ecocrítica e pós-colonialismo: o fitar de bigg-wither na floresta

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INTERSEMIOSE • Revista Digital • Jun/Dez 2012 171 Resumo : Embora os temas ecológicos não tenham sido analisados no início dos estudos pós- coloniais, atualmente várias investigações no âmbito destes estudos têm revelado um nexo entre o colonialismo e a degradação da natureza. O colonizador e seus sucessores, munindo-se da ideologia de donos da terra e de toda a criação, assumem o status exclusivamente antropocêntrico com consequências trágicas para a vida no planeta. Analisa-se neste capítulo a apropriação do ‘outro’ feita por Thomas Bigg-Wither, um engenheiro inglês, quando de sua estada no interior do Paraná no terceiro quartel do século XIX. O contexto imperial britânico, as teorias darwinistas e um eugenismo incipiente contribuem para que sua narrativa, publicada em 1878, outremize a natureza ainda intocável do Paraná, a cultura do ameríndio e o modo de viver do caboclo paranaense. Todavia, o texto, embora imbuído de uma profunda hegemonia capitalista, revela contrapontos que salientam o estranhamento do homem diante da natureza, o modo de viver autóctone, a ausência da ganância, a cultura escondida na interação humana e a responsabilidade que o nativo sempre teve para com o meio ambiente. Palavras-chave : Outremização, Ecologia, Colonialismo, Contrapontos, Bigg-Wither. Abstract: Although ecological issues have not been analyzed in the early post-colonial studies, several current investigations in this field have been unveiling a connection between colonialism and nature degradation. The colonizer and his successors, embodying an ideological role of owners of all land and creation, take on the highly anthropocentric status leaving the life in the planet to suffer with the tragic consequences. In this chapter we will analyze the appropriation of “the other” made by Thomas Bigg-Wither, a British engineer during his stay in countryside Paraná through the third quarter of the nineteenth century. The British imperial context, the Darwinist theories and an incipient eugenics aid his narrative, published in 1878, in the quest of othering Paraná’s still untouched nature, the culture of the Amerindian and the way of living of the Paraná’s Caboclo. However, the text, though imbued with a deep capitalist hegemony, reveals counterpoints that point out the strangeness of the man before nature, the indigenous way of life, absence of greed, the hidden culture, human interaction and the environmental responsibility the native has always had. Keywords: othering, Ecology, Colonialism, Counterpoints, Bigg-Wither Ecocrítica e pós-colonialismo: o fitar de Bigg-Wither na Floresta Atlântica do Paraná Thomas Bonnici

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Resumo:

Embora os temas ecológicos não tenham sido analisados no início dos estudos pós-coloniais, atualmente várias investigações no âmbito destes estudos têm revelado um nexo entre o colonialismo e a degradação da natureza. O colonizador e seus sucessores, munindo-se da ideologia de donos da terra e de toda a criação, assumem o status exclusivamente antropocêntrico com consequências trágicas para a vida no planeta. Analisa-se neste capítulo a apropriação do ‘outro’ feita por Thomas Bigg-Wither, um engenheiro inglês, quando de sua estada no interior do Paraná no terceiro quartel do século XIX. O contexto imperial britânico, as teorias darwinistas e um eugenismo incipiente contribuem para que sua narrativa, publicada em 1878, outremize a natureza ainda intocável do Paraná, a cultura do ameríndio e o modo de viver do caboclo paranaense. Todavia, o texto, embora imbuído de uma profunda hegemonia capitalista, revela contrapontos que salientam o estranhamento do homem diante da natureza, o modo de viver autóctone, a ausência da ganância, a cultura escondida na interação humana e a responsabilidade que o nativo sempre teve para com o meio ambiente.

Palavras-chave: Outremização, Ecologia, Colonialismo, Contrapontos, Bigg-Wither.

Abstract:

Although ecological issues have not been analyzed in the early post-colonial studies, several current investigations in this field have been unveiling a connection between colonialism and nature degradation. The colonizer and his successors, embodying an ideological role of owners of all land and creation, take on the highly anthropocentric status leaving the life in the planet to suffer with the tragic consequences. In this chapter we will analyze the appropriation of “the other” made by Thomas Bigg-Wither, a British engineer during his stay in countryside Paraná through the third quarter of the nineteenth century. The British imperial context, the Darwinist theories and an incipient eugenics aid his narrative, published in 1878, in the quest of othering Paraná’s still untouched nature, the culture of the Amerindian and the way of living of the Paraná’s Caboclo. However, the text, though imbued with a deep capitalist hegemony, reveals counterpoints that point out the strangeness of the man before nature, the indigenous way of life, absence of greed, the hidden culture, human interaction and the environmental responsibility the native has always had.

