ensaios oportunos

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ENSAIOS O PORTUNOS Sílvio Coelho dos Santos

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Ensaios oportunos reúne vinte e um textosproduzidos desde o auge da ditadura, em1979, até o presente que, selecionados peloautor por sua importância e representatividade.

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E N S A I O S

OPORTUNOS

Sílvio Coelho dos Santos

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COPYRIGHT ©2007, S Í LV I O C O E L H O D O S S A N T O S

DESIGN E CAPA

Renato Rizzaro

REVISÃO

Renato Tapado

S237eSantos, Sílvio Coelho dos, 1938 – Ensaios oportunos/

Sílvio Coelho dos Santos. – Florianópolis:Academia Catarinense de Letras e Nova Letra,2007. 192p. – (Coleção ACL; no 29)

ISBN

1. Santos, Sílvio Coelho dos Santos. 2 EscritoresBrasileiros – Santa Catarina. 3. Ensaios – SantaCatarina . I. Ensaios oportunos. II. Série.

CDD: B869.06

ACADEMIA CATARINENSE DE LETRASSede na Av. Paschoal Apóstolo Pística, 5600

Centro Integrado de Cultura Professor Henrique da Silva FontesAgronômica – CEP 88025 202 – Florianópolis, SC

CNPJ 78.828.951/0001-40Fone (48) 333 1733

Fundada em 30 de outubro de 1920, em Florianópolis.Reconhecida de utilidade pública pela Lei Estadual no 1664 de 24 de outubro de 1927.

Reconhecida de utilidade pública pela Prefeitura de Florianópolis pela Lei no 870 de16 de maio de 1968.

D I R E T O R I A

PRESIDENTE Lauro JunkesVICE-PRESIDENTE Norberto UngarettiSECRETÁRIO João Nicolau Carvalho

TESOUREIRO Sílvio Coelho dos Santos

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E N S A I O S

OPORTUNOS

Sílvio Coelho dos Santos

CO L E Ç Ã O ACL - N O 29

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C O - E D I Ç Ã O

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P U B L I C A Ç Õ E S D A C O L E Ç Ã O A C L

1 - Antologia da ACL no 1 (1991)2 - Sylvia Amélia Carneiro da Cunha - Poemas do Meu Caminho3 - Pedro Bertolino - Viagens com Maura4 - Paschoal Apóstolo Pítsica - Palavras e Registros5 - Almiro Caldeira - Taberna do Brigue Velho6 - Edy Leopoldo Tremel - Aprendendo a Viver7 - Júlio Basadona Dutra - Holdemar Menezes: Personagens e Reflexões8 - Carlos Humberto Pederneiras Corrêa - Lições de Política e Cultura:

A Academia Catarinense de Letras, sua Criação e Relações com o Poder9 - Júlio de Queiroz - As Permutas e Outros Contos

10 - Theobaldo Costa Jamundá - Fala da Cadeira Cinco11 - Hoyêdo de Gouvêa Lins - Histórias para o Entardecer12 - Lauro Junkes - Autoridade e Escritura13 - Hugo Mund Júnior - Poesia Reunida14 - Leatrice Moellmann - Depois do verão15 - Polydoro Ernani de São Thiago - Três Discursos16 - Osvaldo Delia Giustina - Roteiros para o Centro do Mundo17 - Luiz Delfino - Poesia Completa: Tomo I - Sonetos18 - Luiz Delfino - Poesia Completa: Tomo II - Poemas Longos19 - Almiro Caldeira - A Estrela da Tempestade20 - Silveira de Souza - Contas de Vidro21 - Virgílio Várzea - Contos Completos: Tomo I22 - Virgílio Várzea - Contos Completos: Tomo II23 - Antologia da ACL no 2 (2004)24 - Maura de Senna Pereira - Poesia Reunida e Outros Textos25 - Leatrice Moellmann - Sedução (poesia completa)26 - Marcelino António Dutra - Assembléia das Aves e Outros Poemas27 - Altino Flores - Textos Críticos de Altino Flores28 - Artemio Zanon - Pinheiro Neto: o Poeta - o Poema - a Poesia

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A C A D Ê M I C O S E M M A R Ç O D E 2 0 0 7

1 Edy Leopoldo Tremel2 Urda Alice Klueger3 Moacir Pereira4 João Alfredo Medeiros Vieira5 Francisco José Pereira6 Hugo Mund Júnior7 Leatrice Moellmann8 Sílvio Coelho dos Santos9 João Nicolau Carvalho

10 Júlio de Queiroz11 Hoyêdo de Gouvêa Lins12 Edson Ubaldo13 José Artulino Besen14 Carlos Alberto Silveira Lenzi15 Celestino Sachet16 Alcides Abreu17 Carlos Humberto Pederneiras Corrêa18 José Curi19 Sérgio da Costa Ramos20 Osvaldo Ferreira de Melo21 Evaldo Pauli22 Antônio Carlos Konder Reis23 Flávio José Cardozo24 Liberato Manoel Pinheiro Neto25 Jair Francisco Hamms26 Sylvia Amélia Carneiro da Cunha27 Pedro Bertolino28 Péricles de Medeiros Prade29 Napoleão Xavier do Amarante30 Jali Meirinho31 Walter Fernando Piazza32 Lauro Junkes33 João Paulo Silveira de Souza34 Osvaldo Della Giustina35 Rodrigo de Haro36 Iaponan Soares37 Artemio Zanon38 Salomão Ribas Júnior39 Almiro Caldeira de Andrada40 Norberto Ungaretti

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S U M Á R I O

O homem do Sul 15Uma viagem para além da Cristandade 30Notícias sobre os Carijó 38A modernidade chega pelo trem 46Encontros de estranhos além do mar oceano 64A geração hídrica da eletricidade no Sul do Brasil

e seus impactos sociais 84As hidrelétricas, os índios e o Direito 103Massacre 114Fric, a Liga Patriótica e os índios 120Formação universitária e lideranças indígenas

na Região Sul 129Hiroshima ou a ética do genocídio 137Chernobyl, meio ambiente e burocracia 139Espera do gado na terceira 142Cem anos de liberdade e pobreza 145O panorama sociodemográfico no início do século 147Sobre as funções da universidade 164Um discurso pertinente 168Uma festa da ciência 172Das coincidências na pesquisa e na

produção antropológicas 175A Ilha: alguns desafios 182Mais e mais educação 187

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A P R E S E N T A Ç Ã O

Focalizando aspectos históricos, culturais, sociais,econômicos, demográficos e étnicos, esta obra representaparte da trajetória intelectual de seu autor. Os vinte e um

ensaios reunidos, numa referência explícita ao século que hápouco se iniciou, tratam tanto de temas locais como regionais euniversais. Todos têm como base o olhar do antropólogo sobrediversas questões próximas, pertinentes ao nosso cotidiano, esobre questões mais distantes, explicativas de nosso passado ede nossa realidade sociocultural.

O projeto de reunir ensaios publicados tanto em livros comoem revistas e jornais começou a tomar forma há algum tempo.Mas a decisão de iniciar o difícil processo seletivo só aconteceudurante uma demorada internação hospitalar. Tal propostapermitiu enfrentar a falta do que fazer e contribuiu decisivamentepara manter e ampliar os escassos momentos de lucidez que euestava vivenciando. Gradativamente, o projeto foi tomando forma,levando-me a meditar sobre a pertinência de minha obra e a eleger,

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preliminarmente, textos em que considerava sua importância esignificação para um público novo, ou seja, para uma geraçãoque estava chegando à universidade ou à vida profissional nesteinício de século. Da avaliação feita imaginariamente à releiturade cada texto ainda durante a convalescença, decorreram algunsmeses. Objetivamente, elegi textos curtos. A tarefa de selecioná-los não foi fácil. Por isso, tomei como referência a escolha deensaios que tratavam de temas pouco conhecidos, algunsestigmatizados, outros nem tanto, mas todos de interesse, a meuver, para uma juventude que clama por oportunidades derealização pessoal, e por uma sociedade mais justa e menosdependente dos modismos de época.

Penso que os professores dos Ensinos Fundamental, Médio eSuperior também se beneficiarão com esta coletânea, devido àclareza e à objetividade com que os diversos temas foram tratados.Os fiéis leitores de minhas obras também foram considerados, eagora terão acesso a textos que nem sempre eram fáceis deencontrar.

Os primeiros ensaios foram apresentados em diversos livros-álbum que tive a oportunidade de organizar e com os quaiscontribuí. A paixão pela fotografia como documento histórico esociocultural foi determinante para que esses livros fossemricamente ilustrados. Outros ensaios apresentados em congressos

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e seminários, além de jornais, têm motivação diferente parapublicá-los. Trata-se de ensaios altamente representativos, a meuver, para a compreensão e a interpretação de nosso cotidianosociocultural, em particular de suas incongruências. Como nãopoderia deixar de ser, algumas superposições de informaçãoforam inevitáveis. Peço, assim, a compreensão dos leitores.

A preparação dos ensaios selecionados teve a participaçãodecisiva de Márcia Medeiros de Lima, bolsista de apoio técnicodo CNPq e secretária do Núcleo de Estudos de Povos Indígenas(NEPI), do Departamento de Antropologia da UniversidadeFederal de Santa Catarina. Renato Rizzaro, como em obrasanteriores, assumiu a tarefa de formatação e criação da capa.Renato Tapado realizou a revisão final. O CNPq contribuiu coma bolsa de pesquisa e com o “grant”, que têm permitido asatividades de pesquisa do autor. A Academia Catarinense deLetras, com o apoio do governo do Estado de Santa Catarina e daeditora Nova Letra, assumiu a tarefa de edição. A todos essescolaboradores, registro meus agradecimentos.

Ilha de Santa Catarina, março de 2007.Sílvio Coelho dos Santos

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O H O M E M D O S U L

OTratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Espanha em 1494, garantiu para os portugueses odomínio de um quinto do Brasil que conhecemos hoje.

No Sul, a linha de Tordesilhas passava na altura da cidade deLaguna (SC). Os espanhóis contestavam essa referência, afirmandoque a Ilha de Santa Catarina e o litoral fronteiro lhes pertenciam.

Mas não foram portugueses ou espanhóis os primeiros quechegaram às terras do Sul do Brasil. A façanha foi realizada porBinot Paulmier de Gonneville, comandante do navio francêsL´Espoir, que em 1504 chegou à Ilha de São Francisco, em SantaCatarina. A expedição de Goneville, financiada por comerciantesda Normandia, pretendia chegar às terras austrais com o objetivode estabelecer uma nova rota de comércio.

As expedições ao litoral sul foram diversas. O espanhol JuanDias Solís, apoiado pela coroa espanhola, chegou ao Rio da Prataem 1512. O objetivo deste navegador era descobrir uma passagempara o Pacífico que permitisse à Espanha dominar uma nova rotapara as Índias. Em 1514, dom Nuno Manuel, navegador português,percorreu o Sul do Brasil, atingindo o atual Uruguai. Solís voltouem 1515. Sua expedição fracassou, devido a um encontromalsucedido com os índios na margem uruguaia do Rio da Prata.Alguns sobreviventes dessa aventura acabaram ficando na Ilha deSanta Catarina, em conseqüência do naufrágio de um dos navios.Estes foram os primeiros habitantes europeus das terras do Sul.Em 1524, um desses sobreviventes, Aleixo Garcia, auxiliado pelosíndios, chegou até a região onde se situa o Paraguai.

Publicado originalmente em Fronteira: o Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Alumbramento,1996. p. 253-259.

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O navegador português Cristóvão Jacques percorreu tambémo Atlântico Sul até o Rio da Prata; e Fernão de Magalhãesdescobriu o estreito que leva seu nome, no extremo da Patagônia,ao realizar a primeira viagem de circunavegação da Terra (1519-1521). Muitos navegadores se aventuraram pelos mares do sul,ampliando o conhecimento sobre a costa e tentando o encontrode riquezas. Alguns começaram a explorar o Rio da Prata,ambicionando chegar ao Peru. Outros seguiam rumo às Índias,através do Pacífico. O recortado litoral dos atuais Estados doParaná e Santa Catarina, com magníficas enseadas, era estratégico.Por isso, não é de estranhar que navegantes de diferentesbandeiras por aqui aportassem, ou que muitos náufragos edesertores se deixassem ficar. Afinal, os indígenas habitantes dolitoral sul, logo denominados “Carijó”, eram afáveis e receberambem, pelo menos no início, os estranhos europeus.

Í N D I O S , M I S S I O N Á R I O S E C A Ç A D O R E S D E E S C R A V O S

À época da chegada dos portugueses, estima-se que o Brasilpossuía uma população indígena calculada em 4 a 6 milhões deindivíduos. Esta população era dividida em diferentes povos, quetinham uma larga experiência em relação à natureza. A presençadesses contingentes no litoral sul do Brasil remontava há cercade 5 mil anos. O litoral era domínio dos Tupi-Guarani, mas nointerior outros grupos tinham seus territórios tradicionais.

Integrantes da Ordem dos Jesuítas, criada por Santo Inácio deLoyola (1534), dedicaram-se à conversão do gentio. Mas o índiofoi logo usado como escravo nos empreendimentos econômicosque começaram a surgir. Pouco adiantou o Papa Paulo III, em1537, ter reconhecido que os índios eram homens que deveriamser convertidos e respeitados.

A fundação de São Vicente, por Marfim Afonso de Souza(1534), no litoral de São Paulo iniciou o processo de exploraçãodas terras da colônia e acelerou a submissão dos indígenas. Nãopoucas vezes, os padres protestaram, sem êxito, ao rei, contra aviolência que praticavam os conquistadores, fossem elesportugueses, fossem espanhóis.

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No Sul, padres missionaram em aldeias localizadas nasimediações de Paranaguá, São Francisco, Ilha de Santa Catarinae Laguna. Ao mesmo tempo, incrementaram-se as expedições embusca de escravos índios. A disseminação de doenças, como agripe, a varíola, o sarampo e a tuberculose, tornou-se comum.Entre Cananéia e Laguna, os Carijó desapareceram no primeiroséculo da invasão européia.

O reconhecimento das terras entre o mar e a Serra Geral foirápido. Além da preação de índios, da exploração de madeiras eprodutos agrícolas de domínio indígena, ocorreu a busca dejazidas de ouro e de pedras preciosas. De São Paulo, fundada em1554, partiram para o interior grupos de aventureiros em buscade riquezas e escravos. Em direção ao sul e ao sudeste, os RiosTietê, Paranapanema e Paraná assumiram o papel de rotas depenetração.

Muitos paulistas que vinham ao Sul capturar índios paravendê-los como escravos nos mercados de São Vicente e Bahiaforam se fixando no litoral. A união das Coroas espanhola eportuguesa, entre 1580 e 1640, aboliu os limites fixados peloTratado de Tordesilhas. Os aventureiros puderam, assim, explorarlivremente o sertão e, quase por um paradoxo, asseguraram aformação do que atualmente é o Brasil Meridional.

A E X P L O R A Ç Ã O D O P R A T A . R E D U Ç Õ E S J E S U Í S T I C A S .A S V I L A S L I T O R Â N E A S

A Espanha teve enorme interesse em resguardar seu domíniosobre as terras da América. A conquista do México e, depois, doPeru trouxe para a Espanha riquezas incomensuráveis. No sul,os espanhóis entraram pelo Rio da Prata, procurando uma rotamais fácil para garantir o transporte do saque que faziam aoImpério Inca. Buenos Aires e Assunção foram fundadas em 1536e 1537, respectivamente.

Os jesuítas dedicaram-se ao trabalho de catequese, reunindoos índios em diversas missões localizadas na margem esquerdado Rio Paraná. A Ciudad Real de Guaíra (PR) foi o principal centrodessa atividade missioneira. A partir de 1628, as missões foram

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atacadas por bandeirantes paulistas, entre eles Manuel Preto eAntônio Raposo Tavares. Mais de 60 mil índios foram levadoscomo escravos para São Paulo, e em 1674, das 13 missões, 11estavam destruídas.

Os sucessivos ataques dos bandeirantes fizeram com que osjesuítas migrassem com seus catecúmenos para o Sul. Localizaram-se nas margens dos Rios Uruguai e Paraná, em território que, emparte, hoje integra o Estado do Rio Grande do Sul. Aí floresceramnovas e importantes missões que acabaram, cem anos depois,destruídas pela ação dos bandeirantes caçadores de escravos,acobertados pelos interesses políticos de Portugal e Espanha, quenão aprovavam explicitamente as iniciativas dos religiosos. Hoje,subsistem no noroeste do Rio Grande do Sul as ruínas de algumasdessas missões, destacando-se a de São Miguel, fundada em 1632.

As investidas dos portugueses no litoral sul aos poucos foramestimulando o surgimento das primeiras povoações. Por volta de1614, Diogo de Unhate obteve uma sesmaria na Baía de Paranaguá(PR). Havia nessa região uma certa movimentação por parte defaiscadores de ouro, vindos de Cananéia e São Vicente. A Vila deParanaguá, porém, só surgiu em 1648, quando se elegeu a CâmaraMunicipal. Em 1658, Manoel Lourenço de Andrade transferiu-sede São Vicente com sua parentela, escravos e agregados para SãoFrancisco (SC). Em 1660, esta povoação foi elevada à categoria devila. Quase à mesma época (1673), Francisco Dias Velho iniciavao povoamento da Ilha de Santa Catarina, empreendimento esteque foi frustrado pela morte do fundador nas mãos de corsáriosingleses. Mais para o sul, desde 1676, Francisco de Brito Peixoto,morador de São Vicente, fazia explorações e razias contra osCarijó. Em 1684, fundou a Vila de Laguna.

Essas povoações foram bases para a conquista portuguesa noSul. Ao ocorrer a restauração da Coroa, em 1640, Portugalcomeçou a desenvolver projetos de conquista das terras que sesituavam entre o Atlântico e a Bacia do Prata. Deu-se, pordeterminação real, a fundação da Colônia do Sacramento em 1680,quase defronte a Buenos Aires. O objetivo principal era garantiro acesso português à Bacia do Prata. Nesse contexto, seacentuaram as disputas entre Portugal e Espanha. A ameaça de

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guerra definiu, num primeiro momento, a Ilha de Santa Catarinacomo local estratégico para o sucesso dos planos militaresportugueses. Mas deve-se entender que, até o final do século XVII,a maior parte do que hoje chamamos Região Sul, na concepçãode portugueses e espanhóis, era “terra de ninguém”. E assim ficou,até a designação do brigadeiro Silva Paes como comandantemilitar e governador de Santa Catarina (1739). A partir dessemomento, começava a era do povoamento.

O S C A M I N H O S D E T R O P A . A E S T Â N C I A G A Ú C H A .O S A Ç O R I A N O S

O século XVIII testemunhou a integração do Sul ao resto dacolônia, através do comércio de gado. A exploração do ouro, nosatuais Estados de Minas Gerais e Goiás, valorizou o preço do gado,especialmente das mulas, que eram a base da rede de transportesque se estabeleceu entre fazendas e vilas. Os paulistas perceberamque seria um bom negócio capturar ou comprar o gado que secriava à solta nas pradarias gaúchas, para vendê-lo aos tropeirosde São Paulo e Minas.

Ainda no século anterior, Laguna (SC) tornara-se um centro deonde partiram várias incursões para explorar as terras do RioGrande do Sul. A preação de índios e os assaltos às “vacarias” dosjesuítas sempre traziam resultado econômico. Os interesses dePortugal, no Prata, davam o suporte político. Alguns aventureiroshaviam instalado as primeiras estâncias nos pampas gaúchos. Empouco tempo, Laguna tornou-se um entreposto que viabilizava oembarque de índios escravos, de gado e de charque para São Vicente(SP) e Bahia. O chamado “caminho da praia” seguia de Laguna atéSacramento, permitindo o trânsito das tropas.

Em 1728, foi aberto um caminho que ligava o litoral aos camposde Lages (SC), e daí seguia para Curitiba e São Paulo. Por essenovo caminho, o gado gaúcho seguia diretamente para as feirasde Sorocaba (SP). Tal comércio se intensificou. Foram surgindonos locais de pouso, nos campos de Lages e Curitiba, os primeirosmoradores permanentes. Numa extensão da atividade pecuáriaque se praticava no Rio Grande, apareceram novas fazendas

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nessas paragens do planalto. A criação e o comércio de gadotornaram-se bons negócios. A procura por terras, para a instalaçãode estâncias, aumentou. Quem tinha algum prestígio requeria“cartas de sesmaria”. Em pouco tempo, outro caminho foi aberto,ligando a região das missões, no oeste do Rio Grande, aos camposde Lages e Curitiba.

A estância definiu o estilo de vida no Rio Grande. Centradanas atividades de criação, preia e invernações do gado, a estâncianão necessitava de muita mão-de-obra. No início, o estancieiro eo peão vivenciavam as mesmas duras condições de vida. Aescravidão negra foi rara nessa unidade produtiva. O gaúcho,personagem típico dos pampas, foi produto da miscigenação entreíndios e brancos, exercendo na estância o papel do peão. Suasrelações de lealdade, sua coragem e sua experiência de trabalholivre tornaram-se a base de ação dos caudilhos políticos, em regra,bem-sucedidos estancieiros. O barbicacho, o poncho, a cuia e ochimarrão, com o tempo, acabaram como sinais diacríticos daidentidade do gaúcho.

Os portugueses perceberam que seus interesses no Prata sóseriam viabilizados se existissem bases de apoio para eventuaisoperações militares. O brigadeiro Silva Paes estabeleceu um planode fortificação da Ilha de Santa Catarina e implantou, em 1737, oforte Jesus, Maria, José na atual cidade de Rio Grande (RS).Simultaneamente, Silva Paes obteve o aval do rei para promovera emigração de açorianos para a Ilha de Santa Catarina, litoralfronteiro e região de Porto Alegre.

