elementos para uma história das ciências_vol iii

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    HISTORIA DAS CIENCIASIII Volume

    " ~{-"t '\.." .."" 'JI. Revisao cientifica da edi~ao portuguesa:

    Prof.' Dr.' RAQUEL GONl;:ALYES,Professora Catednitica da Faculdade

    de Ciencias da Universidade de Usboa

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    ,;)lI:j~r~)Da nova geologiaao Computador

    Avisos ao leitor:

    - Sinais de pontuat;: palavra esquecida pelo escriba;. palavra desconheclda;

    ...... : conjunto de palavras desconhecidas.

    d

  • As origens douniformitarismo de Lyell:para uma nova geologia

    GEOF BOWKER

    Onde se vera que fazendo da Terraurn planeta infinitamente velho e nao atribuindoa humanidade qualquer papel excepcional, Lyell

    tentou lanc;:ar os fundamentos de umageologia verdadeiramente cientrrica.

    O que significa fundar~ uma ciencia? Tal consistiu, a maior partedas vezes, em criar urn dominic fora do alcance das autorida-des religiosas. Deste modo, as querelas de Galileu com a IgrejaCat6lica, foram muitas vezes associadas ao combate da racionalidadecientifica contra a persegui\=ao religiosa. Da mesma maneira, quando 0fisico ingles Robert Boyle (1626-1691) tentou pela primeira veZ definiras regras da experimenta~ao cientifica, uma das suas principais preo-

    cupa~6es foi a de fechar a porta do seu laborat6rio a qualquer tipo deconsidera~ao religlosa. Quanto a Charles Lyell (1797-1875), ge610goingles e autar de uma obra de sintese fundamental, Os Principios deGeologia l , frequentemente considerada como 0 acto de nascirnento ciageologia como disciplina cientifica na Grn-Bretanha dos anos 1830, 0seu trabalho de funda~ao consistiu em retirar aos fundamentalistas reli-giosos 0 privilegio da interpreta~ao da hist6ria da Terra. Estes funda-mentalistas utilizavam ca1culos baseados na exegese biblica, particular-mente sabre numero das gerac;6es a partir de Ada:o, para fixar aidade da Terra em cerca de seis mil anos. Mais precisamente, a Terrateria sido criada numa segunda-feira as nove horas da manha, em4004 a. C. As evidencias geol6gicas nao tinham grande peso face a estaanalise biblica. Lyeil encontrou a sua solu~ao defendendo que a Terraera demasiado velha para que restasse qualquer vestigia da sua origem.

    10 titulo completo cia primeira edic;ao da sua obra (1830-1833) e: Prindpios de Geologia. Ten-tativa de Explicac;ao das Modifka~6es da Superfide da Terra por referenda as Causas QueAgem ac(ualmente

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  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL:

    A oUlra grande tarefa de base que Lyell se tinha proposto, consistia emdefinir as leis gerais onde os outros ge610gos se pudessem inspirar deforma empirica para as seus pr6prios estudos. Enunciou uma regrageral estipulando que as for~as que agem nO mundo actual sao as mes-mas que existiam no passado, pelo menos tao longe quanta os dadosgeol6gicos actuais nos permitem averiguar. Tratava-se de uma regrafundamental que nao permitia fazer alusao a uma epoca na qual os tre-mores de terra eram mais numerosos' que no presente e onde ascadeias das montanhas surgiam instantaneamente. Era necessarioencontrar causas comuns, agindo lentamente, ao inves das causascatastr6ficas" frequentemente invocadas pelos seus adversarios, religio-sos ou outros. Examinaremos estes dois empreendimentos,Todavia, nao defenderemos que Lyell seja 0 verdadeiro fundador daprofissao de ge610go. Certamente que tentou estabelecer uma baseintelectual possivel: 0 pr6prio titulo da sua obra faz eco dos Principiade Newton, que constituiam 0 modelo do teXlo fundador, no momentoem que Lyell escrevia. Ele nao foi, no entanto, a primeiro a levantar ahip6tese de uma idade multo avan~ada da Terra: outros ge610gosbritiinicos jii 0 tinham feito antes. Alem disso, a geologia francesa con-tinuou nessa epoca e durante todo 0 seculo XIX a escapar quase total-mente a influencia dos trabalhos de Lyell. Alguns afirmam mesmo queessa influencia nao se manifestou de modo algum ern Inglaterra, aindanos fins do seculo XIX, quando varias das suas posi~6es essenciais eramrebatidas. Os dados recentes pareciam indicar que a Terra tinha apenasquarenta mil anoS ~ lapso de tempo demasiado curto, segundo Lyell.Alem disso, ter-se-ia recusado a admitir a existencia de urn fogo central(que teria sido considerado como a prova de uma fusao original). Lyellfoi tido, de urn modo geral, como uma especie de extremista, tantopelos seus colegas como pela gera~ao seguinte. De facto, os seus tra-balhos tinham apenas por objecto fundar a geologIa como disciplina,na medida em que escrevia em Inglaterra j numa epoca em que a pre-terisa teologia natural.. - que procurava estabelecer a ptova de uma

    interven~ao divina na natureza atraves do metoda cientifico - eratodo-poderosa e quando a sua escrita se destinava a combater essa ten~dencia. Como conseguiu ele lan~ar esses fundamentos e qual a origemdas suas solw;6es?

    As flutua~6es da idade da Terra depois de Charles Lyell

    Vma das mais notaveis descontinuidades da his(oria das cU~ncias consistiu nas varia-~6es de es(imativa da idade da Terra depois de Lyell. poder-se-ia pensar que Lyell tomoudecis6es acertadas e que as suas conclus6es nao diferem mioimamente das admitidasactualmente. Mas, desde 1880 que e1e tinha praticamen(e perdido a sua jogada. Lord Kel-vin 0824-1907) e muitos ou(ros fisicos, baseando-se nos dados respeitantes ao calorintemo actual da Terra e na rapidez do seu arrefecimento, calcularam que a idade destanao podia exceder as quaren(a mil anos. Lyell estava disposta a por em causa a hip6tesede uma Tetra eterna, mas todavia nao a tal ponto. De facto, com a descoberta do efeitoda radioactividade sabre a calor do globo, as teorias de Lyell foram reabilitadas, e a his-t6ria recente, que a considera como 0 fundador da geologia, ignora a gera~ao perdidados geologos e fisicos que estavam persuadidos de que ele nao (ioha razao.

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  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL:

    Um tempo proprio para a geologiaNos seus trabalhos, Lyell faz intervir duas especies de tempo: urn con-siderado como urn simples sistema de referencia passivo, e destinado aestabelecer a cronologia da hist6ria da Terra - isto e, a determinar asua origem ou renunciar a faze-Io, por falta de provas concludentes-,o outro, correspondendo a urn processo, permite assinalar certos tiposde mudan~as que estao invariavelmente associadas a hist6ria da Terraem qualquer epoca e constituem assim, em certo sentido, uma caracte-ristica do proprio tempo. Como se articulam essas duas especies detempo no pensamento de Lyell e de que modo este as utilizou paracriar um tempo apropriado a geologia? Em particular, como e que Lyelltirou partido do tempo religioso (hist6ria sagrada) e do tempo humano(hist6ria profana) para criar esse tempo particular da geologia, utiliza-vel exclusivamente pelos ge610gos profissionais?Segundo Lyell, a Terra pode, de facto, ser considerada como etema. Setern uma origem, dela nao resta qualquer vestigio. Esta ausencia de ori-gem pode explicar-se pelo facto de a Terra ter sido moldada por for,asdestrutivas e criativas complementares. Enquanto as primeiras (cursosde agua, mares, etc.) actuam sobre 0 conjunto do globe erodindo-o edissolvendo-o, as segundas (sedimenta~ao, vulc6es, etc.) distribuemessa materia informe, que nao conserva nenhum vestigio do seu estadoantes da dissolu~ao. Cada parte do globe conserva unicamente os ves-tigios dos acontecimentos que ocorreram ap6s a ultima dissolu~ao; oracomo existe urn numero inJeterminado de tais dissoluc;6es, e comple-tamente inutil querer discutir a origem da Terra. Considerou-se que ageologia de Lyell consagrava 0 triunfo do tempo ulinear, visto que aTerra, nesse sistema, se situava sobre uma linha indefinidamente longaentre 0 passado e 0 futuro. Todavia, por detras dessa aparente lineari-dade, surge uma morfolog!a: delica do globo.As seguintes cita~6es vao permitir-nos compreender melhor 0 meca-nismo desse cilculo da regularidade temporal:"Nao dever1amos duvidar de que os per1odos de convulsao e derepouso se tenham processado alternativamente, nas diferentes regioesdo globo; mas e igualmente verdadeiro que, em rela~ao a Terra inteira,a energia dos movimentos subterraneos tern sido constantemente uni-forme. Sera possivel que, durante uma longa sucessao de anos, a for~aque produz os tremores de terra tivesse sido limitada, tal como 0 ehoje, a certos espa~os vastos mas restritos; e que depois se tenha des-lacado insensivelmente, de modo a que lima cefta regHlo, em repousodurante seculos, se tenha tornado, par sua vez, no grande teatro da

    ac~ao subterranea. C.. ') Mas para que as nossas especular;oes se naoafastem dos limites mais restritos da anologia, suponhamos que: 1. a

    propor~ao das terras e dos mares seja sempre a mesma; 2. 0 volumedas terras que se elevam acima do nivel do mar representa uma quan-tidade constante, e que nao somente a altura media, mas tambem aaltura maxima dessas tertas, esteja apenas sujeita a varia~5es insignifi-cantes; 3. no seu conjunto, e apesar das suas desloca~6es locais, osmares conselvam as suas profundidades medias e extremas invariaveis;

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    ..

  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARTSMO DE LYELL:

    e 4., enfim, 0 agrupamento das terras em continentes seja uma evolu-~ao necessaria a economia da natureza, (. .. ) Nesta base, Lyell evocaurn grande ano climatico (a Frase faz referencia ao grande ano dosest6icos que era 0 periodo de urn ciclo universal a partir do qual todosos periodos da hist6ria se repetiriam). (. ..) Fizemos agora recuar a his-t6ria das forma~oes europeias a esse periodo durante 0 qual, apenasurn pequeno nllmero das especies actuais de testaceos povoava osmares e os lagos, urn periodo a que n6s chamamos ..Eoceno, paralembrar que se trata da madrugada do estado presente da cria~ao ani-mal. Embora somente urn pequeno numero das especies animais vivastenha entao existido, ha 6ptimas raz6es para se pensar que todas asgrandes classes do reino animal, tais como actualmente existem, esti-vessem plenamente representadas. (. .. ) Poder-se-ia conceber que asespecies fossem capazes de sobreviver a revolu~oes completas dasuperficie da Terra. As citac;6es dispares deste texto ordenam-se, final-mente, de acordo com uma estrutura coerente. Em cada caso, a partee considerada como variavel e susceptivel de ser criada ou destruida,enquanto 0 todo e imutavel e eterno. Quanto a mediac;ao entre osdois, ela esta assegurada atraves de uma mudanc;a ciclica: urn cicIode anos ligado a uma regiao, urn grande ano climatico ligado a Terrano decorrer do tempo, e revoluc;6es da superficie do globo ligadas aevolu~ao das especies.o primeiro volume dos Principios indica uma serie de causas demudanc;a e mostra como cada causa destrutiva e igualmente, e nomesmo grau, construtiva. Assim, a prop6sito das correntes maritimas,Lyell escreve: No Mediterraneo, a mesma corrente que destr6i rapida-mente numerosas porc;6es da costa africana entre 0 estreito de Gibral-tar e 0 Nilo, corr6i igualmente 0 delta do Nilo e arrasta os sedimentosdesse grande rio para leste. Ela esta sem duvida na origem da acumu-lac;ao cipida dos aluvioes em certos pontos das costas sirias. Do mesmomodo, os vulcoes subaereos contribuem aparentemente para aumentara superficie das terras emersas, mas os vulcoes submarinos fazem subira nivel do mar, anulando a aq:ao dos precedentes.A afirmac;ao de Lyell segundo a qual urn certo numero de coisas nuncamuda - a massa das terras emersas, a intensidade da actividade vulca-nica, etc. - parecia, na opiniao dos seus contemporaneos, contradizerdirectamente os factos geol6gicos observados, e parece igualmentemuito distante do genero de tempo que teria podido, com toda a pro-babilidade, ser associado a revoluc;ao industrial, em pleno apogeu nomomento em que ele escrevia. A hannonia, 0 equilibrio inevitivel entrea criac;ao e a destruic;ao iam ao encontro dos factos de que os con-temporaneos de Lyell podiam dispor de multiplas formas. Certascontradic;6es salientavam-se do esquema no seu conjunto; outras, dopapel da humanidade nesse sistema. Em resumo, 0 problema essencialera que, apesar das declara~oes de Lyell, segundo as quais as causaspresentes" explicavarn todos os acontecimentos geol6gicos passados,parecia dificil acreditar que as enormes cadeias das montanhas estavamainda em vias de erguer-se. A natureza deixou uma serie de monu-mentos que todos pensavam constituirem os vestigios de uma revo-