Keywords: othering, Ecology, Colonialism, Counterpoints, Bigg-Wither

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Floresta atlântica e Imperialismo

As duas ‘acusações’ que poderiam ser feitas após vinte anos da publicação de The Empire Writes Back, publicado em 1989, se concentram na ausência de discussões sobre os problemas da Ecologia num contexto pós-colonial, especialmente no ambiente ‘terceiro-mundista’ e a lacuna sobre a América

Latina nas investigações e pesquisas pós-coloniais. Há de se admitir que a Ecocrítica, definida por Huggan (2008: 64) como “um método crítico e um discurso ético,” é uma disciplina relativamente recém-chegada, e que a atual conscientização sobre o tema encontra-se mais aprofundada e extensiva do que nos anos 1980. Este ensaio, uma ponte entre a Ecocrítica e o Pós-colonialismo, terá como foco um livro ‘desconhecido,’ o qual, de que se saiba, a literatura internacional referente ao pós-colonialismo ou à ecologia não tem destacado, a não ser no Brasil e, mesmo assim, em escassas publicações. Pioneering in South Brazil: Three Years of Forest and Prairie Life in the Province of Paraná, de Thomas Bigg-Wither (1845-1890), publicado em Londres em 1878, não é mencionado nas análises por Pratt (1992), Castillo (2006), Moraña et al. (2008) e outros que investigaram os encontros coloniais na América do Sul. Embora traduzido para o português somente em 1974, com o título Novo caminho no Brasil meridional: A província do Paraná. Três anos em suas florestas e campos, quase cem anos após sua publicação britânica, ele tem sido uma constante na literatura etnológica brasileira. Novo caminho no Brasil meridional é a narrativa de um engenheiro britânico lotado na região central do estado do Paraná entre 1872 e 1875 e proporciona informações e experiências, de primeira mão, a respeito de uma área fervilhando de animais e repleta de populações de índios e mestiços. Bigg-Wither foi encarregado pela Paraná and Mato Grosso Survey Expedition para analisar a possibilidade da construção de uma línea férrea entre os oceanos Atlântico e Pacífico. O engenheiro aproveitou desta oportunidade para narrar suas experiências no Paraná, naquela época um dos rincões mais remotos e desconhecidos do país.

Investigar-se-ão, portanto, as implicações que a posição antropocêntrica de Bigg-Wither em preferência àquela ecocêntrica produz no que diz respeito ao ‘homem civilizado’ e à floresta atlântica ainda intocada. Qual é a contribuição de Bigg-Wither referente à alternativa ocidentalização-ou-aniquilação desta região remota no contexto do imperialismo britânico e brasileiro em seu auge na segunda metade do século dezenove? No contexto das teorias darwinianas, como a narrativa de Bigg-Wither poderia ser interpretada quando ele discursa sobre os índios ‘primitivos’ e os mestiços ou caboclos brasileiros? Como se pode avaliar a ‘visão neutra’ do engenheiro britânico referente ao conceito de terra nullius?

Fitar e poder

Quando o viajante-agrimensor Bigg-Wither penetra a densa floresta atlântica e percebe a extensão enorme de terra com toda a sua diversidade biótica, o britânico se transforma radicalmente: torna-se um ‘rei’ de tudo o que enxerga, fato corroborado pelo

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fitar e pela tarefa capacitadora que havia assumido. O que Hobsbawm (1989) descreve como a penetração ‘civilizadora’ das regiões mais remotas pela ferrovia tornaria, através das futuras conclusões de Bigg-Wither sobre a viabilidade da ferrovia, a materialização potencial de enormes lucros para a metrópole. Semelhante às observações feitas por Davis (2001) e Ferro (2004) sobre o progresso imperial no século 19 respectivamente à Índia e à África, ele sabe, como cientista e homem culto, que o lucro gerado pela destruição da natureza nem voltaria para os nativos nem o país se beneficiaria da empreitada. O mito irracional da modernidade (DUSSEL, 1995) e a ocidentalização da terra estavam baseados na ideologia pela qual a Europa era o ponto de chegada do processo desenvolvimental para o qual todos os povos, quisessem ou não, tinham de atingir.

