elementos de histÓria da educaÇÃo matemÁtica

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  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICAANTONIO VICENTE MARAFIOTI GARNICALUZIA APARECIDA DE SOUZA

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO

    MATEMTICA

  • Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Adriana Cesar de Mattos

    Marcus Vinicius Maltempi

    Romulo Campos Lins

    Rosana Giaretta Sguerra Miskulin

    Silvio Csar Otero Garcia

  • ANTONIO VICENTE MARAFIOTI GARNICA

    LUZIA APARECIDA DE SOUZA

    ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO

    MATEMTICA

  • 2012 Editora UNESPCultura AcadmicaPraa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    G222e

    Garnica, Antonio Vicente MarafiotiElementos de Histria da Educao Matemtica / Antonio Vicente

    Marafioti Garnica, Luzia Aparecida de Souza. So Paulo : Cultura Acadmica, 2012.

    384p. : il.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7983-293-2

    1. Matemtica Estudo e ensino. 2. Matemtica Histria. I. Souza, Luzia Aparecida de II. Ttulo.

    12-7624. CDD: 510 CDU: 51

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

  • SUMRIO

    Apresentao 7

    1. Educao Matemtica, Histria, Histria da Matemtica e Histria da Educao Matemtica 17

    2. Sobre propostas de interveno: Histria e historicidade como temas no cotidiano escolar 49

    3. Histria oral e histria oral em Educao Matemtica 93

    4. Analisar imagens em estudos historiogrficos: parmetros, possibilidades e exemplos 121

    5. Memrias de uma escola isolada rural: um exerccio de anlise documental 143

    Antes de prosseguir... 167

    6. A Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo 175

  • 6 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    7. O Movimento Matemtica Moderna 223

    8. O I Colquio Brasileiro de Matemtica 277

    9. Os Movimentos Matemtica Moderna: mobilizaes 317

    10. Os Movimentos Escola Nova: mobilizaes 341

    Referncias bibliogrficas 371

  • APRESENTAO

    Sobre as intenes e princpios deste livro

    Nos antigos livros de Matemtica, o adjetivo elementar com-punha, como substantivo (Elementos de...), o ttulo de vrias obras, indicando como que uma filiao aos Elementos, de Euclides: resul-tados mais elaborados eram obtidos numa cadeia formal de argumen-tao que se iniciava com pressupostos bsicos, noes fundamentais, axiomticas ou primitivas. Aps as reformas educacionais francesas dos anos 1790-1800, em grande parte sustentadas pelos ideais ilumi-nistas (uma alterao que, embora muito significativa e revolucionria, vigorou por muito pouco tempo), elementar passou a significar introdutrio, simples, e a caracterizar essencialmente as obras voltadas para o ensino. nesse sentido, por exemplo, que se pode di-ferenciar um ttulo como Trait du Calcul Differentiel et du Calcul In-tegral, de um lado, e Trait lmentaire du Calcul Differentiel et du Calcul Integral, do outro (Garnica, Gomes & Andrade, 2012).

    Foi considerando esse sentido mais contemporneo que op-tamos por chamar este livro de Elementos de Histria da Educao Ma-temtica: quando o elaboramos, entendemos que ele deveria voltar-se discusso de algumas questes fundamentais a esse campo de co-nhecimento, mas que deveramos discuti-las de um ponto de vista introdutrio, pois o pblico visado por ns no constitudo pelos

  • 8 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    pesquisadores especializados, mas sim pelos recm-chegados Edu-cao Matemtica, sejam eles estudantes iniciantes em programas de ps-graduao ou estudantes de graduao; sobretudo de cursos de licenciatura, cuja formao acadmica inicial contm disciplinas em que temas historiogrficos relativos ao ensino e aprendizagem da Matemtica tm ou poderiam ter espao.

    A meta de produzir um material introdutrio implicou, para ns, autores, no apenas considerar temas julgados centrais His-tria da Educao Matemtica, mas tambm abord-los numa lin-guagem acessvel. Os temas eleitos foram alguns conceitos-base do trabalho com Historiografia (como as noes de Histria e Historio-grafia, de fontes historiogrficas, de procedimentos e metodologias para uma operao historiogrfica, de apropriao/mobilizao, de leitura), pensando-os, todos, no domnio da Educao Mate-mtica, j que os autores no so historiadores, e sim professores de Matemtica e pesquisadores em Educao Matemtica que tm a Histria como potente aliada para suas prticas de investigao. Alm disso, pensamos em privilegiar, no livro, a discusso sobre a possibilidade de implementar efetivamente, como experincia para o ensino e para a pesquisa, esses temas.

    A operacionalizao desses temas para as salas de aula acarretou no apenas discutir aspectos subjacentes a intervenes possveis, mas a discusso de implementaes efetivas, ocorridas, e a propo-sio de implementaes potencialmente significativas. Assim, neste texto h tanto a descrio de atividades realizadas com crianas em salas de aula do ensino fundamental, como exemplos de temas e modos de trabalhar com estudantes de cursos de licenciatura, em projetos de iniciao cientfica. Muitos dos captulos deste livro foram, inclusive, pensados e elaborados a partir de projetos de ini-ciao cientfica.

    O leitor perceber, ainda, a opo preferencial por focar temas relativos aos anos iniciais do atual ensino fundamental ou ao que, no passado, foi chamado de escola de primeiras letras. Essa dispo-sio est vinculada ao fato de a maioria dos captulos ter sido elabo-rada a partir de um trabalho de doutorado no qual um grupo

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 9

    escolar1 foi um dos personagens centrais. Essa opo foi intencional no apenas para que o livro pudesse servir tambm aos cursos de Pe-dagogia, mas para exemplificar um dos princpios fundamentais que o livro defende: essencial, ao praticar Histria da Educao Mate-mtica, explicitar o lugar do autor, o espao a partir do qual o autor fala. Isso exige, j nesta introduo, uma explicao prvia.

    Num dos captulos deste livro, o leitor deparar-se- com a afir-mao de que

    a proposta didtico-pedaggica dos grupos escolares, centrada na trade escrever-ler-contar, formalmente no privilegiava um desses eixos em detrimento dos outros, mas no equivocado afirmar que, se procurssemos uma nfase temtica, ela certamente recairia sobre o domnio da leitura e da escrita de modo que tais competncias pu-dessem apoiar o surgimento de um esprito cvico e de civilidade. Os livros de leitura, usualmente, valiam-se de fbulas, contos de fundo moral, ensinamentos relativos higiene e ao comportamento em so-ciedade. Nesse cenrio, a Matemtica no se revelar de forma no-tvel ou diferenciada. Alfabetizar matematicamente equivaleria a ensinar os modelos elementares de contar e operar aritmeticamente e parte de uma estratgia que no pode ser percebida como sepa-rada da estrutura da instituio e, portanto, das outras disciplinas e intenes pedaggicas gerais dos grupos escolares. Nesse sentido, o estudo dessas instituies de ensino difere significativamente, por exemplo, do das escolas secundrias, cujos programas de Matem-tica eram discutidos paralelamente aos das demais disciplinas, em meio a uma poltica educacional que, em seu incio, demandou uma

    1. Os grupos escolares foram instituies de ensino de primeiras letras criadas no Brasil no fim do sculo XIX e extintas em meados da dcada de 1970. O tra-balho em questo a tese de doutorado de Luzia Aparecida de Souza (Souza, 2011), defendida no Programa de Ps-Graduao em Educao Matemtica da UNESP/Rio Claro sob a orientao de Antonio Vicente Marafioti Garnica. A variedade de fontes criadas para esse estudo e a multiplicidade das abordagens metodolgicas mobilizadas justificam tom-lo como elemento de base para este livro.

  • 10 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    dinmica poltica de enfrentamentos pblicos dentro da prpria rea, sem muita vinculao aos demais campos. Assim, ainda que o estudo dos grupos escolares no revele, inicial e propriamente, as questes matemticas, ele est legitimamente inscrito nos hori-zontes da pesquisa em Educao Matemtica.

    Mais explicitamente, queremos sublinhar que quem fala sobre os grupos escolares ou sobre o ensino de primeiras letras ou sobre Histo-riografia, aqui, neste livro, so educadores matemticos tentando se apropriar de um conhecimento para a Educao Matemtica e a partir desta, ainda que em contato muito prximo com outras reas do conhe cimento nas quais, possivelmente, esses temas j foram mais plena ou profundamente abordados. Entretanto, se uma parte signifi-cativa dos captulos ter como atores prticas e contedos escolares diversos e no apenas aqueles naturalmente associados ao ensino de Matemtica, alguns captulos voltam-se mais especificamente a t-picos ligados Matemtica do ensino superior ou chamada Ma-temtica Cientfica e, nesses captulos, os leitores notaro uma proximidade temtica muito forte com a Histria da Matemtica. Do mesmo modo, assumimos, tambm nesse caso, que importa quem fala e de onde se fala: a inteno, ao trazer para a discusso aspectos sobre a criao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Uni-versidade de So Paulo (FFCL/USP) e, particularmente, dentro dessa instituio, sobre a criao e o funcionamento inicial da Seo de Matemtica , bem como ao abordar a realizao do I Colquio Bra-sileiro de Matemtica, privilegiar a importncia dessas histrias, fazen do delas tpicos extremamente relevantes para a Histria da Educao Matemtica.

    At aqui, escrevemos sobre os temas que este livro discute e a partir de qual lugar essas discusses so feitas. Sobre o modo de fazer o que se pretende, dissemos que optamos por uma linguagem mais sim-ples, acessvel a estudantes de graduao e de incio de ps-graduao, para os quais esses temas podem ser interessantes ou importantes.

    Mas, alm disso, queremos ressaltar, ainda considerando o modo como as discusses so feitas, um outro fator. Com efeito, a ns pare-

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 11

    ceria natural que o leitor perguntasse por que, se tematizamos em boa parte do livro a escolarizao inicial e os contedos mais elementares de Matemtica tratados nesses nveis iniciais, o ttulo do livro no oferece indicaes nesse sentido. A justificativa simples: este livro no tenta, propriamente, contar a histria dos grupos escolares, nem tenta contar a histria da Seo de Matemtica da Universidade de So Paulo, ou do I Colquio Brasileiro de Matemtica, ou do Movimento Matemtica Moderna, ou de qualquer outro evento ou situao que seja. Nossa inteno problematizar a Histria da Educao Matemtica, discutir alguns de seus temas a partir de eventos e situaes especficas. Assim, os grupos escolares, os contedos matemticos, a Faculdade de Filo-sofia, Cincias e Letras da USP, o I Colquio Brasileiro de Matem-tica, a Escola Nova ou o Movimento Matemtica Moderna no figuram aqui como protagonistas, mas como disparadores de uma discusso sobre a Histria da Educao Matemtica e suas potencialidades, os modos de conduzir pesquisas e intervenes nesse campo e, sobretudo, como meio de exemplificar a concepo de Historiografia que defen-demos: a Histria da Educao Matemtica no um campo em que meramente se estuda o passado da Educao Matemtica, mas um campo em que se problematiza o passado a partir do presente.