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  • ,I

    AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMQ DE LYELL:

    lw;ao catacHsmica de uma amplitude inimaginavel no presente.A obsetva\=ao dos f6sseis provava que especies inteiras tinham desapa-recido num fechar de olhos. Parecia inverosimil que continentes enOf-mes pudessem surgir do mar na propon;ao de alguns centimetros porseculo: grandes efeitos reclamavam grandes causas. A maioria dos ge6-logos considerava mais provavel a hip6tese segundo a qual a globo ter-restre, na sua juventude, tinha manifestado uma actividade maior.A imagem de uma Terra outrora activa, antes de alcan~ar 0 apazigua-menta da maturidade, aparecia frequentemente nos prop6sitos dosrivais de Lyell, os catastrofistas.De facto, a tempo "catastrofista" defendido par esses ge610gos serviapara reconciliar as dados paleontol6gicos e geol6gicos com a Biblia. Separecia difkil conceber, com efeito, que todas as convuls6es evidentesintetvindo na supemcie do globo pudessem ter acontecido em seis milanos, a acelera~ao do tempo numa epoca anterior, com a multiplica~aoconcomitante de tremores de terra, vulc6esl etc. l levantava a dificul-dade. Isto permitia alem disso atrihuir a humanidade uma posi~ao pri-vilegiada no desenrolar do processo geol6gico. Pretendia-sel assiml queDeus tinha esperado que a Terra estivesse em repouso antes de intro-duzir na sua superficie a humanidade, para a qual a tinha criado. Lyell,ao defender a existencia de urn tempo separadol pr6prio da geologialferia frontalmente esses dois tempos privilegiados.Para esse efeito, desenvolveu duas series de metaforas, uma tirandopartido das sociedades estatisticas entao florescentes l e a outra, a ima-geml consagrada por urn longo uSOl do livro da natureza. A primeiraabordava 0 problema das grandes descontinuidades observadas nosf6sseis, que a maior parte dos ge610gos atribuia a mudan~as catastro-ficas", ocorridas no passado. Lyell sustentava que nao podia ter havido

    fossiliza~ao a nao ser quando novas camadas sedimentares estivessemem vias de fonna~ao. Escrevia deste modo:..Ora vimos que esses espa~os estao sempre a mudar de lugarl de modoque 0 acto de fossiliza~ao, pelo qual se efectua a comemora~ao doestado particular do mundo organico em cada instante, esta por assimdizer sempre em movimentol visitando e revisitando sucessivamentediferentes extens6es. Para tornar este modo de ac~ao ainda mais sensi-vel, compara-lo-ia a urn caso mais ou menos analogol cuja realiza~aoseria possivel no decurso dos acontecimentos humanos. Suponhamosque a mortalidade da popula~ao de uma vasta regiao representa a

    extin~ao sucessiva das especiesl e 0 nascimento de novos individuos, 0aparecimento de novas especies. Enquanto se produzem essas flutua-

    ~6es graduais em todos os pontos, suponhamos que comissarios, dele-gados para visitar sucessivamente cada provincia da regiaol vern fazero recenseamento exacto do numeral dos names e de todas as particu-laridades de todos os habitantes, deixando em cada distrito urn registoindividual contendo a resultado das suas informa~6es. Se ap6s urnrecenseamento se fizer imediatamente outro, seguindo 0 mesmo plano,e assim sucessivamente, concebe-se que no fim cada provincia possuaa sua serie de documentos estatisticos. Quando os que se referem auma provincia qualquer sao colocados par ordem cronological 0 con-

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  • AS ORIGENS DO UNlr'ORMITARIS~1ODE LYELL:

    teudo de tais recenseamentos dit'ere, segundo a duraC;ao dos intervalosde tempo que decorreram entre os momentos em que foram feitos. Se,pOl' exemplo, houvesse sessenta provincias, e todos os registos preen-chidos num s6 ano fossem renovados anualmente, aconteceria que 0numero de nascimentos e de mortes, comparado com 0 numero detodos os habitantes, seria tao pequeno, durante 0 intervalo compreen-dido entre dois recenseamentos consecutivos, que os individuos men-cionados nesses documentos seriam quase os mesmos. Mas se, em vezdisso, a inspecC;ao dessas sessenta provincias ocupasse todos as comis-sarios durante todo 0 ano, de tal modo que nao pudessem visitar denovo 0 mesmo lugar a nao ser ao fim de sessenta anos, haveria entaouma discordancia quase completa entre as pessoas inscritas na mesmaprovincia em dois registos consecutivos". A doenc;a e a rnigrac;aopodem introduzir certas divergencias, mas estas sao essencialmentedevidas ao seguinte facto: Os comissarios sao supostos visitar as dife-rentes provincias cada urn pOl' sua vez, enquanto que 0 mundo deacC;ao atraves do qual a fossilizaC;ao dos detritos organicos se da,embora variando de urn ponto para 0 outro, e ainda muito irregularnos seus rnovimentos", de modo que "0 defeito de continuidade nasseries pode apresentar proporc;6es infinitamente grandes, e (. .. ) osmonumentos geol6gicos que imediatamente se seguem naa devemencontrar-se equidistantes entre si, na relaC;ao cranoI6gica. A desconti-nuidade aparente resulta entao de uma falta de conhecimentos e naocorresponde a uma real descontinuidade. POI' extrapolac;ao, 0 aspectoextremamente acidentado do globo terrestre e uma consequencia domodo como a Terra ordena a sua pr6pria hist6ria, e nao das flutuac;6esno decurso do tempo da natureza c da intensidade das forc;as que agovernam. Vejamos agora a segunda metMora utilizada par Lyell paraexplicar a aparente dissimetria entre 0 passado e 0 presente. Esta meta-fora poe em evidencia 0 papel central desempenhado pela humanidadena geologia de Lyell e no conjunto dos problemas que ele levanta. ElaRefere-se a uma imagcm consagrada pelo uso prolongado nos textoscientificos: 0 conceito de livro da natureza". Numerosos escritoresdesenvolveram este tema particularmente rico. Para a teologia natural,aqual Lyell se opunha, 0 livro da natureza e a Biblia completavam-seperfeitamente. Quanto a Lyell, dcsenvolveu 0 tema da seguinte forma:POl' consequencia, se nao se tivessem descoberto lugares mostrandosinais de extraordinarias modificac;6es quimicas e mecanicas, efeitos,durante urn periodo anterior, de um desenvolvimenta importante, deum calor intenso, e de outras modificac;6es bern diferentes daquelasque se produziam a superficie, isso poderia fornecer um elemento deci-sivo contra aqueles que nao sc satisfazem com provas encontradas ateao momenta a favor de modificac;6es do curso da natureza.A fim de 0 estabelecer claramente, supanha a leitar que passui apenasum decimo das palavras de uma qualquer lingua viva, e imagine quese encontra perante livros tidos como tendo sido escritos nessa mesmalingua cerca de dez seculas atras. Se compreender que nao e capaz deadivinhar a sentida dos nove decimos restantes, mlo se sentira farte-mente inclinado a pcnsar que, durante esses mil anos, a lingua se man-

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  • rAS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL~

    teve imutavel? Mas se pudesse, sem exercer urn esfof\'o importante,compreender a maior parte do que se encontra escrito nos documentosantigos, sentir-se-ia, ciesta vez, convencido que no espas;o de dez SeCll-los a lingua tioha safrielo impOitantes modificac;;:6es. ( .. .) Igualmente, seurn estudioso cia natureza que, quando examina pela primeira vez as tes-temunhos de mudanc;;:as precedentes no nosso globa, se encontra apenasconfrontado com urn decimo dos processos que se desenrolam agora nasuperficie do globo Oil no subsolo au nas profundezas dos mares, pen-sasse ainda compreender 0 sentido das sinais de radas au peIo menosde metade das mudanc;;:as que ocorreram nessas rnesmas regi6es porvolta de cern au mil seculos antes, pudesse declarar sem hesitar que asantigas leis da natureza foram mudadas."A 16gica desta passagem nao tern talvez uma clareza imediata - e naoe de admirdr que tenha desaparecido nas (lltimas edis;:oes. De facto,Lyell pretende dizer que actualmente 0 nosso conhecimento do "livroda natureza" e extremamcnte limitado (apenas de uma pequena partedos processos que se produzem nas terras emersas). Segundo ele, seprocurarmos, a partir do nosso conhecimento destes processos, recons-tituir a hist6ria da Terra, obteremos urn passado muito diferente -pelo facto de que, as pOLlCas causas que conhecemos no presente,constituiriam a totalidade das causas que permitem uma tal reconstitui-s;:ao. Na primeira metaJora, a Terra conserva apenas uma amostra limi-tada e aleat6ria da sua pr6pria cvolus;:ao. Neste caso, temos apenasacesso a uma amostra limitacla e aleat6ria das palavras contidas no"livro da natureza".Para defender a sua conceps;:ao do tempo geol6gico contra as aparen-das contrarias, Lyell sublinha, em primeiro lugar, que essas aparenciassao necessariamente enganosas, se 0 seu sistema e born, e em segundolugar, que os ge610gos da sua epoca nao tem as conhecimentos sufi,-dentes para explicar as mudans;:as do passado. Ate aqui pudemos vel' queLyell rejeitou toda a ligas;:ao possivel entre 0 tempo religioso e 0 tempogeol6gico, eliminando a hip6tese de uma origem da Terra e susten-tando a sua conceps;:ao de urn novo tempo geol6gico contra as possi-veis ataques a partir de argumentos relativos a natureza do registo dosfen6menos geol6gicos. Quando chega a esse ponto do seu radodnio,esta convenciclo de tel' lans;:ado as bases de uma verdadeira ciencia dageologia - sublinhou, de resto, 0 contraste existente entre a sua pr6-pria linguagem, imbuida de verdade, e a falsa linguagem dos catastro-fistas: "Consideramos que estas materias constituem 0 alfabeto e a gra-matica cia geologia; nao que esperassemos, desses estudos, que elesnos fornecessem a chave da interpretas;:ao de todos os fen6menos geo-16gicos, mas porque devem constituir a teia a partir da qual abordare-mos as questoes mais gerais respeitantes aos resultados complexos quepodem resultar clas causas de mudans;:a, que agem no intervalo inde-terminado das epocas.Para defender a sua conceps;:ao de tempo, desenvolveu seguidamenteesfors;:os em ciuas direcs;:oes: par um lado, agiu de modo a que a geo-logia se desenvolvesse como ciisciplina, fazendo questao de lhe atribuira mesmo tempo que usara para decifrar a hist6ria cia Terra; pOl' outro