Apesar desta ideologia subjacente, abundam-se no texto muitas descrições da flora e da fauna da floresta atlântica do Paraná. O agrimensor britânico se maravilha por formigueiros, insetos, pássaros dançantes, gaviões, codornas, urubus, cobras, macacos, borboletas, cigarras, lagartas, antas, queixadas, tucanos, onças, densa vegetação, variedades de samambaias, fogo florestal, tempestades com raios e trovões, planícies, riachos, quedas d’água e serras. Todavia, as descrições são antropocêntricas, ou seja, os aspectos bióticos e abióticos não possuem nenhum sentido em si, mas apenas quando se referem ao homem branco. A supremacia humana sobre a Natureza está tão dominadora que o texto, em nenhuma ocasião, indica uma estratificação não hierarquizada entre os humanos e a Natureza. “O pressuposto de que nós somos ‘acima’ do resto da criação é um fator intrínseco da ordem mundial dominante, uma filosofia centrada nos humanos, ou seja, uma filosofia antropocêntrica” (PORRITT, 1984: 206). Semelhante às atitudes dos escritores Rider Haggard e Hemingway em suas representações de aventura de vida selvagem, a filosofia antropocêntrica, na qual se destaca a distinção hierárquica entre ‘nós’ e o ‘ambiente’, traz subsequentes procedimentos destrutivos. A partir do ponto de vista do viajante britânico, os cervos, as queixadas, a jaguatirica e as onças são apenas animais cuja matança lhe proporciona um enorme prazer.

[D]ois vultos pretos correram à minha frente. Dei um tiro e em seguida outro no mesmo porco, e então, puxando a faca, corri aonde ele estava, arrastando-se, por meio das patas dianteiras, pois as traseiras nem rastejavam mais com a dura pancada. Quando me aproximei, estalou a sua queixada maldosamente e, movendo os seus olhos injetados, fez um grande esforço para atacar, mas, não podendo fazê-lo, prostrou-se no chão, e antes que se levantasse, cravei-lhe a faca repetidas vezes na altura do pescoço, preso à excitação do momento (BIGG-WITHER, 1974: 229, grifos meus).

O mesmo entusiasmo de caçar e de matar é vivenciado quando foi morta uma jaguatirica, muito apreciada por caçadores por causa de sua resistência e luta antes de morrer.

A intrepidez da jaguatirica que matei só foi ultrapassada por outra que atirei, em circunstâncias mais ou menos semelhantes, alguns meses depois. Eu não podia deixar de pensar que os jaguares, que, segundo consta, podiam ser encontrados em grande número cem milhas mais abaixo do rio, tivessem provado a metade serem mais bravos que as jaguatiricas, suas irmãs menores; ainda teríamos de nos distrair bastante com cenas emocionantes antes de voltarmos a salvo às terras civilizadas (BIGG-WITHER, 1974:235, grifos meus).

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Em oposição ao que se verifica acima, a filosofia biocêntrica integra todos os seres vivos dentro das mesmas condições e na estratificação sujeito-sujeito. Embora os humanos pareçam não compreender “uma forma de vida fundamentalmente diferente” (NAGEL, 1979: 168), a vida sensitiva poderia ser cogitada e, consequentemente, atitudes simpatizantes poderiam ser ministrados. A abdicação da condição colonizadora de ser “rei de tudo o que se vê” elimina a dicotomia entre a vida inteligente e outras formas de vida, favorecendo um desenvolvimento mais harmonioso de modo especial nos países do ‘Terceiro Mundo’. Por exemplo, a construção de ferrovias no século 19 e de usinas hidroelétricas no século 20 manifestou o poder tecnológico humano à custa do deslocamento de milhões de camponeses que tentavam sobreviver da terra e da destruição do oíkos fervilhando de formas bióticas e abióticas.

O fitar imperial de Bigg-Wither pode ser observado não apenas quando descreve o processo de curtição da pele da jaguatirica, mas também quando ‘inocentemente’ atomiza, linguística e graficamente, os insetos e as plantas, em seus mínimos detalhes.

Cada um desses riachos era o retiro de miríades de borboletas, de todas as variedades, tamanho e cor, cobrindo inteiramente o solo e, à nossa aproximação, escurecendo o ar com os seus voos. Muitas variedades tinham rabo parecido com os das andorinhas e outras o tinham espesso como as aves do paraíso. Havia também uma pequena borboleta linda que, mais tarde, batizamos de ‘oitenta e oito,’ em vista de mostrar esse número em algarismo, bem nítido, no lado interno das duas asas inferiores. Os lados externos das asas eram inteiramente diferentes dos inferiores, sendo daquela cor peculiar azul e roxo lustroso, que muda os seus matizes, como a plumagem dos beija-flores, com a incidência da luz sobre elas. Entretanto, os lados superiores tinham três cores: vermelho, pardo e branco acetinado (BIGG-WITHER, 1974:146).

À semelhança de uma pintura de natureza morta, a descrição desta forma particular de borboleta ocupa quase três páginas, incluindo um desenho dos lados anterior e posterior do macho. Bigg-Wither repete a mesma descrição detalhada quando se trata do pinheiro e seus frutos, da samambaia, da floresta e de outros itens. Sem dúvida, tais descrições jamais são neutras e representam a apropriação e o domínio colonial. Portanto, constituindo-se o observador pan-óptico invulnerável, o engenheiro-agrimensor inscreve-os conforme sua ideologia europeia atolada na estrutura binária à qual está acostumado. A suposta objetividade e a neutralidade revelam arrogância já que ele se coloca como o sujeito que os processa de acordo com seus valores. Colocando-os como objetos para serem observados microscopicamente, Bigg-Wither falha em não os estimar de acordo com sua natureza intrínseca e sua própria referência.