    Finalmente, uma ltima considerao: pensamos em elaborar os captulos independentemente uns dos outros, para que o leitor os leia na ordem que julgar mais adequada e para que o professor dos cursos de licenciatura possa recortar um texto ou outro para usar como apoio em suas disciplinas ou mobiliz-los, todos, numa sequncia que aten-da a seu plano de curso. Para auxiliar o leitor a fazer suas opes, des-crevemos a seguir, em linhas gerais, os temas e as abordagens de cada um dos captulos em suas intenes especficas.

    Captulo por captulo

    O captulo 1, Educao Matemtica, Histria, Histria da Ma-temtica e Histria da Educao Matemtica, foi elaborado para ser-vir como introduo geral ao livro, j que nele so discutidos elementos

  • 12 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    centrais (o que Histria; como se faz Histria; o que so fontes; como as fontes tm sido mobilizadas; do que trata a Histria da Educao Matemtica; quais diferenciaes podem ser feitas entre Histria da Matemtica e Histria da Educao Matemtica, entre Histria e Historiografia, entre fontes e documentos; aspectos gerais das meto-dologias para a prtica da Historiografia, entre outros) que sero reto-mados amide em todos os demais captulos.

    O captulo 2, Sobre propostas de interveno: Histria e histori-cidade como temas no cotidiano escolar vem dividido em trs sees, e concerne a maneiras como poderiam ser mobilizados alguns dos te-mas discutidos no captulo anterior em projetos de interveno efetiva em escolas. A primeira seo, Circunstncias: acasos e intenes, explicita os bastidores de uma interveno realizada com crianas e que teve como objetivo discutir com as crianas e com seus profes-sores o conceito de historicidade prxima, ou seja, despert-las para a histria que as cerca e que as constitui como seres histricos num lugar especfico (sua vizinhana, sua casa, sua escola, seu bairro, sua cidade), repleto de resduos do passado que podem e devem ser inter-rogados no presente. A interveno, ela prpria, fundamentada, descrita e analisada na segunda seo do captulo, Crianas e orali-dade: iniciativas e possibilidades na construo de verses histricas. Essa iniciativa relatada guiada mais fortemente pela metodologia da histria oral, ainda que a ela se junte a iniciativa de recuperao de acervos escritos e iconogrficos. Uma possibilidade mais diretamente voltada a intervenes escolares a partir da recuperao e estudo de arquivos segue discutida na terceira seo do captulo, A recuperao de acervos e o estudo de seus materiais, na qual se sugere a potencia-lidade do trabalho direto em (e com) arquivos de fontes escritas para a elaborao de estratgias de interveno e modos eficientes e exe-quveis para recuperao e organizao de acervos.2 Mais especifica-

    2. Um projeto de recuperao (realizado com alunos de iniciao cientfica) foi efe-tivamente implantado e suficientemente descrito nessa terceira seo, ainda que no seja dado a esse projeto o mesmo relevo dado quele realizado com as crianas, apresentado na segunda seo do captulo.

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 13

    mente, ao final dessa parte, so comentados aspectos de uma metodologia especfica, a hermenutica de profundidade, para con-duzir as anlises de textos, sejam eles escritos, iconogrficos, arqui-tetnicos, orais, ou de qualquer outro tipo.

    Depois de abordados alguns temas bsicos para a Histria da Edu-cao Matemtica e projetos possveis de interveno nesse campo, uma metodologia especfica, a histria oral, desenvolvida numa rea especfica, a Educao Matemtica, pauta as discusses do captulo 3, Histria oral e histria oral em Educao Matemtica. Nesse texto, alguns elementos mais procedimentais, como as textualizaes efeti-vados discretamente nas intervenes do captulo anterior, mas mobi-lizados, com maior nfase, em alguns dos captulos seguintes , so esmiuados. Ademais, so dados exemplos de pesquisas conduzidas segundo essa metodologia. Nesses exemplos, voltam cena as escolas de primeiras letras, mas surgem tambm as escolas secundrias e os projetos de formao de professores em cursos superiores ou em cur-sos localizados, como os promovidos pela Campanha de Aperfei-oamento e Difuso do Ensino Secundrio, a Cades, implantada no Brasil na dcada de 1950.

    A possibilidade de analisar imagens mais especificamente as fotografias o tema do captulo 4, Analisar imagens em estudos historiogrficos: parmetros, possibilidades e exemplos. Parte-se do princpio de que as fontes iconogrficas podem desempenhar, nos es-tudos em Histria da Educao Matemtica, um papel menos coad-juvante do que, por exemplo, o de servir apenas como ilustrao. Assim, tenta-se compreender esse recurso trazendo, ao mesmo tempo, exemplos de anlises especficas. Visa-se, tambm, com esse captulo, complementar a abordagem das possibilidades procedimentais e me-todolgicas para a prtica da Histria da Educao Matemtica, j que a oralidade e os documentos escritos so tematizados mais deta-lhadamente em outros captulos.

    Memrias de uma escola isolada rural: um exerccio de anlise documental, o captulo 5, um estudo sobre um determinado tipo de instituio de ensino as escolas isoladas , desenvolvido tendo como recurso apenas documentao escrita. Ao mesmo tempo que com-

  • 14 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    plementa a discusso sobre a escolarizao voltada s primeiras letras, concentrando-se em escolas elementares vinculadas a grupos esco-lares, mas afastadas dos centros urbanos, o estudo serve de exemplo para a possibilidade de mobilizar sobretudo materiais escritos no as fontes orais, nem as fontes iconogrficas, tematizadas em outros cap-tulos , como os livros de registros escolares (cuja recuperao as-sunto do segundo captulo).

    Os trs captulos seguintes (os captulos 6, A Faculdade de Filo-sofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo; 7, O Mo-vimento Matemtica Moderna; e 8, O I Colquio Brasileiro de Matemtica), ao mesmo tempo que trazem cena trs assuntos im-portantes da Histria da Educao Matemtica, so tambm exem-plos da aplicao de um dos procedimentos bsicos da histria oral: as textualizaes. Assim, nesses captulos, as textualizaes ou o exer-ccio de textualizar integralmente determinada fonte oral ou comple-mentar textualizaes ou transcries previamente disponveis so mobilizadas no apenas como exemplos de operaes legtimas e signi ficativas para conhecer determinadas situaes e eventos, mas tambm como possibilidades de apoiar intervenes em salas de aula nas quais se pretende desenvolver estudos e projetos em Histria da Educao Matemtica.

    Os dois ltimos captulos, assim como ocorre nos trs captulos anteriores, podem ser concebidos como formando um nico bloco: ambos focam movimentos educacionais bastante conhecidos, cujo impacto na Educao e na Educao Matemtica inegvel: tratam--se do Movimento Matemtica Moderna (j apresentado, a partir de uma perspectiva, no captulo 7) e do Movimento Escola Nova. Esses movimentos, entretanto, so aqui problematizados luz de um con-ceito que jul gamos fundamental aos estudos em Histria da Educao Matemtica, qual seja, o da mobilizao/apropriao. Defendemos que um texto constitui-se a partir da leitura e que, portanto, importa fundamentalmente o significado atribudo a esse texto por um deter-minado leitor, na ati vidade de leitura. Pensar o Movimento Matem-tica Moderna e o Movimento Escola Nova como textos o que de modo algum estranho se considerarmos a virada hermenutica que

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 15

    se impe nas Cincias Sociais a partir da dcada de 1970 implica considerar as vrias leituras possveis, pelos vrios leitores possveis, desses movimentos. Implica conside rar como esses leitores mobili-zam, em suas prticas, no os movimentos propriamente ditos,3 mas as leituras que fazem desses movi mentos e a partir das quais criam hbitos de ao que adotaro em suas prticas cotidianas, por exemplo, nas salas de aula. Assim, os captulos 9 (Os movimentos Matemtica Moderna: mobilizaes) e 10 (Os movimentos Escola Nova: mobilizaes) discutem esse tema especfico apresentando es-tudos que tiveram como fontes tanto textos escritos quanto orais ser-vindo tambm, ento, como exemplos no apenas da problematizao de determinados temas (no caso a Matemtica Moderna e a Escola Nova) para a Histria da Educao Matemtica, mas da possibilidade e potencialidade de imbricar, num mesmo estudo, diferentes mate-riais de suporte e distintos tipos de anlise.

    A defesa das potencialidades criativas e criadoras que provm do entrecruzamento de temas distintos e de fontes, procedimentos meto-dolgicos e formas de anlise diversos , em ltima instncia, o tema central deste livro.

    Os autores

    3. preciso considerar que, segundo essa abordagem, no existe algo chamado Movimento Matemtica Moderna ou algo chamado Movimento Escola Nova, mas leituras desses movimentos, significados atribudos por agentes es-pecficos em lugares e situaes especficas. Ou seja, importa, aqui, o modo como determinados atores sociais leitores se apropriam de determinadas prescries, legislaes, resduos comunicativos, entre outros, e, a partir deles, criam suas prticas cotidianas visando efetivar ou subverter o que pensam ser essas prescries, o que pensam determinar essas legislaes, etc. O termo apropriao, entretanto, carrega em si a existncia de algo prvio (ou seja, apropriar-se pode significar tornar prprio algo preexistente), o que contradiz a ideia que aqui tentamos defender. Por isso, utilizamos, ao menos inicialmente, o termo mobilizao para fazer referncia a essa disposio de tornar pr-prio, j que todas as atribuies de significado so criaes primeiras e no (re)criaes ou retomadas de significados j existentes. Tendo elaborado essa ideia, podemos passar a usar tanto o termo mobilizao quanto o termo apro-priao.

  • 1EDUCAO MATEMTICA, HISTRIA,

    HISTRIA DA MATEMTICA E HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA

    Neste captulo pretendemos discutir algumas articulaes entre Histria e Educao Matemtica no contexto da formao de profes-sores de Matemtica. Segundo nossa concepo de formao, pr-tica inerente desse contexto a investigao cientfica, ou a postura investigativa.

    Interessados em motivar ou at talvez viabilizar as prticas investigativas nas salas de aula dos futuros professores (nas licen-ciaturas) e dos professores em exerccio (nos ensinos fundamental e mdio), tentamos, neste livro, propor estudos e anlises que possam orientar os leitores quanto postura docente e aos recursos didticos que podem ser utilizados em suas aulas de Matemtica. Entretanto, no nosso intuito listar uma sequncia de procedimentos e exerccios a serem aplicados diretamente em sala de aula. na interao cons-tante entre professor e alunos que se torna possvel avaliar a adequao ou eficincia de um mtodo ou exerccio. O que funciona bem em uma sala pode no funcionar em outra, e certo que toda proposta seja geral, como essa, seja especfica requerer adequaes.