A emigração açoriana envolveu cerca de 5.000 pessoas.Localizados em pequenas freguesias, os açorianos marcaram emdefinitivo a paisagem humana do litoral catarinense e deramenorme contribuição ao desenvolvimento de Porto Alegre.Criaram uma produção agrícola e de pesca, destinada aoabastecimento dos barcos em trânsito e das tropas militares,acantonadas nos fortes. O litoral de Santa Catarina ficou marcadopelas tradições culturais trazidas pelos açorianos, destacando-seas festas do Divino e a farra-do-boi.

O confronto de interesses entre Portugal e Espanha se acentuouapós a destruição das missões jesuíticas. A fundação da Colônia

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do Sacramento, defronte a Buenos Aires, havia sido um desafiopara a Espanha. As tensões se exacerbavam de parte a parte. Osespanhóis tentaram tomar pela força o forte português, por váriasvezes. O Tratado de Tordesilhas não tinha sido respeitado porambos os países. Acertou-se um novo acordo. Em 1750, foiassinado o Tratado de Madrid, garantindo a Portugal a posse daColônia do Sacramento. Os fatos, entretanto, não corresponderamaos anseios diplomáticos. Em 1777, a Espanha promoveu a invasãoda Ilha de Santa Catarina. Isto levou à assinatura do Tratado deSanto Ildefonso. Portugal perdeu a Colônia do Sacramento. AEspanha ficou com o domínio do Rio da Prata. Portugal, porém,assegurou o Rio Grande e teve reconhecidos seus direitos às terrasocupadas no Mato Grosso e na Amazônia. Afinal, o uti possidetisprevaleceu, embora nos anos futuros ainda muitas disputasviessem a ocorrer.

M I G R A Ç Õ E S E U R O P É I A S . G U E R R A S N O S U L .A C R I A Ç Ã O D A P R O V Í N C I A D O P A R A N Á

O primeiro governador gaúcho foi nomeado em 1760. Diversasvilas já estavam estruturadas. Porto Alegre foi elevada à condiçãode Paróquia e logo passou a sediar o governo. Quase à mesmaépoca (1771), o governador de São Paulo mandou fundar noextremo meridional de sua capitania a vila de Nossa Senhora dosPrazeres de Lages (SC). A vila de Curitiba servia de apoio para opovoamento dos campos de Guarapuava e Ponta Grossa. AProvíncia de Santa Catarina, com seus fortes e portos abrigados,desempenhava seu papel de base militar para a sustentação dosprojetos políticos de Portugal no Sul. A população litorânea eraessencialmente luso-açoriana. Os indígenas Carijó já haviam sidoexterminados quando começaram as primeiras iniciativas depovoamento permanente. Escravos índios não deixaram maioresvestígios de mestiçagem no fenótipo da população. A escravidãonegra não foi intensiva, pois aos povoadores faltavam recursosfinanceiros, e não havia empreendimentos econômicos maiores.Ocorreu uma escravidão voltada para o atendimento das lidesdomésticas, especialmente nas áreas urbanas. As atividades de

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pesca da baleia, das salgas e charqueadas utilizaram mão-de-obraescrava, de maneira mais sistemática, razão da presença negraem vários pontos do litoral.

Nos campos do planalto e no pampa do Rio Grande, desde oinício do povoamento a miscigenação entre brancos e índios foiacentuada. O mameluco paulista já era resultante desse processo;o gaúcho, também. Em alguns lugarejos, percebe-se hoje apresença de traços indígenas na população. Cabelos e olhos negrose uma pele acobreada de rara beleza testemunham o uso damulher indígena como prazer e como reprodutora da necessáriaforça de trabalho. A tomada da índia como esposa legítima,porém, não foi rara. A escravidão negra também ocorreu. Otrabalho escravo foi mais intenso onde havia iniciativaseconômicas que demandavam maior concentração de mão-de-obra, como nas charqueadas ou nos empreendimentos de defesamilitar. O latifúndio, a família patriarcal, a escravidão e o peãoagregado foram as bases iniciais da sociedade pastoril escravistaque se desenvolveu no Brasil Meridional.

Proclamada a Independência, o Brasil passou a favorecer aemigração de europeus. No Sul, os governos provinciaisperceberam que o sistema escravocrata era um obstáculo aodesenvolvimento. Apoiados pelo Império, criaram diversascolônias oficiais. Ou fizeram concessões de terras para empresasprivadas que assumiram o compromisso de promover alocalização de imigrantes. De início, vieram os alemães,estabelecendo-se no Rio Grande do Sul. Os primeiros imigranteschegaram em 1824 e foram localizados em São Leopoldo. EmSanta Catarina, a colonização se iniciou em 1829, em São Pedrode Alcântara. No Paraná, imigrantes foram localizados no RioNegro, também em 1829. O fluxo migratório se acentuou nasdécadas seguintes. A partir de 1870, começaram a chegar ositalianos. Depois, seguiram-se ucranianos e poloneses. Uma novafronteira estava aberta.

Os imigrantes enfrentaram diferentes problemas em seuprocesso de adaptação. Em muitos casos, as terras eraminadequadas. Muitas colônias não dispunham da infra-estruturamínima que garantisse o escoamento da produção. A floresta

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subtropical que cobria as terras da maioria das colônias eradomínio dos índios Xokleng. Havia problemas de inadaptaçãoao clima, devido à umidade, e ao domínio de novas formas decultivo. Neste contexto, muitos fracassaram, ocorrendomanifestações de desagrado, revolta e desespero, como o célebre“Movimento dos Mucker”, nas imediações de São Leopoldo, nosanos 1873-74.

O Sul do Brasil foi teatro de várias guerras. Em 1835, devido adissensões políticas internas, irrompeu no Rio Grande a RevoluçãoFarroupilha. Os revolucionários intentaram a separação do restodo País, advogando uma estrutura republicana de governo. Asidéias libertárias passavam pela constituição de um Estadodemocrático, que não era de interesse do Império. Durante dezanos correu sangue. A unidade do País, entretanto, prevaleceu.Mas os tempos de guerra não haviam terminado. Lutou-se contraRosas e Oribe, na Argentina e no Uruguai. Depois, aconteceu aGuerra do Paraguai. Toda essa movimentação armada afetou aRegião Sul, em particular o Rio Grande, pelo desenvolvimentode um forte sentimento de nacionalidade.

Em 1853, foi criada a Província do Paraná, que até então faziaparte de São Paulo. Curitiba firmou-se como capital e centroirradiador da colonização. O Sul se definia pela consolidação desuas três províncias, contudo, havia muito a discutir em termosde limites entre o Paraná e Santa Catarina.

Í N D I O S , N E G R O S E F U G I T I V O S

Os bolsões de floresta, onde os imigrantes começaram a serlocalizados, eram território dos índios Xokleng. Mais para oeste,às margens dos campos recém-ocupados por fazendas de criação,os Kaingang e os Guarani exerciam seus domínios. No noroestedo Paraná, os Xetá se mantiveram arredios até metade do séculoXX. Esses grupos reagiram de diferentes formas à presença dosbrancos, conseguindo chegar ao presente.

A reação dos Xokleng tornou-se paradigmática do processode conquista da terra na Região Sul. Esses índios foramenvolvidos, simultaneamente, pelas frentes de colonização que

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se instalaram no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e noParaná. Eram nômades, praticantes da caça e coleta. A floresta,com sua fauna e flora, era fundamental à sua sobrevivência.

Intensificando-se a colonização, a cada dia mais terras eramtomadas aos Xokleng. À falta de como prover suas necessidadesalimentares, os indígenas passaram a assaltar as propriedadesdos colonos ou a atacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito.A violência cresceu, quando as companhias de colonização e osgovernos provinciais passaram a subsidiar grupos armados queadentravam o sertão para dizimar os índios. Bugreiro foi profissãocriada pelo capitalismo em expansão para afugentar “pela bocada arma” os índios avessos à submissão. Essa tragédia só foicontrolada com a criação, em 1910, do Serviço de Proteção aosÍndios (SPI), que logrou a “contatação” de alguns grupos Xokleng.

Percebe-se, assim, que a terra foi usurpada ao índio pela força.O imigrante também foi, em muitos casos, vítima. Os governos eas companhias de colonização não tinham interesse em alertá-losobre a presença indígena, e quando ocorreram reclamaçõesdiplomáticas sobre a insegurança vivida, o Brasil minimizou asqueixas e denúncias. Passou, contudo, a criar reservas para oconfinamento dos grupos indígenas sobreviventes, liberando emdefinitivo seus territórios tradicionais.

Os índigenas que sobrevivem hoje no Sul do Brasil vivenciamcondições precárias de vida. Muitos ainda reivindicam ademarcação de terras de ocupação tradicional. Outros, como osGuarani, em maioria, circulam pelas rodovias vendendoartesanato e trabalhando como “bóias-frias”. A ação indigenistado Estado continua insatisfatória nesse final do século XX.

A sociedade escravocrata que se desenvolveu no Brasil impôsuma rígida separação entre brancos, negros e mulatos. O escravoera visto como objeto e vivia sujeito ao seu senhor. Alienados desua condição social, tiveram poucas oportunidades de reação. Maselas ocorreram. As fugas para o interior do sertão e a formaçãode quilombos aconteceram também na Região Sul. Em muitassituações, houve aproximações com indígenas, daí resultandocasos de miscigenação. Hoje, alguns grupos remanescentes lutampara lograr a identificação e demarcação das terras que se

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tornaram de ocupação tradicional. Trata-se de pequenascomunidade rurais, que desenvolveram práticas coletivas deresistência e de sobrevivência.

Nas áreas urbanas, como conseqüência da presença escravanas lides domésticas e em projetos econômicos que necessitavamde mão-de-obra de maneira intensiva, ocorreram dois processosde inserção na nova ordem da sociedade de classes que se instalouno País, após a Abolição. O primeiro compromissou-se com um“ideal de branqueamento”, aceitando o preconceito e asdiferenciações sociais entre brancos e negros. O segundo centrou-se numa “ideologia de negritude”, denunciadora da espoliaçãosocial vivida pelos negros. A exclusão social e econômica explícitadas populações negras continua presente, sendo o maior obstáculopara superar a sua alienação social.

À margem da ordem escravocrata, gradativamente foram seestabelecendo, em distantes pontos do sertão, fugitivos da lei edos patrões, desertores dos exércitos em guerra e peões expulsosdas fazendas de criação. A sobrevivência desses indivíduos eragarantida pela fartura da natureza, que permitia a caça, a pesca ea coleta abundantes. Pequenas roças de coivara e a extração daerva-mate garantiam o resto. A miscigenação com indígenas enegros foi comum. Formaram-se, assim, diferentes redutoshabitados essencialmente por caboclos. Esses excluídos sociais,em boa parte, acabaram envolvidos pela expansão colonial queocorreu no Sul e, mais objetivamente, pelo conflito do Contestado.

M O D E R N I D A D E E G U E R R A N O S E R T Ã O

Ainda no Império, o Brasil projetou uma ligação ferroviáriaentre São Paulo e o Rio Grande do Sul. Além de motivaçõesmilitares, havia interesse em articular a malha ferroviária que seconstruiu no Rio Grande com o centro do País, visando à melhorcirculação da produção. Esse projeto foi concluído em 1910,quando o trecho entre União da Vitória (PR) e Marcelino Ramos(RS) foi construído. Uma empresa norte-americana foi responsávelpela obra, mediante a cessão pelo governo federal de 15quilômetros de terras de cada lado do eixo da ferrovia.

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Nesse último trecho, a estrada seguia o curso do Rio do Peixe,afluente do Uruguai. Tal área, desde a criação da Província doParaná, em 1853, vinha sendo disputada. O Paraná pretendia queseus domínios ao sudoeste fizessem divisa com o Rio Grande.Santa Catarina contestou e recorreu ao Supremo Tribunal Federal.A discussão se arrastou pelos escaninhos da burocracia jurídica.Em 1904, Santa Catarina obteve decisão favorável a seu pleito noSupremo. O Paraná, porém, opôs sucessivos embargos.

Era essa a situação, quando a Brazil Railway Companycomeçou a assentar os trilhos e a expulsar os posseiros das terrasde sua concessão. Um corpo de segurança, com cerca de 200homens armados, fazia valer os interesses da empresa. Umagrande madeireira foi instalada pela companhia para explorar asflorestas de pinheiro e imbuia que cobriam a região. Ao final dostrabalhos de assentamento de trilhos, em Marcelino Ramos, acompanhia dispensou um grande número de operários que haviatrabalhado na obra, sem qualquer indenização.

Essa massa de trabalhadores desempregados, junto comcentenas de posseiros que haviam sido expulsos de suas terrasem função da concessão dada pelo governo transformaram-se noestopim que levou à deflagração da guerra sertaneja doContestado (1912-1916). O aglutinador, entretanto, desseselementos foi a crença que se espalhara na região a respeito dospoderes sobrenaturais de um monge identificado como santo, oSão João Maria. A presença do monge em Curitibanos provocoua interferência do governo de Santa Catarina, que sugeriu suatransferência e de seus seguidores para o outro lado do Rio doPeixe. Mas o governo do Paraná não concordou. Tropas foramenviadas para expulsar os catarinenses invasores. Ocorreu ocombate de Irani, quando o comandante das tropas do Paraná foimorto. Também morreu o monge. A guerra estava começada.

O conflito de Canudos, na Bahia, estava presente na memórianacional. No Contestado, circulavam críticas à República. Aespoliação dos posseiros pelo governo, em favor de umacompanhia estrangeira, era um fato. Nesse quadro, se deu a reaçãogovernamental. A resistência cabocla surpreendeu. Ocorreram13 expedições militares. Pela primeira vez no Brasil, utilizou-se o

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avião como arma de guerra. Acredita-se que mais de 20.000pessoas estiveram envolvidas, e alguns milhares perderam a vida.Em 1916, o conflito foi dado por encerrado. Paraná e SantaCatarina definiram um acordo, dividindo quase meio a meio aárea conflagrada.

A modernidade chegou ao Sul, assim, pelos trilhos da SãoPaulo — Rio Grande e pelo uso do avião como instrumento bélico.A população cabocla da região foi dizimada. Em seu lugar, aolado dos trilhos, surgiram novas colônias. A frente pioneirainiciada pelos imigrantes no Rio Grande do Sul, no século anterior,logo começou a se movimentar em direção ao antigo territóriocontestado. Novos imigrantes chegavam. Uma corrida depovoamento se estabeleceu no norte do Paraná, nos anos 1930,tendo por motivo o cultivo do café. Institucionalizou-se a figurado “bóia-fria”, assumida pelo nordestino que vinha ao Sul embusca de trabalho. A modernidade, o desenvolvimento e a misériase confundiram num único processo.

D I V E R S I D A D E É T N I C A E I D E N T I D A D E

O Sul do Brasil é um mosaico étnico. Sua população, estimadaem cerca de 22,5 milhões de pessoas, em 19931, é formada porgente das mais variadas origens. De uma área para outra, notam-se diferenças flagrantes quanto aos costumes e maneiras de serdos habitantes. No litoral, os luso-açorianos dominam a paisagemhumana. A pesca, o fabrico de farinha, a renda de bilro, a louçade barro, a farra-do-boi, o barreado e os pratos feitos com frutosdo mar são alguns itens dessa caracterização. Nos campos doplanalto e no pampa, a população vivencia costumes ligados àsatividades de criação de gado. A marca é a “cultura gaúcha”,centrada no uso do cavalo, do churrasco e do chimarrão. Nosvales litorâneos e em diferentes cidades do interior, os alemãesmarcam sua presença com clubes de tiro, bandas musicais, jardinsfloridos e inumeráveis festas. O cultivo da videira e o fabrico dovinho são os elementos que mais se destacam nas áreas de

1 Pelo Censo de 2000, a população atingia 25.089.783 habitantes.

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colonização italiana. São famosas a cozinha italiana e a Festa daUva, em Caxias do Sul (RS). Mas não é só. Descendentes depoloneses, ucranianos, austríacos, sírios, libaneses, gregos, judeus,japoneses, espanhóis e portugueses, entre outros, mantêm suatradição, seu folclore e sua maneira de ser. Aparecem ainda, nessemosaico, com marcas bastante definidas, populações negras eremanescentes dos povos Guarani, Kaingang, Xokleng e Xetá. São,pois, diferentes etnias que formam a gente do Sul.

Durante a ditadura de Vargas, o Sul vivenciou uma “campanhade nacionalização.” Acusava-se que no Sul havia prosélitos donazi-fascismo, e que a Alemanha e a Itália pretendiam ampliarsua influência junto à população formada por imigrantes. Escolascomunitárias foram fechadas. Jovens foram recrutados paraprestar serviço militar em outras partes do País. Quartéis doExército foram instalados em diversas áreas, com o objetivo deintegrar e nacionalizar. A síndrome dos “quistos étnicos” e o receiode controle do Sul do País pela Alemanha e a Itália espalharam-se. A repressão foi forte, e não poucas famílias sofreram agressõesfísicas e morais, além de perdas materiais. Tudo isso, duranteuma ditadura que foi ambígua em relação aos países em guerra,mas que sabia aproveitar a oportunidade para afirmar um Estado-nação unitário, monoétnico e culturalmente homogêneo. Daíserem palavras de ordem a integração, a aculturação e aassimilação dos contingentes migrantes que, por razões da próprianegligência dos governos federal e estadual, mantinhamrelativamente intactas suas tradições culturais, sua língua eidentidades étnicas.

Mas a proposta estatal de homogeneidade não vingou. Quandose fala no Sul, logo se percebe a singularidade de uma regiãoonde prevalece a diversidade de paisagens, tradições, identidadese biótipos. Há fronteiras, geralmente sutis, entre os diversosgrupos que protagonizam a vida humana no Sul. Às vezes, osgovernantes intentam passar a imagem de uma região de“trabalho e festas”, rica e harmônica em termos sociais eeconômicos. A realidade não é assim, como bem demonstram omovimento dos “sem-terra”, os cinturões de miséria no entornodas maiores cidades, os “sem-teto” e os “bóias-frias”.

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O importante é concluir que a diversidade étnica e cultural dagente do Sul é positiva. O local tem seu espaço diante do nacional.O isolamento de muitas comunidades, hoje, está rompido. Osmeios modernos de comunicação asseguraram a integraçãoeconômica e política de toda a região, sem eliminar por inteiro asdiferenças. Esta heterogeneidade étnica e cultural tem sua própriadinâmica, reenfatizando e reafirmando identidades. A identidadedo gaúcho é produto de uma construção social, assim como asdemais identidades. Estereótipos e preconceitos de um grupoétnico sobre o outro continuam a existir. Imagens positivas enegativas sobre identidades também acontecem. Essa gente,enfim, tem orgulho das suas etnias de origem, das suas tradiçõesculturais e de sua nacionalidade brasileira.

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UMA VIAGEM PARA ALÉM DA CRISTANDADE

Nas últimas décadas do século XV, Lisboa tornou-se umcentro de referência na Europa. Navegadores,cartógrafos, agentes de casas bancárias, aventureiros e

comerciantes se confundiam nas ruas apertadas da cidade. Asnotícias sobre os avanços dos portugueses na costa da Áfricacirculavam céleres e criavam expectativas no imaginário popular.O projeto dos reis de Portugal de abrir uma rota marítima para asÍndias, contornando a África, tornou-se realidade com a viagemde Vasco da Gama (1498). Dois anos depois, a esquadracomandada por Pedro Álvares Cabral chegava à costa ocidentaldo Atlântico, ou seja, ao Brasil, daí seguindo para as Índias. OImpério português se expandiu rapidamente nas décadasseguintes, tendo como foco o comércio de especiarias com asÍndias, e depois com o Brasil.

Os avanços da tecnologia náutica fundamentaram asconquistas dos portugueses. A Escola de Sagres, liderada por domHenrique, treinou navegantes, reuniu cartógrafos, armazenouinformações e definiu estratégias para estabelecer pontos de apoioao longo da costa da África e nas ilhas do Atlântico, especialmentedos Açores, da Madeira e do Cabo Verde. A invenção da caravelae os sucessivos aperfeiçoamentos nos instrumentos náuticos deorientação dos navegadores, como o sextante, a bússola e as“cartas de marear”, além da persistência, garantiram o sucessodesse projeto de expansão marítima. Os reis de Portugal,motivados pelas possibilidades de crescimento do Império e dafé católica, mas também atentos para resultados econômicos

Originalmente publicado em: SANTOS, Sílvio Coelho dos et al. (Org.). São Franciscodo Sul: muito além da viagem de Gonneville. Fpolis: Ed. UFSC, 2004. p. 21-31.

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concretos, viabilizaram política e financeiramente diversasexpedições. As Índias e suas especiarias, tendo como referênciasas histórias narradas por Marco Pólo e outros viajantes, além dasriquezas acumuladas por Veneza e Gênova (Itália), despertavammúltiplos interesses. O Tratado de Tordesilhas (1494), firmadoentre Portugal e a Espanha, tendo a intervenção direta do papaAlexandre VI, dividindo as terras descobertas e por descobrirentre os dois Reinos, demonstra o poderio alcançado por Portugal.Os saberes acumulados pelos árabes e judeus, em particular sobreMatemática, Geografia, Astronomia e línguas, indiscutivelmente,contribuíram para o sucesso dos portugueses. Havia muito, Lisboaera uma cidade cosmopolita e aberta para inovações, abrigandomuitos especialistas e não poucos aventureiros, originários dediferentes países da Europa.

As frotas marítimas e o comércio de especiarias se expandiramrapidamente. A difusão da caravela e o surgimento de barcoscom maior capacidade de carga, as naus, facilitaram tanto asexpedições em direção às Índias como a exploração das terras daAmérica. No litoral atlântico da França, seguindo velha tradiçãode domínio dos mares, comerciantes e navegadores de Honfleur,Dieppe e Rouen estabeleceram relações estreitas com Portugal.As idas de embarcações dessas cidades para Lisboa eramfreqüentes, visando ao abastecimento dos mercados do norte daEuropa com os novos produtos originários de terras distantes.Em troca, os franceses levavam para Portugal as especialidadesfabris da Normandia, principalmente tecidos, louças, e armas defogo e de aço. Navegadores e comerciantes desses países falavamrotineiramente sobre suas aventuras e seus interesses sobre asnovas terras e rotas comerciais, que estavam sendo alcançadaspor Portugal e pela Espanha. Havia uma atração por essesterritórios desconhecidos e exóticos, especialmente sobre as suaspossibilidades de negócios e de aventuras. O pretenso direito dePortugal e da Espanha sobre as terras descobertas certamente nãoera compartilhado por outras casas reinantes na Europa, muitomenos por comerciantes e aventureiros.