Ademais, a derrubada maciça de árvores na América do Sul está historicamente ligada à colonização europeia já que a preservação controlada da floresta pelos índios é um fato atestados por todos os autores (MOTA, 1994; CERNEV, 1997). Vários mapas pictóricos, especialmente na Cosmographia Universalis, de Thévet, publicada em 1575, mostram os índios do litoral brasileiro, usados por franceses e portugueses, cortando o pau-brasil (Caesalpinia echinata) ou para embarcar as toras em navios para a indústria europeia de tingimento ou para fazer clareiras para o plantio de cana-de-açúcar.

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Com cuidado meticuloso e objetividade, mas carente de qualquer sensibilidade ecológica, Bigg-Wither descreve em detalhes a derrubada de uma árvore (a seção é intitulada ‘A queda de um monarca’) e de outras menores simplesmente para abrir um caminho na mata.

[D]ois musculosos machadeiros […] levantaram-se do chão onde estavam sentados […] e foram mais uma vez ocupar os seus lugares, um de cada lado da árvore condenada. A um olhar decidem para que direção ela deve cair e agora começa a exibição de força, resistência e habilidade […]. Com golpes ritmados, vagarosos e firmes, dados com exata precisão, não é desperdiçado nenhum grão de força. Aparecem logo dois cortes em forma de cunha sob os afiados machados, que agora rodopiam no ar e cadenciadamente caem em sucessão rápida sobre o tronco. Os cortes em forma de cunha afundam cada vez mais, num espaço de quarto em quarto de hora ou talvez de vinte minutos. O suor lava as costas nuas dos homens em pequenos pingos, mas mesmo assim os golpes são desferidos sobre a madeira com igual violência. De repente, ouve-se um baque e quem está em posição adequada percebe o tronco fazer um movimento para a frente e as folhas estremecerem como se sentissem a destruição iminente. Encorajados pelo ruído, os dois homens agora rivalizam entre si na força e rapidez dos golpes, redobrando os esforços. A árvore vai se movendo lentamente, tão lentamente que o movimento só pode ser observado pelos cipós nela enredados, que de um lado se vão estirando gradativamente, enquanto do outro lado afrouxam e formam uma espécie de barriga. Como a detonação abrupta de uma pistola, vem o segundo e último aviso de derrubada. Os machadeiros procuram refúgio, porque a queda de uma árvore provoca a queda de muitas outras. O trabalho deles está feito. Simultaneamente, com este segundo aviso, a árvore dá outro balanço mais pesado para a frente e, cercada da desordem terrível de uma multidão de trepadeiras, cipós e vegetação de todas as espécies, que formam a normal e mais alta coberta da floresta brasileira, vergou lentamente a sua elevada copa, para, reunindo todas as forças, dar o adeus final aos céus, arrastando consigo, no seu tombo, grande quantidade de parasitas, vegetação acumulada em centenas de anos, e esmagando sob o seu ponderável volume grande quantidade de arvores novas, desaparecidas com o potente estrondo e troar nos abismos misteriosos da ravina embaixo. [...] Assim, quando se tomba uma árvore, ela desobstrui o caminho e não nos incomoda mais (BIGG-WITHER, 1974: 186-187).

Uma enorme devastação florestal na área sob análise ocorreria cerca de cinquenta anos mais tarde quando a Paraná Plantations Limited, com sede em Londres, comprou a região norte do estado do Paraná e iniciou um projeto de colonização. Pouco se importando com a ainda intocada floresta decidual e os milhares de índios que esta abrigava (NOELLI; MOTA, 1999; GUEDES RAMOS; ALVES, 2008), banqueiros britânicos e brasileiros e potentes fazendeiros, ou seja, pessoas exclusivamente concentrados em lucro, executaram um dos ‘melhores’ e mais bem planejados programas trágicos: menos que 5 % da cobertura florestal existem atualmente. A ideologia de desflorestamento dos anos 1920 foi uma consequência da posição imperial da arrogância do ‘Senhor Homem’ (MUIR, 1992: 155) representada pelo texto de Bigg-Wither.

Há um fator intrínseco na existência da floresta, a qual não é necessária nem exclusivamente feita para o uso humano. Todavia, não se pode inferir que a floresta seja autêntica e independente apenas quando os humanos estejam ausentes dela.