    As possibilidades (pedaggicas e didticas) para o ensino so muitas e nenhum curso de licenciatura conseguiria apresentar e dis-cutir todas e cada uma delas. Assim, um eixo fundamental na for-mao do professor a necessidade de esses cursos serem pautados

  • 18 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    pela inteno de motivar provocar seria um verbo at mais adequado o aluno a desenvolver uma atitude crtica e comprometida em re-lao sua profisso, criando/alimentando/mantendo nele o desejo pela busca constante por novas formas de interveno, outros modos de dizer e fazer, novas e diferentes perspectivas que devem ser imple-mentadas para um ensino de Matemtica cada vez mais significativo.

    Interlocues

    Refletir, atuar e sistematizar so trs componentes essenciais ao que chamamos postura investigativa. A Educao Matemtica uma prtica social e a comunidade que a produz, que nela atua, que sobre ela reflete, que a sistematiza, volta-se para compreender a Matem-tica em situaes de ensino e aprendizagem. Pode-se, em princpio, assumir que existe uma abordagem mais prtica da Educao Mate-mtica, desenvolvida por todos aqueles que, em um ambiente ou outro, em um momento ou outro, ensinam Matemtica; e existe tambm uma abordagem mais terica da Educao Matemtica, de-senvolvida por todos aqueles que fazem pesquisa nessa rea em insti-tuies acadmicas. Essa , porm, uma diferenciao simplista, mas que deve servir por enquanto para uma discusso sobre Educao Matemtica que, pensamos, ser refinada no decorrer deste livro. Se dizemos que essa abordagem simplista porque, dentre outros in-meros fatores, os professores de Matemtica no necessariamente apenas do aulas de Matemtica, mas tambm devem (ou deve-riam) refletir e sistematizar essas reflexes sobre suas prticas. Por outro lado, os pesquisadores em Educao Matemtica no poderiam (ou no deveriam) produzir suas pesquisas em total desvinculao dos locais e situaes em que se ensina e aprende Matemtica, das prticas efetivas mobilizadas para ensinar Matemtica. Mais ainda: no apenas nas salas de aula, nem nas escolas, que se ensina e se aprende Matemtica (h inmeras outras instncias e situaes em que o en-sino de Matemtica se manifesta e que, portanto, fazem parte do ce-nrio no qual o educador matemtico transita).

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 19

    A Educao Matemtica, como um campo de investigao, , se-gundo Maria ngela Miorim e Antonio Miguel,1 um campo aut-nomo de investigao, o que significa j existir uma comunidade relativamente bem configurada de pesquisadores2 que atuam nessa rea, bem como publicaes,3 cursos de formao,4 interferncias po-lticas especficas, eventos prprios,5 etc.

    As pesquisas em Educao Matemtica, sempre voltadas a com-preender a Matemtica em situaes de ensino e aprendizagem, en-volvem investigaes sobre diversos temas (que muito frequentemente so chamados de linhas de pesquisa em Educao Matemtica): o estudo de currculos, a formao de professores, a criao e anlise de situaes didticas, as potencialidades metodolgicas da modelagem matemtica, a Histria da Matemtica como recurso para o ensino dessa cincia, a resoluo de problemas, a informtica e as outras m-

    1. Maria ngela Miorim e Antonio Miguel so professores da Faculdade de Edu-cao da Unicamp, com extensa produo no campo da Educao Matemtica. de autoria da profa Maria ngela Miorim o livro Uma introduo Histria da Educao Matemtica brasileira, um dos primeiros exerccios de sistematizao relativos a uma das reas tratadas por este captulo, o que a torna uma das precur-soras no estudo desse tema no Brasil.

    2. Os currculos de pesquisadores brasileiros podem ser todos consultados, integral e gratuitamente, na Plataforma Lattes do CNPq, bastando acessar . No currculo Lattes h informaes para contato, formao, atuao e todas as publicaes (em livros, revistas, anais de eventos) e projetos com os quais o pesquisador est ou esteve envolvido.

    3. Citamos como exemplo o Boletim da Educao Matemtica (Bolema), a Revista Zetetik, da Unicamp, e o Boletim Gepem, as trs mais antigas publicaes da rea no Brasil. Esses peridicos esto todos disponveis on-line, gratuita e integral-mente.

    4. Como as licenciaturas em Matemtica, nas quais a Educao Matemtica tema central, discutido formalmente em disciplinas especficas, e os programas de ps--graduao em Educao Matemtica e em Ensino de Cincias e Matemtica.

    5. Citamos, como exemplos, o Encontro Brasileiro de Estudantes de Ps-Gra-duao em Educao Matemtica (Ebrapem), o Encontro Nacional de Educao Matemtica (Enem), o Seminrio Nacional de Histria da Matemtica (SNHM) e o Seminrio Internacional de Pesquisa em Educao Matemtica (Sipem), que so eventos realizados no Brasil. H, ainda, os eventos internacionais, como o Psychology of Mathematics Education (PME), o International Congress on Ma-thematics Education (ICME), etc.

  • 20 AntonioVicenteMArAfiotiGArnicA LuziAApArecidAdeSouzA

    dias como formas de apoiar o ensino de Matemtica, a Filosofia da Matemtica e da Educao Matemtica, o estudo das relaes entre matemticos e educadores matemticos, da Matemtica do ma-temtico e da Matemtica do professor de Matemtica, a Psico-logia da Educao Matemtica, a Histria da Educao Matemtica, a alfabetizao em Matemtica, a linguagem matemtica em seus ml-tiplos vnculos com outras linguagens, a Etnomatemtica, as concep-es de professores, alunos e familiares, o estudo das tendncias de pesquisa em cada uma dessas temticas, das metodologias de pes-quisa criadas/efetivadas na rea, dentre outros tantos temas.

    Assim, tambm um reducionismo pensar Educao Matemti-ca como um mero sinnimo de ensino de Matemtica, ou consider-la como um campo cujos esforos, todos, so, sempre e apenas, voltados a desenvolver atividades julgadas interessantes para ensinar Matem-tica (ainda que desenvolver estratgias visando a um ensino mais efi-ciente e a uma aprendizagem mais significativa de Matemtica seja um foco importante da Educao Matemtica).

    Dados seus interesses, as pesquisas vinculadas a essa rea tm se estruturado a partir da interlocuo com, por exemplo, a Psicologia, a Matemtica, a Educao, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Histria, dentre outras, pois pensar a Matemtica em situaes de ensino e aprendizagem implica compreender quem aprende, como se pode aprender, em quais situaes vivem os que aprendem e ensinam, quais recursos esto (ou poderiam estar) mo, como se relacionam os que ensinam e aprendem Matemtica, etc. Ou seja, o prprio ob-jeto da Educao Matemtica (o ensino e a aprendizagem de Mate-mtica) interdisciplinar, e entend-lo obriga o educador matemtico a transitar por muitas reas e cenrios, conhecer diversos tericos e experincias.

    Neste livro estamos mais diretamente interessados em discutir a Histria da Educao Matemtica e, neste captulo especificamente, queremos traar algumas linhas demarcatrias entre a Histria da Matemtica e a Histria da Educao Matemtica. Podemos iniciar essa discusso estabelecendo que cabe Educao Matemtica es-tudar como, no tempo, se tm desenvolvido as produes, como se

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 21

    tm dado as alteraes e manutenes nesse grande cenrio em que a Matemtica, seu ensino e sua aprendizagem acontecem. Trataremos, portanto, de Histria, e por isso importante iniciarmos pensando sobre o que Histria.

    A Histria, ou, mais propriamente, a Historiografia,6 ser aqui pensada, de forma geral, como o estudo dos homens no tempo e no espao. Mas como no se vive s, e sim em comunidade, poderamos enunciar essa concepo de Histria exatamente como faz Marc Bloch, um historiador francs do incio do sculo XX: a Histria o estudo dos homens, vivendo em comunidade (esse um acrscimo nosso conhecida frase de Bloch), no tempo.

    o mesmo Marc Bloch quem nos ensina que a Histria no , propriamente, o estudo do passado (como usualmente ouvimos di-zer), mas uma cincia nutrida pelo dilogo entre o presente e o pas-sado, um dilogo no qual o presente sempre toma a frente, pois no presente que nos surgem questes cujas respostas podem ter mais sig-nificado se as entendermos em seu processo de constituio, que se d no tempo. Do mesmo modo que a noo de Histria como cincia do passado deve ser questionada (como fizemos antes), tambm deve-mos observar que no existe uma nica Histria, ou uma Histria verda deira, ou, ainda, uma reconstituio verdadeira do passado. O que existem so verses histricas, construdas, com rigor,7 a partir de

    6. Podemos fazer uma distino entre Histria e Historiografia. Histria seria como que o fluxo em que as coisas ocorrem no tempo, e a Historiografia seria o registro desse fluxo, as narrativas a partir das quais podemos conhecer e tentar compreender aspectos desse fluxo. A disciplina escolar que comumente chamamos de Histria , na verdade, a tentativa de compreenso da Histria (do fluxo em que vivemos) a partir de fontes e anlises historiogrficas. Resumindo, a Histria o fluxo con-tnuo em que vivemos; a Historiografia o registro e estudo desse fluxo a partir das informaes que se tem sobre ele. Neste texto, entretanto, vamos usar Histria e Historiografia de uma forma mais livre que , inclusive, usual.

    7. Note que, embora afirmemos que no h algo a que se possa chamar A Histria verdadeira, mas verses histricas, assumimos tambm que as verses, quais-quer que sejam, devem ser construdas legitimamente, plausivelmente, ainda que no haja convergncia entre as verses. No se faz Historiografia de qualquer jeito. H regras para isso, h procedimentos. Mas, mesmo seguindo rigorosa-

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    uma diversidade de fontes. Sendo assim, preciso ter cuidado: neste livro, quando falamos de Histria, tentamos falar a partir de um modo alternativo quele que grande parte de ns aprendeu nas escolas. Se-gundo uma viso que julgamos j ser ultrapassada, a Histria era vista como a cincia que buscava a origem das coisas e cujo principal inte-resse estava em ligar datas a fatos e a nomes prprios. Esse modo de conceber Histria, aos poucos, tem se alterado. Vejamos um exemplo bem ntido disso. As antigas atas de um grupo escolar, uma escola pri-mria que funcionou numa cidade do interior do Estado de So Paulo de 1920 a 1975, registram que no dia 18 de julho de 1942, em uma das reunies pedaggicas dessa escola, os professores ouviram uma srie de orientaes sobre o ensino de Histria. Essas orientaes aos pro-fessores foram cuidadosamente registradas:

    a) Dizer com presteza que fizeram: Caxias, Barroso, Antonio Joo, Padres Nbrega e Anchieta, Feij, Calabar, Jos Bonifacio, Oswaldo Cruz, Santos Dumont, Rodrigues Alves, Princesa Isabel, Tira-dentes, Jos do Patrocinio, etc.; b) Dizer com presteza o que lem-bram essas datas: 1554, 1532, 1624, 1792, 1808, 1815, 1822, 1831, 1888, 1889, 1930, etc.; c) Por que so gratas aos brasileiros as datas: 15 de novembro, 7 de setembro, 13 de maio, 19 de novembro, 19 de abril, etc.? [...] Feito isto, [o professor] falar sobre o povoa-mento do Brasil, partindo dos trs troncos principais: No norte: Maria do Espirito Santo Arcoverde (filha do cacique Arcoverde) que se casou com Jernimo de Albuquerque. No centro, Paragua (filha do cacique Taparica) que se casou com Diogo lvares Corra. No sul, Bartira (filha do cacique Tibiri) que se casou com Joo Ra-malho. Organizadas as primeiras famlias, estas se multiplicaram e formaram assim o nosso povo.

    mente esses procedimentos, o que deles resulta so verses que podem reforar ou contradizer outras verses, e todas so verses legtimas se constitudas de modo fundamentado, plausvel, argumentado. Assim, defendemos que o que rege a ela-borao de verses historiogrficas no a veracidade, mas a plausibilidade.