Foi nesse contexto que um pequeno grupo de comerciantes deHonfleur, liderado por Binot Paulmier de Gonneville, resolveu

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adquirir e equipar um navio para realizar uma viagem comercialàs Índias, seguindo a rota aberta por Portugal. Para tanto, entreoutras providências, os franceses contrataram em Lisboa doisexperientes navegadores portugueses, Bastião Moura e Diogo deCouto, para assessorá-los na arrojada expedição. Concretamente,objetivava-se quebrar o monopólio português sobre a rotaestabelecida por Vasco da Gama, razão do sigilo que cercou ospreparativos da viagem e seu destino. A expedição que sevislumbrava, entretanto, não despertou o interesse apenas decomerciantes e marinheiros. Voluntários, motivados pela aventura,também se candidataram. Entre esses, Nicole Lefebvre, considerado“pessoa de saber”, que foi aceito com o compromisso de fazer osregistros sobre as “curiosidades” das terras que seriam visitadas.

No dia 24 de junho de 1503, sob o comando do capitão deGonneville, o navio L’Espoir partiu de Honfleur tendo 60 homensa bordo. Os navegantes seguiram na direção sul, passando pelasIlhas Canárias 18 dias depois. Daí rumaram para o Arquipélagode Cabo Verde, parando depois na costa africana paraabastecimento. Em 12 de setembro, passaram pela Linha doEquador, entrando no Hemisfério Sul. O Cruzeiro do Sul passavaa ser a referência para a orientação do curso do navio, substituindoa Estrela Polar (da constelação Ursa Menor), velha conhecida dosmarinheiros europeus. O “mundo da Cristandade” ficava paratrás. Os desafios ao “mar oceano”, como era conhecido o Atlântico,ainda estavam por vir. A viagem seguiu demorada, sofrendo atripulação as conseqüências da falta de alimentos frescos. Asmortes por escorbuto foram se sucedendo. Muitos foram os diassem ventos. Depois, se seguiram fortes tempestades. O rumo donavio, em direção ao extremo sul da África, a certa altura foiperdido. Os ventos e as correntes levavam o L’Espoir na direçãosudoeste. Dias depois, os intrépidos navegantes perceberampássaros indo e voltando na direção sul, e resolveram mudar derumo, dando às costas para a África. Foi assim que, no dia 5 dejaneiro de 1504, se aproximaram de uma grande terra, ondeaportaram no dia 6 “num Rio parecido com o Orne”.

Nos meses seguintes, a estropiada tripulação do L’Espoirconviveu com a população nativa que habitava aquela terra

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estranha, recuperando-se dos desgastes físicos sofridos na longatravessia do Atlântico. O navio foi reparado dos estragos sofridos,num trabalho penoso e demorado. Parte da tripulação realizoualgumas incursões ao interior e no litoral da nova terra. Muitosregistros foram realizados sobre a fauna, a flora e seus amistososhabitantes indígenas. Na Páscoa, ergueram uma cruz num morropróximo ao litoral, marcando a presença dos arrojados franceses.Em julho, depois de consultados os membros sobreviventes datripulação, o capitão de Gonneville resolveu regressar a Honfleur,desistindo do intento de seguir em direção às Índias. O L’Espoirfoi abastecido com água, víveres frescos e muitos presentesrecebidos dos nativos. Como convidados, embarcaram um dosfilhos do Rei Arosca, o jovem Içá-Mirim (que os francesesregistraram como sendo Essomericq), e o índio Namoa, que iriamconhecer as terras de origem dos navegantes brancos, situadas aleste, e que possivelmente foram confundidas pelos nativos com a“terra sem males”, base da sua mitologia. Gonneville comprometeu-se em regressar a essas terras austrais, trazendo Essomericq eNamoa, dentro de vinte Luas. Isto, como se sabe, não ocorreu.

A viagem de volta foi atribulada. A bordo, ocorreram novasmortes, inclusive a do índio Namoa. Doente, Essomericq foibatizado, recebendo o nome de Binot de seu padrinho e protetor,o capitão de Gonneville. No Nordeste do Brasil, fizeram paradaspara abastecimento de víveres e de produtos comercializáveis.Em mais de uma oportunidade, enfrentaram nativos hostis esofreram novas perdas em homens. Atravessaram a Linha doEquador e tornaram a ver no horizonte a Estrela Polar. Semanasdepois, arribaram na Ilha do Faial, no Arquipélago dos Açores.Era 9 de março de 1505. Semanas depois, o L’Espoir tomou o rumoda Normandia. Uma tempestade obrigou uma parada na Irlandapara a realização de reparos no barco. Novamente no mar, nasproximidades das Ilhas de Jersey (Canal da Mancha), foramatacados por corsários, tendo o capitão de Gonneville decididoencalhar seu navio para ter chances de salvar a tripulação. Tudoque estava armazenado foi perdido, inclusive o livro de bordo eos preciosos registros feitos por Nicole Lefebvre.

Regressando a Honfleur, o capitão de Gonneville e parte de

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seus companheiros fizeram uma “declaração da viagem” no dia19 de junho de 1505, junto aos oficiais do Almirantado da França,no Palácio de Rouen, narrando com relativa minúcia as peripéciasda expedição e as perdas sofridas em vidas e mercadorias. Foidessa “declaração”, conhecida como a “Relação Autêntica”, queselecionamos os fatos acima narrados, tendo como referência atradução feita por Tristão de Alencar Araripe e publicada, em1886, na Revista Trimestral do Instituto Histórico, Geographico eEthnographico do Brasil, tomo XLIX, 2º volume1.

Araripe realizou seu trabalho a partir da versão divulgada pelogeógrafo Armando d’Avezac, membro do Instituto de França, deum documento localizado na Biblioteca do Arsenal, em Paris, pelobibliotecário Paulo Lacroix. D’Avezac publicou esse documento,em 1869, nos Annales des voyages, com o título “Relation authentiquedu voyage du Capitaine de Gonneville ès Nouvelles Terres des Indespubliée intégralement pour première fois avec une introduction et deséclarcissements”.

O encontro desse documento eliminou grande parte dosquestionamentos que existiam sobre a viagem de Gonneville. Foid’Avezac que informou pela primeira vez que os normandoshaviam aportado no Sul do Brasil, entre as latitudes “de 24º porum lado, e de 27º a 30º por outro”, com a seguinte complementação:“na latitude média entre os dous termos, aos 26º e 10 sul dezembócao Rio de São Francisco do Sul, no paíz abitado pelos Carijós”2.Araripe, em sua tradução, incorporou a versão de d’Avezac. Foi apartir daí que se disseminaram as informações sobre a presençados franceses em São Francisco do Sul. Contudo, como qualquertema de um passado que já se faz distante, persistiram e persistemdúvidas, por parte de diferentes autores, especialmente sobre olocal exato do desembarque dos normandos.

Com sua extraordinária e penosa viagem, Gonneville e seuscompanheiros tiveram o indiscutível mérito de ter aberto uma rotacomercial em direção ao Brasil. Como sabemos, nas décadasseguintes, as expedições francesas para o litoral brasileiro se

1 Há uma versão atualizada da “Relação Autêntica“ publicada por Perrone-Moisés (1992).2 ARARIPE (1886, p. 323).

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sucederam, em busca, principalmente, de pau-brasil. Por sua vez,a “Relação Autêntica” constitui-se, ao lado da “Carta de Caminha”,num dos documentos fundadores da história de nosso País.

A S A G A D E E S S O M E R I C Q N A F R A N Ç A

Binot Paulmier de Gonneville regressou a Honfleur com 28homens, aí incluídos o próprio capitão e Essomericq. Nos mesesseguintes, o capitão tentou convencer seus sócios e outroscomerciantes para equipar outro navio e voltar às terras austrais.Seus argumentos, entretanto, foram em vão. A prometida volta àterra de Essomericq (agora Binot) não aconteceu. O capitão,porém, não deixou de proteger seu afilhado. Não se tem dadosconcretos sobre os primeiros anos da vida de Essomericq (Binot)na França. Presume-se que a proteção do padrinho lhe tenhagarantido condições para sobreviver e se adaptar aos costumesda nova terra. Esta trajetória não lhe deve ter sido fácil. Essomericqteve de aceitar as imposições de uma nova cultura, de uma novalíngua e, também, de diferentes condições sociais, econômicas eambientais. Viveu, sem dúvida, uma singular saga.

À época, era comum aos navegadores aprisionarem nativos parauso como escravos em seus barcos, ou para levá-los para suascidades de origem como provas de terem visitado terras exóticas.Há muito, os portugueses promoviam o tráfico de negros para aEuropa. Colombo, ao regressar de sua primeira viagem à América,levou uma dezena de nativos para a Espanha. Cabral fez o mesmo,despachando com a carta de Pero Vaz de Caminha diversasamostras das “coisas da terra” e um índio do sul da Bahia paraconhecimento do rei d. Manuel. Com os navegadores franceses,aconteceu o mesmo. A diferença é que Essomericq jamais foi tratadocomo escravo. Na França, sua condição era de um príncipeoriginário das terras austrais. Certamente, nunca teve de participarde desfiles ou de outras humilhações públicas. Essomericq, por serapadrinhado de Gonneville e por viver numa pequena cidade daNormandia, acabou conquistando condições excepcionais desobrevivência no contexto da expansão européia, que nessemomento acontecia. Nesse sentido, sua vida na Europa tornou-se

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um raro caso de positiva convivência e de tolerância interétnicas.O capitão de Gonneville, em 1521, conseguiu casar Essomericq

com uma parenta sua. Deu-lhe também o sobrenome Paulmier eboa parte de seus bens. Binot Paulmier (Essomericq) e sua mulhertiveram quatorze filhos, o que garantiu a presença na França deseus descendentes por diversas gerações. Essomericq viveu até1583, alcançando mais de noventa anos de idade3.

A comprovação da trajetória de Essomericq acabouacontecendo também por meios transversos. Em 1658,descendentes de Binot Paulmier (Essomericq) tiveram de recorrerao rei Luís XIV para serem isentos do imposto de ádvena, queatingia os estrangeiros residentes na França4. A argumentaçãodos familiares, entre eles o abade Jean Paulmier de Courtonne,bisneto de nosso personagem, era a de que descendiam de umpríncipe originário das terras austrais que fora convidado paravir à França. Na impossibilidade do prometido regresso, seusfamiliares e descendentes se consideravam convidados dogoverno francês, e não estrangeiros. Como prova, informavamsobre a existência da “declaração de viagem” depositada noAlmirantado, em Rouen, que num primeiro momento recusoulhes fornecer um exemplar do documento. Luís XIV aceitou opedido, determinando que o Almirantado fornecesse uma cópiada “declaração da viagem” para os requerentes, o que se efetivouem 30 de agosto de 1658. Além da isenção do imposto, o episódioreavivou a memória dos descendentes de Essomericq, garantindoo surgimento de diversos registros sobre a saga do Guarani quese viu levado das terras do Sul do Brasil para a Normandia.

3 Perrone-Moisés, op. cit. (p. 114).4 Ibidem (p. 109).

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NO T Í C I A S O B R E O S C A R I J Ó

As fontes etno-históricas indicam que foram os índiosGuarani, depois denominados Carijó1, que socorreram a estropiada tripulação do L’Espoir. Todo o litoral sul, de

Cananéia (SP) até a Lagoa dos Patos (RS), os vales interioranos e asmargens dos rios da bacia Paraná—Paraguai eram ocupados poresses índios. A denominação Carijó foi dada pelos europeus nosanos imediatos à conquista. Organizados em subgrupos edistribuídos em diversas aldeias, os Carijó tinham vida sedentáriae dominavam técnicas de horticultura, caça, coleta, olaria, cestariae fiação do algodão, além de serem profundos conhecedores detoda a região, do seu relevo, da flora e da fauna. Eles é querecepcionaram os franceses, fornecendo-lhes alimentos e dando-lhes condições para se recuperarem da longa travessia do Atlântico.Durante os meses que se sucederam, o capitão de Gonneville e suatripulação mantiveram uma relação amistosa e respeitosa para comesses indígenas. Na “Relação da Viagem”, aparecem referênciasresumidas sobre as muitas notas e os desenhos que foram feitospor Nicole Lefebvre em relação ao cotidiano dos índios. Gonnevillee sua tripulação fizeram amizades com os nativos liderados pelocacique Arosca. Ao final da estada em julho, quando iniciaram avolta para a Cristandade, Gonneville conseguiu a autorização deArosca para levar seu filho, Içá-Mirim (Essomericq), acompanhadode um índio mais velho, Namoa, à França.

Publicado em: SANTOS, Sílvio Coelho dos. São Francisco do Sul: muito além da viagemde Gonneville. Florianópolis: UFSC, 2004. p. 40-47.

1 A grafia Carijó e de outros povos indígenas está de acordo com o estabelecido naconvenção instituída pela 1a Reunião Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro,1953), cujo texto se acha publicado na Revista de Antropologia, v. 2, n. 2, dezembrode 1954, São Paulo.

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As observações presentes da “Relação de Viagem” sobre osnativos permitem que se tenha idéia de como viviam os Carijó,seus costumes, economia, organização social, festas e atividadesguerreiras. Também os índios tiveram enorme curiosidade sobreesses estranhos homens brancos, sobre o enorme barco em quenavegavam, e sobre suas armas de fogo e de aço. Muitoprovavelmente, Gonneville e seus companheiros foram tomadospelos Carijó como heróis míticos, originários da “terra sem males”,tão presentes em sua cultura. A confraternização entre ostripulantes e os nativos não se resumiu à troca de presentes efestas. Poucos, certamente, não foram os casos de relacionamentosexual. Mais tarde, observações de outros navegadores e padresvão ressaltar tantos os costumes como a cordialidade e areceptividade dos Carijó para com os brancos.

Os Guarani iniciaram um processo de dispersão e de conquistasa partir da Amazônia por volta de 2.000 anos atrás. Ocuparam,entre outras áreas, a bacia do Paraná-Paraguai. Seguindo algunsdos rios formadores dessa bacia, chegaram ao litoral sul e, assim,à Ilha de São Francisco do Sul. Datações obtidas em sítiosarqueológicos no litoral do atual Estado de Santa Catarina indicama presença dos Guarani há cerca de 1.000 anos, ou seja, quandoda chegada dos europeus eles já estavam aqui há pelo menos 500anos. Há uma extensa bibliografia sobre os Guarani, e parte delaregistra as hipóteses relativas ao centro de origem e às motivaçõespara a sua expansão em direção ao litoral. Na maioria, essashipóteses remetem ao mito da procura da “terra sem males”, queficaria situada a leste, ou seja, além do Atlântico. Dominando ahorticultura e contando com contingentes demográficosexpressivos, além de forte motivação religiosa, os Guaraniavançaram para o litoral sul, exterminando, dominando ouexpulsando outros povos, entre eles, provavelmente, osconstrutores dos sambaquis e de outras tradições culturais.

Cabe aqui um pequeno parêntese para esclarecer que os povosindígenas que se sucederam na ocupação de espaços geográficoscomo o Sul do Brasil mantiveram disputas fortes entre si,principalmente para alcançar os recursos protéicos existentes,tanto no litoral como no interior. A Região Sul, nesse sentido, era

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privilegiada por contar com a presença periódica de cardumesem seu litoral. Peixes como a tainha e a anchova, em certas épocasdo ano, podiam ser capturados em grandes quantidades. Osmoluscos, representados por mariscos, berbigões e ostras, podiamser coletados o ano inteiro. Baleias e outros animais marinhos deporte tinham presença constante no litoral, e em algumas situaçõesse tornavam bastante vulneráveis à captura. No interior, nas terrasaltas do planalto, onde as matas de araucária, devido à fartura dopinhão, reuniam extensa e variada fauna, uma outra fontepermanente de proteína estava à disposição de populaçõesespecializadas na caça e na coleta. Provavelmente, nesse territóriodo planalto, o domínio foi dos antecedentes dos Xokleng e dosKaingang, que são referidos na literatura como tendo umatradição cerâmica que foi denominada pelos arqueólogos como a“tradição Itararé”. As disputas por territórios que tivessem farturade alimentos, portanto, aconteceram entre diferentes povos, muitoantes da chegada dos europeus.

Depois de Gonneville, diversos navegadores europeuschegaram ao litoral do atual Estado de Santa Catarina, nasprimeiras décadas do século XVI. Essa região logo foi reconhecidapela excelência de seus portos naturais, o que era estratégico parao descanso das tripulações, os consertos das embarcações e oreabastecimento de água e de víveres. A partir de uns poucosregistros, sabe-se que os náufragos da expedição de Solís (1515),por exemplo, vivenciaram um relacionamento intensivo com osindígenas. Mais raramente, outros marinheiros desertaram deseus navios ou foram abandonados por seus capitães, e ficaramentre os índios. Os comandantes das diversas expedições que aquipassaram poucas anotações fizeram sobre os habitantes da terra.Como estavam em jogo interesses econômicos das Coroas ibéricas,a maioria das expedições eram rodeadas de um certo sigilo. Essa,talvez, fosse uma razão para a escassez dos relatos. Outrasreferências foram publicadas por Hans Staden, Cabeza de Vaca enas cartas dos primeiros padres aos seus superiores.

Mas, sem dúvida, foram os Carijó que suportaram os primeirosembates com os europeus, tanto na Ilha de São Francisco comoem todo o litoral. Da cordialidade e da curiosidade sobre aqueles

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estranhos homens barbudos, cobertos com roupas malcheirosas,que desciam de barcos enormes usando estrondosas armas defogo e portando afiadas lâminas de aço, surgiu nas décadasseguintes o medo devido à violência e à vontade explícita dosrecém-chegados em submeter os indígenas. O rapto seguido dotrabalho escravo, o abuso sexual das mulheres e o apossamentodos bens indígenas, apesar das convicções cristãs dosconquistadores, tornaram-se rotinas. Simultaneamente, oseuropeus passaram aos índios diversas doenças até então paraeles desconhecidas, como a varíola, o sarampo, a gripe, apneumonia, a tuberculose e a gonorréia. Assim, as epidemiasdesarticularam o equilíbrio demográfico das aldeias e a suaorganização socioeconômica. Ao mesmo tempo, as crençasreligiosas que davam suporte à explicação do mundo em que oscarijós viviam passaram a ser desvalorizadas pelos padres quechegaram para catequizá-los.

A conquista, portanto, foi violenta, tendo os invasoresalcançado resultados rápidos em função do domínio das armasde fogo, do aço e, incrivelmente, dos germes. Trata-se, pois, deum elucidativo exemplo para a compreensão da supremacia dealgumas sociedades sobre outras, a partir do exercício daviolência. Essa violência foi tal, no caso dos Carijó, que no séculoseguinte (XVII) já não havia mais aldeias no litoral. Não se pense,entretanto, que a população nativa era pequena. Relatos dão contade que, entre Cananéia e a Lagoa dos Patos (RS), devia havercerca de 100 mil Carijó. Diferentes sítios arqueológicos tambémsinalizam para uma presença numérica significativa de indígenas.Porém, a Arqueologia ainda não tem dados suficientes para fazeruma estimativa demográfica segura dos povos que aqui viveramantes da invasão européia.

A motivação da maioria dos navegadores que exploraram oAtlântico Sul nas primeiras décadas do século XVI era a descobertade uma passagem para o Pacífico que permitisse chegar às Índias,ou seja, ao Oriente, pelo oeste. Nessa busca, primeiro alcançaramo Rio da Prata, que se tornou uma alternativa para chegar às terrasdo Peru e da Bolívia. Interessavam-se, antes de tudo, pelaconquista de riquezas fáceis, e, na falta dessas, foi comum a

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apropriação de seres humanos, ou seja, de índios, para utilizá-loscomo testemunhos exóticos da estada em terras estranhas, comoobjetos sexuais ou como escravos. No relato de Pigafeta sobre aexpedição de Fernão de Magalhães em torno da Terra (1519—1521), há referências sobre um grupo de mulheres índias que teriasido raptado no litoral do Rio de Janeiro para uso da tripulação.Essas mulheres foram simplesmente abandonadas quando dapassagem pela Terra do Fogo. Portanto, é possível pensar que, àépoca, práticas dessa natureza fossem rotina entre as tripulações,e que este poderia ter sido o destino de muitas mulheres Carijóque viviam no litoral.

A passagem do adelantado Cabeza da Vaca na Ilha de SantaCatarina (1541) e, depois, sua incursão ao Paraguai seguindo peloRio Itapocu (cuja embocadura está próxima à Ilha de São Franciscodo Sul), na mesma rota trilhada anteriormente por Aleixo Garciae seus companheiros, deixaram ligeiras referências sobre os Carijóe sobre os Guarani, que ocupavam o interior, especialmente nasproximidades dos grandes rios formadores da bacia Paraná—Uruguai. Depois, a melhor referência é de Hans Staden,aventureiro alemão que embarcou como arcabuzeiro numaexpedição espanhola que se dirigia para a América do Sul. Dele,é a configuração do primeiro mapa da Ilha de Santa Catarina,com destaque para uma aldeia indígena que se localizava nocontinente fronteiro. As aventuras de Staden foram publicadasem 1557, na Alemanha. Por suas notas, infere-se que os Carijóestavam cada vez mais submetidos aos desígnios dos brancos.Esses tinham crescente interesse na produção indígena paraabastecer seus barcos. O papel exercido por aqueles aventureirosque se deixaram ficar entre os indígenas foi fundamental nesseprocesso, pois, além de aprenderem a língua e servirem deintérpretes, foram eles que estabeleceram relações mais próximas,especialmente aproveitando a instituição do “cunhadismo”, queera comum entre os habitantes da terra. Através do “cunhadismo”,os Carijó costumavam incorporar o estranho à sua família,entregando-lhe, preferencialmente, sua irmã como esposa. Ouseja, os indígenas tinham em sua estrutura social um mecanismode absorção do estranho através do casamento. Como a poliginia

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era institucionalizada na sociedade carijó, não é de estranhar quemuitos brancos fossem contemplados com várias mulheres e,dessa forma, se tornaram aliados de várias famílias. A partirdessas alianças, esses aventureiros tiveram condições de submeteros indígenas aos seus desígnios.