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  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL;

    lado, avanc;ou argumentos a fim de combater a ideia, segundo a qual 0tempo geol6gico era de uma maneira ou de outra diferente desde aaparic;ao da humanidade - mais calma ou como que transfonnadopela sua presenc;a.Segundo Lyell, do mesmo modo que a hist6ria passada da geologia seinteressa pelas catastrofes, a histbria passada da disciplina e ucatastr6-fica; e "a hist6ria de uma luta constante e violenta entre as opini6esnovas e as velhas doutrinas, consagradas pela confianc;a implicita denumerosas gerac;oes e supostamente apoiadas na autoridade das Sagra-das Escrituras. Lyell, no entanto, naa abandona a sua concep~ao dotempo geol6gico quando se dirige aos ge6logos. A ac~ao de urn lenti-dao quase imperceptivel de causa simples exerce-se sobre a Terracomo sobre os cientistas: uTomando estes assuntos em considera~ao 0espirito liberta-se lenta e insensivelmente das representa~6es imagina-rias de catastrofes e de confusao ca6tica que perseguiam a imagina~aodos primeiros cosmogonistas. Para se ter uma ideia mais precisa da

    dura~ao do periodo de tempo em que ele pensa, podemos referir-nosa sua afirmac;ao protojunguiana segundo a qual: "As superstic;6es deuma tribo nao civilizada propagam-se sucessivamente entre as diversascategorias da sociedade ate que, atingindo 0 espirito do fH6sofo,venham a exercer sobre este uma poderosa influencia. Assim a histo-ria catastrofista da geologia constitui ela propria urn passo numa modi-ficac;ao lenta e insensivel. As duas formas de tempo (catastrofista e uni-fonnitarista) sao competitivas, tanto no quadro da historia das ideiasgeol6gicas, como no da hist6ria da Terra. A nossa interpretacao da his-t6ria da geologia, assim como do "livro da natureza", toma-se cada vezmais uniformitarista. Retomando a linguagem metaf6rica, Lyell assinalaessa mudanc;a de natureza da hist6ria geol6gica. Durante uma confe-rencia destinada a alta-sociedade londrina, evoca 0 estado primitivo("catastr6fico,,) da geologia: No momento em que a ciencia se encon-trava num estado tao flutuante, 0 m6sofo, desejoso de conhecer a ver-dade, preferia naturalmente penetrar no dominic da investigac;ao ori-ginal a consagrar-se aos seus trabalhos literarios, e privilegiava acomparacao e a classificac;ao de observac;6es imperfeitas e de uma

    colec~ao Iimitada de factos. Um dos nossos poetas, fazendo alusao asf]utua~6es incessantes da nossa Iinguagem depois da epoca de Chau-cer, lamentava-se assim:"Escrevemos sobre a areia, a linguagem evolui,E como a mare, a nossa obra transborda.Que contraste com 0 futuro: "Aproximamo-nos todos as anos, cada vezmais, do momenta em que os novos faetos acrescentados por umagerac;ao de seres humanos, por mais importantes que sejam, apenasoferecerao uma contribuh;ao irris6ria a soma de conhecimentos adqui-ridos anteriormente; e quando esse tempo chegar, os que nao tiverema oportunidade de viajar ou de estar em contacto constante com os queefectuarao as observac;6es reais, nao estarao em desvantagem."Temas agora a possibilidade de unificar as concepcoes da hist6ria dageologia e da hist6ria da Terra elaborada por Lyell. No passado, 0saber desenvolveu-se de uma fonna catastrofista e as analises fonnula-

    14

  • r,

    AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL:

    varn-se em tefmos de catastrofes; oeste momento e no futuro, 0 saberdesenvolve-se unifonnemente e as analises formulam-se em terrnos de

    mudan~a regular e continua. Lyell confirma esta formula~ao quandoafinna: uA rela~ao entre a doutrina das catastrofes sucessivas e a dege-nerescencia repetida do caracter moral da ra~a humana e mais intima enatural do que poderiamos imaginar a primeira vista. A geologia deLyell, que tern a sua origem nessa simetria quase perreita entre 0 pas-sado da geologia e 0 passado da Terra, contem uma poderosa for~amoral: 0 leita! apercebe-se que tudo seria muita melhor se 0 tempo,que desde sempre moldou a natureza, moldasse igualmente a naturezahumana, Assim, 0 mesma tempo que serve para defender a investiga-

    ~ao geol6gica contra 0 dogma religioso Coperando uma separa~ao entrea tempo religioso e 0 tempo geologico, aquele interressando-se pelasorigens, este nao) serviria tambem para definir a evolw;ao da hist6riada nova disciplina por oposi~ao a evolu~ao da teoria religiosa.

    o tempo e as ciencias

    A geologia foi a primeira das ciencias a considerar, a partir do inicio do seculo XIX,a natureza do tempo como, tcma central. Depois de Lyell, sucederam-se tres fases prin-cipais; em cada uma delas, a ciencia dominante da epoca interessou-se de uma maneiraau de outra pelo tempo. 0 tema foi primeiro retomado par Charles Darwin (1809-1882),nessa altura foi assunto de debates sabre a pape! do tempo historico na ciencia -recusando-se Darwin a considerar as origens, tal como Lyell. Em seguida, apareceu asegunda lei da tennodinamica, que deu um tempo historico a hist6ria do universo: oscorpos astron6micos nao podiam mais ser considerados como sistemas auto-regulados deuma idade talvez infinita, pelo facto de a quanridade de entropia aumentar com 0 tempoe, consequentementc, todo 0 sistema tender a desorganizar-se. Finalmente, com a teoriada relatividade e a mecanica quantica, a fisica retornou ao primeiro plano: observadorescolocados em referenciais diferentes, ordcnam diferentemente os acontecimentos que seproduzem no passado - 0 que baralha completamente as nossas no(oes intuitivas dopassado e do presente. Enquanto a geologia e a biologia tiveram tendencia para negar aespecificidade do presente e afastar a humanidade do papel principal, a astronomia e afisica atribulram ao presente uma nova especificidade, e ao observador consciente umanova centralidade. Por outras palavras, a geologia e a biologia destruiram 0 tempo reli-gioso, enquanto a astronomia e a fisica fundaram urn novo tempo, adaptacto a religiao ea ciencia.

    o novo tempo utilizado par Lyell para fundar a geologia como disci-plina, encontra uma ultima aplica~ao nos Principios, a saber: a resolu-~ao do problema da eventual modifica~ao da escala cronol6gica ap6s acria

  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL

    diversidade extraordinaria tinha poucas hip6teses de sobreviver, e, naausencia de qualquer civiliza~ao, nao poderia nunca perpetuar-sedurante numerosas gera~6es por uma qualquer serie imagimlvel de aci-dentes. E possivel considera-la como urn caso extremo resultante da

    interven~ao humana, e nao como urn fen6meno indiciador de umacapacidade de transforma~ao infinita do mundo natural.Se a humanidade influencia 0 tempo ao ponto de 0 fazer parecer irre-versivel e rapido (e mesmo ucatastr6fico), isso permite a Lyell sublinharmelhor a uniformidade da realidade subjacente. Em geral, a humani-dade tern tendencia nao apenas a ler, mas tambem a escrever a ulivroda natureza de maneira errada, repetindo as mesmos erros em ambosas casas. Para minimizar a influencia da humanidade, Lyell recorre aduas estrategias: assimila-Ia ao natural e atribuir-Ihe urn outro nivel deexistencia. De acordo com a sua primeira estrategia, Lyell faz notar queas mudan~as realizadas pela humanidade sao contudo mudanc;as natu-rais. A humanidade realiza a sua tarefa de sementeira de longe, masesses graos foram no entanto semeados pelo vento au pela interven~aode uma ave migrat6ria. A natureza encarrega-se do processo, organi-zando a flora e a fauna em una~6es,,: nada pode sobreviver par muitotempo fora da sua na~ao. Esse lado natural da humanidade esta com-pletamente divorciado do seu lado civilizado, como sublinha Lyell naseguinte passagem:"Se 0 genero humano se encontrasse hoje destruido na sua totalidade,com excep~ao de urn tinico casal habitando quer 0 antigo au 0 novocontinente quer a Australia ou meSilla alguma ilha de corais do oceanoPacifico, e credivel que os individuos seus descendentes, meSillO quenunca fossem mais esclarecidos que os insulares do mar do Sui au asEsquim6s, espalhar-se-iam no decorrer dos seculos sabre toda a Terra,quer em consequencia da tendencia da popula~ao para aumentar numadeterminada regiao independentemente dos meios de subsistencia queessa regiao ofere~a, quer atraves de transporte ocasional de canoasarrastadas, pelas mares e as correntes, para costas afastadas. (. .. ) Semnos apercebennos, contrihuimos como eles (as animais inferiores), aestender au a limitar a distribui~ao geografica e 0 numero de certasespecies, de acordo com as leis gerais da economia da natureza, quenos sao na sua maior parte inacessiveis. Assim, tanto a propaga~ao dahumanidade como a sua aptidao para agir como agente de dispersao,sao inteiramente naturais e colocadas sob 0 controlo da natureza.A humanidade possui todavia uma outra caracteristica: a sua faculdadede transformar temporariamente as paisagens e as especies. Tendo emconta este a'pecto, Lyell elaborou uma segunda estrategia destinada aminimizar a influencia da humanidade: coloca a hip6tese do div6rciocompleto entre a humanidade civilizada e a natureza. As mudan~as quea humanidade realizou sao "nao de uma natureza fisica mas moral...Nao se pode de modo algum discutir 0 facto de nao termos 0 direitode antecipar uma qualquer mudan~a das situa~bes presentes no futuro,que nao seja compativel com a analogia, a nao ser que ela tenha resul-tado do desenvolvimento progressivo do poder humano au de novas

    rela~bes entre as mundos material e moral. Da mesma maneira, deve-

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  • ,..

    AS ORIGENS DO UNIFORMlTARISMO DE LYElL

    mas admitir que, quando especulamos sabre as vicissitudes da criac;aoda materia viva e inanimada nos tempos antigos, nao tcmos nenhumarazao para esperar resultados anormais, a naa ser que aparec;am clara-mente indica

  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL

    da encomenda. 0 raciodnio segundo 0 qual a existencia de Deus eprovada pelo facto da cria

  • AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL;

    veu ate hoje, consiste em reconhecer "que nao ha nenhuma objeq:ao cri-tica ou teol6gica valida que atribua a palavra "dia 0 sentido de "urnlongo periodo". Buckland prop6e entao uma interpreta~aomais a letra:"Mas nao sera necessario proceder a essa extensao de sentido, a fim dereconciliar 0 texto do Genesis com as aparencias flsicas, se se puder pro-var que a tempo indicado pelo fen6meno geol6gico pode encontrar-seno intervalo indeterminado que segue 0 anuncio do primeiro versiculo.Assim, a primeira tarde "pode ser considerada como a conclusao dotempo indefinido que se seguiu a cria~ao primordial anunciada no pri-meiro versiculo, e 0 segundo versiculo "pode geologicamente designara destmi~ao e as minas de urn mundo anterior. Nesse ponto intermediodo tempo, os periodos geol6gicos indeterminados precedentes acabam,e uma nova serie de acontecimentos inicia-se ... "Em consequencia, tanto a Biblia como Lyell ten1 literalmente razao ...acerca da idade da Terra.Quanta ao "livro da natureza", Buckland considera que, tambem ele,esta literalmente exacto. Segundo ele, "0 estudo desses vestigios consti-tuira 0 nosso tema de investiga~aomais interessante e mais instrutivo,pois e ndes que encontraremos 0 nosso livre-transito que nos permi-tira penetrar na hist6ria secreta da Terra. Sao documentos que contemas provas das revolu~6es e das catastrofes bern anteriores a cria\=ao da

    ra~a humana; abrem 0 livro da natureza e multiplicam os volumes daciencia (gra~as) as recentes descobertas da geologia.A prop6sito das arvores petrificadas que observou numa mina de car-vao na Boemia, escreve que Ihe parecem "pouco danificadas pelodecurso de idades inumeraveis, c contendo as vestigios fieis de siste-mas de vegetas;ao desaparecidos que existiram numa epoca da qual taisreliquias sao os historiadores infaliveis." Urn simples seixo liso e arre-dondado, esta "carregado de vestigios de acontecimentos ffsicos.Enquanto, para Lyell, a natureza e profunda e talvez irremediavelmentenao passivel de ser conhecida, para Buckland cIa e ja, por essencia,inteiramente conhecida. Segundo este, 0 "livro da natureza", infalivel,contem as marcas indubitaveis do designio de Deus, que assegura averdadeira liga~ao entre os aconrecimentos geol6gicos; quanto ao livrofalivel de Lyell, ele mistura essas mesmas marcas.Para melhor compreendermos como Lyell decifra esse livro falivel, exa-minaremos a sua reacs;ao ao determinismo lap/adana adoptado porBabbage. Segundo Laplace, uma inteligencia que, num dado instante,conhecesse todas as for~as que animam a natureza, e a respectiva situa-