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    A Histria, nessa verso escolar mais antiga, voltava-se a nomes (e no a quaisquer nomes, mas aos nomes dos heris, dos grandes au-tores, dos grandes cientistas, etc.), datas, acontecimentos pontuais e buscava pela origem, nesse caso, do que reconheciam, poca, como sendo o povo brasileiro. Como outro exemplo interessante para esta nossa discusso sobre as abordagens historiogrficas e os interesses e verses histricas, podemos citar mais especificamente a Proclamao da Repblica. A Historiografia contempornea afirma que a Rep-blica, no Brasil, no foi um projeto popular, como ocorreu, por exem-plo, na Frana.8 A elite nacional apoiou o movimento que resultou na instituio da Repblica, mas o povo estava alijado desse processo. Portanto, uma das primeiras tarefas do novo governo foi tornar popu-lar, tornar conhecido e aceito, o regime republicano. Essa populari-zao envolveu a criao de escolas especficas (nas quais as crianas eram ensinadas a honrar e admirar a nova forma de governo), a criao de heris especficos (Tiradentes, por exemplo, o primeiro heri criado pela Repblica),9 e a memria de situaes especficas (uma

    8. Na Frana, a Revoluo Francesa, no final do sculo XIX, culminou na queda da Monarquia (no tempo em que Lus XVI e Maria Antonieta, entre outros tantos, foram guilhotinados) e envolveu um grande nmero de manobras polticas, como a constituio de assembleias constituintes nas quais tomavam parte represen-tantes de vrios segmentos da populao. Mesmo que o povo propriamente di-zendo no participasse formalmente desse movimento, a discusso sobre a necessidade de novos tempos, de novos rumos, de novas polticas alcanava a rua, e o que se teve como resultado desse processo foi a promulgao de um regime republicano com participao popular.

    9. Joaquim Jos da Silva Xavier apelidado Tiradentes pela habilidade em arrancar dentes sem ter formao especfica para isso o maior heri nacional brasileiro, tido como mrtir do movimento que levou o Brasil independncia de Portugal. Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1792. Tanto sua biografia quanto os traos de seu carter so incertos, vagamente registrados: de Tiradentes no conhecemos um esboo fisionmico confivel, nem podemos de-cidir se foi um consistente revolucionrio ou apenas uma personagem til s causas da Repblica implantada no pas em 1889. Dentre tantos revolucionrios de biografia mais documentada, com configurao de carter e fisionomias menos lacunares, foi Tiradentes o escolhido a representar o sucesso da causa republicana: to logo proclamada a Repblica, j o dia 21 de abril de 1890 foi feriado. O regime militar, em 1965, declarou Tiradentes Patrono da Nao

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    memria criada, na qual batalhas, conquistas, heris, etc. comearam a participar do imaginrio popular e se tornaram parte indistinta da memria do povo, como se sempre tivessem existido e como se sua importncia fosse inequvoca). A Historiografia republicana uma historiografia nacionalista, pois feita para defender alguns interesses especficos, no caso o interesse do recm-criado projeto repu blicano mostra que a Histria no neutra; movida por interesses e cria as verses que so vistas como adequadas para uma determinada comu-nidade num determinado tempo.

    Devemos tambm ressaltar e esse talvez seja outro modo de en-tender o que Histria10 que h, sempre, mudanas e permanncias, pois, no fluxo temporal, algumas coisas se alteram (com menos ou mais rapidez) e outras se mantm (por um certo tempo, s vezes longo, s vezes curto... s vezes demasiadamente longo).

    O movimento histrico no um movimento contnuo, linear. Do mesmo modo que as coisas se alteram, muitas permanecem sem alterao. Um bom exemplo disso, j que estamos tratando de His-tria da Educao Matemtica que muito prxima da Histria da Educao , o caso do uniforme escolar. Se fizermos um estudo sobre os uniformes escolares (esse elemento to usual, to cotidiano), veremos que ele permanece como uma caracterstica do sistema escolar. Usam--se uniformes (na escola, nas fbricas, nos hospitais, etc.) desde tempos

    Brasileira. Os espaos em branco no registro de sua trajetria permitiam que ele fosse visto por uns como o defensor dos valores que os militares pretendiam re-presentar e, por outros, como um revolucionrio contrrio aos valores defendidos pelo poder institudo. Sobretudo, agradava populao a fuso de dois aspectos: o Tiradentes heri defensor da Ptria e o Tiradentes cone religioso que, como um quase Cristo, protagonizou uma paixo, percorrendo seu calvrio. Mas, sobre-tudo e este o trao que pretendemos realar , Tiradentes havia nascido no Estado de Minas Gerais. Ao contrrio de outros estados brasileiros onde viveram grandes revolucionrios, defensores das causas da ptria, Minas Gerais consti-tuiria, j em meados do sculo XIX, com os estados de So Paulo e Rio de Janeiro, o centro poltico do pas.

    10. Nesse sentido, podemos dizer, por exemplo, que a Historiografia o estudo das alteraes e permanncias das coisas no fluxo temporal. A Historiografia o es-tudo da durao, e tudo, no tempo, vive entre mudanas e manutenes.

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    muito antigos. O uniforme serve para diferenciar, criar uma identidade comum, vincular certos indivduos a um grupo, a uma instituio, constituindo como que alguns laos que se julga necessrio manter. Em tempos passados, vimos, por exemplo nas escolas religiosas, que os estudantes usavam batinas como uniformes, o que os vinculava no s a uma comunidade escolar, mas a uma comunidade escolar bem mar-cada, diferenciada por sua opo pela religiosidade. O uniforme, em-bora seja um elemento que permanece no sistema escolar, tambm muda. Hoje em dia, os uniformes no so os mesmos que os de antiga-mente; eles seguem os novos padres de moda, as novas possibilidades dos tecidos modernos, e no apenas isso: tambm servem a outras fun-es. Os uniformes continuam diferenciando os membros de um deter-minado grupo (uma determinada escola, por exemplo), mas essa diferenciao, atualmente, responde tambm a um outro fator: a segu-rana dos elementos desse grupo, j que vivemos numa poca mais con-turbada, em alguns aspectos, do que as passadas. Como o fluxo histrico se desenvolve entre manutenes e permanncias, tornou-se tambm anacrnico pensar na Historiografia como tendo a funo de buscar a origem das coisas: a origem uma iluso o mesmo Marc Bloch dizia que devemos derrubar o dolo das origens , j que sempre pode-remos retornar para um antes do antes do antes. Por exemplo, buscar pelas origens da escola brasileira significa voltarmos quantos anos no tempo? Se retornarmos dcada de 1950, veremos como o sistema se-cundrio comeou a ser constitudo (e o sistema de ensino secundrio da poca certamente desempenha algum papel no que hoje o ensino mdio no Brasil ou, pelo menos, nos ajuda a compreend-lo); se vol-tarmos a 1934, teremos a criao da primeira universidade (que certa-mente influenciou no movimento de constituio do sistema secundrio de ensino)... e, antes disso, houve a escola dos jesutas, pouco depois de o Brasil ser descoberto em 1500 (esse sistema jesutico teve certa-mente alguma influncia no modo como concebemos educao), mas os jesutas que aqui vieram eram europeus, e viviam em pases onde os sistemas educacionais so bem mais antigos que os nossos (qual seria a influncia desses sistemas em nosso sistema?). Ou seja, sempre h um antes, e um antes, e um antes. Por isso, quando optamos por registrar

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    algo historicamente historiograficamente , parece mais sensato arbi-trar um incio, escolher um perodo, um ponto no tempo a partir do qual possamos falar. Afinal, a origem de algo no justifica que, hoje, esse algo seja assim ou assado. A origem no justifica a permanncia, pois o movimento histrico no pode ser apreendido linearmente. Na educao brasileira de hoje temos, certamente, a manuteno de alguns traos do que foi nosso sistema educacional no correr dos anos, mas nossas escolas, nosso sistema educacional, no o sistema dos jesutas, nem nossa universidade hoje o que era a primeira universidade brasi-leira (alguns traos dessa universidade, algumas marcas que serviram de modelo universidade de hoje, podem ter se mantido, mas houve muitas alteraes nesse modelo). Certamente aprendemos com a His-tria, mas isso no significa dizer que a Histria um movimento total-mente controlvel, que se deixa contaminar tanto pela origem que no permite que algo, tendo comeado de um modo, adquira, com o correr do tempo, caractersticas novas, transcendendo o que era, criando novas possibilidades, ou at mesmo regredindo. por isso tambm que, ao trabalhar com Histria de um ponto de vista contemporneo, temos deixado de lado a noo de progresso, ou seja, a perspectiva de que algo, a partir de sua origem, progride linearmente do mais velho para o mais novo, do mais atrasado para o mais adiantado, do antigo para o moderno, do lacunar para o pleno...

    Todas essas ideias vm tona quando falamos em Histria, quando optamos por praticar Historiografia. E para se pensar nas possibilidades de dilogo entre Histria e Educao Matemtica ne-cessrio, portanto, sempre considerarmos como concebemos Histria, at que ponto sabemos argumentar consistentemente pelas concep-es que temos e que, portanto, precisamos defender. Alm disso, deve-se reforar um ponto: nem a Educao Matemtica nem a His-tria (como se pretendia que fossem, em outros tempos) uma cincia exata. Ambas as reas trabalham com o estudo dos significados que algum produz/produziu para algo vivido ou sabido: a Histria se ali-menta da memria, pois impossvel resgatar o passado como se ele fosse uma coisa que, escondida ou esquecida, pudesse ser encontrada ou recuperada em si, exatamente como .

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    Mas quanto Histria da Educao Matemtica, por exemplo, o que se pode considerar depois de tantas coisas terem sido ditas? A Histria da Educao Matemtica exercita um dilogo entre Histria, Educao e Matemtica, chamando cena para esse dilogo uma vasta gama de outras reas do conhecimento. A Histria da Educao Matemtica visa a compreender as alteraes e permanncias nas pr-ticas relativas ao ensino e aprendizagem de Matemtica; dedica-se a estudar como as comunidades se organizavam para produzir, usar e compartilhar conhecimentos matemticos e como, afinal de contas, as prticas do passado podem se que podem nos ajudar a com-preender, projetar, propor e avaliar as prticas do presente.