As aldeias eram formadas por famílias extensas, na quaispredominavam a exogamia e a reciprocidade nas relaçõeseconômicas, ou seja, a circulação dos bens objetivava atender àsnecessidades de todos, e não apenas de alguns. Praticavam o quese poderia denominar de “economia da abundância”. Líderesreligiosos tinham grande importância na organização social e nocotidiano de cada grupo. Uma forte relação com a natureza,fundamentada no aproveitamento dos recursos disponíveis deforma pouco agressiva, e o domínio das técnicas agrícolas, decaça e pesca garantiam um extraordinário equilíbrio com o meioambiente. Conheciam diferentes variedades de milho, de feijão,de mandioca e de abóbora, que cultivavam em pequenas roçasde coivara. Plantavam, ainda, o algodão, o fumo, a cabaça e umnúmero expressivo de plantas medicinais.

A começar por Gonneville e seus companheiros, foram osCarijó que passaram para os europeus os saberes fundamentais àsua sobrevivência no espaço geográfico que estavam invadindo.Esses saberes chegaram até nós, absorvidos que foram pelapopulação que acabou dominante. Para ficar apenas em algunsexemplos, lembramos a importância da farinha, do peixe assadona brasa, de ervas, de cipós e de plantas como a mandioca, o feijãoe o milho; ou fabrico de balaios, o uso da canoa de tronco, aarapuca, o mundéu, o covo, o bodoque, o arpão, no cotidiano dasgerações que se sucederam no litoral sul. Além disso, os Carijódeixaram como testemunho de sua longa presença na Ilha de SãoFrancisco do Sul e adjacências diversos topônimos, entre os quaisdestacamos como exemplos: Babitonga, Araquari, Itaguaçu,Iperoba, Itapocu, Ubatuba, Tapera, Una, etc.

É evidente que os Carijó não desapareceram por inteiro.Dispersos em pequenos grupos, se refugiaram nos pontos maisinacessíveis da costa e do interior. Outros foram obrigados aconviver com o branco na condição de escravos. O nome Carijó

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foi dado pelos europeus para os Guarani que viviam no litoralsul, como já se disse. Esses índios ocupavam um vasto território,incluindo boa parte do que são hoje o Paraguai, a Bolívia, aArgentina e o Uruguai, além do Brasil. Formavam um grandepovo. Nos primeiros séculos da dominação colonial, foram objetodos esforços de catequese dos padres enviados pela Coroaportuguesa e, também, pelas iniciativas dos jesuítas espanhóisque fundaram as reduções de Guaíra e, depois, os Sete Povos dasMissões, entre os Rios Paraná e Uruguai. Foram eles que, emfunção dos aldeamentos promovidos pelos jesuítas, sofreram asmais intensas razias dos caçadores de escravos paulistas, que oscapturaram aos milhares. Foram eles que serviram de mão-de-obra para as fazendas que foram se instalando em São Vicente(SP) e, depois, em boa parte do litoral sul. Continuamente foramespoliados e ficaram à margem, em tempos mais recentes, dequalquer política promovida pelos órgãos governamentais, emespecial pelo Serviço de Proteção aos Índios ou pela FundaçãoNacional do Índio. São eles que, num grau extremo de penúria,têm assombrado a mídia com suicídios de crianças e jovens, emparticular no Mato Grosso do Sul. São eles que, num lento einexorável movimento, têm voltado a circular pelo litoral sul natentativa de reocupação das terras de seus ancestrais e de umareaproximação com a “terra sem males”, como acontece comaqueles que estão aldeados no local denominado Laranjeiras (ouMorro Alto), na Figueira (Araçá). São esses índios que, no dia-a-dia, expõem de maneira exemplar as contradições de nossasociedade, ao buscarem ganhar alguns recursos financeirosvendendo artesanato ou esmolando, tanto na cidade de SãoFrancisco do Sul como nos centros das maiores cidades do Estado.São eles que continuam, de uma forma ou de outra, a pretendernos mostrar no cotidiano que existem formas alternativas de vidasocial e de sobrevivência humana que não necessariamente estãobaseadas na concentração da riqueza, na exploração agressivados recursos da natureza, e numa contínua e inglória disputa de“todos contra todos”, como acontece entre nós. São eles, os maisdeserdados entre todos os demais, que clamam por justiça e pordefinições políticas que lhes assegurem pelo menos área de terras

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que lhes permitam sua reprodução biológica e cultural, no cenáriode um país que pretende respeitar as diferenças culturais egarantir condições de sobrevivência às minorias étnicas.

AGUIAR, Rodrigo. A arte indígena e pré-histórica no litoral de Santa Catarina.Florianópolis: Edição do Autor, 2001.

CABEZA de VACA, Álvar Núñez. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1987.DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Rio de Janeiro: Record, 2001.KERN, Arno Alvarez. Antecedentes indígenas. 2 ed. Porto Alegre: Editora da

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A M O D E R N I D A D E C H E G A P E L O T R E M

As primeiras décadas do século XX marcaram profundamenteo futuro imediato de Santa Catarina. Os desdobramentos do projeto de modernidade que avassalava o mundo

estavam chegando através de uma estrada de ferro. A questão doslimites entre o Brasil e a Argentina, na chamada área de Palmas (ouMissões), estava resolvida, e uma Comissão Mista definia, entre 1900e 1904, a demarcação da fronteira. Foi nesse cenário de busca do“progresso” e de disputa entre os dois países que foi projetada, aindano Império, a construção da Estrada de Ferro São Paulo—Rio Grande,objetivando garantir o rápido deslocamento de tropas em caso deum conflito e, paralelamente, assegurar o domínio de imensoterritório no interior da Região Sul.

O Estado-nação unitário e hegemônico tomava suaconformação, definindo seus limites, construindo estradas de ferroe linhas telegráficas, e criando seus símbolos. O esforço vinha doImpério e se ampliara na República. Intelectuais como OliveiraViana, Sylvio Romero, Euclides da Cunha e Rui Barbosaadvogavam o progresso e a ordem. Os ideais positivistas tambémse disseminavam, abalando a visão tradicional de poder quedominava o País.

O trem a vapor simbolizava o moderno. As ferrovias haviampossibilitado novas formas de articulação de bens e de capital,em nível mundial. A nova dimensão da velocidade permitia aincorporação de enormes áreas de terra ao processo produtivo,promovendo a reorientação da produção econômica, a exploraçãode recursos naturais e a relocalização de investimentos. A

Publicado originalmente em: SANTOS, Sílvio Coelhos dos (Org.). Santa Catarina noséculo XX. Fpolis: Editora da UFSC, 1999. p. 13-30.

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expansão da malha ferroviária para os mais distantes pontos dasuperfície terrestre era uma realidade que interessava a diferentesgovernos e grupos econômicos.

Toda a área compreendida entre os Rios Iguaçu e Uruguai, atéa fronteira com a Argentina, foi considerada como passível deapropriação privada. A definição dos limites entre o Paraná eSanta Catarina, até então, vinha sendo postergada, em função dosinteresses das elites regionais. A Constituição de 1891 haviaoutorgado aos Estados a administração das terras denominadascomo “devolutas”. A idéia de que a região era um “grande vaziodemográfico” prevalecia, despertando a cobiça entre os quepodiam tomar decisões e facilitando a distribuição de títulos depropriedade para uns poucos privilegiados. Na falta de recursosfinanceiros para construir a estrada de ferro, o governorepublicano concedeu vantagens para investidores nacionais eestrangeiros. Aos poucos proprietários, aos posseiros e aosindígenas, habitantes tradicionais da região, nada se assegurou.O trem, símbolo da modernidade, também deve ser visto comoinstrumento do conflito e da dominação, que teve como expressãomaior a Guerra Sertaneja do Contestado.

A E S T R A D A D E F E R R O C O M O P R O J E T O H E G E M Ô N I C O

Na semana anterior à sua destituição, o imperador Pedro IIconcedeu ao engenheiro João Teixeira Soares privilégios para aconstrução de uma estrada de ferro que partia de Itararé, naProvíncia de São Paulo, e chegava até Santa Maria da Boca doMonte, no Rio Grande do Sul. Pouco depois, a concessão foiratificada pelo Governo Provisório da República. Objetivava-seuma ligação estratégica entre os centros urbanos do País (SãoPaulo e Rio de Janeiro) com o extremo sul, assegurando-se orápido trânsito de tropas militares. No Rio Grande do Sul, já haviaalgumas linhas instaladas, o que possibilitava, inclusive, pensarnuma interligação ferroviária com a Argentina e o Uruguai. Aomesmo tempo, abriam-se perspectivas para a incorporação e odomínio de extensa área territorial através da fixação deimigrantes e seus descendentes.

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Teixeira Soares criou inicialmente a Compagnie Chemins deFer Sul Ouest Brésiliens, que a seguir transferiu parte da concessãooriginal para a Brazil Railway Company, empresa sediada emPortland (EUA). Esta empresa já controlava vários trechosferroviários no Brasil e detinha outras tantas concessões naAmérica do Sul, investindo também na extração de madeiras,indústria de papel, frigoríficos e negócios de colonização,formando um grande conglomerado, administrado pelomegainvestidor Percival Farquhar.

Apesar de diferentes recomposições contratuais e acionárias,a estrada tomou ímpeto a partir de 1906, atingindo União daVitória (PR) em 1908 e Marcelino Ramos (RS) em 1910. Emdezembro desse ano, circulou a primeira composição regular, aolongo dos l.403 km da linha originalmente projetada. Milharesde trabalhadores haviam sido mobilizados na sua construção.Cerca de 30.000:$000 (trinta mil contos de réis), equivalentes aocâmbio da época a três milhões de libras esterlinas, foram gastos.

A concessão, através de diferentes ajustes e complementos,garantiu à empresa uma faixa de terra de 15 km de cada lado doeixo da ferrovia, como pagamento pelo investimento. Por isso, aBrazil Railway logo criou a subsidiária Southern Brazil Lumberand Colonization Company, com o objetivo de explorar osrecursos florestais disponíveis e proceder à localização deimigrantes. Em Três Barras e Calmon, montou duas serrarias, comcapacidade de serrar cerca de 300 metros cúbicos diariamente.As atividades de extração, transporte e serra eram mecanizadas.A madeira era exportada pelos portos de Paranaguá e SãoFrancisco, através de um ramal ferroviário especialmenteconstruído pela companhia. A expansão dos investimentos daempresa aconteceu pelas sucessivas concessões do governo doParaná e do governo federal, apesar das oposições e dos embargosdo governo catarinense. Algumas áreas foram adquiridas deterceiros, próximas a Canoinhas, com o objetivo de ampliar aexploração das reservas de pinheiro-do-paraná. O colossoempresarial dirigido pelo truste Farquhar em poucos anosaçambarcou milhares de hectares de terras, devastou a flora eaniquilou de maneira desleal os pequenos proprietários de

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engenhos de serra, negando-lhes o transporte de sua produçãonas ferrovias que dominava.

Ao mesmo tempo em que dizimava a cobertura florestal daregião, a Brazil Railway investia sobre os posseiros que ocupavamsua área de concessão. Em 1911, começou a colocar para fora deseus domínios todas as pessoas que ocupavam terras e que delasnão possuíam títulos de propriedade. Tal iniciativa contrariava oque havia sido estabelecido na Lei de Terras de 1850, quereconhecia o direito de posse. Também não estava de acordo comos textos da concessão e seus aditivos, que reportavam a terrasdevolutas. Os interesses da empresa, porém, eram defendidospor advogados e políticos ligados ao poder, tanto no Rio de Janeiroe no Paraná como em Santa Catarina, além de um corpo desegurança que contava com cerca de 200 homens armados.Tratava-se de um grande empreendimento capitalista, impondosuas regras sem nenhuma consideração pelas populações locais,nem assumindo responsabilidades em conseqüência da grandemobilização de mão-de-obra. Ao término da construção do trechoque cortava o território de Santa Catarina, acompanhando o cursodo Rio do Peixe, foram desmobilizados centenas de operários.Desses, muitos não conseguiram voltar para seus locais de origeme se juntaram à massa de espoliados, ampliando as condições paraa instauração do conflito.

Assim, junto à pretensão de Farquhar e seus aliados derecompor as estruturas sociais e econômicas locais, objetivandoo resguardo de seus interesses, dialeticamente, emergiram aresistência armada e a fúria suicida entre as populaçõesprejudicadas.

U M A “ G U E R R A S A N T A ” C O N T R A O C A P I T A L

A população que ocupava a região que estamos focalizandoera formada por uns poucos fazendeiros e seus agregados,pequenos sitiantes, alguns fugitivos da Justiça e negrosescapulidos do cativeiro. Além desses, grupos de índios Kaingang,Xokleng e Guarani tentavam manter seus espaços de ocupaçãotradicional. A mestiçagem estava presente há muito tempo nesse

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cenário rústico, no qual a mulher era um bem extremamentevalorizado, não importando se fosse branca, negra ou índia. Ocaboclo emerge neste contexto. A passagem de tropeiros com suascargas e manadas de gado, e de militares e civis envolvidos emguerras, permitia um pequeno escambo e a troca de informaçõessobre o que acontecia em locais distantes, como São Paulo,Curitiba ou Porto Alegre.

A região também era percorrida por beatos, monges eandarilhos. O mais conhecido desses foi João Maria d’Agostinho,um italiano que chegou ao Brasil em 1844. São João Maria, comoficou conhecido, percorreu várias vezes a Região Sul, pregando ereceitando remédios no intuito de aliviar os males da populaçãodo sertão. Era tido como portador de poderes sobrenaturais, sendorespeitado e procurado por todos os aflitos. Logo foi identificadocomo santo. Na cidade da Lapa (PR), onde viveu certo temponuma gruta, deu motivo para que doentes e devotos até hojevisitem o local em busca de cura. Também não poucas são asfontes de água que permanecem na memória das populaçõeslocais como sendo milagrosas, em conseqüência de ali ter o santomonge bebido e descansado.

Quando morreu, o imaginário popular criou a expectativa doreaparecimento do santo. Seus ensinamentos e conselhos forampreservados, e volta e meia alguém lembrava sobre o seu breveretorno. O século que estava para terminar aguçava especulaçõessobre o fim do mundo. O salvamento dos puros, dos justos, queviveriam num mundo sem dor e sem fome, delineava os contornosde um novo movimento messiânico.

Um dia, apareceu no sertão Anastás Marcaf, que se intitulavaJoão Maria de Jesus, pregando e curando como seu antecessor.Nos anos imediatos à sua morte, que aconteceu provavelmenteem 1906, o clima de tensão na região estava se acentuando, devidoà questão de limites e aos abusos advindos da construção daestrada de ferro. A população não quis acreditar na morte donovo líder, abrindo condições para o aparecimento do terceiromonge, que se chamava Miguel Lucena. Intitulava-se José Mariad’Agostini e era desertor da polícia do Paraná. Atraindo osinjustiçados e os descontentes, ao contrário de seus antecessores,

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logo passou a ser seguido por uma enorme multidão. Com baseem sua experiência como militar e objetivando manter um mínimode organização da multidão que o seguia, hierarquizou funções ecriou um corpo de segurança tendo como base a história dos “dozepares da França”.

O cenário para irromper o mais dramático episódio da históriada Região Sul estava pronto. A temporária fixação do monge e deseus adeptos numa fazenda em Curitibanos provocou ainterferência do governo catarinense, que sugeriu seu deslocamentopara o outro lado do Rio do Peixe. Acatada pacificamente talsugestão, o “santo homem” e seus seguidores despertaram a irado Paraná, cujo governo interpretou o fato como uma invasão decatarinenses do território que pretendia ser seu. E logo enviou umaforça militar para desalojar os atrevidos invasores. Deu-se ocombate de Irani, no qual o comandante das tropas do Paraná,coronel João Gualberto, foi morto, bem como o monge José Maria.A guerra estava começando. Corria o ano de 1912.

Com base nas noções que José Maria dera, seus seguidorespassaram a instalar “redutos”, a formar piquetes para a açãomilitar e a criar todo um quadro de atividades destinadas a manterocupadas as tropas legais que contra eles logo foram enviadas.Praticava-se a guerra de guerrilhas. Vários combates foramtravados, e os revoltosos, inicialmente, obtiveram diversasvitórias. Depois, com a chegada de tropas em quantidade maiore mais bem equipadas, além do controle efetivo das vias deabastecimento de que se serviam, a sorte começou a pender paraas forças do exército republicano.

Nos “redutos”, a vida cotidiana se assentava na igualdade ena solidariedade. Dividia-se tudo. O sentimento de irmandade ea possibilidade de chegar a uma ordem social justa, inspirada eprotegida pela Divindade, expressavam-se nas rezas e nasuperação das privações impostas pelos combates, pelas fugas epela permanente necessidade de implantar novos refúgios. Osatos heróicos também integram este quadro, expressos na crençade que os corpos dos insurgentes estavam imunes às balas doexército repressor e que os mortos ressurgiriam junto com o santoJoão Maria. Assim, o movimento messiânico remetia a tradições

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presentes no catolicismo popular do interior do País, como osebastianismo e o reino do Espírito Santo.

A guerra somente chegou ao fim depois de muitos sacrifíciosde parte a parte. Acredita-se que mais de 20.000 pessoas nelaestiveram envolvidas. Ao liquidar os últimos focos de resistênciacabocla, o governo havia enviado 13 expedições militares para aregião. Pela primeira vez no Brasil, utilizara-se o avião comoveículo bélico. Lutara-se quatro anos. Milhares de pessoas, entrecaboclos, militares e civis, foram mortas. A Guerra Sertaneja doContestado terminou em 1915, quando nos bastidores daRepública desenhava-se um acordo entre os governos do Paranáe Santa Catarina para pôr fim à questão de limites. Aos poucossobreviventes, que escaparam do arbítrio da repressão, não sobrououtra alternativa senão a fuga para o mais distante sertão,apostando na invisibilidade para garantir a vida. A crença nomonge João Maria foi resguardada até o presente, alimentandoexpectativas de um tempo de paz e igualdade que um dia chegará.

No auge do conflito, o movimento guerrilheiro dos sertanejospromoveu ataques às madeireiras da Lumber e aos trens deFarquhar. A República aparecia aos olhos dos insurretos comopromotora da “invasão” estrangeira. Poucos foram os militaresque compreenderam isso, e raros os que perceberam aperversidade que o grande projeto moderno contemplava aodesalojar posseiros e desempregar operários. O capitão MatosCosta, (1974, p.101), que foi morto pelos jagunços durante umataque no município que hoje tem seu nome, objetivamente disse:

A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejosespoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança. Aquestão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e osuficiente de justiça como um duplo produto que ela é da violência querevolta e da ignorância que não sabe outro meio de defender seu direito.

A Q U E S T Ã O D O S L I M I T E S

A Província do Paraná foi criada em 1853, quando ocorreu odesmembramento da antiga quinta comarca de São Paulo. Nadefinição de seus limites, os dirigentes da nova província

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pleitearam estender seus domínios até o Rio Uruguai. A referênciapara tanto era o fato de a Vila de Lages ter sido fundada porCorrêa Pinto, por ordem do Marquês de Cascaes, governador deSão Paulo, em 1771. Em 1820, porém, por expressa determinaçãode d. João VI, Lages passou a ser administrada pelo governadorde Santa Catarina. Devido aos interesses predominantesrelacionados à pecuária e à extração da erva-mate, os paranaensesse voltaram para o domínio dos Campos de Palmas, localizadosa oeste do Rio do Peixe, afluente do Uruguai, e que haviam sidoconquistados pelos criadores de gado de Guarapuava (PR). Desdemeados do século XIX, um caminho de tropas unia S. Paulo àscoxilhas do Rio Grande, passando por Guarapuava, Palmas eChapecó. Quando foi resolvida a questão de limites entre aArgentina e o Brasil, após a mediação do presidente GroverCleveland, dos Estados Unidos, em 1897, o Paraná acentuou suasinvestidas para o domínio dessa área. Palmas tornou-se umareferência estratégica para a pretendida ocupação. Pouco depois(1902), o governo do Paraná decidiu conceder aos Kaingang, queviviam nas imediações da Colônia Militar Chapecó, a áreacompreendida entre os Rios Chapecó e Chapecozinho, para assimmantê-los numa situação de confinamento e facilitar a ocupaçãodas terras vizinhas pelos “brancos.”

Objetivando o resguardo de seus interesses e tendo comoreferência o Rio Iguaçu como divisa natural a ser estabelecida como Paraná, o governo de Santa Catarina recorreu ao SupremoTribunal Federal. A defesa de Santa Catarina estava centrada noextenso trabalho realizado pelo conselheiro Manoel da Silva Mafra,posteriormente editado, em 1901, sob o título “Exposição histórico-jurídica por parte do Estado de Santa Catarina sobre a questão delimites com o Estado do Paraná”. O Tribunal, em decisão de 6 dejulho de 1904, deu ganho de causa a Santa Catarina. O Paraná,contudo, opôs dois embargos, sendo afinal confirmada a primeiradecisão do Supremo em julho de 1910. Mas essa decisão nãoprevaleceu. As discussões se inflamaram, envolvendo a populaçãoe suas lideranças políticas. A inauguração da Estrada de Ferro SP—RS era iminente, assegurando lucros certos para quem tivesse poderde mando na extensa área que se abria para exploração.