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Pelo contrário, a ideologia pela qual os humanos estão inseridos no contexto da floresta e não acima dela “promove a poética da responsabilidade, que toma por guia a ciência ecológica” (GARRARD, 2006: 105, grifos do autor).

O fitar do mestiço

Enquanto o texto de Bigg-Wither revela a ideologia imperial e capitalista pela qual penetra a terra virgem e devasta tudo o que ela contém para que seu domínio seja indisputável, a narrativa, sem ele querer, escancara o fitar do Outro. O foco sobre os caboclos-mestiços e os índios (‘civilizados’ e bravos) traz à superfície da narrativa a posição equilibrada e mais em acordo com a natureza destes dois grupos humanos. Colocados pelo viajante britânico no mesmo nível que os índios ‘domesticados,’ os poucos caboclos-mestiços, os quais durante décadas haviam tirado seu sustento da terra, carecem uma mentalidade capitalista e não exploram à moda europeia a potencialidade da terra. Quando Bigg-Wither critica a falta de empreendimento capitalista dos mestiços e coloca à vista do mundo europeu a vastidão da terra que poderia ser trabalhada por europeus, paradoxalmente o britânico está revelando um outro tipo de domínio de terra, mais sadio ao planeta e de acordo com uma ideologia ecológica. Embora, na opinião do agrimensor britânico, os mestiços tenham perdido seus direitos porque nem ‘desenvolveram’ o mundo natural (sinônimo à destruição da floresta para o plantio de mantimentos) nem aplicaram a ciência para o melhoramento genético de seus animais, a tragédia ecológica que eventualmente ocorreu não teria sido possível.

Uma análise da crítica por Bigg-Wither sobre os tipos de plantação e de vivência produz dois tipos de situações: (1) uma comunidade estática, quase fossilizada, mas caracterizada pela harmonia, ausência de rapacidade e desejo de lucro desenfreado; (2) uma descrição apocalíptica da região da qual os mestiços seriam eliminados e uma outra população, mais empreendedora e desenvolvimentista, introduzida. Quando visita a fazenda da família Andrade, o agrimensor critica, de modo especial, a produção agrícola pífia, a criação aleatória do gado e dos cavalos, a ausência de empreendedorismo dos proprietários e seu modo sossegado de viver.

Não cuidam de melhorar a raça de nenhum, pela seleção prudente dos machos e das éguas. Jamais sangue novo é introduzido na tropa ou rebanho, sendo a degeneração por conseguinte certa e efetiva, especialmente nos cavalos, porque as tropas destes são geralmente pequenas e, assim, mais sujeitas a sofrerem os efeitos da constante interreprodução (BIGG-WITHER, 1974:156).

Em sua opinião, os caboclos vivem não apenas em ‘preguiça’ permanente, já que plantam apenas o que é absolutamente necessário para não passarem fome, mas o emprego de determinadas ‘máquinas’ para facilitar o trabalho é algo contraprodutivo. Antes de descrever o monjolo, Bigg-Wither, com profundo cinismo, comenta que “o gênio que a inventou seja bem mais inteligente que as pessoas que continuam a usá-lo” (BIGG-WITHER,

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1974: 138), e conclui que “o elemento de absurdidade reside no enorme desperdício de energia requerido para a consecução de uma quantidade tão microscópica de trabalho” (BIGG-WITHER, 1974: 140). Estes trechos da narrativa poderiam ter uma interpretação metonímica: os animais não têm valor em si, mas apenas enquanto servem aos seus amos e lhes dão o máximo possível de lucro pelo seu trabalho; as máquinas são postas apenas para produzir lucro; as pessoas deveriam ser desprezadas se não trabalham por lucro e quando levam uma vida fácil sem nenhuma preocupação para o seu futuro bem-estar.

A ideia de inércia, a principal acusação do agrimensor britânico, complica-se quando se sabe que os mestiços haviam radicalmente transformado o ambiente natural para seus interesses. Sabe-se, todavia, que esta transformação foi fundamentada na experiência e no conhecimento do caboclo e executada de acordo com sua cultura e seu etos. Embora esta modificação não tenha sido feito (nem poderia ter sido) com as motivações de consciência ecológica e responsabilidade praticadas presentemente, eles consideravam a sua terra e região como ‘um lugar sagrado’ no qual mudanças bruscas e manipulações excessivas eram inconcebíveis. Esta mentalidade do mestiço é corroborada por uma ideologia não capitalista revelada no texto de Bigg-Wither para seu grande desapontamento e ira.

A cada vez meu espírito se entristecia e irritava mais por ver como era desperdiçada totalmente a maior parte de suas riquezas. Esta extensa propriedade somente produzia uma renda líquida de pouco mais de dois contos por ano, quando, com pequenas despesas racionais, o mais despreparado principiante em assuntos agrícolas e capacidade de negócio podia ter aumentado esta renda cinco vezes mais.