    Recursos para a pesquisa historiogrfica

    Os estudos realizados a partir dessa interlocuo entre Educao Matemtica e Histria tm se valido das mais diversas fontes. Fontes so os resduos de que o historiador (ou o educador matemtico que decide trabalhar com a Histria da Educao Matemtica, ou o pro-fissional qualquer que seja ele que deseja compreender seu campo a partir de uma investigao historiogrfica) dispe ou os resduos que os historiadores criam para iniciar suas investigaes. H autores que fazem uma diferenciao entre fontes e documentos: fontes se-riam os resduos do passado que chegam at ns; documentos so as fontes que, num determinado momento, em determinadas condies e segundo determinados interesses tomamos efetivamente como re-cursos para uma investigao. Fontes podem existir ou ser criadas e permanecerem sem ser tomadas como recursos de pesquisa. Um an-tigo acervo de livros e registros numa biblioteca, por exemplo, tem fontes. Essas fontes, segundo alguns autores, s sero chamadas de documentos quando um leitor atento ler esses livros, estudar esses regis tros e, portanto, us-los como recursos para uma pesquisa espe-cfica. Neste livro como acontece na linguagem usual no cuida-remos de a todo momento diferenciar fontes de documentos, mas essa diferenciao traz, em si, um elemento fundamental que deve ser res-

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    saltado: o que importa a leitura, os significados que atribumos s coisas e no propriamente as coisas (em outras palavras, podemos afirmar que as coisas nada so se no nos damos conta delas). Isso, por sua vez, leva alguns autores a afirmar que um texto, em si, no existe: o que faz com que o texto exista a atividade de l-lo, a ao de atri-buir significado a ele: o texto a criao de uma leitura. Sem a leitura, um livro, por exemplo, um conjunto de folhas com sinais grficos registrados nelas. Note, tambm, que fontes e documentos no so apenas materiais em papel. H fontes orais (podemos registrar as coisas que as pessoas nos dizem por exemplo, quando fazemos uma entrevista com elas e usar essa fonte oral como documento oral, mesmo que esses registros da oralidade no fiquem apenas gra-vados, mas sejam transcritos e, portanto, gerem documentos escritos, criados a partir da oralidade); h fontes arquitetnicas (so comuns estudos sobre como um espao arquitetnico d significado a algumas prticas ou a alguns momentos da histria de uma comunidade, e mesmo a situaes muito comuns por exemplo, as grandes igrejas que ocupam um lugar de destaque nos centros das cidades, a fachada imponente das escolas antigas em relao s fachadas mais simples das escolas mais recentes, etc. podem nos dizer alguma coisa, ou seja, so formas arquitetnicas que podem ser lidas, tomadas como texto, para compreendermos as tramas sociais, econmicas, tempo-rais, etc. de uma determinada comunidade que vive ou viveu em meio a essas construes e que, via de regra, no atentam para elas);11 h

    11. Veja, por exemplo, esse pequeno artigo publicado num jornal de Bariri, uma ci-dade do interior do Estado de So Paulo, com o ttulo O Grupo Escolar Prof. Euclydes Moreira da Silva: narrativa e lugar de memria: No Brasil, ao con-trrio do que aconteceu, por exemplo, na Frana, a proclamao da Repblica no foi um movimento popular. Na Frana, a queda da Monarquia implicou uma srie de revoltas das quais participaram militares, polticos, filsofos, comer-ciantes, trabalhadores, etc. No Brasil, a passagem de um sistema imperial para um regime republicano foi um projeto pensado e desenvolvido pela elite. Disso resultou, nos anos que se seguiram a 1889, a necessidade de propagandear para a populao a natureza e as vantagens de um regime poltico novo. A estratgia para essa popularizao dos ideais republicanos envolveu diretamente a criao de smbolos (uma bandeira, os hinos, a inveno de um grupo de heris, etc.) que

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    passavam a representar o novo, o vitorioso, o correto, o justo, em detrimento do atrasado, do antigo, do equivocado, do elitizante. A educao do povo, portanto, deveria incorporar a defesa desses smbolos e, para isso, um novo sistema escolar foi pensado. Foi assim que surgiram os grupos escolares. At o Imprio, a for-mao das crianas acontecia em algumas poucas instituies criadas exclusiva-mente para esse fim e existentes apenas nas grandes cidades. Na maioria dos casos nas pequenas cidades, por exemplo havia pequenas escolas, que ocu-pavam prdios particulares ou, s vezes, um ou dois cmodos da casa de um pro-fessor pago pela comunidade para ensinar as primeiras letras isto , ler, escrever e contar s crianas. No havia, propriamente, um sistema educa-cional, mas iniciativas desvinculadas umas das outras, escolas isoladas. A ideia da Repblica foi agrupar essas escolas, reunindo-as pela proximidade. Com o tempo, foram construdos prdios prprios e uma legislao especfica para essa reunio de escolas. a isso que chamamos Grupos Escolares: uma escola que segue um conjunto especfico de leis e funciona num prdio prprio, reunindo escolinhas anteriormente existentes. A reestruturao educacional republicana ocorreu j a partir do ano de 1890, e a febre dessas construes durou at meados do sculo XX (na dcada de 1950 uma outra febre comeava a tomar conta do pas: a construo de prdios para o funcionamento das escolas secundrias). Os prdios dos Grupos Escolares eram estruturas enormes, vistosas, neoclssicas, pois tambm esses prdios eram smbolos republicanos: alm de reunir as escolas isoladas, tinham como funo mostrar populao que, ao contrrio do Imprio, a Repblica preocupava-se com a formao da infncia. A Repblica no cons-trua escolas, meramente: construa templos de saber. A organizao das ativi-dades escolares nesses Grupos envolvia tambm outras novidades: criou-se a seriao (ao contrrio do que acontecia at ento, os anos de vida escolar passaram a ser divididos em sries, cada srie ocupando uma sala, cada sala com seu pro-fessor, todos os professores coordenados por um diretor; cada aula num horrio marcado pelo relgio, cada srie seguindo um programa especfico...). Nada disso existia antes dos Grupos Escolares, e se hoje esse sistema de organizao comum, ele reflexo dessa poltica educacional do incio da Repblica. Em Ba-riri, exemplo disso o Grupo Escolar Prof. Euclydes Moreira da Silva, hoje Es-cola Municipal Prof. Euclydes Moreira da Silva (a estrutura dos Grupos Escolares foi extinta por volta do ano de 1975 e a administrao dos seus prdios passou, com o tempo, ao poder municipal). possvel perceber a estrutura monumental desse prdio, principalmente se considerarmos como era Bariri no incio dos anos de 1910, quando seu primeiro Grupo Escolar foi construdo. O prdio tem uma estrutura perfeitamente simtrica, com cada um dos lados destinado a um dos gneros: direita, as classes masculinas, esquerda as femininas, pois a rgida moral da poca exigia essa separao (ainda hoje as palavras meninos e me-ninas esto esculpidas na fachada). Isso nos mostra que tambm as estruturas arquitetnicas so uma forma de narrativa, pois elas nos contam coisas sobre a

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    fontes escritas e iconogrficas. Quando dizemos que fontes podem ser criadas, estamos nos referindo aos registros que um pesquisador cria para fazer sua pesquisa (por exemplo, uma entrevista que ele faz para conhecer prticas que interessam a ele), mas, de qualquer forma, uma fonte ou melhor, um documento, se considerarmos a distino aqui discutida sempre criada, independente de estar disponvel ou no, pois a leitura (e o leitor) que a faz dizer alguma coisa, o leitor, no ato da leitura, que atribui significado fonte, que a faz falar, tornando-a documento.

    importante reiterar que a pesquisa historiogrfica se orienta por questes que esto sempre localizadas no tempo presente12 (ou seja, no tempo do pesquisador). a partir do presente que se constroem verses sobre o passado e que indcios do passado so interrogados. igualmente importante reiterar que um documento no fala por si,

    histria, sobre as prticas, sobre as pessoas, sobre a comunidade. Os prdios dos Grupos Escolares nos contam, por exemplo, sobre o papel da escola em relao comunidade: as cidades, de um modo geral, no incio do sculo XX, padeciam com graves problemas decorrentes da falta de saneamento bsico. Por uma cam-panha dos mdicos sanitaristas da poca, as noes de higiene corporal eram en-sinadas nos Grupos Escolares, e com isso as crianas levaram essas noes s famlias, e das famlias os cuidados com o corpo e com o ambiente passaram s cidades. Foi assim em todo o pas e, portanto, foi assim tambm em Bariri. Todas essas informaes esto perto de ns, nos prdios de nossas cidades, nas histrias que nossos pais e avs contam, nos livros das bibliotecas e arquivos pblicos, nos cadernos de antigos alunos e professores. Mas preciso que aten-temos para que essas coisas no sejam, para ns, apenas prdios, historietas, li-vros e cadernos: preciso que olhemos para tudo isso, como resduos que so, na verdade lugares de memria, da nossa memria e da memria da comunidade da qual fazemos parte. por isso que hoje afirmamos que a memria no algo alojado e escondido dentro de ns, mas algo social, compartilhado. E por isso que precisamos aprender a ler as narrativas do mundo, que muitas vezes esto onde ns pouco suspeitamos. Esto, por exemplo, naquele prdio frente do qual passamos todos os dias sem sequer perceber que ele pode nos contar tantas histrias...

    12. Essa outra lio de Marc Bloch (2001): a Histria uma cincia problematiza-dora, constituda a partir de questes que o presente prope e cujas respostas so sondadas a partir dos passados que, compostos, podem ser perscrutados, criados pelo historiador.

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    mas responde s perguntas que lhe so feitas. Assim, um mesmo do-cumento pode dizer coisas diferentes a pesquisas diferentes, depen-dendo do que cada pesquisador deseja estudar.

    Como exemplo, observemos a Figura 1. Trata-se do registro foto-grfico do corpo docente do ensino primrio, no ano de 1949, mais especificamente, professores do Grupo Escolar Eliazar Braga, da ci-dade de Pederneiras/SP.

    Figura 1 Foto do acervo Eliazar Braga.

    Esta mesma foto pode responder a perguntas distintas e servir a pesquisas distintas: uma pesquisa vinculada ao estudo sobre gnero na educao infantil teria interesse na quantidade de homens e mu-lheres presentes e, talvez, no quanto isso estaria vinculado a uma ten-dncia nacional; uma pesquisa com algum interesse em questes raciais poderia ater-se a questionamentos sobre as caractersticas dos profissionais responsveis pelo ensino naquela instituio (no h, nessa fotografia, um nico professor negro ou professora negra, por exemplo); uma investigao voltada a conhecer e compreender os cos-tumes poderia deter-se nas roupas, na arquitetura do espao escolar

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    (na altura do teto e das portas, bem diferente do que vemos nas cons-trues mais modernas), na decorao da sala e da mesa, etc.