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A Brazil Railway Company pressionou os governos federal edos Estados do Paraná e Santa Catarina, objetivando ter liberadasas terras que pretendia ser suas para implantar seus projetos decolonização e de exploração florestal. As discussões e os interessesforam muitos. Tanto o Paraná como Santa Catarina, a todomomento, estavam expedindo títulos sobre as terras em disputa,sob o argumento de que a concessão original feita pelo governocentral para a construção da estrada de ferro envolvia terras“devolutas”, e essas, desde a Constituição de 1891, estavam sob ajurisdição dos Estados. A polêmica político-jurídica cresceu. Osinteresses econômicos se acentuaram. Não poucos pareceresjustificaram os direitos da empresa e, também, as ações indevidasdo governo do Paraná.

Foi nesse contexto, e por interferência direta do governofederal, que os governadores de Santa Catarina e do Paranáestabeleceram um acordo, em outubro de 1916, para a definiçãodos limites entre os dois Estados na área contestada. Dos 48.000km² em disputa, Santa Catarina ficou com aproximadamente28.000 km², e o Paraná, com 20.000 km². Depois de aprovado pelasrespectivas Assembléias, ocorreu a homologação do acordo pelogoverno federal em 1917. As disputas com as empresas do grupoFarquhar continuaram, pois o Paraná havia expedido títulos dedomínio sobre terras localizadas a oeste do Rio do Peixe, que nãoforam reconhecidos pelo governo catarinense. Simultaneamente,e objetivando administrar a área em disputa que passou para suajurisdição, Santa Catarina criou, ainda em 1917, os municípios deMafra, Porto União, Joaçaba (Cruzeiro) e Chapecó. A instalaçãodessas sedes municipais, com as conseqüentes presenças dascomarcas judiciárias, paróquias e unidades escolares, foi a baseque passou a fundamentar a conquista do Oeste.

Independentemente dos problemas sociais provocados pelaimplantação da ferrovia, que foram trágicos para uma boa parteda população tradicional, ocupante do planalto e do Vale do Riodo Peixe, este símbolo da modernidade incentivou grandesmudanças em Santa Catarina. Dezenas de colônias foramlocalizadas na sua área de influência, caracterizando uma novafrente agrícola. Imigrantes ou seus descendentes necessitavam

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de novas terras e para aí se deslocaram, atraídos pelas facilidadesde transporte de bens e mercadorias garantidas pela ferrovia. Amudança sociocultural e o realinhamento do espaço tornaram-seinexoráveis. Algumas demandas relativas à concessão de terras,porém, chegaram até o presente sem terem sido satisfatoriamenteresolvidas, em particular quando nessas terras havia a presençade índios.

O P R O J E T O M O D E R N O T E M O U T R A S F A C E S

É necessário esclarecer que a primeira estrada de ferro foiimplantada em Santa Catarina ainda no século XIX. Trata-se daE. F. Tereza Cristina, que foi construída no sul do Estado, ligandoo porto de Imbituba às minas de carvão. Para a sua construção,foi organizada em Londres a The Donna Thereza ChristinaRailway Company Limited, que foi autorizada a funcionar em1876. A construção do trecho Imbituba—minas se iniciou emdezembro de 1880, inaugurando-se o primeiro trecho, com 111km, e o ramal para Laguna, em 1884. A expansão da rede paraCriciúma aconteceu em 1919 e, daí para Araranguá, em 1923.

Os resultados financeiros do empreendimento foramdesanimadores, obrigando o governo federal a promover a suaencampação em 1903. Em 1910, através de arrendamento, a redepassou para o controle da Estrada de Ferro SP—RS, ficando, assim,sob o mando de Farquhar.

Importante é compreender também que os projetosgovernamentais contemplavam o estabelecimento de uma malhaferroviária, tanto no País como em Santa Catarina. No Vale doItajaí, iniciou-se em 1906 a construção da ligação ferroviária entreBlumenau e Ibirama (Hammônia), que foi inaugurada em 1910.Essa estrada deveria atingir Porto União, passando por Rio doSul. O governo estadual também pretendeu estabelecer as ligaçõesFlorianópolis—Lages e Florianópolis—Itajaí. E imaginava-se queo ramal S. Francisco—Porto União pudesse chegar até oPeperiguaçu, na fronteira com a Argentina.

A estratégia governamental era a de estabelecer concessõespara empresas privadas, em troca da cessão de terras e da garantia

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de empréstimos. As manipulações feitas pelas empresas,objetivando ampliar suas vantagens, não foram poucas. Algumasdas propostas jamais saíram da intenção. Contudo, foram muitasas discussões em torno dos “direitos adquiridos”. De qualquerforma, a engenharia do ferro e da máquina a vapor estavachegando ao Estado, garantindo a circulação das pessoas efacilitando o transporte de mercadorias. O projeto de integraçãodo Estado por via ferroviária estava, assim, sendo implantado.

A construção da Ponte Hercílio Luz ligando a Ilha-capital como continente, entre 1922 e 1926, tornou-se também um símboloda chegada da modernidade ao Estado. A Ponte, com 821 metrosde comprimento, foi construída pela empresa norte-americanaByngton & Sundstron, num sistema pênsil estabilizado por duastorres metálicas que suportavam o vão central. Foi projetada paragarantir a circulação de pedestres e o tráfego rodoferroviário, alémde permitir a passagem de navios no canal que separa a Ilha docontinente. Em termos de tecnologia disponível em nível mundial,a ponte representava grandes avanços. Hercílio Luz, o governadorque havia planejado e determinado a sua construção, ficouimortalizado com essa obra que se tornou símbolo da cidade.

Mobilizando cerca de 1.000 operários, muitos vindos dediferentes pontos do País, e alguns, do exterior, a construção daPonte provocou diferentes impactos na cidade de Florianópolis,então com cerca de 20.000 habitantes. Houve um realinhamentodas vias urbanas em direção à Ponte, e a conseqüente relocalizaçãode uns poucos moradores e do cemitério público. Parte dosoperários envolvidos na construção estabeleceram basesassociativas para garantir direitos, e alguns deles se organizarampara a difusão dos ideais socialistas. A modernidade assumia,assim, outra de suas muitas faces.

É de se lembrar, ainda, que na primeira década do século XXocorreu a instalação da energia elétrica em Florianópolis, atravésda construção da usina de Maruhy (1910), no continente. Quasesimultaneamente, foram implantados o sistema de abastecimentode água e os serviços de esgoto sanitário, de linhas de bonde e derecolhimento do lixo urbano. Essas iniciativas foram dogovernador Gustavo Richard, que estava preocupado em dotar a

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capital com uma infra-estrutura compatível com o século que seiniciava. Richard tinha passado parte da infância e da juventudena França, onde estudou. Viveu de perto as mudanças queestavam ocorrendo em termos de avanços tecnológicos na Europa.Era, pois, um entusiasta da modernização.

Foi ainda nos primeiros anos do século que tomou corpo atentativa de eliminar a violência que dominava os sertões,praticada por bugreiros contra os índios Xokleng, que resistiamà ocupação de suas terras pelos “brancos”. Uma “Liga Patrióticapara a Catequese dos Silvícolas” foi criada em 1907, emFlorianópolis, sob a liderança de positivistas e maçons. Maisadiante, em 1914, graças aos trabalhos desenvolvidos porintegrantes do Serviço de Proteção aos Índios, também deorientação positivista, uma parte dos Xokleng foi atraída aoconvívio com “brancos”. Mas a violência que atingia os indígenasnão acabou.

A essa altura, o automóvel já era uma realidade. As poucasestradas de terra batida que até então serviam ao trânsito de tropase de carroças começaram a ser adaptadas para o tráfego regularde veículos motorizados. O telégrafo aos poucos ia permitindo acirculação mais rápida das informações. A energia elétrica sedisseminava através da implantação de pequenas usinas.Embarcações a vapor de várias empresas faziam escalas regularesem Florianópolis, Laguna, Itajaí e São Francisco, transportandopessoas e mercadorias. No final dos anos 1920, o transporterodoviário se afirmava, e a Ilha-capital servia de escala técnicapara vôos de empresas européias, que ligavam Buenos Aires aoRio de Janeiro e à Europa. O rádio, o cinema (mudo) e o telefoneestavam chegando. O sentimento de integração ao País e aomundo era uma realidade.

A rede escolar pública começava a se expandir, garantindoensino de qualidade nas vilas e cidades. Em 1917, começou afuncionar em Florianópolis o Instituto Politécnico, primeiraexperiência de Ensino Superior no Estado. Em 1932, criou-se aFaculdade de Direito, embrião da futura Universidade Federal.A preocupação com o capital humano gradativamentetransforma-se numa imposição para os administradores.

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Na região do Contestado, a E.F. SP—RS propiciava osurgimento de diferentes cidades e atraía descendentes deimigrantes que originalmente haviam se localizado no Rio Grandedo Sul, e europeus que, vitimados pelas agruras da PrimeiraGuerra Mundial, procuravam novas terras para refazer suas vidas.Diversas empresas colonizadoras foram organizadas, com oobjetivo de explorar os recursos florestais disponíveis, madeirase erva-mate e, simultaneamente, comercializarem lotes destinadosà fixação de colonos. Logo, a produção de grãos e de suínoscresceu, permitindo o surgimento das primeiras indústrias delaticínios que tinham como referência os mercados consumidoresde São Paulo e Rio de Janeiro.

Nos vales litorâneos, a economia estava centrada em empresasvoltadas para a produção têxtil, madeireira e metalúrgica. No sul,predominava a exploração do carvão. No planalto, a pecuária e aextração madeireira dominavam os espaços das fazendas. Nolitoral, a produção pesqueira e a agricultura de subsistênciaestavam entrando em declínio. Emergiam em diferentes regiõesdo Estado novos atores, como o empresário e o operário. Asrelações de produção estavam mudando mais rápido, impondoque os trabalhadores encontrassem formas de organização e dereivindicação. As primeiras greves de operários aconteceram. Arepressão governamental era forte, tornando-se emblemático oepisódio em que os operários Fritz Koch e Georg Sterneck,juntamente com suas famílias, foram deportados para a Alemanhapor terem em 1920 incentivado uma greve numa empresa têxtil,em Blumenau.

U M G O V E R N A D O R V I S I T A O O E S T E

Em 1929, o governador Adolpho Konder resolveu empreenderuma viagem ao Oeste de Santa Catarina. Pretendia conhecer aregião e dar seguimento a uma série de iniciativas que objetivavama sua integração ao Estado. Não poucos correligionários tentaramdemovê-lo. O Oeste era visto como uma área bravia, desprovidade infra-estrutura e de segurança. A importância da presença dogovernador, contudo, foi vista como estratégica. Era momento

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de o governo se fazer presente e de submeter à sua autoridadealguns milhares de pessoas que viviam quase em completoisolamento e à margem do poder estadual.

A viagem implicou cumprir um longo trajeto, pois não haviaestradas que chegassem até o Extremo Oeste. Por isso, ogovernador e sua comitiva viajaram de automóvel, de trem, debarco e a cavalo. Foi quase um mês de viagem. Por onde passavam,eram recepcionados pelos detentores do poder local e por partedo povo, previamente reunido. Em muitos lugares, houvenecessidade de escoltas para garantir a chegada ao ponto dedestino. A insegurança ainda era a tônica nos ínvios caminhos. Aseqüência das peripécias vividas foi descrita com paixão porOthon Gama D’Eça e publicada sob o título Aos espanhóisconfinantes, ainda em 1929.

Tomado como empreendimento simbólico de exercício daautoridade, a viagem foi um sucesso. O Oeste finalmente estavasendo incorporado. A “bandeira de Konder”, como ficouconhecida a comitiva do governador, em suas andanças resolveudiferentes problemas práticos e, mais que isso, espargiufartamente os incensos da nacionalidade e da inteireza do Estado.Em Iraí, cidade rio-grandense junto ao Rio Uruguai, AdolphoKonder conferenciou com o também governador Getúlio Vargas,resolvendo problemas de interesse das populações fronteiriças.Significativamente, os governadores eram identificados comopresidentes, numa reminiscência que vinha dos tempos doImpério e quando os Estados eram denominados Províncias.Ambos estavam afinados com a proposta modernizadora ecentralizada do Estado-nação, exercendo suas funções com vistasà afirmação cotidiana dos valores que julgavam fundamentais.Isso não evitou que, mais adiante, viessem a tomar posiçõespolíticas opostas.

Os discursos, as recepções, os churrascos e as afirmações delealdade e patriotismo foram muitos. Ao final da inusitadaviagem, o exercício da autoridade estava materializado de váriasmaneiras. Othon Gama D’Eça, significativamente, diz nos últimosparágrafos de seu relato:

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A bandeira regressa com as mãos cheias de esperanças e o coraçãocontente da proeza.

Para trás ficaram alguns amigos destemerosos e a terra bravia e lindade que ela tomou posse em nome do Brasil.

Caminhara através de serras duras e vales doces.Vira cidades orgulhosas e povoados humildes!Descera, em embarcações fragílimas, um rio violento e espumejante

de corredeiras!E, enfim, por trilhos tumultuosos, eriçados de todos os perigos,

atingira o extremo esquecido da Pátria.

O N A C I O N A L D I A N T E D O L O C A L

Os acontecimentos nacionais, em diferentes momentos,repercutiram em Santa Catarina. Assim, e num primeiro exemplo,nos anos 1920 o inconformismo com a estrutura política esocioeconômica do País levou à emergência do “tenentismo”, queaglutinou jovens militares e civis. Foi nesse cenário queaconteceram diferentes movimentos militares, entre eles a marchaliderada por Luiz Carlos Prestes pelo interior do Brasil. A “colunaPrestes”, como ficou celebrizada, atravessou Santa Catarina em1924, passando por Itapiranga, Mondaí e Descanso, numa buscafrustrada de uma alternativa de governo para o País.

Dessa sucessão de manifestações, que demonstravam adiscordância de certos segmentos da nação, surgiu a AliançaLiberal, que pregava reformas estruturais, entre elas o voto secretoe o repúdio à dominação política exercida pelos Estados de SãoPaulo e Minas Gerais, denominada, pejorativamente, “café comleite”.

A Aliança Liberal foi a base para a tomada do poder porGetúlioVargas em 1930. Santa Catarina participou dessemovimento de queda da Primeira República através de expressivaslideranças políticas, entre elas Vidal Ramos e Nereu Ramos.Paradoxalmente, a Aliança propunha o fim dos regionalismos edas oligarquias. Advogava, também, a instituição de novas relaçõesde produção, através da organização sindical e do fordismo. O localparecia estar sucumbindo em favor do nacional.

Ainda no cenário das dissensões políticas da PrimeiraRepública, em diversos momentos aparecem preocupações com

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o relativo isolamento das colônias formadas por imigrantes noSul do Brasil. Em algumas situações, intelectuais e políticoschegaram a falar de “quistos étnicos”, cobrando dos governosmedidas que levassem à assimilação desses contingentes. LauroMüller, expoente político catarinense, explicitou num arroubonacionalista que “quem nasce no Brasil ou é brasileiro ou étraidor”.

Foi nesse contexto que se deflagrou a “campanha denacionalização”, provocando constrangimentos a muitosimigrantes ou a seus descendentes. As escolas comunitárias foramfechadas. Jovens foram recrutados para prestar o serviço militarem outras partes do País. Quartéis do Exército foram instaladosem muitas cidades do Estado com o claro objetivo de integrar enacionalizar. A repressão promovida pelo governo foi forte, enão poucas famílias sofreram agressões físicas e morais, além deperdas materiais. A expansão do nazismo, o receio de controledo Sul do País pela Alemanha e a deflagração da Segunda GuerraMundial exacerbaram as perseguições. Alguns imigrantes e seusdescendentes chegaram a ser aprisionados. Muitos pais deixaramde falar seus idiomas de origem em suas casas ou abandonaramseus sobrenomes nos registros dos novos filhos. A auto-estima eo orgulho de ser descendente de imigrantes só foram recuperadosmuito mais tarde, e em particular através da afirmação das “festasregionais”.

O projeto do Estado nacional, centralizado e unitário, haviatomado um novo impulso na construção da brasilidade com ogolpe protagonizado por Getúlio Vargas em 1937. Pouco antes,os comunistas do País haviam sofrido grave revés após umatentativa frustrada de conquista do poder. O movimentointegralista seduzia intelectuais, políticos, trabalhadores e colonos.A ditadura de Vargas soube manipular as ambigüidades de seutempo, pretendendo desenvolver uma proposta de governo,simultaneamente, populista, nacionalista, moderna ehomogeneizadora.

Foi assim que, em março de 1940, Getúlio Vargas visitouBlumenau e Joinville. A intenção era reforçar a presença daautoridade, legitimando o projeto de Estado unitário e

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progressista. As recepções, os desfiles e as demonstrações depoder foram apoteóticos. Os discursos, dos subalternos e doditador, foram enfáticos ao ressaltar as qualidades e a dedicaçãoao trabalho dos descendentes de imigrantes. Os apelos à ordem,o respeito às autoridades constituídas e a paz foramsistematicamente reiterados. A visita era uma forma de ressaltara estrutura de poder e dos símbolos nacionais, justificando aintegração dos segmentos minoritários. Pretendia-se o Estado-nação monoétnico,unitário e culturalmente homogêneo. Mas issonão se concretizou, pelo menos da forma como imaginavam seusideólogos.

A implantação do Território Federal do Iguaçu, em 1943, foimais um arroubo do Estado centralizado. Muitos interessesparoquiais prevaleceram na elaboração da Constituição de 1937,imposta após o golpe. A previsão de criar um Território Federalpara administrar a antiga área do Contestado foi um deles. Tantoo Paraná como Santa Catarina foram prejudicados pela iniciativado poder autoritário. A queda do ditador em 1945 e a restauraçãodo regime democrático, com a conseqüente elaboração de umanova Constituição (1946), aniquilaram de vez a proposta doTerritório, recuperando-se os limites estabelecidos em 1917. OEstado de Santa Catarina assumia, assim, em definitivo, aconformação geográfica que conhecemos hoje.

O nacional não prevaleceu sobre o local. Santa Catarinaconseguiu se definir como um Estado que é um mosaico étnico-cultural. Sua população tem múltiplas origens, fazendo coexistirlado a lado as mais diversas tradições culturais e atividadeseconômicas. Nos 94.442 km² que formam a sua área territorial,prevaleceu a diversidade, e isso aconteceu ao arrepio das intençõese das investidas do Estado centralizado e homogeneizador.Paralelamente, até o final da ditadura Vargas, a modernidade foiassumida por quase todos os setores do cotidiano catarinense,demonstrando que as populações locais sabiam fazer suasescolhas.

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ENCONTROS DE ESTRANHOS ALÉM DO MAR OCEANO

Os povos indígenas ocupantes do que é hoje o território brasileiro sofreram impactos terríveis e crescentescom a chegada dos europeus a partir do século XVI. A

disseminação de doenças, a escravidão e a desorganização sociale econômica aniquilaram muito rapidamente a maioria dessespovos, que receberam com curiosidade e amizade os estranhos“brancos” que chegaram ao litoral desta parte do Atlântico.

O processo de dominação não foi uniforme e se estendeu pelosséculos seguintes, chegando aos nossos dias. Também não foidiferente do que ocorreu em outras partes da América. Contudo,não se pode deixar de enfatizar que, para algumas populações,foram os primeiros contatos com os “brancos” que determinaramo seu fim. Nesse sentido, se poderia dizer que, no século imediatoà chegada dos europeus à América, ocorreu o maior genocídioda história humana. O atual território do México, por exemplo,contava com uma população de 25 milhões de pessoas à épocada conquista. Por volta de 1650, contabilizavam-se nesse país cercade 120 mil “brancos”, 130 mil mestiços e 1 milhão e 270 milindígenas sobreviventes1. O Império Incaico, que atingia o Peru epartes dos atuais Chile, Bolívia e Equador, tinha uma populaçãode cerca de 20 milhões de indígenas. Dez anos após a conquistade Pizarro (1532), cerca de 4 milhões haviam sido mortos2.

Publicado anteriormente com alterações em: Os índios Xokleng: memória visual. Fpolis.:Ed. da UFSC/Univali/FCC, 1997; In: O homem do Sul, Fronteira: O Brasil meridional.RJ. Alumbramento, 1996. Esta versão foi publicada em Etnografia, Revista do Centrode Estudos de Antropologia, Lisboa, Portugal. V. 7, n. 2, 2003, p. 431-438.

1 BARTOLOMÉ, Miguel. Gente de costumbre y gente de razón: las identidades étnicasen México. México: Siglo, 1997. XXI – INI, p.25.

2 SANTOS, Sílvio Coelho dos. Nova História de Santa Catarina. 4.ed. Florianópolis:Terceiro Milênio, 1998. p. 37.

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Como exemplo dessa realidade dramática no Brasil, douatenção particular ao que aconteceu no que é hoje a Região Sul e,mais especificamente, às relações travadas entre os Xokleng e osdescendentes de europeus a partir do século XIX.

OS XOKLENG E A DRAMÁTICA EXPERIÊNCIA

VIVIDA COM OS “BRANCOS”

Durante séculos, os índios Xokleng dominaram as florestasque cobriam as encostas das montanhas, os vales litorâneos e asbordas do planalto no Sul do Brasil. Eram nômades. Viviam dacaça e da coleta. A Mata Atlântica e os bosques de pinheiros(araucária) forneciam tudo o que necessitavam para sobreviver.Caçavam diferentes tipos de animais e aves, coletavam mel, frutose raízes silvestres. E tinham o pinhão como um dos principaisrecursos alimentares.

O território que ocupavam não tinha contornos bem definidos.As rotas de perambulação eram freqüentadas de acordo com oseu potencial em suprir, através da caça e da coleta, asnecessidades alimentares do grupo. Mantinham uma disputasecular com os Guarani e os Kaingang para o controle desseterritório. Os Guarani dominavam extensa parte do planalto, asmargens dos rios que integram as bacias do Paraná e do Paraguaie o litoral. Os Kaingang eram senhores das terras interiores doplanalto. Todos pretendiam o domínio dos fabulosos recursosprotéicos representados pelos bosques de pinheiros e a faunaassociada ao pinhão. Dessa forma, os Xokleng tinham nas florestasque se localizavam entre o litoral e o planalto o seu território dedomínio e de refúgio. Ao norte, chegavam até a altura deParanaguá; ao sul, até as proximidades de Porto Alegre; aonoroeste, dominavam as florestas que chegavam até o Rio Iguaçue aos campos de Palmas.