Por exemplo, cavalos e mulas passam onze meses pastando durante o ano à espera de algum comprador casual, quando, nesse intervalo, podiam ser proveitosamente empregados no transporte da produção ao mercado, produção essa que nunca é plantada por causa dos gastos insignificantes que ela acarretaria.

O gado é levado ao mercado, ano após ano, pelos mesmos horríveis caminhos […] enquanto o fazendeiro e a sua família ficam sentados, na ociosidade, a metade do ano, esperando que o gado engorde, gordura que é de novo perdida na estrada, e tudo por falta de algumas poucas semanas de trabalho enérgico com o machado (BIGG-WITHER, 1974: 156).

Não é necessário dizer que, devido ao fato que somente a voz de Bigg-Wither prevalece no texto, sua condenação do estilo de vida do caboclo-mestiço vai até as últimas consequências. Em sua conferência proferida no dia 12 de junho de 1876 ele retoricamente pergunta o que era necessário para que tão grandes recursos naturais (clima sadio e variável, solo fértil, pasto rico, florestas densas e abundantes) pudessem ser controlados para obter lucro. Bigg-Wither (2008) propõe a substituição dos caboclos-mestiços nativos por uma nova raça de gentes (“[as] raças da Europa setentrional e central,” BIGG-WITHER, 1974: 237) caracterizadas por seu empreendedorismo altamente desenvolvido. Consequentemente, ele argumenta, como um novo sangue é injetado onde mais dele necessita em benefício de todos, o resto é adquirido por seleção natural. As teorias eugênicas e darwinianas sobre a seleção natural são eventualmente os meios que a região requer para se transformar num lugar lucrativo. Mesmo se esta metodologia é rechaçada por razões éticas, não há nenhuma garantia que o equilíbrio ecológico, mantido pelos caboclos-mestiços, não seja, a logo prazo, implodido mesmo se uma população estrangeira

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deixa de intervir. Numa sociedade altamente estratificada como é a sociedade brasileira, na qual os caboclos-mestiços encontram-se no fim da escala, “garantia nenhuma de bem-estar ecológico existe se é governada por uma hierarquia social piramidal que depende de acesso seletivo aos recursos naturais para manter seu poder” (ROSS, 1994: 71).

Embora os caboclos-mestiços não fossem substituídos na região por grandes massas de imigrantes europeus, como Bigg-Wither havia sugerido, cinquenta anos mais tarde ela foi ocupada por pessoas empreendedoras, oriundas, na maioria dos casos, de várias regiões brasileiras. Como foi dito antes, a floresta atlântica praticamente desaparece, os cursos aquáticos encontram-se poluídos, a riqueza da biodiversidade está baixa, o reflorestamento deficiente, a maioria dos índios é massacrada ou empurrada mais e mais para o interior. Todavia, novas cidades e povoados foram construídos, milhões de árvores de café foram plantadas (mais tarde, substituídas por plantações de soja e trigo) e a indústria encontra-se bem desenvolvida. O desastre apocalíptico que muitas pessoas haviam profetizado jamais ocorreu. Embora a densa floresta descrita por Bigg-Wither não exista mais e não se possa dizer que a região constitui uma utopia ecológica, esta solução ao dilema entre a floresta sem os humanos e a região totalmente destruída pela ganância não pode ser levantada como um exemplo de catástrofe. É muito mais um desafio para o nosso sentido de responsabilidade!

O fitar do Índio

Quando Bigg-Wither descreve os Índios, os habitantes naturais da região e proprietários da terra, ele tipicamente cataloga as várias tribos (como tem feito com a flora e a fauna), mas se esquiva de fazer ouvir as vozes índias ou reconhecer suas opiniões a respeito da ecologia da terra e seu manejo. Todavia, estas vozes são reveladas através de vários contrapontos. Talvez uma das melhores descrições, em palavras e em desenho, seja aquela do índio botocudo ‘selvagem’. Ele afirma que a mera exibição do desenho substituiria todos os argumentos de Darwin arrolados em The Descent of Man, publicado em 1871. O fitar do agrimensor zoomorfiza o índio e seu grupo caracterizados pela ‘selvageria’ e ‘degeneração’ de costumes, pelos sons horríveis de seu idioma e por indícios de imbecilidade e idiotice (BIGG-WITHER, 1974: 329).

Todavia, o primeiro relance de Bigg-Wither referente ao índio Xetá ‘selvagem’ é uma metonímia da simbiose entre o Índio e a floresta. A descrição mostra o entrelaçamento do homem e da natureza ao ponto de ser difícil a distinção.