    ~ao dos seres que a comp6em, se alem disso ela Fosse suficientementevasta para submeter esses dados a uma analise, englobaria na mesmaformula os movimentos dos corpos maiores do universo e os do maisleve atomo: nada seria incerto para ela, e 0 futuro, assim como 0 pas-sado, estaria presente a seus o1hos. nona tratado de Bridgewater,escrito pela pena de Babbage, dava grande importancia a essa especiede determinismo que imitava 0 funcionamento das suas maquinas decalcular - susceptiveis de ser programadas para realizarem 0 equiva-lente numerico dos milagres, mesmo que 0 algoritmo nao Fosse sufi-cientemente complexo. autor escrevia: ,,0 pr6prio ar e uma vasta

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  • AS ORIGEi\S DO IJNlfOHI>HTARISMO DE LYELL

    biblioteca", pois, quando falamos, "as ondula~6es do ar, desse modolevantaclas, percorrem a Terra e a superficie dos oceanos, de modoque, em menos de vinte horas, cada atomo cia atmosfera adopta 0movimento atenuado, devido a essa frac~ao infinitesimal do abalo pri-mitivo, que foi encaminhado na sua clireq:ao por inumeraveis canais eque continuara a influenciar 0 seu comportamento futuro". Segundoele, se conhecessemos a posi~ao original de cada urn dos atomos daatmosfera, poderiamos determinar inteiramente 0 seu futuro. Cadaassassino traz a marca do seu crime, algum movimento resultante doproprio esfor~o muscular na altura em que a crime foi cometido". Paraurn orgao de aucli~ao muito sensivel, todas as palavras acumuladas,pronunciadas depois da cria~ao do genero humano, retinirao unanime-mente nessa orelha.Lyell, clcpois de tel' recebido urn primeiro manuscrito da obra de Bab-bage, emitiu uma scrie de criticas a proposito dessas passagens. Elasconsistiam essencialmente, como no caso do designio divino, em insis-tir ainda sobre a falibilidade do "livro da natureza". Asssim, escreveu aoseu amigo: Se e verdade que todos os sons ficam no ar, do que naoposso impedir-mc de duvidar, e preciso acrescentar algumas precis6espara interesse dos ignorantes (. . .). Poder-se-a qualificar 0 ar de histo-riador, se e apenas urn depositario mudo que ninguem leu nem enten-deu? as drculos na agua nao acabam por desaparecer? a leitor comum(para 0 qual escreve) ficad contrariado se nao the explicaJem por querazao as ondula~oes propagadas num meio resistente nao se vao apa-gando a pouco e pouco, porque nao se combinam com outras para for-mar sons, notas e novas palavras. De urn modo geral, deu POLICO valorao livro e pronunciou-se contra a sua publica~ao.Babbage representa certamente urn caso extrema de adesao ao ternado determinismo total, mas este tema estava muito espalhado nessaepoca. Buckland e Babbage, cada urn a sua maneira, tornaram-sepropagandistas cia esscncia totalmente conhedvel do livro da natu-reza. DOl, amea~ava incorporar a geologia na teologia, e 0 outro, nafisica. Mas como adoptou Lyell uma concep~ao do trabalho do ge610goque the pennitiu conhecer a natureza, sem no entanto ser teologo oufisico?Para Lyell, 0 papel de interprete da naturcza e um papel chave: Deuse a natureza sao ambos fundamentalmente nao passiveis de serconhecidos, e e unicamente na altura de urn momento epifanico deextrema perspicacia quc 0 sabio pode esperar penetrar nos seus mis-terios. Lyell faz alusao a esse momenta numa cita~ao do historiadoralemao Neibuhr: Aquele que devolve a existencia aquilo que tinhaclesaparecido, sente uma felicidade semelhante ao que busca a cria-

  • ,AS ORIGENS DO lJNlfORMITARISMO DE LYELL,

    resplandecentes, que frequentemente emerge por instantes das nuvens,antes de ser subitamente submersoo>. chegaria "a concep~ao rnais exal-tante cia antiguidade da montanha.Ao ligar 0 seu tempo geol6gico a uma teoria romantica do conheci-mento, Lyell liberta-o finalmente da tutela do te6logo e do fisico.Fazencia ista, abre a via a uma grandeza do meSilla genera daquelaque e louvada na analise seguinte cia contribui~ao do ge61ogo franc;;:esGeorges Cuvier, publicada em 1936:,,0 matematico e 0 flsico 3tribuiram a si pr6prios 0 melhor tugar notemplo cia ciencia, e quase expulsaram 0 coleccionador e 0 classifica-dor do seu redora. Supondo que a grandeza e 0 afastamento enobre-cern as objectos materiais e revestem de sublimidade as leis que asgovernam, dando como adquirido que as aq:6es impondeniveis e invi-siveis da natureza constituem materias de pesquisa mais delicadas queos objectos grosseiros que se podem provar, tocar e acumular, eles des-prezaram por muito tempo 0 humilde e fervoroso naturalista que, aosseus olhos, se situava a um nive! apenas levemente superior ao de urnguarda de jardim zoo16gico ou de um domador de tigres. Esta vaidadeintoleravel, esta insensibilidade a unidade e a grandeza da natureza, aestrutura incompanivel dos corpos terrestres e a beleza das leis da vidaorganica foram talvez a consequencia e a causa do diminuto desenvol-vimento das ciencias naturais durante os dois seculos precedentes Oshomens de urn genio penetrante e exuberante foram naturalmente leva-dos a investir 0 seu capital intelectual nas pesquisas que lhes trouxes-sem quase indubitavelmente interesses substanciais sob a forma dereputar;ao; e e preciso reconhecer que a cultura dos dominios maisricos da ciencia foi durante longo tempo deixada ao cuidado de traba-Ihadores muito modestos.Nesta passagem, encontramos finalmente a propria evolur;ao que cons-tatamos em Lyell ao longo de todo este capitulo, isto e, a incrementode uma nova forma de saber propria dos sabios naturalistas - fundadana apreciar;ao da beleza da natureza e das suas leis - com 0 objectivode desenvolver a disciplina das ciencias naturais, de autro modo desti-nada a estiolar-se na sombra de outras formas dominantes do saber, asmatematicas e a flsica, no caso presente.

    A profissao de ge6/ogoPara melhor compreendermos a genese da profissaa, vamos examinarurn estudo onde a ligac;ao e muito explicitamente estabelecida - 0estudo de um ge6logo fran,es dessa epoca, Leonce Elie de Beaumont -e compara-Io-emos com 0 de Lyell. Tomemas primeiro conhecimentode algumas notas redigidas par Beaumont par ocasiao de uma confe-rencia preliminar sobre geologia, apresentada no College de Franceem 1839:uHoje em dia, que se comec;a a ir a Sampetersburgo em cinco dias, aConstantinopola em oito ou dez e a Nova Iorque em catorze; hoje,quando com 0 telegrafo electrico se pode falar par sinais a varias cen-

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    )... --1

  • AS ORIGENS DO UNiFoRMrTARISMO DE LYELL,

    tenas de leguas; estamos no come~o de uma nova era, onde a locali-dade de cacla urn sera muito maior do que foi ate hoje, visto que afaculdade de viajannos foi substancialmente aumentada e 0 inconve-niente de estarmos ausentes diminuiu consideravelmente. Estamosprestes a atingir 0 momento em que a morada de cada ge61ogo sera 0globo terrestre. E entao que urn fil6sofo podera realmente dizer-secidadao do universo. Da assim uma lista de homens famosos agnlpa-dos como uma constela~ao" e acaba assim a sua conferencia: "Buffontenninou a idade her6ica cia geologia onde cada um estabelecia urn sis-tema completo. Foi impassivel ir mais longe sem fazer da geologia 0dominio de urn grande numero de pessaas e consequentemente umaprofissao com as sua's regras. Numa nota a prop6sito desta frase, pre-cisa: "Foi depois dele e nao atraves dele que a geologia tomou lugarentre as ciencias academicas, que aumentam gradualmente com os tra-balhos sucessivos de uma colec~aode individuos. Ea aplica~ao do prin-dpio da divisao do trabalho.Uma conferencia equivalente, apresentada em 1834, intitulava-se "Espe-cialidade da geologia deduzida da especialidade do genera de vida dosge610gos. Eis aqui algumas 110tas:Plano da ciencia geologica cIeduzido da ordem que ele proprio estabe-lece para a trabalho dos ge610gos. 0 ge610go e assim, entre todas asclasses de sabios, que e mais obrigado a deslocar-se. (. . .) Esse factoleva tanto mais a fazer dela uma classe cIistinta, quanta essa circuns-tancia exige uma dispasi~ao de espirita particular. ( ... ) De todas asciencias, a geologia e aquela que mais depende do aperfei~oamentodos meios de transporte. Os meios de transporte sao para a ge6logo 0que 0 oculo e para 0 astronomo. As novas estradas que suIcan1 aEuropa, fazem, pOl' assim dizer, uma prepara~ao geologica. Observa-~6es do 51'. Cuvier sabre 0 barco a vapor. Novos habitas que dai resul-tam para toda a popula~ao. A geologia tornou-se de certo modo umaprofissao. Onde acaba a astronomia e come~a a geologia? Estas duasciencias sao irmas, e 0 que exerce uma linha de demarca~ao entre elase sobretudo 0 genero de vida diferente que exigem dos que as culti-Yam. Uma das coisas que caracterizam e mesmo constituem os pro-gressos da civiliza,ao, e a partilha de ocupa,oes. (. .. ) 0 estahele-cimento dos caminhos-de-ferro tera. como efeito engrandecer aslocalidades geogr{lficas, diminuir a distancia que existe entre 0 ge610goe 0 astr6nomo...o pr6prio Lyell dava grande impoltancia a necessiclade de viajar, queconsiderava como uma parte essencial cia actividade do ge610go; e parisso que, na sua autobiografia, afirma: "Devemos falar a favor da via-gem, que cleve ser a primeira, a segunda e a terceira obriga~ao do ge6-logo moderno ...Urn tema dos textos de Beaumont consiste na icIeia de uma divisao dotrabalho, na geologia mocIerna, que se assemelha em varios aspectos aicIeia de urn tempo geol6gico particular, desenvolvida nos Principios deLyelL Considerando, de momento, os pontos comuns aos dois autores,observamos que fazem ambos exactamente as mesmas observap3es aproposito do desenvolvimento cia geologia.

