acreditado. Sem a fé, não há milagres possíveis.

44

Page 46: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

A partir do momento que descobri que a frustração é uma das causas de nossas tristezas, ficou muito mais fácil eliminá-la do cotidiano: basta nada esperar de quem quer que seja e tentar não fazer planos — viver um dia após o outro, não levar gato por lebre e ir devagar com o andor, pois se presume que todo santo, nesse caso, é de barro. É, parece fácil, mas não é tanto assim.

Decepções são comuns, mas não deveriam. Primeiro porque não temos o direito de esperar atitudes ou performances das pessoas, e nem caminhos determinados de coisa alguma. Se aceitamos o fato de que a vida é o caos, como podemos querer que tudo corra sobre os trilhos, sem desvios de rota? Deveríamos nos lembrar sempre que o imponderável impera em todos os setores de nossas vidas, e assim, sem expectativas, não sofreríamos nunca as tão destrutivas decepções.

Porém é fato consagrado que planejar a viagem faz parte da grande emoção de viajar. Assim como o cheiro bom do pão assando no forno nos antecipa delícias, todos nós geramos expectativas, ainda que ocultas, sobre pessoas e acontecimentos. Quem é que vai imaginar que o lugar que escolhemos para nossas férias é infestado por mosquitos, que o pão queimará, ou que a pessoa por quem esperamos por uma eternidade não mais virá? Impossível não fazer associações imediatas entre as delícias anunciadas e o prazer que elas nos proporcionarão. E quando as coisas não acontecem como esperamos (ou como desejamos), os acontecimentos tomam rumos inesperados ou as pessoas não são

QUANTO MAIOR A ALTURA, MAIOR O TOMBO?

17

45

Page 47: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

exatamente como seu invólucro (externo ou interno) nos fazem crer que seriam... então, sofremos.

Temos, assim, duas escolhas com relação à altura em que nos colocaremos para a fruição da expectativa: ou subimos apenas até o terceiro degrauzinho, abrindo mão da adrenalina e da bela visão (ainda que onírica) que teríamos se fossemos ao topo da escada, mas evitando uma queda que poderia nos escangalhar; ou então escalamos a montanha até seu cume e rezamos pedindo que lá em cima o ar não seja rarefeito para que não tenhamos tonturas.

Porém é bom lembrar: muitas vezes, abaixo do sopé da montanha ainda existe um abismo... nesse caso, meus amigos, se houver uma queda, ela será duplicada, em altura e em intensidade! E não restará uma costela inteira, nem pra fazer uma Evinha anã.

46

Page 48: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Diariamente nos indignamos com a impunidade que grassa na política, vendo com mais freqüência do que seria razoável aqueles figurões com a ficha suja até a tampa sempre se saindo bem — aliás, infinitamente melhor do que a grande maioria trabalhadora que paga seus impostos e vive com grandes esforços. E então pensamos: onde está a justiça? Onde está a tempestade que esses semeadores de vento tão insistentes deveriam colher?

Em nossa vida privada, o cenário se repete. Muitas vezes semeamos amor, carinho, compreensão, tolerância, e nem sempre colhemos seus frutos. Ou então, ao contrário, alguns vivem semeando vento e colhendo belos dias de sol... Novamente nos perguntamos: qual será o paradeiro da justiça?

Será que está apenas acima das nuvens?Se quem semeasse vento colhesse sempre tempestades, a justiça se

faria visível, mas não é o que acontece; ao menos, não na totalidade das vezes. E certas exceções nos deixam profundamente desanimados, porque não ver o resultado da colheita chega a nos fazer querer desistir de plantar. Nós, agricultores amadores que nada entendemos dos fenômenos da natureza, apenas esperamos com naturalidade os frutos de nossas sementes...

Porém um amigo muito querido, a quem confidenciei estes devaneios, sabiamente me disse que também não é o ato de semear o causador de nossos insucessos, mas muitas vezes o solo em que depositamos nossas sementes. Não adianta semear, por exemplo, “uvas

QUEM SEMEIA VENTO, COLHE TEM-PESTADE?