Entre excursões de caça e coleta, a vida fluía. Os homensfabricavam arcos, flechas, lanças e diversos outros artefatosnecessários ao cotidiano. As mulheres teciam com fibra de urtigamantas que serviam de agasalho nas noites de inverno; cuidavamdas crianças; faziam pequenas panelas de barro e cestos de taquara

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para a guarda de alimentos; limpavam animais e aves; cuidavamdo preparo da comida; colhiam, estocavam e maceravam o pinhãoe com ele faziam um tipo de farinha; cozinhavam ou moqueavampeças de carne dos animais abatidos; preparavam bebidasfermentadas com mel e xaxim. Quando o grupo se deslocava, asmulheres carregavam toda a tralha doméstica. As crianças iamsendo socializadas na vida cotidiana do grupo, num processocrescente de aprendizado que lhes deveria garantir asobrevivência futura. O mundo dos Xokleng não era um paraíso,como muitos podem imaginar. Era um mundo de forteinterdependência com a natureza. Os sucessos alcançados eramconseqüência do esforço individual e coletivo, e baseados nossaberes que diversas gerações haviam desenvolvido paraaproveitar aquele espaço ecológico que elegeram como o seuhábitat. As doenças eram raras. O frio do inverno e as chuvaseram enfrentados como fatos da natureza. Os acampamentos nãopassavam da construção de simples pára-ventos, aproveitandoramos de árvores que eram devidamente arqueados e cobertosde folhas de palmeira. Outras vezes, se o tempo era favorável,dormiam ao relento. O fogo, aceso toda a noite, a todos aquecia.

Os Xokleng formavam um povo. Tinham língua, cultura eterritório que os diferenciavam dos outros povos indígenas, taiscomo os Guarani e os Kaingang. Viviam separados em grupos,que quase sempre mantinham disputas entre si. A família, o sexo,o nascimento de crianças, a vida em grupo, a parceria nasatividades de caça e coleta, a divisão dos alimentos entre todos,as festas, as disputas e a morte faziam parte do cotidiano. Nãotinham uma autodenominação específica. Identificavam-se a sipróprios como “nós” e a todos os demais estranhos como os“outros”. O nome Xokleng é apenas uma palavra de seuvocabulário pela qual eles foram identificados na literaturaantropológica. Regionalmente, continuam a ser os botocudos, emconseqüência do uso pelos homens de um enfeite labial,denominado tembetá, ou os bugres, termo pejorativo tambémdado pelos brancos3.

3 Além de Xokleng, botocudo e bugre, há na literatura as denominações Xokrén,

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Darcy Ribeiro conta, em seu livro Os índios e a civilização4, queouviu de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, responsável pelacontatação dos Xokleng no Alto Vale do Itajaí, uma narraçãomítica de como os índios haviam travado o primeiro contato como homem branco. Durante uma expedição de caça, alguns índiosobservaram uma trilha diferente, na qual o mato estava cortadode forma nova e estranha, em relação à prática indígena desimplesmente afastar ou torcer os ramos que dificultam acaminhada na floresta. Curiosos, adiante se depararam com otronco de uma árvore cortada pelo mesmo processo. Seguirampela picada acautelados, em direção a uma praia. Ali, observaramrastros estranhos. Algumas pegadas se dirigiam para o maradentro, enquanto outras acompanhavam a linha da praia.Continuando a investigação, cada vez mais curiosos e sempreprotegidos pela vegetação da orla costeira, descobriram aoanoitecer um acampamento. Discutiram sobre quem seriam osestranhos que de longe observavam. Depois de muitasinterrogações, decidiram atacá-los para se apropriarem dosinstrumentos cortantes, que permitiam enorme facilidade no cortede arbustos e árvores. Durante a madrugada, assaltaram a barracaimprovisada e mataram seus ocupantes. A seguir, puseram-se aexaminar o que ali havia. Logo, descobriram um machado, algunsfacões e umas tantas facas. Ao amanhecer, ansiosos, examinaramdetalhadamente os cadáveres daqueles seres cabeludos ebarbados. Tiraram suas roupas com cuidado, para observar seuscorpos peludos. As botinas, responsáveis pelos estranhos rastros,foram minuciosamente analisadas, bem como suas roupas.

Aweikoma e Kaingang para designar este grupo indígena. Nenhuma dessasdesignações têm fundamento numa autodenominação do grupo. Foram termosconsagrados pelos brancos. Xokleng é o termo pelo qual o grupo aparecesistematicamente na literatura antropológica. Botocudo é um termo de designaçãopós-contato, que é aceito pelos índios. Entretanto, hoje, alguns índios procuramoutra autodesignação, preferindo o termo “lacranon”, que quer dizer “povo ligeiro”ou “povo que conhece todos os caminhos”, conforme informações fornecidas peloprofessor Namblá Gakrã ao antropólogo Flávio Wiick. Lingüisticamente, os Xoklengfiliam-se ao grupo Kaingang e ao macrogrupo Jê. Destaco, ainda, que, por umaconvenção estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia, os termosindígenas são grafados somente no singular, como por exemplo, os Xokleng.

4 RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 318-320.

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Colocaram alguns dos mortos de pé, apoiados em alguns paus, ede longe cogitaram sobre a possibilidade de serem esses “outros”seres humanos verdadeiros. A certa altura, se deram conta dequestões que não podiam responder. Separaram os instrumentoscortantes e queimaram todo o resto. A seguir, voltaram aoencontro do grupo principal, carregados com os instrumentos deferro e cheios de novidades. As demonstrações entusiásticas dopoder do machado e das facas a todos envolveram. Muitasdisputas logo ocorreram por sua posse. E não poucos começarama incursionar pelo litoral, pretendendo encontrar novosacampamentos daqueles seres estranhos, senhores de preciososinstrumentos cortantes.

Os artefatos de ferro chegaram, assim, aos Xokleng, sem quede fato houvesse contato direto entre eles e os novos homens queestavam chegando ao seu território. Diligentes, os indígenas logoadaptaram os instrumentos de ferro dos brancos às suas armastradicionais. As pontas de flecha feitas com madeira endurecidaao fogo, ou com lascas de pedra, foram em parte substituídas porpontas de ferro. A forma, entretanto, dessas pontas foi mantida.Com as lanças, ocorreu o mesmo. As enormes pontas de madeiraforam substituídas por similares de ferro.

Foices e outros instrumentos dos brancos foramcuidadosamente reelaborados para alcançarem a forma desejada.Um trabalho paciente para quem não dominava as técnicas deforja e do ferro batido. O resultado, entretanto, era compensador.O ferro deu aos Xokleng, muito tempo antes da “pacificação”,uma nova superioridade, tanto para as atividades de caça comopara a guerra.

O ferro foi, assim, um atrativo para os índios se aproximaremdos “brancos”. Observá-los a distância, objetivando o encontrode oportunidade para se apropriarem de suas ferramentas, passoua ser uma maneira de os Xokleng “pesquisarem” o cotidianodaqueles seres que, para eles, continuaram sendo muito estranhose, provavelmente, não humanos.

Proclamada a Independência (1822), o Brasil passou a favorecera imigração de europeus. No Sul, foram criadas diversas colôniasoficiais. Também foram feitas concessões para empresas privadas,

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que assumiram o compromisso de promover a localização deimigrantes. No Rio Grande do Sul, os primeiros imigrantesalemães chegaram a São Leopoldo (1824). Em Santa Catarina, acolonização começou em 1829, em São Pedro de Alcântara,próximo a Florianópolis. No Paraná, imigrantes começaram a serlocalizados no Rio Negro a partir de 1829.

Os governos provinciais e monárquico estavam interessadosna ocupação das terras localizadas entre o litoral e o planalto. Osvales litorâneos, cobertos com exuberantes florestas, e as encostasdo planalto até então não haviam sido explorados. Toda essa áreaera considerada como desabitada, embora há muito se soubesseda presença ali de indígenas. A idéia de um “vazio demográfico”prevaleceu nas decisões oficiais.

Toda essa área, em que os imigrantes começaram a serlocalizados, era território tradicional dos Xokleng. Esses índiosforam envolvidos, simultaneamente, pelas frentes de colonizaçãoque se instalaram no Rio Grande, em Santa Catarina e no Paraná.Suas condições de sobrevivência ficaram, assim, ameaçadas. Osimigrantes, por sua vez, enfrentaram diferentes problemas emseu processo de adaptação. Em muitos casos, as terras eraminadequadas. Muitas colônias não dispunham de infra-estruturamínima que garantisse o escoamento da produção. Ocorreramproblemas de inadaptação ao clima, devido ao calor e à umidade,e ao domínio de novas formas de cultivo. Não poucos fracassaram.Outros abandonaram as colônias, indo para os centros urbanosem busca de melhores condições de trabalho.

Intensificando-se a colonização em Santa Catarina, com ainstalação das colônias Blumenau (1850) e Joinville (1851), a cadadia mais terras eram tomadas aos Xokleng. A partir de 1870,começaram a chegar italianos. Diversas colônias foram abertastambém no sul do Estado, como Urussanga e Nova Veneza. Afloresta dava lugar às cidades, às estradas, às propriedades decolonos, com seus pastos e roças. Não poucos foram osempreendimentos madeireiros. Os estoques de caça e outrosrecursos alimentícios que a floresta proporcionava, como opalmito e o pinhão, foram logo disputados pelos recém-chegados.À falta de como prover suas necessidades alimentares, os

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indígenas passaram a assaltar as propriedades dos colonos. Ou aatacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito. Neste contexto,a violência se exacerbou. A terra estava sendo usurpada ao índiopela força. Os governos tinham seus interesses. As companhiasde colonização, também. É fácil compreender, portanto, que emmuitos casos tanto o índio como o colono foram vítimas.

O território tradicional dos Xokleng foi, então, objeto de umplano de ocupação sistemático e irreversível. Os governos e ascompanhias de colonização estavam em acordo, inclusive, quantoà conveniência de minimizar a presença indígena. Diziam que osíndios viviam no distante sertão e que, esporadicamente, faziamincursões às florestas e aos vales litorâneos. Para os colonos, aexistência de índios nas terras que estavam adquirindo era maisdo que uma surpresa. Era um fator de risco, de insegurança. Ocenário para a ocorrência de acontecimentos trágicos, emparticular para os índios, estava montado.

As notícias sobre a presença dos Xokleng nas áreas que estavamsendo cogitadas para o estabelecimento de imigrantes eram doconhecimento tanto dos governos monárquico e provincial comodos interessados nos negócios da colonização. Em 1808, logo apósa chegada de d. João VI ao Brasil, foi emitida uma Carta Régiadeterminando que se fizesse guerra aos índios que faziamincursões nas cercanias de Lages. Em seguida, em 1814, em Caldasda Imperatriz, nas proximidades de Florianópolis, aconteceu umataque dos índios aos milicianos do rei que guardavam aquelastermas. O fato foi devidamente registrado numa placa de bronzecolocada no local. Depois, em 1836, registrou-se um ataque nasproximidades de Camboriú. Outras notícias sobre conflitos comíndios apareceram, nessa época, esparsas em toda a Região Sul.

Visando a dar segurança aos colonos que chegavam, o governoprovincial criou uma “companhia de pedestres” (Lei n. 28, de25/4/1836). A iniciativa governamental, entretanto, poucoadiantou. Os indígenas dominavam um extenso território. Osencontros com os brancos eram ocasionais, e não havia como umapequena tropa assegurar tranqüilidade no sertão. Na verdade, oterritório indígena estava sendo invadido, e os índios reagiam àpresença dos imigrantes. O estabelecimento de critérios que

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assegurassem aos índios os espaços territoriais de quenecessitavam para sobreviver não interessava, evidentemente, aosgovernos e aos mandatários dos negócios da colonização.

Logo após a instalação da Colônia Blumenau, aconteceu umepisódio singular e que bem exemplifica como eram difíceis aspossibilidades de entendimento entre os índios e os recém-chegados. Operários que terminavam a casa do dr. Blumenau,onde hoje é o Bairro da Velha, no dia 28 de dezembro de 1852,foram surpreendidos com a presença de alguns índios nasimediações da residência. Certamente, logo pegaram suas armase gritaram, em alemão, para que os índios se afastassem. Comotal não aconteceu, pois os índios nada entendiam da língua dosbrancos, e estavam muito curiosos e entretidos com as plantações,equipamentos e instalações no entorno da casa, os trabalhadoresem seguida deram alguns tiros para assustá-los. Como resultadodo “susto”, no dia seguinte um índio foi encontrado desfalecidoem conseqüência de ferimento à bala. Logo depois, este índiomorreu.

Este episódio foi objeto de cartas enviadas ao dr. Blumenau,que neste momento se encontrava na Alemanha, com o registrode que algumas flechas foram encontradas nas cercanias e de quea perseguição aos “bugres” foi interrompida por já ser noite.Informava-se, também, que o índio morto era robusto, tinhaaproximadamente 20 anos e usava, no lábio inferior “um pedaçode madeira, característico da tribo dos botocudos”5. Denota-sedeste episódio que os imigrantes sabiam da existência dos índiose que a sua segurança era dada pelo uso continuado de armas defogo, em particular espingardas.

À medida que o número de colônias foi aumentando, a reaçãoindígena foi sendo noticiada com maior intensidade. Algunscolonos foram atacados, e uns poucos, mortos. Em contrapartida,aumentou a violência contra os índios. Os colonos reclamavam

5 Essa carta ao dr. Blumenau foi escrita pelo prof. Ostermann (cf. Blumenau emCadernos, tomo IX, n. 9, 1970). O dr. Fritz Müller também enviou uma carta ao dr.Blumenau, comentando o episódio. Veja-se SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios ebrancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis:Edeme, 1973, p. 61-62.

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continuamente da falta de segurança nas colônias e, em certassituações, ameaçam abandonar seus lotes. Em 1856, o presidenteda Província, dr. João José Coutinho, em sua “falla” à Assembléia,dizia “que a única maneira realmente eficaz seria obrigar estesassassinos e filhos de bárbaros deixarem a floresta, localizando-os em lugares dos quais não pudessem fugir”6. Ainda nesse ano,o dr. Blumenau reclamava que a Companhia de Pedestres, à épocacom 70 homens, estava mal equipada. A “tropa” acabou sendodissolvida em 1879 por falta de verbas para mantê-la.

Os governos do Império e da Província também tentaramestimular os trabalhos de catequese dos índios. Em 1868, os padrescapuchinhos Virgílio Amplar e Estevam de Vicenza foramcomissionados para iniciar trabalhos de catequese em Lages eItajaí. Em 1885, o Ministério da Agricultura encarregou o frei Luizde Cimitile, antigo missionário de aldeamentos indígenas noParaná, para se estabelecer em Santa Catarina. O frei recebeualguns recursos financeiros concedidos pelo Ministério, mas nãoteve êxito em sua missão. As tentativas de catequese, entretanto,continuaram.

Simultaneamente, outros esforços foram feitos para aldear osíndios. Grupos de “batedores do mato” foram organizados emdiversas colônias. Em Blumenau, Frederico Deeke, que chefiavauma dessas turmas, foi credenciado pelo dr. Blumenau paraprocurar e contratar um intérprete que facilitasse o contato comos índios. Este experimentado desbravador conseguiu contratartal auxiliar, porém contatos amistosos, não conseguiu. Uma outratentativa de aldeamento foi feita em Papanduva pelo sertanistaJoaquim Francisco Lopes em 1877. Pelo que se sabe, nenhum índiofoi atraído.

As expedições de vingança ao interior do sertão para revidarataques cometidos pelos indígenas eram conhecidas no Brasildesde os tempos coloniais. As colônias e o governo provinciallogo começaram a organizar e remunerar grupos armados que

6 “Falla” é o mesmo que relatório ou, atualmente, “mensagem” à Assembléia. Nestecaso, trata-se da “falla” do dr. João José Coutinho, de 1856, conforme SANTOS,1973, p. 65.

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adentravam na floresta com o intuito de dizimar os índios emseus acampamentos. A justificativa oficial era afugentar osindígenas para longe dos lugares habitados7. As palavras“bugreiro”, “caçadores de índios”, “tropas” e “montarias” logocomeçaram a aparecer nos documentos oficiais e no noticiáriodos jornais.

Na “falla” à Assembléia de 1876, o presidente da Província,João Capistrano Bandeira de Mello Filho, informava:

Em alguns pontos da Província, como na Barra Velha, vila deJoinville, Costa da Serra, Curitibanos e Colônia Militar Santa Tereza,houve diversas correrias dos selvagens, algumas dellas seguidas defunestas conseqüências, sendo elles enérgicamente repellidos, já peloshabitantes, a defenderem o lar das violências que o assaltavão, e já peloacêrto das medidas empregadas pelas autoridades.

Nessa mesma “falla”, em anexo, o chefe de Polícia da Provínciaapresentava seu relatórios, esclarecendo sobre os indígenas que“na Barra Velha e Villa de Joinville o aparecimento deles, em osmezes de Janeiro e Fevereiro, poz em alarma os moradores dessesdistrictos; saindo, porém, d’entre estes alguns homens mateiros,embrenharão-se nas matas e afugentaram os selvagens 8”.

Pouco antes, em 3/1/1874, o jornal Kolonie Zeitung, de Joinville,noticiava que havia partido no dia 28 de dezembro de São Bentoa maior expedição aprovada pelo presidente da Província paracombater os “bugres” que circulavam nas imediações de Joinvillee Blumenau. A expedição era formada por 31 homens e dirigidapelo vaqueano João dos Santos Reis.

E em 1880, o governo provincial relatava à Assembléia, com amaior simplicidade, que “para afugentar (os índios) tomei asmedidas de costume: recorri aos battedores de matto”9.

O noticiário telegráfico do Jornal do Comércio (Florianópolis)do ano de 1883 dá-nos vários exemplos referentes à autorizaçãode despesas pelo governo para o extermínio indígena. Em 22 defevereiro,

7 “Falla” do presidente da Província João Tomé da Silva. In: SANTOS, op. cit., p. 79.8 Ibidem, p. 79.9 Ibidem, p. 80-81.

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Ao Exmo. Sr. Coronel Vice-Presidente da Província, n. 39,solicitando, em vista do ofício do delegado de Tubarão, que S. Excia.dignou-se enviar a esta chefia [...] autorização para que seja despendidaa quantia de 200$000 rs com o serviço de afugentar os indígenasdaquela paragem [...].

Dia 23 do mesmo mês, ainda dirigido ao vice-presidente, como no 41, “propõe esta chefia a S. Excia. se digne autorizar odispêndio de 300$000 rs [...] no pagamento de vaqueiros quebatam as matas e afugentem os selvícolas”. No dia 24, outrotelegrama dirigido ao delegado de S. Francisco autoriza despesascom batedores de mato para “garantir a população dos assaltosdos selvagens no Jaraguá”10. E a lista prossegue, dando-nos idéiada chacina que ocorria no sertão.

Em 5 de junho de 1904, o Jornal Novidades (Itajaí) comentamatéria publicada no Blumenau Zeitung sob o título “Como seciviliza no século vinte”. Neste texto, o jornal de Blumenaudenuncia as atrocidades cometidas pela turma incumbida pelogoverno para “afugentar” os índios11.

As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, de 8 a 15homens. A maioria deles era aparentada entre si. Atuavam sob ocomando de um líder. A quase totalidade dos integrantes dessesgrupos eram “caboclos”, que tinham grande conhecimento sobrea vida no sertão. Atacavam os índios em seus acampamentos, desurpresa. Às vítimas, poucas possibilidades havia de fuga.

O mais conhecido bugreiro em Santa Catarina foi MartinhoMarcelino de Jesus, ou Martinho bugreiro. Nascido por volta de1876, em Bom Retiro, trabalhou em Taquaras na fazenda do majorGeneroso de Oliveira. Depois do casamento, morou com os sogrosna Serra da Boa Vista. A seguir, mudou-se para Caeté, nomunicípio de Alfredo Wagner, voltando depois a morar em BomRetiro, no Distrito de Catuíra. Dedicava-se à criação e ao comérciode gado. Foi nessa condição de criador, isto é, pequeno fazendeiro,que começou a atender a pedidos de particulares e do governopara “afugentar” os índios. Volta e meia, estava em Florianópolis,

10 Ver SANTOS, op. cit., p. 84-5.11 Ibidem, p. 84-85.

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prestando contas ao governo. No início do século, comandoudiversas expedições no Vale do Itajaí. Em algumas de suas estadasem Blumenau, foi fotografado com sua turma e suas vítimas.

Para dar segurança aos colonos que se fixavam em Ituporangae Barracão, foi nomeado gerente da Cia. Colonizadora SantaCatarina por seu diretor, coronel Carlos Poeta. Entre 1923 e 1928,Martinho esteve a serviço do agrimensor de terras Carlos MiguelKoerich, que fazia seu trabalho nas regiões de Barracão,Anitápolis, Esteves Júnior, Angelina e Brusque. Participou contraa Revolução Constitucionalista de 1932, oportunidade em que,estando aquartelado em Itararé, deu um depoimento dizendo queem Santa Catarina “tinha liquidado muitos bugres”12.

Segundo um depoimento que obtive do bugreiro IrenoPinheiro, em 1972, na localidade de Santa Rosa de Lima,afugentavam-se os índios

...pela boca da arma. O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois, passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nembananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes,para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matartodos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança. Quando foram acabando, ogoverno deixou de pagar a gente. A tropa já não tinha como manter as despesas.As companhias de colonização e os colonos pagavam menos. As tropas foramterminando. Ficaram só uns poucos homens, que iam em dois ou três pro mato,caçando e matando esses índios extraviados. Getúlio Vargas já era governo,quando eu fiz uma batida. Usei Winchester. Os índios tavam acampados numgrotão. Gastei 24 tiros. Meu companheiro, não sei. Eu atirava bem 13.