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  • ,AS QRIGENS DO UNIFORMITARISMQ DE LYELL:

    Agora e 0 fim da idade her6ica das sistemas individuais, que foramsucessivamente abandonados com uma febrilidade cataclismica. Para deBeaumont como para Lyell, e agora 0 tempo de uma evolw;ao leota eprogressiva, posta em ao.;:ao por urn vasto grupo de trabalhadores, semque algum domine a disciplina - disciplina cia qual os dais autoresprocuram, com as seus trabalhos, lan~ar as fundac;6es quase matemati-cas. Para de Beaumont, isso traclU2 a divisao do trabalha e, para Lyell,a mesrna esta ligado ao tempo geol6gico uniforme.Podemos descobrir lima ligac;;:ao suplementar entre 0 principia cia divi-sao do trabalha e 0 do uniformitarismo. Lyell consagra longos capitu-los das seus Principios a damar contra 0 que se poderia chamar 0 sis-tema her6ico" das mudan~as geo16gicas. Segundo ele, nao existiuepoca alguma onde as coisas fossem diferentes: ,,0 exame minuciosodos vestigios da cria~ao, animada dos primeiros tempos, exercia urnefeito poderoso, dissipando a ilusao que permanecera durante longotempo relativa a ausencia de analogia entre 0 estado antigo e 0 estadoactual do nosso planeta. Com efeito, "era contrario ~l analogia suporque a natureza, numa epoca anterior, tivesse sido poupada com 0 seutempo e pr6diga com a violencia". Trata-se ai de uma equivalenciadirecta do "sistema heroico.. de que fala de Beaumont a proposito dageologia. Nos seus prindpios, Lyell prop6e, de facto, uma divisao sen-sata e racional do trabalho entre as diversas for~as da natureza. Cada

    for~a criadora e tambem destrutiva e e preciso uma miriade de peque-nas mudan~as para provocar uma grande mudan~a - por outras pala-vras, a economia politica da revolw;ao industrial deve aparecer no"livro da natureza .. , senao a natureza e irracional. Assim, quando ahumanidade entra em cena, torna-se parte integrante da economia danatureza, um trabalhador na oficina Terra: "Antes de decidirmos quequalquer influencia humana e nova e anormal, deveriamos sempre con-siderar com cuidado todos os poderes dos outros agentes animadosque podem ser limitados ou suplantados pOl' ela. Muitos dos que sedebru\,aram sobre este assunto parecem tel' esquecido que a ra~ahumana conseguiu muitas vezes adquirir fun~6es desempenhadas ante-rionnente pOl' outras especies .. "Podemos entao utilizar os textos de de Beaumont para compreender a

    pasi~aa de Lyell a respeita do principia da divisaa do trabalha: a suateoria geol6gica descreve a organiza~ao racional do tempo, implkitanesse principio, e atribui um tempo semelhante a natureza.Porque essa divisao do trabalho na geologia enquanto disciplina, nasociedade e na natureza? Lyell e de Beaumont insistem no facto de queas perturba\,oes sociais e econ6micas da epoca provocam uma especiede explosao da informa~ao. Se considerarmos a geologia de Lyell comourn sistema de classifica~ao dessa informa~ao, compreendemos melhora articllla~ao da sua concep~ao clo tempo. Levando a abstrac\,ao ate aolimite, em vez de considerar a geologia como uma ladainha de inume-raveis acontecimentos singulares (LIma especie de um imenso poemaepico), Lyell propoe-se entende-la como a sistematiza~ao de umnumero restrito de acontecimentos tipo. Assim, em vez de olhar parauma montanha particular como 0 sinal de LIma eleva\,ao maci\,a num

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  • AS ORIGENS DO UNIFORMfTARISMO DE LYELL

    momento preciso do passado, prefere vel' nela um exemplo tipieo deuma especie de mudan

  • rAS ORIGENS no UNlfORMITARISMO DE LYELL:

    Foi s6 depois de Descartes tef emitido a hip6tese cia extensao infinitade espa,os celestes e suprimido as supostos limites do universa, quese comc~ou a tel' uma opiniao mais ajustada das distancias rclativas doscorpas celestes; e ate que admitamos a possibilidade de uma dura~aoinfinita das idades incluidas em cada um das periodos mais modernoscia hist6ria da Terra, arriscar-nos-cmos a Farjar a mais errada e parcialdas opini6es acerca cia geologia." Existe no entanto uma liga~ao maisprofunda, sabre a qual gostaria agora de insistir.Para comec;ar, tomemos conhecimento de urn texto de de Beaumont,tirado ciesta vez de notas incompletas redigidas tendo em vista umaconferencia dada a 20 de Dezembro 1832:

    "espa~o sem limites ... tempo sem limites. Periodos astron6micos ..oscila~oes peri6dicas avolta de urn estado media. A beleza desse resul-tado e uma primeira razaa para pensar que ele nao e uma pura abs-trace;;:ao e que teve na natureza uma realiza~iio efectiva. Contudo, oscarpas celestes nao deixam no espa

  • AS ORIGENS DO UNIFORMITAR1SMO DE LYELL:

    trabalho e a parceliza

  • rL

    AS ORIGENS DO UNIFORMITARISMO DE LYELL:

    do templo cia ciencia ao redefinir urn tempo geologico. De facto, Lyellexcluiu duas especies de tempos religiosos cia geologia. A primeiracoincide com a representas;ao paga de urn tempo povoado de grandesher6is cavalgando 0 dominio cia geologia como colossos, au ainda degrandes acontecimentos geol6gicos - tremores de terra, inunda~6es,tempestades - eclipsando as ffiinimas e tranquilas variac;;:6es sabre 0tema do rcpouso, que caracterizam a cpoca actual. Em segundo lugar,Lyell nega ao autor cristao do "livro cia natureza 0 clireito de interpre-tar a sua obra: e 0 momenta de criac;;:ao experimentado pelo ge61ogo,agindo como 0 novo sacerdote cia natureza que constitui a interpreta-c;;:ao definitiva e correcta do livro imperfeito. Se Deus foi 0 unico sercapaz de existir fora do tempo e do espa~o e de velar sobre 0 conjuntoda cria~ao, 0 ge6logo agora juntou-se a ele e suplantou-o meSillO.o mito da funda~ao nao representa assim mais do que a estenografiade uma realidade muito mais complexa que ve a cH~ncia constituir-se,a despeito das afirma~6es seculares, em nova religiao dos temposmodernos.Tudo isto parece conferir ao nosso her6i, Charles Lyell, um enormepoder. Sem ajuda particular, apenas armado da sua perspic:kia intelec-tuaI, conseguiu ajustar a separa~ao da Igreja e do Estado para fundar aprofissao de ge61ogo. Bem-entendido, esta visao das coisas e comple-tamente improvavel. Como tentei demonstrar, a causalidade hist6ricanao se exerce, neste caso, de um intelecto superior para a sociedade,par intermedio de ideias, mas da sociedade para 0 intelecto, pela inter-ven~ao do exercicio quotidiano da profissao de ge6logo. A divisao dotrahalho e a organiza~ao do tempo nas fabricas e na geologia levanta-yam precisamente 0 mesmo problema. Criando a profissao de ge6logoa imagem da de um administrador intermedio de lIma empresa flores-cente, Lyell introduziu cientificamente na hist6ria cia Terra 0 mesmotempo que olltros introduziram socialmente na sociedade industrial. Asmetafaras utilizadas par Lyell e as liga,bes estabelecidas por de Beau-mont nao tem, par isso, nada de extraordinario: ambos eram melhoreshistoriadores que um especialista de hist6ria que afirma que a (mica

    contribui~ao de Lyell foi a de aumentar a idade da Terra.

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  • rMendel:para as lados do jardim

    JEAN-MARC DROUIN

    Onde se vera que a imagem piedosa, elaborada noseculo xx, de urn monge checo que revoluciona a

    biologia e funda a genetica casando ervilhas no jardimdo seu convento carre 0 risco de nos esconder a quea aproxima dos outros seleccionadores do seculo xx.

    Ahist6ria ja [oi cootada muitas vezes: ao publicaI' em 1900 asresultados dos seus trabalhos sabre a hereditariedade nos vege-tais, 0 holandes Hugo De Vries assinala que as leis que des-cobriu ja tinham sido formuladas trinta e cinco an05 antes por urn reli-gioso de Brunn, hoje Brno, chamado Gregor Mendel. No meSilla ana,dais outros botanicos, urn de Tiibingen e 0 outro de Viena, Carl Car-fens e Erich Tschermak, publicam resultados amilogos. Todos reconhe-cern a anterioridade dos trabalhos do mange cheeD ao meSilla tempoque precisam que chegaram de maneira independente as mcsmas C011-c1usoes. 0 artigo de Mendel, lido em 1865 na Sociedade de Hist6riaNatural de Brunn, ocupa entaD 0 sell lugar no panteao da hist6ria dasciencias, e a sell autar torna-se a pr6prio exemplo do genio desconhe-cido.Durante muita tempa admitida com mais au menos matizes, esta ima-gem piedosa e actualmente contestada por varios ladas. Diversos tiposde estudos contribuiram para esta evolw;;ao. Em primeiro lugar, urnrecenseamenta das referencias aos trabalhos de Mendel, entre 1865 e1900, fez aparecer 0 cara.cter relativo da obscuridade na qual eramsupastas ter permanecido no seculo XIX. A seguir, urn confronta comoutros autores preocupados com a hibridac;ao ou com a selecc;ao per-mitiu distinguir rnais claramente as questoes que Mendel podia colacardas que estaa implicadas na genctica cantemporanea. Par fim, umaanalise minuciosa dos textos e das posic;ocs das "redescobridores ser-viu de suporte a lima nova interpretac;ao da famosa redescoberta. Bran-ningan, em particular, mostrou como a referencia aos trabalhos deMendel interviera in extremis na publicac;ao de Hugo De Vries, prava-velmente para evitar uma querela de priaridade com Carl Correns eErich von Tschermak: dado que nenhum destes tres autores podia, sem

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  • MENDEL PARA OS LADOS DO JARDll'o.'l

    descontentar OS outros dois, atribuir a si proprio a paternidade de umadescoberta que tinham feito simultanea e independentementc, maisvalia que concordassem na paternidade de um sabio desaparecido esupostamente obscuro.Depois disso, poderemos ainda apresentar 0 artigo de Mendel comourn texto fundador e considerar que teria passado despercebido dosseus contemporaneos porque era demasiado singular? Nao seria precisover nele, pelo contrario, senao urn artigo mais entre outros sobre a

    hibrida~ao, que nada podia distinguir de muitos outros trabalhos an{l-logos, antes de os primeiros geneticos - no inkio do seculo xx - 0poderem reinterpretar a sua maneira e fazerem dele, urn poueo abusi-vamente, a origem da sua disciplina?Talvez Fosse menos incomodo responder a estas quest6es se confron-tassemos 0 texto mendeliano com as preocupa~6es tecnicas que, paraos seus contempodneos, lhe davam 0 essencial do seu proprio sen-tido. Os desenvolvimentos actuais da biotecnologia nao deveriam fazeresquecer a transforma~ao fundamental que interveio na agricultura cna horticultura nos seculos XVIII e XIX. Ora, Mendel pode ser considc-rado como urn dos actores desta historia, ja que as leis que enunciaencontram a sua ilustra~ao can6nica nos procedimentos de selec\ao ede hibrida~ao utilizados pelos criadores de animais e pelos produtoresde sementes. Poderemos dizer, por isso, que estes procedimentosseriam a aplicariio das leis de Mendel? Ou seria preferivel acreditarneste chiste do proprio Bateson ao dizer, por altura da IV.!! Conferen-cia internacional de Genetica (Paris, 1911) que, neste dominio, 0homem de ch~ncia recebe do homem pratico ideias novas" que digereem seguida? A obra de Mendel e um dos nos em que a hist6ria ciaagronomia reencontra a da biologia, e uma constata~ao que pode scr-vir-nos de fio condutor.