18

47

Page 49: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

num solo onde só dá soja”, ou brisas mornas de primavera num inverno ártico. Assim, talvez seja melhor escolher bem onde depositar nossas esperanças, para que possamos ter um retorno compatível. Ou, melhor ainda: segundo ele, continuar semeando coisas boas, independentemente do resultado. Se calhar de caírem num solo propício, já terá valido a pena.

Quem semeia vento nem sempre colhe tempestade, assim como quem semeia luz nem sempre colhe um belo arco-íris. Estamos sujeitos aos caprichos dos fenômenos da natureza, principalmente da natureza humana, e às insondáveis variações de pressão, umidade e temperatura de almas diversas. O clima, sem dúvida, só pode ser imprevisível.

Nota da autora: este texto faz parte do Exercício Criativo - Fenômenos da Natureza. Saiba mais, conheça os outros textos: http://encantodasletras.50webs.com/fenomenos.htm

48

Page 50: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Todo mundo tem um ídolo, ou até mais que um. Para mim, ídolo é aquela pessoa que teve condutas durante sua vida que me dizem algo, que fazem sentido, que me servem de inspiração — e que eu me sentiria feliz em seguir. Talvez por isso eu tenha tão poucos ídolos... na verdade consigo me lembrar de apenas um: Gandhi.

Verdade e não violência, dois princípios de sua conduta de vida que procuro seguir à risca. Quando me envolvi com a yoga, estes valores foram corroborados e assimilados, e assim, numa tarde de chuva daquelas que só servem mesmo para pensar, lembrei-me do ditado: quando um não quer, dois não brigam! E foi nesse dia que decidi: ninguém vai conseguir brigar comigo.

E assim tem sido. Não brigo, porque nunca quero. Claro que há algumas exceções — gente insistente, obstinada... Porém o fato é que, quando me zango, não me zango. Às vezes choro, emudeço, quase sempre relevo, dou de ombros, sorrio, no máximo ignoro. Mas não me zango.

Porém...A carne é fraca, meu Deus! Às vezes tenho vontade de me zangar

verdadeiramente. Mandar quem irrita, quem desrespeita, quem ignora, quem comete injustiças, para a ponte que partiu. Dar coices com minha metade cavalo e flechar com minha metade arqueiro, sob o calor de meu sangue latino. Mandar tomar caju sem gelo. Puxar imaginárias facas, navalhas, canivetes, peixeiras, adagas. Dar um croque, dar piti, enforcar num pé de couve. Ter ataques de histeria, atirar pedras, jogar na lama. Rodar a baiana, subir nas tamancas. Berrar, chorar, esbravejar, dizer

QUANDO UM NÃO QUER, DOIS NÃO BRIGAM?

19

49

Page 51: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

todos os palavrões que conheço e outros tantos inventados. Chutar as paredes, arrancar os cabelos, gritar até que a garganta doa. Parecer uma louca para depois me sentir curada...

Mas não me zango. Às vezes choro, emudeço, quase sempre relevo, dou de ombros, sorrio, no máximo ignoro. Mas não me zango.

E não brigo, porque nunca quero.

50

Page 52: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

Aprendizado. Vejo-o como sendo uma faculdade que pode ser adquirida de duas formas distintas: pelo interesse ou pela experiência. Acredito que apenas a primeira forma envolva consciência e racionalidade, pois a última é a mais primitiva e básica de todas, por meio da qual todos os animais (incluindo-se os pensantes) amadurecem e se tornam aptos a sobreviver. É com ela que os bichos são adestrados e os seres humanos, formados; e as cicatrizes, reais ou metafóricas, impressas.

As cicatrizes reais acabam sendo uma marca registrada de nossa vida, desde o indicativo de uma infância alegre e agitada até a lembrança de violências traumáticas. É como se nossa pele fosse um livro (em braile?), com capítulos variados: divertidos, tensos, cheios de suspense e aventura.