    Um documento abre perspectivas de anlise, mas dificilmente d conta, sozinho, de montar todo um cenrio. Assim, quanto maior a quantidade e diversidade de documentos disponveis, mais funda-mentado estar o pesquisador e mais legitimadas estaro suas com-preenses, seus argumentos.

    Alm das fotografias, so considerados fontes para a escrita da his-tria os cadernos de alunos, os livros didticos, boletins, exames, planos de ensino, documentos pessoais, desenhos, documentos escolares (li-vros de ponto, dirio de classe, livro de matrcula, atas de reunies pe-daggicas, de associaes de pais, de exames, etc.), objetos escolares (mveis e utenslios utilizados para o ensino), monumentos, entrevistas com antigos alunos, professores, diretores, inspetores de ensino, etc.

    A construo de verses histricas (da Matemtica, da Educao Matemtica ou do que quer que seja), caso possvel, deve valer-se das mais diversas fontes, para que seja possvel articular diferentes infor-maes.

    Considerando as diversas possibilidades de abordar tema to vasto como o das interlocues da Educao Matemtica com a His-tria, a sequncia deste captulo pautou-se numa escolha: optamos por tecer, em seguida, algumas consideraes sobre a Histria da Ma-temtica e a Histria da Educao Matemtica.

    Histria da Matemtica

    Com os trabalhos de Maria ngela Miorim e Antonio Miguel aprendemos que a Histria da Matemtica investiga

    [...] todas as dimenses da atividade matemtica na histria em todas as prticas sociais que participam e/ou participaram do processo de produo de conhecimento matemtico: os modos de constituio e transformao dessa atividade em quaisquer pocas, contextos e pr-ticas; as comunidades de adeptos e/ou as sociedades cientficas li-

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    gadas a essa atividade; os mtodos de produo e validao do conhecimento matemtico gerados por essa atividade; os processos de abandono e incorporao de objetos antigos ou novos de investi-gao por essa atividade; a natureza e os usos sociais dos conheci-mentos produzidos nessa atividade; os produtores de conhecimentos que se envolveram com essa atividade; as obras nas quais esses co-nhecimentos foram expostos; as instituies sociais que promoveram e/ou financiaram essa produo, etc. (Miguel & Miorim, 2002, p.186).

    Podemos complementar afirmando que a Histria da Matem-tica exercita um dilogo entre Histria e Matemtica, visando a com-preender as alteraes e permanncias nas prticas relativas produo de Matemtica; a construir verses sobre como os conceitos matem-ticos se desenvolveram e como a comunidade que trabalha (produz) Matemtica se organiza/organizava com respeito necessidade de produzir, usar e compartilhar conhecimentos matemticos.

    Ao falar sobre pesquisa (que deve caracterizar tanto a formao quanto o exerccio da atividade do professor de Matemtica), h que se falar em alguns cuidados metodolgicos (no caso, relacionados investigao no campo da Histria da Matemtica). Para tanto, consi-deremos o que nos ensina W. S. Anglin, um conhecido autor de textos sobre a Histria da Matemtica.

    Esse autor inicia um de seus textos com uma caricatura13 do tpico livro de Histria da Matemtica e, ento, discute a necessidade de um

    13. Uma caricatura tem o objetivo de carregar, exagerar caractersticas, acentuando vcios e hbitos particulares de uma situao real. A caricatura proposta por An-glin retrata assim um modelo de praticar (escrever) Histria da Matemtica: A matemtica representa a sntese da Razo. Ela originou-se no Egito e na Mesopo-tmia. Contudo, comeou realmente na Grcia, porque foi l que surgiu a mate-mtica pura, e a matemtica pura melhor do que a matemtica aplicada, porque a Razo pura melhor do que a Razo impura. Os matemticos gregos mais not-veis foram Eudoxo, Apolnio, Arquimedes e Hipcia. Hipcia fez muito pouco se comparado a Arquimedes, porm, foi a nica mulher que estudou matemtica. Assim, podemos ficar certos de que sua real importncia foi ocultada pelo chau-vinismo machista. Os gregos foram simplesmente esplndidos, apesar de prefe-

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    livro sobre a Histria da Matemtica ser equilibrado quanto mobili-zao do contedo matemtico e reconhecer como importantes as muitas formas de atividades intelectuais e religiosas (se possvel articu-lando-as no contexto de produo do conhecimento matemtico). Na escrita de histrias da Matemtica na historiografia da Matemtica h que se cuidar para no atribuir a uma nica pessoa ou povo a pro-duo de um conhecimento que sofreu influncia de diversas pessoas, povos, culturas. Anglin (2001) assinala, ainda, para a coerente postura, a necessidade de tornar evidentes as posies daqueles que escrevem histria, produzem conhecimento, de modo a deixar claro o lugar de onde fala o autor (o que, por sua vez, justifica suas nfases e omisses).

    rirem a geometria e rejeitarem o movimento na matemtica. Infelizmente, a superstio e a ignorncia foram responsveis por um retrocesso quando Cirilo, o bispo cristo, mandou matar Hipcia (em 415 d.C.). Por cerca de mil anos, nin-gum na Europa ocidental produziu qualquer matemtica. Enquanto isso, os rabes estavam desenvolvendo a lgebra. Embora Alkh Warizmi no tivesse con-seguido provar o teorema de Pitgoras para tringulos retngulos no issceles, foi um algebrista magnfico. Ele descobriu duas solues para uma equao qua-drtica e usou trs diferentes valores para . No sculo XVI, a Europa se rebelou contra a Igreja, e a Razo (e a felicidade) voltaram. Continuando de onde Hipcia havia parado, Newton e Leibniz inventaram o Clculo e introduziram o movi-mento na matemtica. O estranho foi que Newton e Leibniz trabalharam inde-pendentemente um do outro. Por isso, ambos so merecedores do louvor e da glria pela criao do Clculo. No sculo XIX, a Razo realmente atingiu o seu apogeu. Antes disso, o Clculo no era muito rigoroso (em parte, porque o Cl-culo lida com movimento). Hoje, contudo, o Clculo a coisa mais racional e rigorosa possvel. Infelizmente, no podemos dizer-lhes muito a respeito da ma-temtica dessa poca, porque ocuparamos todo o nosso tempo e energia apenas para descobrir o que est acontecendo. Sabemos, contudo, que ela maravilhosa. Nesse tempo havia o extraordinrio matemtico X. Ele nasceu na Ruritnia e todos os ruritanos verdadeiramente patriotas evidentemente estavam muito or-gulhosos dele. Um dos pais de X morreu quando ele era muito jovem e X de-monstrou habilidades maravilhosas aos trs anos de idade. O progenitor de X que sobreviveu queria que ele fosse um encanador, mas ele persistiu em suas pes-quisas matemticas at que ficou arruinado e desempregado. Ningum ofereceu a X um emprego em uma Universidade, porque no havia quem fosse capaz de entender sua demonstrao do teorema central que diz no existir quadrado m-gico 44 cujas entradas so os quadrados dos primeiros dezesseis nmeros in-teiros positivos (Anglin, 2001, p.12).

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    Contrrio criao de mitos em torno de uma vida particular (em uma busca infindvel sobre qual matemtico criou o qu primeiro) e excessiva valorizao de uma cultura em detrimento de outra, Anglin ressalta uma postura fundamental: no papel da Histria prestar homenagens. O autor defende como mais esclarecedora a relao entre um trabalho de Matemtica e as tecnologias (por exemplo, os disposi-tivos de clculo: bacos, rguas de clculo, computadores, entre ou-tros) que marcavam o contexto de criao daquele conceito.

    Ainda em relao construo de verses histricas acerca da Matemtica, Anglin faz alertas quanto ao trabalho com cronologias. Para o autor, h que se cuidar para no organizar de modo estanque e meramente cronolgico (Ano 1857 aconteceu tal coisa. Ano 1930 fulano descobriu tal conceito...) as informaes que se pretende co-municar, pois isso formaria no leitor a ideia equivocada de que nada ocorreu num determinado perodo,14 ou de que um povo se coloca como superior a outro, ou, ainda, de que interessante pensar em li-nhas evolutivas no estudo da Histria.

    No Brasil, de modo geral, autores tm afirmado a necessidade de uma maior quantidade de textos acerca da Histria da Matemtica e fazem crticas como a de que parte considervel dos textos existentes no consideram as questes socioculturais prprias ao contexto de produo matemtica, voltando-se mais para os resultados produ-zidos (teoremas, demonstraes) do que para seu processo de cons-truo (tentativas, dificuldades, erros, mtodos).

    Alm de estudos sobre a historiografia da Matemtica, h diversos outros que tm se dedicado a analisar os usos dessa tendncia no en-

    14. Esse problema verifica-se tambm na Historiografia em geral. comum nos livros de Histria, por exemplo, indicar a Idade Mdia (ou o Medievo, como tambm chamado esse perodo) de Idade das Trevas, o que pressupe no ter havido, poca, produo alguma de conhecimento (seja artstico, cientfico, literrio), ne-nhuma forma de iluminao ao conhecimento. O mesmo se aplica aos arquivos que so chamados arquivos mortos, como se o fato de serem arquivos inativos, ou seja, no usados no dia a dia das escolas, implicasse que no se pode, a partir deles, produzir conhecimento (historiogrfico, por exemplo). Como esses equvocos, in-felizmente, so usuais, o apelo de Anglin faz todo o sentido.

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    sino de Matemtica. possvel observarmos por exemplo, nas ava-liaes feitas pelo Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD)15 , consideraes positivas sobre livros didticos nos quais os contedos so bem trabalhados mobilizando a Histria da Matemtica (alm da realidade social e da interlocuo com outras reas).16 Nos PCN (Brasil, 1997), a Histria da Matemtica, junto com a Etnomatem-tica, indicada para que se compreenda a dinmica de produo do conhecimento matemtico histrica e socialmente. Os PCN (Brasil, 2000) indicam o trabalho com a Histria da Matemtica de modo a relacion-la com a histria da humanidade.

    O conhecimento da histria dos conceitos matemticos precisa fazer parte da formao dos professores para que tenham elementos que lhes permitam mostrar aos alunos a Matemtica como cincia que no trata de verdades eternas, infalveis e imutveis, mas como cincia di-nmica, sempre aberta incorporao de novos conhecimentos.

    Alm disso, conhecer os obstculos envolvidos no processo de construo de conceitos de grande utilidade para que o professor compreenda melhor alguns aspectos da aprendizagem dos alunos (Brasil, PCN, v.3, 1997, p.26).

    Uma leitura dos textos que se dedicam a discutir a Histria da Matemtica no contexto do ensino de Matemtica nos permite ma-pear distintos objetivos e argumentos em torno de suas potenciali-dades e limitaes. A Histria da Matemtica pode ser vista como

    15. Iniciativa do Ministrio da Educao, o PNLD tem como um de seus objetivos avaliar, selecionar, adquirir e distribuir livros didticos s escolas pblicas de ensino fundamental e mdio. A seleo feita aos livros submetidos gera, a partir da lista dos aprovados, guias com resenhas que vo auxiliar os professores na escolha do livro-texto a ser adotado por eles.