No sul do Estado, Natal Coral, Maneco Ângelo e um talVeríssimo, entre outros, tornaram-se famosos como líderes das“batidas” e pela violência com que assaltavam os acampamentosdos índios.

Bugreiro ou, mais explicitamente, o caçador de índios foi assimuma profissão criada e necessária ao capitalismo em expansãonesta parte da América.

12 Ibidem, p. 89-91.13 De acordo com o texto de SANTOS, Sílvio Coelho dos. “Bugreiro”, elaborado para a

exposição do artista plástico Elvo Damo intitulada, “Xilos”, Curitiba, 1979.

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A violência que acontecia no interior do sertão repercutiu naimprensa, nas áreas urbanas e, também, no exterior. Um longodebate ocorreu. Muitos tinham a opinião de que os índios eramum obstáculo ao progresso do País e que deveriam ser,simplesmente, eliminados. Esses, na verdade, assumiampublicamente uma prática que vinha acontecendo de maneira àsvezes camuflada, outras vezes aberta, desde os tempos da Colônia.Isto é, o genocídio indígena. Outros, mais generosos, defendiamo fim da carnificina, da violência. Esses humanistas justificavamsua posição dizendo que os indígenas eram seres humanos e,como tais, tinham o direito à vida e ao convívio com a civilização.

Em Santa Catarina, este debate se acentuou no início do séculoXX, quando foi fundada em Florianópolis, no ano de 1906, a LigaPatriótica para a Catechese dos Selvícolas. A Liga eraconseqüência do esforço do então major-engenheiro Pedro MariaTrompowsky Taulois, positivista e maçom, para dar fim àviolência contra os índios, tendo o apoio de um pequeno grupode políticos, humanistas e intelectuais. Gustavo Richard, entãogovernador, foi escolhido seu presidente de honra.

A Liga se envolveu forte no debate que acontecia na imprensa,opondo-se às investidas que o jornal Der Urwaldesbote, editadoem Blumenau, fazia contra os índios.

Ainda em 1906, Taulois convidou o naturalista e etnógrafotcheco Albert Vojtech Fric14 para assumir a “pacificação” dosXokleng. Fric fazia a sua terceira viagem à América do Sul econhecia a violência que era cometida contra os índios pelosgovernos e companhias de colonização. Era também umhumanista. Sua chegada a Florianópolis e, depois, a Itajaí,Blumenau, Curitibanos e Palmas foi devidamente noticiada. Ojornal Der Urwaldesbote publicou diversos artigos criticando osobjetivos de Fric e da Liga, bem demonstrando o cenário deinsegurança que dominava os colonos.

Fric resumia seu projeto numa aproximação pacífica com osXokleng com o apoio de índios Kaingang; na reserva de uma área

14 Fric é grafado corretamente com um pequeno “v” sobre a letra “C”. Deve-se pronunciar“Fritch”, de acordo com STAUFFER, 1960, p.169.

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suficiente para os indígenas terem condições de sobrevivência; napunição das caçadas e negócios de escravos feitos pelos bugreiros;na devolução das crianças capturadas aos seus pais; e na práticada compreensão e da crença no progresso humano. Fric, entretanto,acabou regressando à Europa sem ter colocado em prática seuplano, pois havia sido descredenciado de sua condição derepresentante do Museu Real Etnográfico de Berlim, e perdeu seuvínculo com o Museu Etnográfico de Hamburgo. Tudo indica queisto aconteceu por pressões exercidas pelas companhias decolonização alemãs que atuavam em Santa Catarina.

Foi no cenário do XVI Congresso Internacional deAmericanistas, realizado em Viena, em 1908, que Fric reapareceu.Apresentou um extenso trabalho sobre as iniqüidades que sepraticavam contra os indígenas no Sul do Brasil em nome dacolonização e do “progresso”. Denunciou que a “colonização seprocessava sobre os cadáveres de centenas de índios, mortos semcompaixão pelos bugreiros, atendendo os interesses decompanhias de colonização, de comerciantes de terras e dogoverno”. E finalizou, solicitando que o Congresso “ protestassecontra estes atos de barbárie para que fôsse tirada esta manchada história da moderna conquista européia na América do Sul edado um fim, para sempre, a esta caçada humana”15.

As denúncias de Fric repercutiram na imprensa européia. NoBrasil, a questão tornou-se motivo de amplo debate, quando oprof. Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, tentourefutar as declarações do etnógrafo tcheco. Ihering disse naocasião, referindo-se aos Kaingang de São Paulo, que “os índiosnão representam um elemento de trabalho e progresso” epropunha o seu extermínio16.

O nacionalismo embrionário da Velha República, inspiradono positivismo, recolocava a questão indígena comoresponsabilidade do Estado. A discussão se espalhou pelo País, eo governo da República acabou criando, em 1910, o Serviço de

15 STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do serviço de proteção aos índios. In:Revista de História, n. 37 e seguintes. São Paulo, 1959/1960. Neste caso, 1960 169-

172.16 STAUFFER, op. cit., p. 177; SANTOS, 1973, p. 116-120.

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Proteção aos Índios (SPI). Os ideais de Fric, de Taulois e da “Liga”,afinal, prevaleceram.

Logo após ter sido criado o SPI, o general Cândido Marianoda Silva Rondon designou o tenente José Vieira da Rosa para atuarcomo Inspetor em Santa Catarina. A idéia era estabelecer a pazno sertão, eliminando-se as ações violentas dos bugreiros. Aosíndios, pretendia-se demonstrar que havia intenção do governoem estabelecer um contato amistoso. As dificuldades a vencereram muitas, e logo o novo Serviço começou a receber inúmerascríticas. Os índios prosseguiam em seus ataques às propriedadesdos brancos, em busca de alimentos e ferramentas. As açõesdeflagradas por Vieira da Rosa mostraram-se insuficientes paraconter os indígenas e evitar as pressões exercidas pelas colônias.As representações diplomáticas da Itália e da Alemanha exigiamque o governo brasileiro garantisse a segurança dos imigrantes.A direção do SPI resolveu, então, dar mais atenção à Região Sul,instalando “postos de atração” em diferentes pontos do Vale doItajaí e na região do Rio Negro (Porto União), onde os índioshaviam atacado os operários que construíam a estrada de ferroSão Paulo—Rio Grande e ameaçavam imigrantes que estavamsendo instalados ao longo da linha férrea. A equipe de sertanistasfoi ampliada, e o próprio vice-diretor do órgão, Manoel Miranda,se deslocou para Ibirama para incentivar os trabalhos e obter dasautoridades locais o apoio e a compreensão necessários ao êxitodos sertanistas.

Nas vizinhanças do Rio Negro, à época sob jurisdição doParaná, em 1912, Fioravante Esperança, sertanista do SPI, logroua aproximação com um subgrupo Xokleng. Poucas semanasdepois, entretanto, devido à presença no “posto de atração” deum grupo de fazendeiros que costumava perseguir os índios,ocorreu uma tragédia. Os índios, desconfiados, cercaram osvisitantes e a equipe do sertanista, e os massacraram. FioravanteEsperança tentou, inutilmente, demover os índios de seu intento,morrendo sem fazer uso de suas armas. Depois, os indígenasfugiram para a mata e só voltaram a aceitar o convívio com outrogrupo do SPI em 1918.

No Alto Vale do Itajaí, os trabalhos de atração prosseguiram.

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Em 1914, uma pequena equipe de funcionárioss do SPI, lideradospelo jovem Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, conseguiufinalmente estabelecer o contato pacífico com os Xokleng. Hoerhanmantinha “postos de atração” nos Rios Plate e Krauel, afluentesdo Hercílio. Alguns índios Kaingang e experimentados mateiroscolaboravam nas tarefas de atração. Presentes eram colocados emdiferentes pontos nas trilhas nas quais a presença indígena eradetectada. No entorno dos postos, roças foram feitas visando aoferecer alimentos para os índios. Nas torres de vigia, gramofonestocavam diferentes músicas. Intentava-se demonstrar aos índiosque os ocupantes daqueles postos estavam dispostos a umrelacionamento pacífico.

Finalmente, em 22 de setembro, Hoerhan, num ato de coragem,atravessou nu e desarmado o espaço de uma clareira às margensdo Plate e confraternizou com os índios. A “pacificação” estavaem marcha, na versão dos brancos. Para os Xokleng, entretanto,eles é que estavam conseguindo “amansar” Hoerhan e seuscompanheiros. Isto era razão das contínuas exigências que faziamaos servidores do SPI.

As ações do SPI não foram estendidas para outras regiões doEstado. No sul, os bugreiros continuaram dizimando osintegrantes de um terceiro subgrupo Xokleng. Desse subgrupo,há notícias de que uns poucos sobreviventes arredios ao convíviochegaram até os anos 1970, refugiados nas encostas da Serra Gerale na Serra do Tabuleiro.

Em Ibirama, apesar de todos os cuidados de Hoerhan, osXokleng começaram a vivenciar a trágica experiência do convíviocom os brancos.

Estabelecido o contato pacífico com os índios, era necessáriocriar as condições para garantir a sua sobrevivência. Isto nãoaconteceu. Na verdade, o SPI tinha adquirido experiência de comoefetivar a atração. Sabia que a reserva de terras era fundamental,bem como o estabelecimento de um clima de confiança e de apoiopara atender os indígenas em suas necessidades mais imediatas.Mas dificuldades de toda ordem dificultaram a compreensão docomplexo quadro que se iniciava, quando um grupo indígenaestabelecia o convívio com representantes da sociedade nacional.

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Os ideais positivistas de Rondon e de seus companheiros logo serevelaram insuficientes para atender à realidade crua que emergiado contato. Não existiam conhecimentos científicos, especialmentenas áreas de Antropologia e Biologia, para orientar sobre o quefazer. Hoje, também é relativamente fácil compreender que o SPIhavia surgido para atender aos interesses da sociedade nacional,e não dos indígenas17. À época dos acontecimentos de que estamostratando, porém, esta compreensão era quase impossível.

De início, Hoerhan tentou atender os indígenas em suasnecessidades mais imediatas. Preocupado com a segurança dosíndios, tratou de mantê-los próximos ao posto de atração. Paratanto, precisava alimentá-los. A aquisição de gado, entretanto,dependia de verbas, e essas eram escassas. Para manter osindígenas no local em que ocorreu a atração, na confluência dosRios Plate e Hercílio, foi necessário iniciar uma longa discussãocom o governo do Estado e com a Cia. Colonizadora Hanseática,que havia adquirido tal área de terras do Estado.

Paralelamente, a gripe, o sarampo, a coqueluche, a pneumonia,as doenças venéreas, etc., começaram a fazer suas vítimas entreos indígenas. Além da falta de recursos para a aquisição demedicamentos, não havia corpo médico disponível para socorreros índios. Hoerhan teve que assumir, também, a condição de“prático” nessa área. A alimentação dos índios passou a sergarantida por produtos agrícolas. Isto, certamente, teve gravesimplicações na sua resistência às doenças endêmicas que atingiamo grupo. As incursões na floresta para a prática da caça, tão agosto dos índios, foi desestimulada para não deixá-los à mercêde alguma violência praticada pelos brancos que viviam noentorno da reserva. Os rituais de “furação” do lábio inferior dosjovens para a inserção do tembetá, de tatuagem das pernas dasmeninas e de cremação dos mortos foram proibidos por Hoerhanpara evitar as aglomerações que facilitavam a disseminação dasdoenças endêmicas. A desmotivação de vida e o desespero pelaperda dos parentes também afetaram profundamente ossobreviventes.17 Veja-se, por exemplo, SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder

tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.

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Em pouco tempo, a maioria dos indígenas havia morrido.Hoerhan tinha contatado, em 1914, aproximadamente 400 índios.Em 1932, quando o antropólogo Jules Henry começou extensotrabalho de pesquisa entre os Xokleng, só havia 106 índios18.

Isto desesperou a tal ponto o pacificador que, certa ocasião,disse: “se pudesse prever que iria vê-los morrer tãomiseravelmente, os teria deixado na mata, onde ao menosmorriam mais felizes e defendendo-se de armas na mão contraos bugreiros que os assaltavam”19.

A miscigenação entre os Xokleng e os índios Kaingang e osbrancos também aconteceu. Disto, resultaram inumeráveishierarquizações internas, contribuindo, em momentos de tensão,para a exacerbação do “faccionalismo” que caracteriza os povosJê, entre eles os Xokleng.

Tudo isto deve ser compreendido como um processo demudança. Os Xokleng foram levados a passar da condição decaçadores e coletores nômades para a situação de povo sedentárioconfinado numa reserva. As mudanças da vida cotidiana quevivenciaram não foram pequenas, da dieta alimentar, às roupas,às ferramentas, aos medicamentos industrializados, aoaprendizado de uma nova língua, às pressões religiosas, etc.Sofreram, ainda, a perda de sua autonomia, de sua liberdade deir e vir, sujeitando-se à tutela do SPI. Mas, por outro lado,revelaram-se bastante capazes para manter o grupo como umaunidade étnica diferenciada. Para tanto, reelaboraramcontinuamente diferentes aspectos de sua cultura tradicional, aomesmo tempo em que desenvolveram estratégias para continuara enfrentar os brancos como índios, como Xokleng.

Em 1967, o governo militar resolveu extinguir o Serviço deProteção aos Índios. Uma série de escândalos recentes,envolvendo, entre outros, a utilização do patrimônio indígena eo uso do índio como mão-de-obra escrava, orientou a decisão dopoder militar. Pretendia-se, com essa iniciativa, minimizar arepercussão que tais acontecimentos estavam tendo no exterior.

18 SANTOS, op. cit., p. 181. Ver também HENRY, Jules. Jungle people: a Kaingángtribe of the highlands of Brazil. N. York: J. J. Augustin Publisher, 1941.19 RIBEIRO, Darcy, op. cit., p. 316.

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Em substituição ao SPI, o governo criou a Fundação Nacionaldo Índio (Funai). A este órgão, foram acometidas todas asatribuições de defesa e tutela das populações indígenas no País,visando à sua “integração à comunidade nacional”.

Algumas mudanças paliativas logo foram feitas. Funcionáriosforam demitidos. Outros foram contratados, sendo muitos dessesmilitares da reserva. Também as denominações dos postosindígenas mudaram. Assim, o Posto Indígena Duque de Caxiaspassou a se chamar Posto Indígena Ibirama e, mais tarde, ÁreaIndígena Ibirama20.

Funcionárioss se sucederam na chefia do Posto. Estradas foramabertas no interior da reserva, permitindo a circulação de veículose pessoas. A população indígena intensificou, assim, seus contatoscom a sociedade regional.

A exploração dos recursos florestais disponíveis na áreaindígena foi uma conseqüência imediata. Primeiro, os indígenasforam estimulados a comercializar o palmito, atendendo às ofertasdas empresas dedicadas à fabricação de conservas. Depois,gradativamente, as madeiras nobres começaram a ser objeto dediferentes negociações, na maioria das vezes nada honestas. Aprópria Funai patrocinou muitos contratos, pois entendia que aárea indígena integrava o patrimônio da União, cabendo a ela,Funai, administrá-la visando à obtenção de recursos para que oórgão pudesse dar conta de “sua missão”21.

C O N C L U I N D O

A experiência de contato com os “brancos” foi altamentenegativa para os índios. Populações inteiras foram dizimadas,vítimas de doenças desconhecidas, do trabalho escravo, dadesorganização social e de guerras intestinas. A dúvida sobre acondição humana dos indígenas facilitou toda a sorte de violência

20 Ver sobre o funcionamento do posto indígena Ibirama em: SANTOS, Sílvio Coelhodos. A integração do índio na sociedade regional: a função dos postos indígenasem Santa Catarina. Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC, 1970.

21 Sobre a exploração florestal na AI., além de SANTOS, 1973, op. cit, ver MÜLLER,Sálvio. Opressão e depredação. Blumenau: Editora da FURB, 1987.

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HENRY, Jules. Jungle people: a Kaingáng tribe of the highlands of Brazil. N. York: J. J.Augustin Publisher, 1941.

MÜLLER, Sálvio. Opressão e depredação. Blumenau: Editora da FURB, 1987.SANTOS, Sílvio Coelho dos. A integração do índio na sociedade regional: a função

dos postos indígenas em Santa Catarina. Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC,1970

____. Bugreiro. In.:A revista do homem, n.9. Rio de Janeiro: abril, 1979. p. 92-94.____. Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. .

Florianópolis: Edeme, 1973, p. 61-62.SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e

formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do serviço de proteção aos índios. In: Revista

de História, n. 37. São Paulo, 1959/1960. p.169-172.

e espoliação. Mas também aconteceram relações amistosas,motivadas pela curiosidade de parte a parte. Em alguns casos,certas práticas da organização social indígena, como o“cunhadismo”, facilitaram as alianças com os “brancos” eincentivaram a miscigenação.

No Sul do Brasil, o processo de submissão dos Xokleng foitomado como paradigmático. Este processo, paradoxalmente, foisuficientemente documentado, em particular no que se refere àsações de extermínio promovidas por bugreiros. Os poucosindígenas que sobreviveram à experiência de convívio com os“brancos” lutam, hoje, em busca de espaços sociais e políticosque lhes garantam um mínimo de condições para assegurar suareprodução como grupo diferenciado.

Vê-se, pois, que para os povos indígenas a ocupação “branca”do território que hoje forma o Brasil foi uma catástrofe. Catástrofeirreversível, motivada por inovações tecnológicas e por aparatosideológicos que deram aos “brancos” um falso sentimento desuperioridade que, lamentavelmente, chega até os dias dopresente.

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A GERAÇÃO HÍDRICA DA ELETRICIDADE NO SULDO BRASIL E SEUS IMPACTOS SOCIAIS

No Brasil, a geração de energia elétrica é, essencialmente,conseqüência de aproveitamentos hidrelétricos. Opotencial instalável ultrapassa 280 GW. Em 1991, a

produção bruta total de energia elétrica atingiu 248,6 bilhões dekWh, dos quais cerca de 97% eram de origem hidráulica1. Cercade 20% da energia produzida é agregada a produtos destinadosà exportação, em particular o alumínio.

Organizada nos anos 1960, a Eletrobrás (Centrais ElétricasBrasileiras S.A.) desenvolveu políticas voltadas para aimplantação de grandes projetos hidrelétricos, dos quais ItaipuBinacional, Balbina, Sobradinho e Itaparica poderiam ser tomadoscomo exemplos. Exercendo seu papel de holding, a Eletrobrásatribuiu às suas subsidiárias as tarefas de execução dos projetosde geração. Em nível dos Estados, as empresas que foramintegradas ao sistema em tese deveriam ficar limitadas às tarefasde distribuição de energia. A centralização era assim compatívelcom as ambiciosas propostas “desenvolvimentistas” impostaspelos governos militares. Novas tecnologias desenvolvidas nosanos 1970 começaram a permitir a implantação de linhas detransmissão a longas distâncias, abrindo perspectivas para oaproveitamento de recursos hidráulicos em remotas regiões.

Foi neste contexto que a Eletrosul (Centrais Elétricas do Sul doBrasil S.A.) formulou, ainda nos anos 1970, um projeto para aexploração do potencial energético da bacia do Rio Uruguai, em

Conferência proferida no Departamento de Antropologia do ICSTE, Universidade deLisboa, 2005.

1 Plano Nacional de Energia Elétrica, 1993—2015, Eletrobrás, 1994, vol. l, p. 21.

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seu trecho nacional. Cerca de 22 aproveitamentos foram definidoscomo interessantes e passíveis de implantação. Era a primeiravez que no Brasil se formulava um projeto para o uso integral deuma bacia hidrográfica. A proposta pretendia racionalizar osaproveitamentos, considerando, entre outras variáveis, aminimização das questões socioambientais. A tônica do projeto,entretanto, continuava baseada no planejamento centralizado everticalizado.

Numa outra perspectiva, os projetos hidrelétricos implantadosdurante o regime militar tinham tido conseqüênciassocioambientais desastrosas. Assim, nos anos 1980, com aredemocratização do País, o setor elétrico enfrentou dificuldadespara levar a termo projetos que estavam em andamento.Movimentos sociais contra a implantação de hidrelétricasdisseminaram-se, tendo como referência a Comissão Regional dosAtingidos por Barragens — CRAB, que emergiu como resistênciaorganizada às barragens da bacia do Uruguai, de interesse daEletrosul. Conforme dissemos em outro lugar2, pode-se perceberque tais projetos foram e são implantados sem levar em conta astradições das populações locais e regionais, tampouco suasexpectativas e aspirações. As demandas que os justificaram ejustificam são de caráter nacional ou internacional. Sua localizaçãoé decidida em função de critérios e estratégias complexos, edistanciados das lógicas que presidem o cotidiano local.

Acrescente-se, ainda, que nos anos 1980 se estabeleceram clarasreorientações dos organismos internacionais de financiamento,em particular quanto às questões socioambientais. O BancoMundial passou a defender a criação de departamentos de meioambiente junto às empresas do setor elétrico, além de condicionarseus financiamentos à emergência de legislação ambiental maisadequada em vários países.

Como já foi dito, “os projetos do setor elétrico resultam, defato, de iniciativas complexas e multidimensionais,compreendendo aspectos econômicos, políticos, socioculturais,técnicos e ecológicos, relacionados em um intrincado jogo de

2 SANTOS e REIS, 1993, p.2.

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mútuas interações e condicionamentos”. Dependem também,pelas suas dimensões, de grandes movimentos de capital e mão-de-obra. Em conseqüência, produzem profundas alterações emdiferentes esferas, que extrapolam seus aspectos meramenteeconômicos e técnicos3.

A legislação ambiental no Brasil surgiu nos anos 1930, com apromulgação do Código de Águas (Decreto 24.643, de 1934) e doestabelecimento do Decreto-Lei 25 (1937), que disciplinou aOrganização e a Proteção do Patrimônio Nacional. Nos anos 1960,surgiram o Código Nacional de Saúde (Decreto 49.974, de 1961);a Lei 3.924, relativa à Proteção dos Monumentos Arqueológicos ePré-Históricos (1961) e o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 1964).Em 1973, surgiu a Lei 6.001, que estabeleceu o Estatuto do Índio.