Mas cicatrizes nem sempre representam uma forma de lembrança que evite que experiências desagradáveis se repitam. Um parto doloroso não indica que uma mãe não terá mais filhos, um acidente de carro não implica que o motorista passe a andar apenas de ônibus, a violência nem sempre embaça ou anula a vontade de viver. Ficam as lembranças dos danos, mas as vantagens anteriores a eles acabam por se sobrepujar, por serem maiores.

Quanto às metafóricas, essas são cicatrizes humanas, absolutamente individuais e invisíveis, pois que impressas em nossa alma... e a alma, que também é um livro (sempre inédito), da mesma forma tem os seus capítulos, quase sempre em número bem maior que o livro-pele. Pois há

GATO ESCALDADO TEM MEDO DE ÁGUA FRIA?

20

51

Page 53: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

aqueles que jamais se feriram fisicamente, o que não significa, em absoluto, que não tenham vivido: apenas guardam para si as tantas aventuras de sua biografia.

Os tais gatos, que um dia se queimaram com água quente, associam a água fria à sua desagradável e dolorosa experiência por não conseguirem perceber que a fumaça que a água quente exala é um indicativo do calor, e apenas essa é a água perigosa. A nossa facilidade em perceber isto nos diferencia dos gatos, porém nossa complexidade reside em dominar as paixões para que o aprendizado pela experiência surta seu efeito. E para não agirmos como os gatos, temos que ter em mente que cada dia, cada pessoa, cada experiência que passa por nós é um balde cheio de água: uns tem fumaça, outros não. Claro que, para piorar, os que não têm fumaça podem eventualmente estar lotados de pedras de gelo, mas... fazer o quê?

Quem sabe possamos dar às cicatrizes metafóricas, aquelas da alma, uma hierarquia, para que nos levem a algum tipo de atitude posterior que possa ser nomeada de aprendizado. Poderíamos chamar as cicatrizes mais leves de “cicatristes”: algumas decepções, algumas injustiças, algum transtorno, algum dano reparável que nos tenha feito pensar e passar a evitar certas condutas, pessoas ou atitudes, mas que não têm o poder de nos fazer encolher num canto e deixar de viver... Porém há as “cicatrozes”: estas, pela profundidade e violência com que foram entalhadas, podem de fato nos levar a atitudes extremas, ao medo e à paralisia. E elas, principalmente se acompanhadas das físicas, são perigosas e requerem auxílio, para que a água fria não se torne, de repente, um vilão que nos transforme em gatos escaldados. Gatos que, por evitar toda e qualquer água, podem morrer de sede.

Nota da autora: este texto faz parte do Exercício Criativo - Cicatrizes. Saiba mais, conheça os outros textos: http://www.encantodasletras.xpg.com.br/cicatrizes.htm

52

Page 54: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

De grão em grão... Sim, se guardarmos uma moeda por dia, no final de algumas décadas teremos uma gorda poupança. Diminuindo um cigarro por dia, ao cabo de algumas semanas teremos deixado de fumar. E quando iniciamos a dieta e a ginástica, há um ano, jamais imaginávamos que fôssemos mesmo emagrecer, e olha só...

O longo caminho se inicia com um primeiro passo. E passo a passo chegaremos lá. É como o aprendizado de uma língua estrangeira: a jornada é vagarosa mas, com empenho e dedicação, podemos vir a falar e compreender bem outro idioma.

Mas o que dizer de ganhar na loteria, ficando milionário de um minuto para o outro? Os adesivos incríveis que injetam nicotina nos pobres viciados que, em alguns dias, deixam de fumar? E as dietas desintoxicantes, os suplementos alimentares e outros milagres correlatos que nos mostram o resultado ali mesmo, no dia a dia do espelho?