    16. Essa possibilidade didtica da Histria da Matemtica no recente, embora ela tenha sido mais intensificada com o correr do tempo. Em fontes coletadas para pes-quisas em Histria da Educao Matemtica (esse tema ser retomado em seguida) encontramos narrativas de antigos professores do ensino primrio quanto ao cui-dado que eles tm para, em suas salas de aula, explorar a Histria da Matemtica.

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    tendo o objetivo de justificar o ensino da Matemtica, de ser ins-trumento para a formalizao de conceitos e a construo de um pen-samento crtico, ou de se tornar fonte de mtodos de ensino ou de problemas prticos a serem explorados na sala de aula.

    Estudos realizados sobre a influncia da Histria da Matemtica no ensino ou das tendncias quanto ao seu uso como apoio didtico--pedaggico apontam que essa vinculao tem a potencialidade de tornar o ensino mais atrativo ao aluno, alm de contribuir para que este veja a Matemtica como uma cincia em construo, inacabada, em constante aprimoramento. O estudo da Histria da Matemtica con-tribuiria, nesse sentido, para tornar a Matemtica mais humana, para questionar o ensino tecnicista, sensibilizar o professor para as po-tencialidades da anlise de erros17 (com base nas dificuldades que His-toricamente emergiram da criao/explorao de certo contedo), propor um ensino mais contextualizado (com a explorao da Histria da Matemtica em suas relaes com as artes, culturas, religies).

    Trabalhar com Histria da Matemtica no ensino de Matemtica, por outro lado, no necessariamente significaria ensinar Histria da Matemtica em sala de aula. H uma diferena entre, por um lado, valer-se da Histria da Matemtica para ensinar Matemtica e, por outro, ensinar Histria dessa cincia. No primeiro caso, a Matemtica o objetivo e a Histria da Matemtica um meio; no outro, a Histria da Matemtica seria o objetivo. Segundo alguns autores, no primeiro caso ensinar Matemtica tendo a Histria da Matemtica como re-curso, ferramenta, apoio , os estudos sobre a Histria dessa cincia poderiam fundamentar e orientar os professores, tendo uma in-fluncia indireta nas aulas.

    Romlia Souto,18 no fim da dcada de 1990, afirmava que, at aquele momento, o que existia era um grande rol de potencialidades

    17. H vrias pesquisas voltadas anlise de erros e avaliao. Pesquise e veja quais as tendncias mais recentes para se pensar essas aes to presentes na prtica profis-sional do professor!

    18. Romlia Mara Alves Souto professora de Matemtica da Universidade Federal de So Joo Del Rey, em Minas Gerais, e especialista em Histria da Matemtica e Educao Matemtica, tendo desenvolvido sua dissertao de mestrado sobre

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    que no passavam de possibilidades. Hoje, se analisarmos o cenrio, temos a impresso de que houve algum avano nesse cenrio, ainda que seja um avano tmido: h, hoje em dia com frequncia e em abundncia a tentativa de explorar possibilidades de trabalhar com a Histria da Matemtica voltada para o ensino; mas h, ainda, muito a ser feito. Um ponto, porm, nos parece importante para guiar esses esforos de ter a Histria da Matemtica como apoio didtico-peda-ggico: preciso ter cuidado para no ensinar Matemtica fazendo, em separado, referncias sobre suas histrias (para no tornar o uso da Histria da Matemtica como uma sequncia divertida, mas pouco til, de historietas sem vnculo com o contedo que se pretende en-sinar ou a questo que se pretende discutir); e preciso cuidar para no cairmos naquele discurso antigo de que h uma coisa a se ensinar de um lado e, de outro lado, os modos de ensinar essa coisa, pois, quando um professor se dispe a ensinar algo, ele faz mais que isso: ele sempre ensina tambm sobre o modo, o mtodo, o fundamento de ensinar. Isso extremamente significativo, e deve ser considerado quando estamos formando professores. A Histria (ou as histrias) usualmente exerce um fascnio muito grande, e por isso corremos um srio risco de, ao abordar trechos histricos como curiosidades parte, ensinar que a Histria da Matemtica e Matemtica so indepen-dentes e devem continuar sendo vistas assim. Como dizer que algo ou algum independe de sua histria? Como temos conseguido sustentar essa separao no ensino de Matemtica por tanto tempo? Ser essa uma das justificativas para a dificuldade que usualmente os alunos enfrentam para atribuir significados a essa disciplina, aos seus con-tedos?

    Do mesmo modo que vrios autores discutem as potencialidades do uso didtico da Histria da Matemtica, outros mobilizam dis-cursos contrrios que tambm devem, aqui, ser considerados. Isso pode ocorrer devido pequena quantidade de textos de Histria da

    as potencialidades didtico-pedaggicas da Histria da Matemtica para o ensino de Matemtica.

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    Matemtica disponveis a professores do ensino bsico ou abor-dagem equivocada de alguns textos existentes que, apostando mais na abordagem de resultados e nas biografias, no permitem a explorao daquilo que daria abordagem historiogrfica uma perspectiva mais ampla,19 permitindo que ela fizesse diferena efetiva no processo de construir conhecimento. Alm desses fatores limitantes, h quem apresente resistncia ideia afirmando que a Histria da Matemtica no oferece informaes significativas quanto compreenso da pr-pria Matemtica e que, portanto, os momentos reservados explo-rao de contextos histricos seriam mais bem aproveitados se fossem usados para estudar mais Matemtica.

    Nesse cenrio, como voc se posiciona? Essa pausa que propomos extremamente importante, tendo em vista que um professor s con-segue trabalhar bem com um mtodo ou abordagem se realmente acre-ditar nele. Podemos imaginar, por exemplo, o quo desastroso pode ser

    19. Por exemplo, as tecnologias e mtodos utilizados em determinada poca e como a cultura de diversos povos, em determinados contextos, permitiu o surgimento de um conceito e/ou uma forma de explorao nova, inusitada, at ento inexistente. Veja, por exemplo, o caso das demonstraes em Matemtica. Alguns autores afirmam que a necessidade das demonstraes rigorosas em Matemtica (ou, em outras palavras, o surgimento da Matemtica como cincia hipottico-dedutiva) se d exatamente por conta de a cultura grega guiar-se pela discusso coletiva, pblica e intensa de tudo o que ocorria no mundo grego (essa abordagem tambm chamada de externalista, pois vai buscar a resposta ao problema fora da Matemtica, isto , na cultura grega em que a Matemtica era produzida). Outros afirmam (e essa uma justificativa internalista, pois busca a resposta apenas no interior da produo matemtica) que a Matemtica tornou-se uma cincia hipottico-dedutiva quando os gregos enfrentaram o problema de traar um segmento de reta cuja medida era a mesma medida da diagonal de um qua-drado de raio 1 (ou seja, o problema da irracionalidade da raiz de 2). Consi-dera-se adequado tendo como ponto de partida essas duas justificativas, a internalista e a externalista que a) em outra cultura, o problema da irracionali-dade da raiz de 2 poderia no ter sido suficiente para transformar a Matemtica em cincia hipottico-dedutiva; e b) mesmo na cultura grega isso poderia no ter ocorrido se o problema da irracionalidade no tivesse aparecido. Esse exemplo mostra claramente a importncia do contexto na produo matemtica, e mostra, tambm, como o mundo externo (as prticas sociais como um todo) e uma pro-duo especfica (uma prtica social em particular) se articulam.

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    um professor que odeia Matemtica e que no acredita em sua impor-tncia se incumbir de seu ensino nos primeiros anos da educao escolar de uma criana. Do mesmo modo, seria desastroso um professor de Matemtica tentar usar a Histria como apoio didtico pedaggico se no acreditasse na potencialidade dessa abordagem para ensinar Ma-temtica.

    Histria da Educao Matemtica

    Segundo Antonio Miguel e Maria ngela Miorim,

    quando destacamos da atividade matemtica aquela dimenso que se preocupa exclusivamente em investigar os processos sociais in-tencionais de circulao, recepo, apropriao e transformao dessa atividade, estaremos distinguindo [...] um novo campo de in-vestigao que denominamos histria da educao matemtica. (2002, p.187)

    Ou, reiterando o que j dissemos: a Histria da Educao Mate-mtica exercita um dilogo entre Histria e Educao e Matemtica, chamando cena para esse dilogo uma vasta gama de outras reas do conhecimento. A Histria da Educao Matemtica visa a com-preender as alteraes e permanncias nas prticas relativas ao ensino e aprendizagem de Matemtica; a estudar como as comunidades se organizavam no que diz respeito necessidade de produzir, usar e compartilhar conhecimentos matemticos e como, afinal de contas, as prticas do passado podem se que podem nos ajudar a com-preender, projetar, propor e avaliar as prticas do presente.

    As primeiras produes em Histria da Educao Matemtica te-riam surgido, segundo Miguel & Miorim (2002), como fragmentos ou captulos de textos de histrias gerais das civilizaes, de histrias mais gerais da educao ou mesmo de histrias particulares da mate-mtica (p.181).

  • ELEMENTOS DE HISTRIA DA EDUCAO MATEMTICA 41

    Esse campo de investigao constitudo, segundo esses autores, por todo estudo histrico que investiga:

    [...] a atividade matemtica na histria, exclusivamente em suas manifestaes em prticas pedaggicas de circulao e apropriao do conhecimento matemtico e em prticas sociais de investigao em educao matemtica do modo como concebemos esse campo em todas as dimenses dessa forma particular de manifestao da ativi-dade matemtica: os seus modos de constituio e transformao em qualquer poca, contexto e prticas; a constituio de suas comu-nidades de adeptos e/ou de suas sociedades cientficas; os mtodos de produo e validao dos conhecimentos gerados por essa atividade [...]. (Miguel & Miorim, 2002, p.187)

    Essa linha de pesquisa incorpora estudos diversos que pretendem contribuir com as polticas pblicas da/para educao ao voltarem-se ao estudo sobre como vm se formando os professores de Matemtica no pas; como se do, historicamente, os processos de apropriao das leis e propostas educacionais; como questes polticas e culturais es-truturam uma proposta educacional para uma determinada poca; quais alteraes de currculo de Matemtica foram implementadas ao longo do tempo e com que interesse; como, quando e por que a escola foi estruturada do modo como hoje; que discursos sobre ensino e educao deixaram suas marcas na perspectiva (plural) dos profes-sores, dentre outros.

    Se, por um lado, a Histria da Matemtica parece apresentar pos-sibilidades mais imediatas para as salas de aula (servindo como apoio para ensinarmos Matemtica) e, talvez por isso, esteja mais presente nos discursos dos professores, precisamos, por outro lado, nos voltar, agora, para as contribuies que a Histria da Educao Matemtica pode nos oferecer, visando a uma melhor compreenso das prticas escolares.