    Esbar;a biagraficoEmblematica deste encontro, a infancia de Johann Mendel pertcncetanto a hist6ria como a lenda. Nasceu em 1822 numa aldeia chamadaHeinzendorf, hoje Hyncice, na Moravia, uma das regi6es da RCp(lblicaCheca, na altura provincia austriaca. 0 tio fora professor primario.A mae provinha de uma familia de jardineiros de uma aldeia vizinha.o pai era urn antigo soldado das guerras contra Napoleao. Os pais deMendel exploravam uma pequena quinta que Ihes pertencia. Aindaestavam submetidos a velha lei do trabalho obrigat6rio que obrigava 0campones a trabalhar tres dias por semana para 0 proprietario. 0 paide Mendel tinha urn pomar que tratava com competencia, encorajadopeto cura da par6quia, J. Schreiber. Este ultimo, tal como 0 professor,Thomas Makitta, empenhava-se em dar a conhecer a hist6ria natural eem difundir as tecnicas de melhoramento das arvores de fruto. Peloexemplo paterno, refor~ado pelo ensino do professor e do cura, Men-del teria, portanto, muito provavclmente assimilado desde a infanciaurn saber hortkola substancial: quer dizer, nao apenas as noc;6es pdti-

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  • fMENDEL: PARA as LADOS DO JARDIM

    cas de botanica, mas tambem 0 golpe de vista e os gestos que permi-tem ao jardineiro usaf astucia para com 0 vegetal.a lar;o entre a infancia camponesa de Mendel e as suas preocupac;6esulteriores - hibridar;ao, apicultura e meteorologia - foi muitas vezessublinhado. Elc aparece a uma nova luz se, como 0 fazem varias estu-dos recentes, 0 relacionarmos com 0 progresso das tecnicas agrkolasda Moravia, no inkio do seculo XIX.Varias nomes estao associados a este movimento ao mesmo tempo inte-lectual e econ6mico. Entre as mais citados, encontramos 0 de urn cdadorde gado, Ferdinand Geisslen (1751-1824), autor de um tratado sobre osmetodos cientificos de seleq:ao dos Qvinos. Estes metodos, vindos deInglaterra, baseavam-se na medida, em registo sistematico, das caracterls-ticas dos animais e na constitui~ao de genealogias precisas e completas.Os seus exitos ilustram 0 pape! da transmissao hereditaria dos caracteres.o impacte econ6mico deste dominio da reprodu~ao e consideravel econta-se que, em 1810, em BIno, 0 valor de mercado de urn carneiromunido de urn pedigree era 0 centuplo do de urn carneiro ordinario.Outro nome surge varias vezes: 0 do naturalista Christian-Carl Andre(1763-1831), conselheiro do conde Salm (1776-1861).0 conde, promotorda industria textil em Brno, presidia a uma sociedade regional de agricul-tura, de que Andre era 0 secretario. A Sociedade Pomol6gica \ filial daSociedade de Agricultura, dedicava-se em particular a fecunda,ao artificialdas arvores de fruto e preconizava a cria\ao de viveiros. Urn dos viveiroscriados nesta epoca encontrava-se no convento dos agostinianos de Brnocujo superior, Franz Cyril Napp, figura entre os membros da SociedadePomol6gica. Tornado presidente da Sociedade Pomol6gica, 0 abade Nappresumia 0 problema da transmissao dos caracteres atraves destas duasquestoes: 0 que e transmitido e como e transmitido?,,; sublinhava, pOl'outro lado, a necessidade de investiga\oes experimentais para resolverestas questoes, exprimindo desse modo provavelmente 0 desejo de umacelta autonomia da investiga~aofundamental relativamente as praticas tec-nicas. Parece, com efeito, que os proprietarios de terras representavampara os naturalistas momvios aliados eficazes, mas urn pouco sufocantes.Esta tensao devia culminar, em 1861, na cria\ao de uma Sociedade deCiencias Naturais, independente da Sociedade de Agricultura.

    Mendel religioso, estudante e professorA imagem do seu superior, os agostinianos 2 de Brno rnanifestavam urngrande interesse pela agricultura e pelas ciencias naturais e consagra-

    I Pomologia: parte da arboricultura que trata do conhecimento das arvores de fruto em viveiro.

    2 0 que e Un! agostiniano? A ordcm reHgiosa dos Agostinianos foi fundada em 1256 par Ale-xandre IV. as seus mcmbros nao sao, propriamcntc falando, manges, ja que nao cstao obri-gados a dausura. E uma ordem religiosa que se poderia aproximar da dos Franciscanos ou dosDuminicanos. Inspirada pelos escritos de Santo Agostinho (354-430), conta entre os seus te610-gos Gilles de Rome (morto em 1316), comentador de Arist6teles, disdpulo de Sao Tomas deAquino. A voca~ao intelectual da ordem era particulannentc afinnada no casu dos agastinianosde Smo, ja que um decreta imperial de 1802 as obrigava a assegurar certos ensinas nos esta-belecimentos da regiao.

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  • MENDEL PARA OS LADOS DO .rARDI~f

    yam uma boa parte do sell tempo ao ensino. Varios deles tambem seinteressaram pela mosofia, e urn deles, 0 botanico Matthaeus Klacel0808-1882), fora mesmo suspeito de panteismo. Esta actividade inte-lectual nao era apreciada pOl' todos. Assim, aproveitando a clima reac-cionario que sucedeu aos acontecimentos de 1848, 0 bispo de Brnotentou ohter 0 controlo au a dissolw;;:ao desta comunidade. Nappdefendeu a voca

  • LMENDEl.: PARA as LADDS DO JARDIM

    defina amador como aquele que naG recebeu forma~ao universitaria nodominio considerado, Mendel naG pode entrar nesta categoria. Porautras palavras, ele pode ser considerado como urn beneficiado" dainvestigas;:ao mas naG como urn autodidacta, Por Hm, ele dispunha noseu convento de urn jardim experimental e de ajudas para as culturas,sem contar com a biblioteca e as trocas com outros religiosos naturalis*tas; numa palavra, beneficiava de facilidades que alguns universitiriostalvez tivessem invejado.Para aU:m disso, a Sociedade de Ciencias Naturais que, como vimos, tinhanascido da Sociedade de Agricultura, e na qual expos a resultado dassuas investigas;:6es, e urn born exemplo das sociedades de sabios locaisau regionais que floriram na Europa no seculo XIX e cujo papel foi bas-tante importante: por urn lado, permitiam encontros entre universitarios eamadores, tal como entre especialistas de disciplinas diferentesj por outro,ofereciam possibilidades de publicac;;:ao e representavam urn dos meios dedifusao das teorias e dos programas de investigac;;:ao. Portanto, nao hanada de muito surpreendente que 0 memorando de Mendel sobre a hibri-da

  • MENDEL: PARA as LADaS DO JARDIM

    ingenuo - analogas as que Mendel mandara executar no tecto da salacapitular do convento - algumas fotografias tambem muito fascinantes:uma regHio agricola em plena evolu~ao, agr6nomos e criadores de gadapreocupados com os problemas da hereditariedade, uma passagem pelaUniversidade de Viena, uma comunidade religiosa votada a actividadeintelectual, confrontos entre liberais e conservadores, sociedades desabios em plena actividade. No meio de todos estes elementos que sesobrep6em e seentrela~am, ressurgem incessantemente a agricultura ea jardinagem. Sendo assim, muitos outros autores da epoca relacionarama horticultura com a investiga~ao biol6gica.Par que razao, entao, a obra de Mendel ocupa urn lugar tao singular?Par causa da sua redescoberta? Seja, mas 0 que havia entao nesta obraque tornou possivel a sua reutiliza~ao pelas seus redescobridores?

    Horticultura e boranica

    .A horticultura e a botanica unem-se hoje em dia par laiYos muito estreitos; saode tal modo solidarias entre si, 0 apoio que prestam uma a outra e de tal modo neces-sario que devem ser consideradas mais como dois membros de um mesmo corpo deciencia do que como duas ciencias distintas. A difereniYa que existe entre elas naopassa, na realidade, da que separa a pratica da leoria. Se urn bota-nieo descobre umnovo facto de fisiologia vegetal, a horticuhura depressa dele se apodera, e rapidamente,par sua vez, fomece a ciencia 0 equivalente do que recebeu, quer eonfinnando atravesde astuciosas experimenlaiYoes a verdade que acaba de ser adquirida, quer pondo 0sabio na via de descobertas novas. Da-se a mesma reeiprocidade, quando se trata deconquistas a fazer no vasto campo da natureza: os sucessos de uma beneficiam a outra,porque tanto a horticultura como a botanica tem os seus coleccionadores intrepidos edevotados. Por fim, tambem, muitas vezes, esla ultima tern 0 controlo das decisoes dadencia na questao tao complicada das especies, questao que a botanica, abandonadaaos seus pr6prios recursos, nem sempre e capaz de resolver.- (Charles Naudin, Revuehonica/e, 1852.)

    Os artigos de Mendel sabre a hibridar;aa

    Segundo os historiadores V. Kruta e Vitezslav Orel, a obra de Mendelcomp6e-se de treze artigos, da correspondencia e de uma vintena deoutros textos. Em treze artigos, nove dizem respeito a meteorologia,dois aos insectos destruidores e dois, finalmente, debru~am-se sobre a

    hibrida~ao. E a estes dais ultimos que geralmente se faz referencia.o primeiro, a memoria de 1865, Investigar;oes sabre Hibridas Vegetais,publicada em 1866, retoma a exposi,ao feita no decurso de duas ses-soes, em 8 de Fevereiro e 8 de Mar,o de 1865, em Emo. A segunda, amemoria de 1869, Sabre Alguns Hibridos de Hieracium Obtidas parFecundar;iia Artificial, lida na sessao de 9 de ]ulho de 1869, foi publi-cada em Emo em 1870.

    As .Observar;oes preliminares. da memoria de 1865

    A introdu~ao da fucsia na Europa no fim do seculo XVIII seduziu mui-tos amadores e horticultores, que obtiveram par selec~ao e par cruza-

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  • rMENDEL: PARA OS LADOS DO JARDIM

    mento as numerosas fonnas que podem ser admiradas hoje ern dia.Mendel, membra da Seq:ao de Hottieultura da Sociedade de Agrlcul-tura, participou ele proprio nesta admira~ao extasiada. A flor que eletern na mao numa fotografia de 1860 e uma fUesia. Urn hottlcultor deBeno dedicou-lhe uma nova variedade, agradecendo a trabalha querealizara com ete. A mcsia nao e, alias, a (mica planta ornamental porque Mendel se interessou. Nao ha nada de surpreendente, entaa, queeste abra a sua comunica~aopor uma referenda a cultura floral: "Foi aoproceder, sabre plantas ornamentais, a fecundafoes artificiais destina-das a obter novas colorac;6es, que fomos levados as investigac;6es queVaG sec aqui expostas."a terma mestic;o" do latim mixtus, misturado", e utilizado em principiapara 0 cruzamento de duas variedades, fkando 0 termo ~hibrido4reservado ao cruzamento de duas especies. Contudo, estas denomina-

    ~6es sao utilizadas de maneira bastante variavel segundo as epocas eos autores.Ao mesmo tempo, Mendel sublinha a amplitude e 0 alcance te6ricosque entende dar ao seu trabalho:

    ~A regularidade notavel com a qual reapareciam as mesmas formashibridas, sempre que a fecunda~ao ocorria entre as mesmas especies,deu a ideia de novas experiencias cuja finalidade seria seguir os hibri-dos na sua descendencia."Mendel salida a seguir as conscienciosos observadares, como Kolreu-ter, Gaertner, Herbert, Lecoq e Wiehura, e ainda outros" que "consagra-ram uma parte da sua vida ao estudo destas quest6es". Esta homena-gem aos seus predecessares e acompanhada de urn balan~o cdtieo quee ao mesmo tempo 0 anuncio de urn programa de investiga~ao:

    ~Se dermos uma olhadela de conjunto aos trabalhos realizados nestedominio, chegaremos a conclusao que, entre estes numerosos ensaios,nao ha nenhum que tenha side executado com bastante amplitude emetoda para pennitir fixar 0 numero das diferentes farmas sob as quaisaparecem os descendentes dos hibridos, classificar estas formas com

    seguran~a em cada gera~ao e estabelecer as rela~6es numerieas exis-tentes entre estas farmas. E preciso, com efeito, tel' uma cetta coragempara empreender urn trabalho tao consideravel. S6 de, contudo, parececapaz de conduzir finalmente a resolu~ao de uma questao cuja impor-tancia para a hist6ria da evolu~ao dos seres organizados nao deve sermenosprezada.Mendel precisa a seguir que a sua comunica~ao nao relata senao urnprimeiro ensaio de experimenta~ao limitado a urn pequeno grupo deplantas. Este ensaio ao fim de oito anos fieou ~terminado nas suas par-tes essenciais",

    4 Hibrido: em latim ibrida au hybrida. 0 Dictionnaire des Sciences Naturelles (Levrault, 1821)da-Ihe como origem -a grega UPpU1 genitiva UpptooO', que e lTIuitas vezes tornado no sentidode injuria, de afronta, de adulterio., como se a mestipgem s6 pudesse resultar de uma rupturaau de uma violencia feita a ordem das coisas. 0 Dictionnaire E~ymologiqlte de la LangueLatine (A. Ernout e A. Meillet, 1939) nao confirma esta etimologia, mas pressupbe contudo quea grafia bybrida foi influenciada par uma falsa aproximayao literaria a UpptO'.