A árvore tinha uns cem pés de altura, o tronco subia reto e sem ramos até uns dez pés da cumeeira. Nessa altura, agachada num ramo, bem junto ao tronco, uma massa escura podia ser vista claramente, mas se era homem ou se era coisa que tinha alguma semelhança com homem, eu não podia perceber. […] Houve um movimento. Não havia dúvida agora que era alguma sorte de animal e não apenas um ninho de abelha, como supus. […] Eu agora já podia ver que era ou um homem, ou um macaco, embora pela altura da árvore não pudesse discernir qual dos dois seria. Daí a pouco, quando mudou

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de posição, pude ver então que ele tinha cabelo comprido e hirsuto, cobrindo-lhe a cara e o pescoço e que lhe dava aspecto selvagem e feio. […] O bugre – já agora não cabia dúvida de que era um bugre – não demorou muito a mostrar a maneira de descer (BIGG-WITHER, 1974: 317-318).

Embora os historiadores e antropólogos tenham discutido e retificado certos conceitos idealistas sobre a harmonia e o equilíbrio praticados pelos Índios nos sistemas ecológicos nas Américas (MOTA, 2000; KRECH, 1999; MOTA, 1994; LEWIS, 1992), o relatório do agrimensor britânico sobre o conjunto indistinguível ‘floresta-árvore-inseto-animal-humano’ não constitui uma situação meramente retórica. Pelo contrário, é um tropo das interatividades coordenadas entre os vários membros do bioma. Estas interatividades são muitas vezes baseadas sobre o conceito animista abrangendo o respeito ‘religioso’ da terra coletiva vizinha (tupa’mbae) até o aspecto sagrado dos organismos vivos.

A objetificação e o zoomorfismo (massa escura; ninho de abelha; animal; macaco; orangotango horroroso; couro de rinoceronte; as presas da jararaca) do Índio ‘selvagem’, construídos por Bigg-Wither, igualam-se às descrições encontradas no teatro religioso de José de Anchieta no século dezesseis. Embora a outremização do Índio ‘selvagem’ esteja caracterizada por termos degradantes, paradoxalmente tiradas da natureza, o grande número de elementos culturais que Bigg-Wither menciona em seguida, referentes ao sujeito Xetá, desmente os adjetivos encontrados na narrativa acima.

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De fato, o texto está repleto de traços culturais da tribo e subverte a condição eurocêntrica do colonizador ‘inocente’. A narrativa revela os laços familiares e sua prodigalidade, seus ornamentos corporais, as ferramentas de trabalho e os instrumentos de guerra, as canções e as danças, os utensílios domésticos, as ocas, as cordas, as cerimônias de iniciação, o idioma, a medicina popular, os métodos de cozer carne e peixe, e várias outras características culturais. Outrossim, os desenhos que o engenheiro faz dos Índios ‘selvagens’ e ‘domesticados,’ homens e mulheres, testemunham a integração do sujeito nativo brasileiro com a fauna e a flora da floresta atlântica existente.

Em volta de seus tornozelos estava amarrada uma corda que parecia de bambus partidos. […] Embaixo dos braços havia também corda semelhante, circundando o homem e a árvore. […] De cada lado da cabeça, presas ao cabelo com cera virgem, penas e peles de diversos peitos de tucano. […] Enorme pingente, do tamanho e forma de um cone de abeto, feito de madeira dura e polida, pendia-lhe do beiço inferior. […] Em volta ao pescoço estava suspenso um colar de dentes, muito semelhantes aos dentes humanos, que mais tarde constatamos serem de bugio, ou macaco uivador [...]. Em volta do pulso, cintura e tornozelo, grossos cordões se trançavam, feitos de fibras de uma planta chamada urtiga, que produz ardor na pele (BIGG-WITHER, 1974: 318-319).

Além da litografia do Índio Xetá, outros quatro desenhos de Bigg-Wither, feitos no local, encontram-se no texto, corroborando evidências referentes à integração dos Índios ‘selvagens’ no contexto de sua morada ou oíkos, a floresta. ‘Pronto para uma flechada’ e ‘Acampamento avançado nas florestas do Ivaizinho’ salientam a simbiose entre humanos, a vegetação, as samambaias, as árvores e os pássaros. Enquanto o primeiro desenho dá ênfase ao respeito à vida dos pássaros, a derrubada de uma árvore no segundo desenho revela necessidades vitais (cozer), contrastando-se com o entusiasmo quase patológico da ‘Queda de um monarca’ descrito acima. Talvez o melhor testemunho à integração dos Índios kaingang com o seu meio ambiente e sua condição não hierarquizada no processo ecológico encontra-se nos desenhos intitulados ‘Mulher coroada e filho’ e ‘Índio coroado vestido em traje festivo’. A beleza da primeira ilustração e a descrição verbal de Bigg-Wither e a segunda ilustração, antropologicamente de grande interesse, mostrando “uma dessas curiosas roupas enfeitadas de penas e que eram feitas inteiramente de fibra de madeira e penas de tucanos, araras e outros pássaros de plumagem brilhante” (BIGG-WITHER, 1974: 432), revelam Índios nativos em equilíbrio com o seu ambiente natural. O oíkos é reverenciado como um sujeito ‘sagrado’ dentro de condições sujeito-sujeito, rechaçando qualquer objetificação.