    Registros de dirios de classe, provas antigas, cadernos de alunos, livros didticos, fotografias e narrativas de professores tm sido vasta-mente explorados como documentos pelos mais diversos grupos de

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    pesquisa dedicados a compreender a histria da dinmica escolar e, mais particularmente como parte dessa dinmica a Matemtica Escolar.20

    O exerccio historiogrfico, como j dissemos, fica enriquecido quando mobilizamos, de forma articulada, o maior nmero e tipos de fontes possveis. Na viso aqui defendida, entretanto, esse exerccio no se d em busca do estabelecimento de uma verdade nica e in-questionvel. Estudos dessa natureza trazem tona resqucios de ex-perincias ressignificadas pela lembrana de quem as relatou, no passado (em atas, dirios de classe, etc.) ou no presente (em entre-vistas, por exemplo), e a partir deles podemos produzir significados s prticas s quais nosso interesse se dirige. Toda questo que dispara um estudo historiogrfico est fincada no presente, assim como no presente que esto fincados nossos ps ao transitar por mtodos e es-tudos sobre o j acontecido.

    O estudo dos trabalhos produzidos em Histria da Educao Ma-temtica, nas salas de aula de uma licenciatura em Matemtica, certa-mente contribuem para uma melhor compreenso acerca do processo

    20. A Histria da Matemtica Escolar pode ser vista como uma parte do que cha-mamos de Histria da Educao Matemtica. A Histria da Matemtica Escolar est diretamente interessada em como, na escola, a Matemtica vem se articu-lando, vem sendo ensinada no correr dos tempos. Esse estudo, obviamente, en-volve fatores que escapam sala de aula e por isso no to ntida a distncia entre a Histria da Educao Matemtica e a Histria da Matemtica Escolar. Entretanto, se considerarmos que a Matemtica que circula nos domnios da es-cola no necessariamente aquela Matemtica produzida pelos matemticos (ou seja, se considerarmos que a Matemtica Escolar no uma transposio ou uma simplificao ou uma descaracterizao da Matemtica desenvolvida pelos mate-mticos, mas uma Matemtica prpria; ou, ainda, se conseguirmos caracterizar a Matemtica profissional em relao Matemtica que vai escola, ou, segundo alguns pesquisadores, a Matemtica do matemtico daquela Matemtica do pro-fessor de Matemtica, ou, mais ainda, se considerarmos que a Educao Mate-mtica volta-se a compreender as instncias e o contexto em que ocorrem o ensino e a aprendizagem de Matemtica, e que aprender e ensinar Matemtica no algo que ocorre apenas na escola), estaremos j estabelecendo uma diferenciao entre a Histria da Educao Matemtica, a Histria da Matemtica e a Histria da Matemtica Escolar.

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    educativo. Um exemplo pode ser dado a partir dos estudos de Souza (2011), que revelam o que poderamos reconhecer como uma espcie de fracasso no entendimento das prticas escolares. Essa questo surge do reconhecimento de que, nas prticas da instituio escolar que essa au-tora estuda, h sempre referncias a orientaes metodo lgicas para o ensino, mas, ao mesmo tempo, a comunidade escolar parece no se apropriar das questes mais essenciais dessas orien taes: as indicaes so compreendidas, sempre, de forma pouco profunda, pouco signifi-cativa como que num sobrevoo. Souza reconhece, em seus estudos, uma certa impotncia das propostas pedaggicas em estruturar algo que dialogue com os interesses da escola (p.394).

    Romulo Lins, um educador matemtico brasileiro, explicita sin-teticamente o que julga serem os termos gerais as intenes que devem pautar qualquer proposta educacional:

    No sei quem voc ; preciso saber. No sei tambm onde voc est (sei apenas que est em algum lugar), preciso saber onde voc est para que eu possa ir at l falar com voc e para que possamos nos entender e negociar um projeto no qual eu gostaria que estivesse presente a pers-pectiva de voc ir a lugares novos. (Lins, 1999, p.85)

    Passa por essa perspectiva a ideia de que uma parceria funcional entre universidade e escola bsica deve obrigatoriamente partir das necessidades e interesses da escola, pois, historicamente, cursos e pa-lestras com orientaes vindas de fora da escola no tm surtido os efeitos desejados. Desse modo, entender a dinmica escolar impres-cindvel para que saibamos onde a escola est, o que a escola quer, como a escola , para, depois de termos nos encontrado nesse lugar, decidirmos como podemos criar estratgias para, juntos com a escola, caminharmos para lugares diferentes.

    A Histria da Educao Matemtica tem dado contribuies sig-nificativas para viabilizar uma proposta educacional pautada nos termos anteriores, elaborando e divulgando pesquisas e fontes com a inteno de melhor compreender as prticas de ensino, de formao, de avaliao, as relaes de poder, etc. que ocorrem na escola e que, ao

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    fim e ao cabo, caracterizam a pluralidade de coisas, pessoas, situaes e contextos que chamamos de escola.

    Pensemos em alguns exemplos: sabemos que a educao brasi-leira como sistema educacional nacional muito recente. Nossa primeira universidade no sentido mais pleno da palavra21 foi a Universidade de So Paulo (USP), criada em 1934. Nosso sistema na-cional de ensino timidamente comea a se construir na ltima dcada do sculo XIX exatamente quando so criados os grupos escolares, aos quais j nos referimos, e nossas escolas de ensino secundrio s comeam a se multiplicar, de modo a atender mais adequadamente um grande nmero de alunos, em diversos estados do pas, em meados da dcada de 1950. Como eram formados os professores de Matem-tica que lecionavam nessas escolas? Como esse sistema educacional foi se espalhando pelo pas? Quais materiais eram usados para o en-sino das mais diferentes disciplinas? Quando se iniciaram os cursos especficos para formao de professores sejam os do ensino inicial, sejam os do ensino secundrio? Como o ensino era organizado e que concepes essa organizao engendrava? Como atender adequada-mente do ponto de vista educacional um pas de dimenses conti-nentais, como o Brasil? As diferentes regies tiveram/tm as mesmas oportunidades? Tm/tiveram as mesmas condies? Como os con-tedos de Matemtica eram tratados nessas escolas? Quando surgiram os primeiros livros didticos para apoiar os professores em suas aulas de Matemtica? H diferenas significativas entre os livros mais an-tigos e os atuais? O que essas diferenas significam do ponto de vista do aprendizado? Essas diferenas alteram, com o passar do tempo, o modo como a Matemtica e o seu ensino tm sido concebidos?

    21. Antes da USP existiam escolas de ensino superior ainda que isoladas e em quantidade muito reduzida espalhadas pelo pas. Essas escolas no constituam um espao sistemtico e plural para o estudo de diversas reas: voltavam-se a al-gumas reas especficas, e eram dirigidas elite (dessas reas, as mais comuns eram o Direito, a Engenharia e a Medicina). A prpria Universidade de So Paulo foi criada, em 1934, a partir de escolas superiores j existentes, dentre as quais a Escola Politcnica de So Paulo e a Escola de Direito do Largo So Francisco.

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    So vrias as questes que podem ser formuladas, e importante notar que no estamos to afastados temporalmente de situaes muito distintas da atual. Talvez voc, leitor, no tenha ouvido falar sobre a prova dos noves, mas seu pai, ou seu av, certamente ouviu. A Matemtica que eles dominam, por terem conhecido e usado a prova dos noves, diferente da sua?

    Um estudo realizado por Antonio Miguel e Maria ngela Miorim (2002) nos permite perceber que, em livros mais antigos, o contedo logaritmos era tratado logo aps o contedo das sequncias num-ricas (as PAs e as PGs, por exemplo). Nos livros mais atuais, esse contedo consequncia do estudo das funes... Se o conceito de logaritmo o mesmo, por que ele aparece em momentos distintos em livros didticos de diferentes pocas? O conceito de logaritmo , ento, o mesmo, independente da sequncia em que aparece ou, depen-dendo do modo como aparece, um logaritmo diferente? Que efeitos essa sequenciao tem para o aprendizado dos alunos? melhor, mais adequada, a sequncia de hoje? Nos livros de Matemtica mais antigos, o contedo determinantes est quase sempre presente, mas o contedo matrizes no. Por que, hoje, o contedo determi-nantes aparece nos livros e no nosso imaginrio como necessa-riamente vinculado ao contedo matrizes? Quando essa vinculao comeou a acontecer? As notaes matemticas o modo como re-presentamos os conceitos matemticos se alteram? Para melhor ou para pior? Melhor e pior a partir de qual ponto de vista? Do ponto de vista de quem?

    Em legislaes mais antigas por exemplo, as diretrizes para o en-sino fundamental no Estado de So Paulo do fim da dcada de 1920 , era indicada a necessidade de decorar a tabuada. Nas diretrizes da dcada de 1960, essa necessidade no parece ser to vital ainda que decorar a tabuada no seja visto como indesejvel. J nas dcadas poste riores a 1970, so marcantes os discursos sobre a necessidade de entender o processo, e no a necessidade de decorar a tabuada... Em trinta ou quarenta anos houve uma mudana de concepo funda-mental quanto memorizao e funo da memorizao nas prticas

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    escolares. Quais as possveis causas disso? A Matemtica que seu av aprendeu bem provavelmente a partir de uma dinmica de repe-ties e exerccios-tipo diferente da Matemtica que voc aprende hoje? As alteraes nas diretrizes curriculares podem ser, efetiva-mente, sentidas no dia a dia das salas de aula? Por qu?

    Essas so algumas das muitas questes que podem ser estudadas segundo uma abordagem historiogrfica e que, por se referirem dire-tamente Matemtica em situaes de ensino e de aprendizagem, so do domnio daquilo que chamamos de Histria da Educao Mate-mtica. Ns pensamos que fazer tais questionamentos e buscar res-pond-los pode ampliar nosso conhecimento sobre as prticas de formao e atuao de professores, e pode parametrizar as escolhas que precisamos fazer, como professores de Matemtica, no dia a dia das nossas escolas.

    Via de regra, o professor de Matemtica no frequenta o iderio popular como algum muito disposto a enfrentar questes relativas Historiografia. De modo ainda mais geral, aparentemente, o trata-mento ao tema Histria em nossas salas de aula tambm tem deixado a desejar, pois parece que insistimos numa abordagem de almanaque, com citaes, datas, nomes e invenes. Para reverter esse quadro, preciso investir na formao dos nossos alunos. possvel, por exemplo, conduzir as crianas das sries iniciais num processo em que elas se percebam como seres histricos? Isso influenciaria a qualidade do ensino que elas tm recebido? Ajudaria os professores das diferentes disciplinas? Poderia ajudar o professor de Matemtica?

    Consideraes

    Este captulo teve como objetivo apresentar alguns dos movi-mentos investigativos em torno das temticas Educao Matemtica, Histria, Histria da Matemtica e Histria da Educao Matem-tica, esboando