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    Hibridaraa e eva/uraa

    o mais surpreendente para nos hoje em dia nesta introdtH;ao e a alu-sao sihilina a evolufao.Pade considerar-se que 0 tenno alemao empregue pOl' Mendel, Ent-wicklung, significa apenas aqui desenvolvimento individual do orga-nismo". 0 termo frances evolution foi alias utilizado neste sentido, nosecula passado, numa epoca em que a que chamamos hoje teoria daevolufao era conhecido sob 0 nome de transformismo. Neste caso, aexpressao hist6ria da evolw;ao dos seres organizados" poderia sercompreendida como "a historia natural do desenvolvimento indivi-dual das plantas e dos animais. Urn dos problemas, que trata dagenese do individuo e que ainda clava origem a controversia naepoca, era 0 do papel respectivo do 6vulo e do p6len na fecunda-

    ~ao vegetal. Alguns botanicos atribuiam ao 6vulo um papel simples-mente nutritivo, reservando 0 papel principal para 0 p6len. Mendeltoma partido nesta questao, ao aprcsentar 0 resultado das suas expe-ricncias:"Se 0 ovulo 56 tivesse sobre a celula polinica lima ac~ao superficial, se 0seu papel se reduzisse ao de um reservat6rio alimental', qualquer fecun-

    da~ao artificial nao poderia tel' outro resultado senio dar urn hibridosemelhante exclusivamente a planta macho, ou muito proximo dela. Foio que as nossas investiga~6es nao confirmaram de modo nenhum, ateagora.Contudo, e mesma que a frase sobre a evolu~ao dos seres organizadosnao se refira directamente ao debate sobre a teoria da evolu~ao no sen-tido que damos a esta expressao, a pratica da hibridayao continua mui-tas vezes ligada, na epoca, a uma interroga~ao sobre a estabilidade daespecie. J:i que 0 homem, ao cruzar as variedades e as especies, parececriar novas flores, a fixidez das formas naturais pode ser posta em causa.Contuclo, na mcdida em que estas formas novas se revelam estereis ou asua descendencia teode a regressar aos tipos parentais, a estabilidade daespecie e corrohoradora. Na conclusao do memorando, Mendel deixa aquestao em ahelto, tendendo ao mesmo tempo provavelmente para atese fixista de Gacltner.Na mem6ria de 1869, a proposito do genera Hieracium, flores selva-gens nas quais se encontra uma multiplicidade desconcertante deespecies vizinhas, expoe a tese dos que veem nesta fusio 0 resultadode hibrida~bes naturais; nota tambem que para outros autores uma

    hibrida~ao assim e tanto impassivel como efemera. POI' outro lado,precisa:Nestes ultimos tempos, a questio da origem das numerosas formasintermedias constantes nao deixou de ganhar interesse, descle que urncelebre especialista em Hieracium, colocanclo-se do ponto de vistadarwiniano, defendeu a ideia de que e preciso faze-las derivar deespecies desaparecidas au ainda existentes.Segundo Orel, 0 celebre especialista" em questao nao e senao Naegeli,com quem Mendel se correspondia desde 1866.

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    A escolha da ervilheira

    Em suma, dispomos de muito poucos elementos para situar Mendelrelativamente a Darwin. Os seus pensamentos concordam, contudo,quanta a ausencia de distin

  • MENDEL: PARA OS LADDS DO JARi)IM

    segundo Orel, a cultura no jardim do convento de variedades particular-mente saborosas!

    AS resultados

    Tendo assim justificado a escolha das plantas de experienciau, Mendelapresenta as sete caracteres diferenciais (Dif!erirende Merkmale, emalemao) que reteve e que VaG do aspecto das sementes, redondas auenrugadas, ate ao comprimento dos callies, passando pela forma dasvagens. Depois disso, relaciona as resultados das suas experH~nciascom as efectivos de cada grupo, em vadas gera~6es.Em primeiro lugar, quando cruza duas ervilheiras que apenas diferempor urn caracter, e de ra~a pura para esse caracter, por exemplo asemente lisa au enrugada, obtem hibridos completamente identicos, naocorrencia todos de semente lisa; este canicter e chamado dominantc(dominirende). Ao fazer a scguir reproduzir estes hibridos por auto-fecunda~6es, obtem ervilhas lisas ou enrugadas numa propor\=

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    ..scmente enrugada-, por exemplo. E uma nota

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    MENDEL: PARA OS LADOS DO JARDIM

    quer dizer que, se fizermos uma experiencia qualquer de combinai,;ao de caracteres numaplanta qualquer, os efectivos das diferentes combina

  • rMENDEL: PARA as LADOS DO JARDIM

    assegurar, devido :l cor das sementes, 0 sucesso da operat;ao. Antes do desabrochamentocompleto da flor, as anteras dos Feij6es comc(am a espalhar 0 p6len, e imediatamente acarena se dobra, levaodo com ela as filetes unidos que se esticam aD mesma tempo,como se quisessem atingir 0 estigma levado pelo estHete e 0 ovano, que tambem aumen-tam. Contudo, 0 pistilo alonga-se menos que as estames, e a fecunda~ao nao demora aDearrer. Para a realizar artificialmente, basta afastar urn POllCO a carena, e calocac, Comurn pineel, 0 polen sabre 0 estame. Este ultimo retem-no facilmeore, e como 0 polen dosFeijoes nao e muira pu!verulento, mas muitas vezes urn tanto pastoso, pode dispensar-sea desloca(ao dos estames, trarando apenas de fecundar 0 pistilo, desde que 0 estado daflor permita chegar a esse ponto.-

    Para explicar este resultado que pareceria apoiar a tese da hereditarie-dade por mistura, em vez da sua, Mendel teve de pressupor que a cordas flores se compbe de vados caracteres. Por fim, as ultimas paginassao consagradas a uma analise dos resultados publicados par JosephKoelreuter e Carl Friedrich Gaertner e a uma discussao das suas coo-clusbes sobre a no~ao de especie.

    A impressao que se depreende desta segunda parte do texto e queMendel espera poder aplicar as leis que descobriu na ervilha ao con-junto do mundo vegetal; mesmo se, quatro anos mais tarde, pare~aduvidar que elas se apliquem as plantas selvagens do genera Hiera-cium au aos salgueiros, mostrando esta esperao~a 0 alcance que daaos seus trabalhos de hibrida~ao. Sera que isso nos permite dizer que,ao fazer isto, ele pretende fundar uma nova disciplina? De facto, aquestao de saber se Mendel esta au nao na origem da genetica mascaraoutra questao que diz respeito desta vez a hist6ria das tecnicas como ahist6ria das ciencias, e que consiste em situa-lo neste programa de

    investiga~ao, situado nos confins da botanica e da agronomia, e que sepoderia resumir assim; como fazer da produ~ao de novas variedadesvegetais uma tecnica segura e eficaz. Por outras palavras, 0 que e queMendel traz aos horticultores e aos seleccionadores? Em que medida 0seu trabalho se conjuga com as suas preocupa~6es, e 0 que lhes pode-ria dar Mendel que eles pr6prios ja nao tivessem encontrado?

    Mendelismo e melhoramento das plantasEm muitos manuais de ensino e em artigos de vulgariza.-;ao, a cria~aode ra.-;as e de variedades novas e apresentada como uma aplicafclo dasleis de Mendel. Se assim fosse. a redescoberta dessas leis teria impli-c.ado uma verdadeira revolu~ao nas tecnicas de melhoramento dasplantas. Ora esta revolu~ao ocorreu efectivamente, mas come~ou muitoantes, na precisa altura em que Mendel conduzia as suas experiencias,e independentemente dele. A hist6ria do melhoramento da beterraba--a.-;ucareira e, a este titulo, exemplar.A beterraba e conhecida hi muito tempo como planta de forragem.quando, no seculo XVIII, 0 alemao Andre-Sigismond Margraff demonstraque contem urn afucar parecido com 0 da cana e que e possivel extrai--10. No fim desse seculo. Karl Franz Achard estabelece a pradu~ao

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    1._ J

  • MENDEL PARA 0$ LADOS DO JARDIM

    industrial do a~(Icar de beterraba. A Fran~a napole6nica, submetida aobloqueio, procura urn ersatz que possa substituir 0 aplcar de cana. Em1812, Benjamin Delessert pode apresentar ao imperador amostras dea~ucar de beterraba que em nada se distingue do a~ucar de cana. Con-tudo, a rendibilidade do procedimento continua a ser mediocre, porcausa do fraco tear em a~ucar das beterrabas (menos de 5%). Para 0melhorar, pratica-se uma se1ec~ao sistematica: deixam-se ganhar flor asbeterrabas que tern 0 tear mais forte em a~ucar, para utilizar a seguiros seus graos como semente. Esta tecnica comprovada podera aindaser melhorada?

    Louis de Vilmorin e a selecrao geneal6gica

    Em 3 de Novembro de 1856, Louis de Vilmorin6 leu na Academia dasCiencias uma Nota sobre a cria~ao de uma nova rac;a de beterraba deac;ucar, que reedita em 1859, com varios outros artigos, numa brochuraintitulada Notices sur I'amelioration des plantes par semis, publicadapela Librairie agricole. Ele descreve em primeiro lugar 0 procedimentopara avaliar com precisao 0 tear em a~(lcar de uma raiz de beterrabasem a destruir. Ele lembra que este tear pode ser aumentado pela

    selec~ao e que "a transmissao da qualidade ayucaradaJ> e urn facto esta-belecido, mas que admite contudo "excep~oes notaveisJ>. Gras estasexcep~6es, diz, "lan~am luz nova sobre a questao geral cia transmissaodos caracteres nos vegetais".Assim, no primeiro ano da experiencia, e quando eu ignorava pOl' con-sequencia completamente as qualidades que pudessem tel' tido os ante-passados das plantas sobre as quais operava, aconteceu-me conservarpara a reprodu~ao raizes de igual riqueza e de vel' que a descendenciadessas raizes dava:"ora urn lote com uma media muito elevada e sem diferen~as pronun-ciadas;ora, com uma media mais baixa, diferen~as consideraveis produzindoassim maximos excepcionais;ora, pOl' fim, lotes decididamente maus e cuja descendencia devia sercompletamente abandonada."Para evitar estas variayoes e escolher os padr6es reprodutores" na pri-meira categoria, e preciso seleccionar lima planta com vista a sua des-cendencia. Louis de Vilmorin foi levado, segundo as suas pr6prias pa-lavras, a possuir um estado civil e uma genealogia perfeitamentecorrecta" de todas as suas plantas "desde 0 inicio da experiencia". Parapraticar esta selecr;iio geneal6gica, e preciso semear apenas umapequena amostra das sementes de cada planta e reter apenas os lotesde sementes cuja descendencia apresente as qualidades exigidas. Esta

    selec~ao e puramente maternal, ja que 0 polen continua a provir deuma beterraba qualquer; ela nao suprime 0 acaso mas redu-Io conside-

    6 Louis de Vilman)1 0816-1860) e 0 herdeiro cia familia Vilmarin-Andrieux et Cie. A sua esposac varias das descendentes tambem sc destacaram na botanica. Em 1929, H. F. Roberts recen-seava ja trezentos e sessenta artigos publicados par sete gerar;oes sucessivas da familia Vilmorin.