O longo caminho pode ser encurtado com um avião. Sem passos, a não ser a estafante jornada dentro dos aeroportos...

Não. Nenhum desenvolvimento natural é abrupto, brusco, repentino. A natureza, neste caso, tem seus ritmos imutáveis e o ser humano, ainda que bem pouco de natural lhe reste, deve aprender a respeitar e a tirar deles lições para sua vida. É na cadência da luta, lenta e constante, que temos a oportunidade de nos preparar, observando todas as nuances e delicadezas desse passo-a-passo, para as mudanças repentinas às quais, vez por outra, essa mesma vida nos atira...

DE GRÃO EM GRÃO, A GALINHA EN-CHE O PAPO?

21

53

Page 55: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

(Mas, cá entre nós: que moeda, que nada! Ganhar na loteria e ficar ziliardário do dia para a noite é tudo de bom. E, olha: logo, logo vão inventar um chip que, implantado na nossa cachola, nos tornará falantes de quantas línguas estrangeiras quisermos — e com a fluência de um nativo. Grão em grão? Só se for pipoca!)

Nota da autora: este texto faz parte do Exercício Criativo "De grão em grão". Saiba mais e conheça os outros textos acessando: http://encantodasletras.50webs.com/degraoemgrao.htm

54

Page 56: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

...Mas, para quem ama escrever — o que equivale ao falante cuja boca se locupleta de insetos voadores — é praxe viver deixando opiniões, informações e invencionices onde quer que exista um meio: papel, tela, o que mais puder ser lido. Em meus primórdios, era o papel de pão, única mídia possível em épocas de consumismo controlado por necessidade (e por escassez mesmo). Hoje, e-books!

Como tantas pessoas de minha geração — a do papel de pão —, fui criada à base de ditados populares, que sempre causaram em mim uma impressão muito forte; principalmente porque vinham, em sua maioria, da boca de entidades que respeitávamos como deuses: mãe, pai e avós. E portanto tratavam-se de verdades absolutas, inquestionáveis. Sabia, por exemplo, que não tinha cabeça, mas por sorte tinha pernas, praticamente incansáveis. Que muito riso equivalia a pouco siso — de fato, provavelmente devido à minha constante alegria, dois destes meus dentes associados à maturidade jamais nasceram. E que Deus ajudava quem cedo madrugava, ou seja, só me restava a resignação por ter que seguir sem ajuda divina...

Memórias à parte, minha admiração por essas verdades ancestrais é tão grande que me ocorreu questioná-las, associando-as ao cotidiano do século vinte e um. E eis que Helena Frenzel, esta entusiasta da literatura acessível, com sua imensa dedicação elaborou este presente, a edição da série “Ditados na Berlinda” em e-book. Neste mundo pequenino de meu Deus, Helena, lá do outro lado do Atlântico, enfrentando os frios

EM BOCA FECHADA NÃO ENTRA MOS-QUITO...

22

55

Page 57: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

invernos alemães, corrobora ao menos um deles: mãos frias, coração quente. Certo!

Bem, em pouco muito se diz. Obrigada Helena Frenzel pela oportunidade, obrigada Pedro Galuchi pelo divertido prefácio... e obrigada a meus pais e avós por acreditarem que era de pequeno que se torcia o pepino.

Vany Grizante.

56

Page 58: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)

VANY GRIZANTE é paulista, arquiteta, mãe e escritora. Participou das coletâneas “Universo Paulistano” Vol.2, editora Andross (2010) e “15 Contos+” Vol. 1 (2012), primeiro ebook produzido pelo projeto Quinze Contos Mais. É autora do livro de crônicas “Abelhas sem Teto e outras crônicas”, editora All Print (2010). Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.

SOBRE A AUTORA

23

57

Page 59: E D I Ç Ã O E S P E C I A L Ditados na Berlindastatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4600026.pdf · hÁ males que vÊm para o bem? (15) quem vÊ cara nÃo vÊ coraÇÃo? (17)