Embora historicamente as cenas idílicas possam ser desconstruídas por eventos contemporâneos nos quais determinados grupos de Índios são ou cooptados ou forçados pela população branca para devastar as florestas ou quando as terras indígenas lhes são arrebatas com violência, é importante salientar que os Índios, quando autônomos de e não manipulados por grupos sociais gananciosos, manifestam um estilo de vida repleto de profundo respeito, quase religioso, à Natureza. É um fato que a ecologia da região foi modificada antes da penetração dos europeus e que os Índios, apesar de suas intervenções,

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mantinham uma autenticidade modificada. Parece que somente um equilíbrio ideológico, envolvendo desenvolvimento e responsabilidade, dará aos grupos contemporâneos na região os elementos necessários para uma crítica cultural sobre a prática ecológica.

Contrapontos

Os sentimentos exuberantes manifestados por Bigg-Wither quando vivencia, com ‘inocentes’ olhos imperiais (PRATT, 1992), o ambiente da floresta atlântica fervilhando de habitantes nativos, ar puro, rios limpos, ilhas, abundante flora e fauna intocada, parecem ser o júbilo do europeu que encontrou um tesouro para futuras indústrias, ferrovias, estradas, sistemas de comunicação, mineração, e exportação de madeira nobre: lucros inesgotáveis para o empreendedor europeu e benefícios escassos para o indígena. Nesse contexto, as ilustrações ‘Mulher coroada e seu filho’ e ‘O botocudo selvagem do Brasil’ podem ser vistas como fatores contrapontuais respectivamente de submissão e resistência. Como na opinião do agrimensor britânico o Índio ‘selvagem’ brasileiro assemelha-se mais aos animais do que aos humanos, sua integração no ambiente ‘civilizado’ está barrada e, com certeza, ele logo tornar-se-á extinto. Todavia, a ilustração mostra o Índio numa situação de resistência, ou seja, seu rosto desafiador é a metonímia de sua coragem e destemor contra quaisquer tentativas para controlar ou aniquilar sua cultura e o ambiente em que habita (MOTA, 1994). A ilustração da mãe Kaingang e seu filho com seus rostos serenos revela algo diametralmente oposto.

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De fato, parece ser um testemunho de sua aceitação das condições do homem ‘civilizado’, a perda de identidade e a total colaboração com o ‘projeto civilizador’.

Portanto, Bigg-Wither preconiza:

[a] abertura para a civilização e o comércio de uma área de rica e saudável região de pelo menos 100.000 milhas quadradas de extensão, agora somente ocupada por uma meia dúzia de colônias espalhadas no meio do grande deserto de florestas inexploradas, que as cercam de todos os lados, obrigando-as a levar vida mesquinha (BIGG-WITHER, 1974: 424).

Enfatiza-se esta visão colonialista quando discursa diante da Real Sociedade Geográfica. Salienta que:

[e]ssa vasta extensão de terras ricas e férteis, abrangendo uma área de milhares de quilômetros quadrados, está ainda coberta de mata virgem e habitada apenas por algumas tribos nômades de índios selvagens. Provavelmente assim permanecerá por muitas futuras gerações […] até que a própria região passe para as mãos de um povo mais empreendedor (BIGG-WITHER, 2008: 190).

A paisagem colocada pelo viajante-agrimensor britânico se encaixa nos conceitos de terra nullius (SMITH, 2008; SACK, 1981) e no contexto da ‘missão civilizadora’ do homem branco (ASHCROFT, 2001), cada qual justificando a ideologia colonial. Apesar do fascínio que as florestas tropicais causam pelo mundo afora e prescindindo-se de atitudes apocalípticas, a desconstrução da estratificação hierarquizada humanos-ambiente, a crítica à ideologia capitalista do desenvolvimento, o reconhecimento do conhecimento ecológico limitado e a posição ética referente ao Outro, frequentemente um sujeito do ‘Terceiro Mundo,’ faz emergir uma responsabilidade maior para nosso oíkos. O Pós-colonialismo, portanto, não será acusado de ser indiferente à Ecocrítica, já que “o fato de imaginar os futuros alternativos nos quais nosso modo de olhar para nós mesmos e nosso relacionamento com o planeta poderiam ser criativamente transformados” (HUGGAN, 2008: 80) tornar-se-á um de seus projetos mais críticos.

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