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    ravelmente. Grac;as a seleq:ao, 0 teor em aplcar atinge 18% por voltade 1870. Aplicada a plantas como 0 trigo, onde a autofecunda~ao eregra, e combinada com a hibridac;ao, a selecc;ao genea16gica vai per-mitir a criac;ao de variedades novas que vao multiplicar os rendimentose contribuir para transformar as campos. A semente ja nao e a parte dacolheita do ana que e poupada para 0 ana seguinte, ela toma-se 0 peo-duto de uma industria que, grac;as ao seu dominic da reproduc;ao vege-tal, se coloca acima da agricultura.

    Transmitir a faculdade de transmitirE, pOitanto, por irnitac;ao dos instrumentos do control0 estatal sabre 0carpo social - 0 estado civil- e as arquivos da transmissao dos bens- a genealogia - que 0 seleccionador caotrola a hereditariedade vege-tal e reduz os acasos do facto genetico. E isso, mesmo antes de uma teo-ria biol6gica ter podido explicar os mecanismo em jogo. Vilmorin sente,alias, a necessidade de uma tal teoria. Numa Nota sobre a hereditarie-dade-, inicialmente destinada a Sociedade Industrial de Angers e publi-cada definitivamente em 1859 no Notices sur l'amelioration des plantespar semis, esbo,a uma explica,ao. A hereditariedade e a resultante deduas fon;as: uma, 0 uatavismo.. 7, liga 0 individuo aos seus antepassados;a outra, a hereditariedade imediata", traduz a relac;ao entre progenitorese filhos. Dois individuos dotados das mesmas qualidades podem nao astransmitir no mesmo grau aos seus descendentes; mas, ainda par cima,podem doti-los, -em graus muito diferentes, da faculdade de transmitirestas mesmas qualidades a gerac;ao seguinte."Para ilustrar esta ideia, Vilmorin faz apelo aexperiencia dos criadores degado: entre as qualidades que urn cavalo pode possuir, figura a de ser urnborn garanhao, quer dizer, nao apenas de transrnitir as suas qualidadesaos descendentes, mas sobretudo de transmitir a faculdade de as transmi-tiro A explicac;ao baseia-se na distinc;ao entre atavismo e hereditariedadeimediata, e sobre a analogia entre hereditariedade animal e vegetal.

    Do cavalo ao meldo

    Os cavalos foram objecto, desde hi muito tempo, de uma selec~aoatenta por parte dos criadores. De modo que nao e surpreendenteencontrar 0 mesma argumento no texta que outro agr6nomo, AugustinSageret, consagra a quesmo da hereditariedade, e que aparece em 1826nos Annates de sciences naturelles, sob 0 titulo: uConsiderac;6es sobre aprodu,ao dos hibridos, das variantes e das variedades em gera!, e sabre

    7 Afavismo: .Terrno did:ktico. Em botanica, tendencia das plantas hibridas para regressarem aoseu tipo primitivo. Em fisiologia, semelhan\a com os antepassados.-Mais particularmente, reaparecimento de um cacicter primitivo depois de urn numero indeter-minado de gera~oes.-Etimologia: Afavus, de ad e avus, antepassado, segundo os etimologistas latinos.- (E. Littre,Dictionnaire de la langue jranr;:aise.)Augustin Sageret indica apenas: do latim afavus, antepassado, e atribui a criac;ao da palavra aDuchesne, natuf'J.!ista e horticultor do fim do seculo XVIII.

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  • 4. sem saliencias5. sabar dace.

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    a das famHias das Cucurbitacias em particular. Ele recorda que, naespecie humana, trar;os do rosto au daenr;as heredit

  • rMENDEL PARA as LADOS DO JARDIM

    quepoderia estar urn botanico frances, muitas vezes citado como outro.precursor da genetica, Charles Naudin (18151899). Este ultimo, aju-dante-naturalista no Museu de Paris, antes de dirigir 0 jardim experi-mental da Villa Thuret8 em Antibes, empreende, em 1854, investiga-

  • MENDEL: PARA OS LADaS DO JARDIM

    ~vinte e oito com corola purpura-viva, campanulada, com p61en cin-zento-azulado ou azul-vioHiceo, que ja nao se podem OU quase nao sepodem distinguir da Petunia violacea;~por fim, cinquenta outros individuos que nao cabem conveniente-mente em qualquer das tres categorias precedentes e que, pela fonna egrandeza das corolas, tal como pela sua colorac;ao que varia do branco--rosado ao lilas-purpura, e pelo matiz acinzentado do p6len, parecemintermedios entre os dois tipos espedficos, sendo uns mais vizinhos daPetunia vialacea, os outros da Petunia nyctaginiflora.Como vemos, nao e a precisao ou a abundancia de numeros que fal-tam a Naudin. Mendel campara as dados que observa aos dados quecalcula. Naudin, dado 0 cankter puramente qualitativo das suas hip6-teses, s6 pode registar efectivos sem procurar preyer as suas rela~6es.Em tennos actuais, ha quantificaC;ao sem modelo quantitativo. Carrela-tivamente, a experiencia nao e canduzida com 0 isolamento de urncaracter, e assegurando-se da sua constancia durante varias gerac;6esantes de comec;arem as hibridac;6es, mas partindo de quaisquer pes deuma especie corrente nos jardins. As plantas utilizadas (petUnia, tabaco,cucurbitacias) nao sao, alias, daquelas em que a autofecundac;ao eregra e onde se pode falar de ra,a pura.Retrospectivamente, tuda isso mostra por que Naudin nao conseguiuobservar as rela~6es constantes que Mendel descobriu. Em contrapar-tida, na altura, isso dava sem duvida, ao seu trabalho, urn caracter maisconcreto, mais proximo das preocupac;6es imediatas dos horticultores edos botanicos.

    Aquele que acreditava na natureza e aquele que nao acreditava

    Aquem da experimentac;ao e das enumerac;6es, existe 0 sistema de con-ceitos e de hip6teses que os dois autores fonnulam, tanto 0 naturalistaparisiense como 0 religiaso de Brno. Para este ultimo, a usa do calculodas probabilidades encontra a sua justificac;ao na noC;ao de dominanciaou de recessividade dos caracteres e no principio do emparelhamentoao acaso das celulas reprodutoras. Naudin, quanto a ele, substitui aquestao da constancia dos hibridos pelo problema mais amplo da espe-cie como unidade fundamental do mundo vivo, 0 que exprime destemodo: uA natureza, que fez as especies porque tinha necessidade delas,e que as organizou para func;6es determinadas, mio tern de fazer for-mas hibridas que nao respondem ao seu plano [" .1.E assim que se explica a esterilidade da maior parte dos hibridos e 0retorno dos descendentes nao estereis aos tipos parentais.Assim formulada, a hip6tese parece urn pouco arriscada. Henri Lecoq,mais prudente e pragmatico, escreve no seu livro De la fecondationnaturelle et artificielle des vegetaux et de I'hybridation, em resposta aNaudin:Nao sabemos nem como nem por que razao a natureza fez especies, eduvidamos que tenha muita necessidade de todas as que fez; assim,tenhamos muito mais confian~a nas experiencias pacientes e astuciosasdeste sabio naturalista do que em ideias sobre as necessidades da natureza.

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    MENDEL: PARA as LADDS DO JARDlM

    Cantudo, 0 proprio Lecoq nao se priva na altura de dar urn alcanceteol6gico ao trabalho do experimentador:.Os hibridos sao uma prova da bondade e do poder de Deus que per-mite ao homem modificar as suas obras, servindo-se da inteligenciadivina que Ihe emprestou durante a sua vida. E impassive! seguir asmuta~6es sucessivas de urn vegetal, submetido as influencias variadasda cultura e da hibridas;ao, sem ser penetrado de reconhecimento poraquele que parece ceder ao homem uma parte dos seus direitos, e queo autoriza a erguer uma fragil poota do veu impenetravel que escondetodos os segredos da criac;ao.o hibridador e urn Prometeu, urn Prometeu que pode ser respeitosopara com os deuses, mas urn Prometeu ainda assim, e Lecoq relata comtristeza que alguns horticultores brit

  • Pasteur e Pouchet:heterogenese da hist6ria

    das cienciasBRUNO LATOUR

    Onde se vera que nao e facil decidir quais osvencedores e os vencidos da hist6ria das ciencias.

    Felix Pouchet defendia a gera\;aO de seresvivendo a partir da materia inerte Louis Pasteur

    considerava-a impossive!. Este combate foidurante muito tempo incerto.

    As ciendas parecem muitas vezes, do exterior, Frias e inacessiveis.Felizmente as controversias nas quais as homens cia ciencia seempenham, proporcionam uma via magnifica para nelas pene-trafmas e encontrarmos 0 calor cia hist6ria. Quando se faz a hist6rianatural das discussoes de eruditos, identificam-se varias casas tipicosque e passive! reagrupar sUlllariamente. Por um lado, certas controver-sias restringem-se aquila a que se chama as instancias oficiais (Acade-mia, publica~6es especializadas, gmpos de emditos); outras ultrapas-sam largamente as instancias chamadas oficiosas (a grande imprensa, astribunais, 0 Parlamento, a opiniao pllblica). A quantidade de neutrinosemitida pelo Sol faz parte das pimeiras, mas a forma de transmissao doSIDA faz claramente parte da segunda.Todas as controversias, quer sejam oficiais ou oficiosas, podem termi-nar de dois modos diferentes. Algumas conduzem a rejei

  • ,PASTEUR E POlJCHET: HF.TEHOGENESE DA HISTORIA DAS CIENCIAS

    e Georg Ernst Stahl Cel Lavoisier: uma revolu~ao cientifica.) tornoll-Scabjecto de uma san~ao explkita que permanece no interior cia comu-nidade cientifica.Mas e scm dllvida 0 movimento, por vezes muita complexQ, de LImamesma controversia que e interessante seguir. Por exemplo, a doperigo das radia

  • r PASTEUR E POUCHET: HETEROGENF,SE DA HISTORIA DAS CIENCIASadversarios encontrado e reconhecido como tais. Oscila constante-mente entre as inst
  • PASTEUR E POUCHET, HETEROGENESE DA HIST{)IUA DAS CIENCIAS

    rior do recipiente as poeiras que estao a sua superfkie, E verdade queo Sr. Pouchet afastou as poeiras selvindo-se do gas oxigenio, de ar arti-ficial; afastou os germes que podiam estar na agua, no feno; mas 0 quede nao afastou foi as poeiras e, eonsequentemente, os germes queestao na superficie do mercurio. Luz, por favor. (. .. )""Mas, Csenhoras e) senhorcs, tenho pressa de chegar as experiencias, as

    demonstra~oes taa surpreendentes quc naa vao querer reter senaoessas. Diversos movimentos. Aprovm;i5es. C... )>>

    -Podeis ver, (senharas e)senhares, agitar-se muitaspoeiras nasfeixes /uminosas

    "Provamos ha poueo que 0 Sr. Pouchet se tinha enganado, parque tinhautilizada nas Sllas experiencias uma tina de merclldo.Suprimamos 0 llSO da tina de mercurio, vista termos reconhecido queela provocava enos inevitavcis. Eis, Csenhoras e) senhores, uma infusaode materia organica de uma limpidez perfeita. Aqui esta a infusao. (. .. )""Poi preparada hoje. Amanha ela canted ja animalculos, pequenos infu-s6rias au flocos dc bolor. Aqui estii a infusiio tuma. (. .. )>>

    -Eis, (senhoras e) senhares, umain/usda de materia.argiinica delima limp;dez peifeita. AquieoSta a infusao, a esquerda Co. .).Fa; preparada hoje. Amanhiieta conten':l jd aninui/cu/os (. .).Aqui esUi a infusao a direita .

    "Coloco uma pon;ao dc