Nos anos 1980, definiu-se a Política Nacional de MeioAmbiente, através da Lei 6.938 (1981), e criaram-se órgãos federais,coordenados por uma Secretaria com nível de Ministério, paracolocar em prática os novos dispositivos legais. Surgiu o ConselhoNacional de Meio Ambiente — Conama, que, através daResolução 001/86, fixou os requisitos para a avaliação de impactose para o licenciamento de obras modificadoras do meio ambiente,entre elas, as do setor elétrico. Tornaram-se obrigatórios o Estudode Impacto Ambiental — EIA e o Relatório de Impacto Ambiental— RIMA. A partir daí, novas disciplinações legais, emanadas dogoverno federal ou dos Estados, procuraram minimizar os efeitosperversos dos projetos hidrelétricos, tendo como eixo de referênciao fato de esses projetos serem essencialmente conduzidos porempresas estatais.

Através da Resolução 006/87, o Conama estabeleceu as diversasetapas do processo de licenciamento e, pela Resolução 009/87, garantiua obrigatoriedade de audiência pública. O art. 2 dessa últimaResolução explicita: [...] “sempre que julgar necessário, ou quandofor solicitado por entidade civil, pelo Ministério Público, ou por50 (cinqüenta) ou mais cidadãos, o Órgão de Meio Ambientepromoverá a realização de audiência pública”. Deve ficar claroque essa legislação também atendia aos reclamos da comunidade

3 SANTOS e REIS, 1993, p. 3.

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internacional. Leme Machado (1994, p.49-52) comenta diferentesDeclarações e Convenções que antecederam a Conferência dasNações Unidas de Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizadano Rio de Janeiro em 1992. O Brasil teve, pois, de assumir posiçõescada vez mais favoráveis à preservação ambiental.

A Eletrobrás, certamente considerando este quadro, editou1986 um “Manual de Estudos de Efeitos Ambientais dos SistemasElétricos”, que foi sucedido por um “Plano Diretor de MeioAmbiente” (PDMA). Ainda em 1986, criou o Comitê Consultivode Meio Ambiente (CCMA), integrado por profissionais dediversas áreas de conhecimento e independentes do setor elétrico.Em 1987, constituiu a Divisão de Meio Ambiente (depois elevadaà condição de Departamento) e, no ano seguinte, instituiu oComitê Coordenador das Atividades de Meio Ambiente do SetorElétrico (Comase). Também estimulou a institucionalização deáreas sociais e ambientais junto às suas concessionárias; promoveuo aperfeiçoamento de quadros técnicos; apoiou a realização deestudos específicos; promoveu a elaboração do “Segundo PlanoDiretor de Meio Ambiente (1990—92)”, cuja primeira versãocirculou em 1989. Paralelamente, o Plano 2010, aprovado atravésdo Decreto 96.652/88, incorporava essas inovações.

Numa perspectiva crítica, é preciso destacar que em 1981Aspelin e Santos, com a obra Indian Areas threatened by hydroelectricprojects in Brazil, alertavam para os riscos e prejuízos concretosque diversos povos indígenas vivenciavam em conseqüência daimplantação de hidrelétricas. A literatura sobre o tema ampliou-se rapidamente, e o trato das questões sociais decorrentes daimplantação de projetos hidrelétricos como “problema ambiental”foi bastante criticado, demonstrando-se objetivamente ainadequação desse tipo de discurso.

Conceitos novos acabaram sendo aceitos pelo setor elétrico,pois a dicotomia efeitos diretos/indiretos não dava conta dosdiferentes problemas sociais e ambientais. As noções de “área deinfluência”, de “usos múltiplos”, de “inserção regional” e de“monitoramento” foram incorporadas aos EIA e RIMA. Váriosestudos foram encomendados pela Eletrobrás às universidadesdo País, objetivando o aprofundamento do conhecimento sobre

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situações específicas. No caso das populações indígenas afetadaspor projetos hidrelétricos, o Instituto de Pesquisas Antropológicasdo Rio de Janeiro — Iparj realizou uma série de estudos de caso,introduzindo o conceito de impacto global. Por esse conceito,compreende-se que esses tipos de empreendimento causam

[...] danos globais, isto é, influência em geral deletéria, em todos ossetores da vida de um povo indígena, desde a sua população e ascondições materiais de sua sobrevivência, até as suas concepções devida e visões de mundo. Por sua vez, esses danos raramente sãoexclusivos a um número populacional, mas atingem como um todo auma etnia, a uma cultura4.

Mais recentemente, foi elaborado o conceito de externalidade.Drumond, citando Portney, explicita que uma

[...] externalidade ocorre sempre que as transações entre duas partescausarem um benefício ou um custo a uma terceira parte e sempre queesse benefício ou esse custo não for levado em conta nos entendimentosentre as duas primeiras partes5.

No âmbito jurídico, surgiu a noção de direito difuso, através daqual se tornou possível o ajuizamento de questões até há poucoimpossíveis.

Foi nesse contexto de maior atenção do setor elétrico para asquestões sociais e ambientais, que os diversos segmentos sociaisatingidos, ou ameaçados de serem vitimados por projetoshidrelétricos, e diferentes ONGs (Organizações Não-Governamentais) voltadas para a defesa do ambiente e dosdireitos dos atingidos, bem como instituições científicas,procuradores, etc., desenvolveram suas estratégias no sentido depressionar as empresas estatais do setor elétrico para assumiremsuas responsabilidades. Objetivava-se o encontro da transparênciados projetos hidrelétricos, assegurando-se aos potenciais atingidose todos os demais segmentos sociais interessados o acesso àsinformações e a participação no processo decisório.

4 IPARJ/Eletrobrás. 1989, p. 33-34 apud SANTOS, 1996, p. 16.5 PORTNEY, 1982, p. 5, apud DRUMOND, 1995, p. 2.

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Diversas situações concretas têm demonstrado que aimplantação de UHs no Brasil provocou diferentes prejuízos paraos povos indígenas. Nos últimos dez anos, vários encontros,seminárioss e reuniões acadêmicas propiciaram a discussão dosproblemas socioculturais e ambientais conseqüentes à implantaçãode UHs para as populações atingidas, indígenas ou não. Emconseqüência, diversas conclusões, sugestões e recomendaçõesforam feitas, objetivando reorientar as práticas do setor elétrico notrato da questão. Entre essas, destacamos:

1) [...] a relevância e o significado dramático das perdas dos níveissócio-organizativos e culturais, que no caso das populações indígenasimplica na extinção de experiências civilizatórias alternas que integramo patrimônio da humanidade”; “[...] ser de fundamental importância aparticipação, em todos os níveis de decisão, das populações atingidaspor projetos de construção de barragens”; e “[...] que o modelo energéticoassumido pelos países latino-americanos está submetido aos interessesurbano/industriais em detrimento de segmentos populacionais ruraise urbanos, marginalizados da sociedade numericamente majoritária, eque arcam também com os custos financeiros desses projetos”6 ;

2) “[...] que os povos indígenas sejam considerados sujeitos de seuspróprios destinos e que se evite a realização de tais projetos [de“desenvolvimento”] em suas terras”; “[...] que no caso de serem afetadosalguns povos indígenas por tais projetos, se garanta plena participaçãonos mecanismos decisórios de sua elaboração e implementação, assimcomo se garantam benefícios expressivos para a melhoria de suaqualidade de vida”; que é necessário “[...] evitar que repartiçõesgovernamentais encarregadas da questão indígena se apropriem dosrecursos dos projetos em detrimento das comunidades interessadas. Osgrandes projetos não devem vir a fortalecer as políticas integracionaistas,aculturadoras ou racionalizantes de nossos governos”; que se “[...]garanta nesses projetos consultorias, fiscalização, avaliaçõesindependentes e contrastivas, de tal forma que a não consideração dasrecomendações comprometa a continuidade de execução do programa”7.

6 In: Documento sobre “política energética, barragens e populações atingidas”, elaboradoem 25/11/86, na UFSC, como decorrência da reunião que congregou antropólogos,sociólogos e outros cientistas para discutir o tema “As Conseqüências Sociais daConstrução de Barragens”.

7Conforme o “Documento Final da Reunião de Trabalho sobre os grandes projetos dedesenvolvimento e as comunidades indígenas”, Assunção, Paraguai, 13 a 17/6/1989.

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3) que “[...] deve-se considerar os múltiplos interesses que envolvema implantação de uma hidrelétrica [os quais] interferem, muitas vezes,nos resultados dos levantamentos efetivados para dar suporte aoprojeto”; que “[...]é imprescindível a valorização das práticasdemocráticas que garantam desde o acesso às informações referentesao Setor Elétrico a todos os interessados, dispondo inclusive de dadospertinentes aos efeitos negativos dos projetos já implantados, até ainformação e a discussão com as populações localizadas na área deinfluência do empreendimento e que por ele será direta ou indiretamenteafetada”; que [...]”no plano das relações interétnicas, é necessárioconsiderar que os povos indígenas obtiveram na Constituição oreconhecimento de novos direitos sobre as terras que ocupam,adquirindo condições de se manifestar contrários à implantação dehidrelétricas “; que “[...]é preciso admitir que a discussão dosempreendimentos hidrelétricos deve ser permanente, tanto em nívelnacional, como regional e local, antes, durante e depois de suaimplantação”8.

4) que deve haver o “[...] reconhecimento e garantia dos direitos daspopulações locais na concepção e implementação das políticas públicas”;haver “[...] a garantia do livre acesso de pesquisadores aos arquivosdos órgãos públicos e/ou empresas estatais responsáveis pelaimplementação das políticas públicas”; haver a “[...] incorporação doconhecimento científico acumulado ao processo decisório relativo àsintervenções do setor público e/ou empresas estatais da região”; haver“[...] investigação antropológica e monitoramento de demarcação deáreas indígenas e de ocupações especiais (comunidades remanescentesde quilombos, etc.)”; haver “[...] estudos comparativos de situaçõesregionalmente diversificadas, criadas a partir da intervenção do Estadosobre o território, inclusive com reconstituição da história e da dinâmicados processos sociais”9;

5) numa outra perspectiva, não se pode deixar de destacar oscompromissos assumidos pelo Brasil no contexto internacionalsobre a questão ambiental. A “Declaração do Rio de Janeiro”,firmada em junho/92 pelos Estados que integram a Organizaçãodas Nações Unidas, teve sua origem na “Declaração deEstocolmo”, de 1972, e pode-se dizer que esta última foi o grandemarco que levou diferentes países a estabelecerem novos

8 SANTOS, Sílvio Coelho dos. In: SEMINÁRIOS TEMÁTICOS. 1991, Rio de Janeiro,Anais.... Rio de Janeiro: Eletrobrás, Cadernos do Plano 2015, 1991, p. 29-30.

9 A QUESTÃO ENERGÉTICA NA AMAZÔNIA: avaliação e perspectivas socioambientais.1993, Universidade Federal do Pará, Belém, 1993.

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princípios legais para o trato da questão ambiental. Questão estaque se internacionalizou e se complexificou. Uma novaespecialização jurídica surgiu, o Direito Ambiental. Diversos“princípios” foram definidos e assumidos pelos diferentes países,entre eles “a obrigatoriedade da intervenção estatal”; o de“prevenção e de previsão”; e o de “participação”. Este princípioda “participação”, conforme ensina Leme Machado (1994), estáintegrado na Declaração do Rio de Janeiro/92, em seu princípio10, que diz: “Tratar de maneira mais adequada as questõesambientais para assegurar a participação de todos os cidadãosinteressados, no nível pertinente”. Ainda o mesmo autor destacaque, no Brasil, “[...] a participação pública [...] foi conquistada emdois momentos: na Resolução 001/86 — Conama — e naResolução 009/87- Conama, respectivamente com uma fase decomentários e outra de audiência pública” (op.cit., p. 40). Emoutras palavras, a variável socioambiental do processo dedesenvolvimento está globalizada. Assim sendo, não se podepensar isoladamente, muito menos imaginar o encaminhamentode projetos localizados sem ter em vista tanto as repercussõeslocais e regionais de sua implantação como seus efeitos maisgerais, isto em curto, médio e longo prazos.

Nos anos 1980, o setor elétrico começou a vivenciar novareorientação organizacional. A Eletrobrás sofria dificuldadescrescentes para exercer seu papel de holding, especialmente devidoao fato de ser cada vez mais difícil conseguir financiamentos noexterior. As disputas exercidas pelas empresas estaduais paraampliar suas concessões na área da geração também cresceram.A reordenação econômica mundial avançava, impondo diferenteslimitações às empresas estatais. O cenário da privatização do setorcomeçava a ser desenhado. De forma quase ostensiva, o País foise submetendo às regras de mercado, que tendiam para aglobalização e para o esvaziamento do papel do Estado comopromotor de empresas estatais.

A Constituição de 1988 já impôs um revés inesperado àEletrobrás, ao impedir a continuidade da cobrança do ImpostoÚnico sobre Energia Elétrica (IUEE), base do Fundo Federal deEletrificação (FEE), criado em 1954 (CF art. 155, $ 3º). O fluxo

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permanente de recursos financeiros para a holding, suassubsidiárias e empresas estaduais de energia estava cortado,trazendo em médio prazo problemas financeiros insanáveis.Provavelmente, a proibição constitucional não foi suficientementediscutida, nem tampouco seus efeitos foram devidamentepercebidos à época. O BNDES (antes BNDE), grande aliado queparticipara de quase todos os projetos da Eletrobrás, tambémpassou a orientar seus investimentos em favor da privatização.O enfraquecimento do monopólio estatal, porém, estava decidido.Tudo seria questão de tempo.

Nos anos 1990, aceleraram-se as iniciativas de privatização dosetor elétrico. A falta de investimentos para dar seguimento àimplantação de diferentes hidrelétricas no País, previstas nos Planos2000, 2010 e 2020, e suas revisões, elaboradas diligentemente pelaEletrobrás, associado à crescente demanda por energia, faziam preveruma crise de abastecimento sem precedentes. O País estava numasituação de risco para dar continuidade aos seus planos de expansãoeconômica. Tornou-se inevitável, pois, a aceitação da modelagemdo processo de privatização, que contemplava a atração deinvestimentos externos e estimulava a formação de consórciosnacionais, visando à implantação de novas hidrelétricas e,eventualmente, de termelétricas. As empresas integrantes da holdingforam orientadas no sentido de buscarem parceiros privados paradar andamento a projetos que estavam paralisados por falta derecursos financeiros. Também surgiram iniciativas para areorganização interna dessas empresas, a partir da redifinição desuas atividades essenciais e da redução do número de seuscolaboradores. As cisões tornaram-se freqüentes, reordenandoespecialmente os setores de geração e de transmissão. As empresasestaduais de energia começaram a conviver com processos similares.

Quase no final dos anos 1990, na Região Sul, a Eletrosul sofreuum processo de divisão, dando origem às Centrais Geradoras doSul do Brasil S.A. (Gerasul) e à Empresa Transmissora de EnergiaElétrica do Sul do Brasil S.A. (Eletrosul). A seguir, a Gerasul foiprivatizada, sendo adquirida pelo grupo belga Tractebel,Electricity & Gas International.

Para entender esse quadro, há que se ter claro o contexto

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econômico internacional, centrado nas políticas de globalização,fundamentadas numa nova versão do liberalismo econômico. Asatribuições do governo foram redirecionadas para o exercício docontrole das diferentes empresas que passaram, ou estãopassando, a atuar no setor elétrico. A Agência Nacional de EnergiaElétrica (Aneel), o Operador Nacional do Sistema (ONS) e aCâmara de Gestão da Crise de Energia (GCE), popularmenteconhecida como o “ministério do apagão”, foram, entre outras,algumas dessas novas agências reguladoras governamentais. Omodelo estatal, centralizado e verticalizado de administração ede planejamento do setor elétrico, com idas e vindas, estádesaparecendo.

Havendo falta de investimentos para a implantação de novashidrelétricas ou termelétricas, bem como para a ampliação dasexistentes, conforme definido nos planos da Eletrobrás, associadoao constante crescimento da demanda, o potencial do sistemacomeçou a ser utilizado sem reservas. A crise da escassez deenergia não se fez esperar, colocando o País na dependência daabundância de chuvas. Novos dilemas surgiram. Uma revisãoda matriz energética se impôs, privilegiando-se projetostermelétricos a gás. O racionamento tornou-se uma realidade,junto com alterações tarifárias. Simultaneamente, a modelagemdo processo de privatização do setor elétrico sofreu diversasrevisões críticas, tendendo para acentuar a necessidade do aportede capitais para projetos novos, que efetivamente garantam aampliação acelerada do sistema de geração e permitam aimplantação de novas linhas de transmissão. No âmbito da GCE,foram estabelecidas orientações no sentido da abreviação dasanálises pertinentes às questões ambientais ligadas aosempreendimentos considerados estratégicos para a superação dacrise energética, até então reguladas pelas Resoluções do Conama.No início de 2002, uma nova revisão do modelo foi anunciadapela GCE, acabando com o Mercado Atacadista de Energia (MAE)e desacelerando o processo de privatização, entre outras medidas.Trata-se de uma tentativa, um tanto tardia, de revitalização dopapel do estado no setor elétrico, priorizando projetos einvestimentos.

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Resta saber se o governo terá condições de efetivamente exerceros papéis que lhe são atribuídos, concretizando em curto prazonovos projetos de geração e de transmissão, e dirimindoinevitáveis conflitos de interesse das empresas do setor entre si, eentre elas e os consumidores. Tudo isto no cenário de umasociedade que cada vez mais amplia suas complexidades,aumenta suas demandas, e se conscientiza sobre seus direitos esobre suas perspectivas de futuro.

O PROJETO URUGUAI : O CASO DA UHE MACHADINHO

Ainda nos anos 1970, a Eletrosul definiu que seriam construídasprioritariamente as UHEs de Machadinho e Itá, na bacia do RioUruguai (SC/RS). A reação social que se sucedeu ao anúnciopúblico dessa decisão não havia sido prevista. A populaçãoregional atingida pelos dois empreendimentos mobilizou-se econseguiu abrir uma ampla discussão sobre o projeto que aEletrosul havia construído “intramuros” para o aproveitamentodo potencial energético da bacia do Uruguai. Dessa movimentaçãosocial dos atingidos, surgiu a CRAB. A grande vitória domovimento ocorreu quando o governo federal, através de decisãodo presidente em exercício, Aureliano Chaves, decidiu que a UHEMachadinho não seria mais construída.

Essa UHE localiza-se no Rio Pelotas, entre os municípios dePiratuba (SC) e Maximiliano de Almeida (RS). Originalmente, oeixo da barragem foi plotado à jusante do Rio Apuaê (ou Ligeiro),e, em conseqüência, ocorria a inundação de uma pequena parteda Área Indígena (AI.) Ligeiro (RS), ocupada por índios Kaingang.

Nos anos de 1978 e 1980, antropólogos da UFSC realizaramduas consultorias para o grupo técnico da Eletrosul, que eraresponsável pelo “Projeto Uruguai”, tendo como escopo aidentificação das áreas indígenas atingidas e a definição demedidas mitigadoras10. A segunda consultoria foi realizadaespecificamente na AI. Ligeiro11.

10 Projeto Uruguai: os barramentos e os índios, (1978).11 Projeto Uruguai: conseqüências da construção da Barragem Machadinho para os

índios do PI Ligeiro (RS), 1980.

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Efetivamente, a Eletrosul jamais acatou a decisão política dopresidente em exercício Aureliano Chaves. A UHE Machadinhofoi postergada como prioridade, mas continuou a integrar oprojeto global. Nos finais dos anos 1980, a Eletrosul já desenhavauma alternativa para viabilizar Machadinho, através dodeslocamento do eixo da barragem à montante do Rio Apuaê.

Com esta iniciativa, os técnicos da Eletrosul eliminavam comopotencialmente atingidos a população do distrito de CarlosGomes, hoje município, e também os índios da AI. Ligeiro. Épreciso ressaltar que foi exatamente a população de Carlos Gomesque, à época, melhor se organizou em protesto contra a construçãoda UHE de Machadinho12.

Recentemente (1996), a Eletrosul deu andamento à formaçãode um consórcio privado para a viabilização da UHE Machadinho.Esta UHE terá uma potência instalada de 1140 MW. A geraçãoanual média será de 4.433 GWh. O total do investimento é daordem de US$ 700 milhões, resultando o custo da energia geradaem US$ 28,00 MWh. O custo de instalação é de US$ 615,00 KW. Aárea total de inundação deverá ser de 567 km2. A área doreservatório será de 79 km2. A população afetada é de 1.534famílias, envolvendo 4.400 pessoas e 1.080 propriedades13. Ascotas de participação das empresas consorciadas são as seguintes:Eletrosul, 16,94%; Alcoa Alumínio S.A., 19,72%; Camargo Corrêalndustrial, 4,63%; Companhia Brasileira de Alumínio — CBA,9,03%; Indústrias Votorantim, 7,87%; Companhia de CimentoPortland Rio Branco, 7,87%; Valesul Alumínio S.A., 7,28%; IneparS.A. Indústria e Comércio, 2,89%; Departamento Municipal deEletricidade — DME, 2,40%; Companhia Paranaense de Energia— Copel, 4,31%; Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A. — Celesc,12,15%; Companhia Estadual Energia Elétrica — CEEE, 4,85%14.

Desde a retomada das negociações para a implementação doprojeto da UH Machadinho, em janeiro de 1996, ocorreram duasreuniões, objetivando a discussão das questões socioambientais.Apesar das controvérsias existentes protagonizadas por lideranças

12 VIANNA (1992).13 Dados obtidos através de entrevista na Eletrosul em 14 de setembro de 1997.14 Eletrosul. Contrato de Constituição do Consórcio Machadinho. Dezembro de 1996.

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locais e a CRAB, a Eletrosul obteve do Ibama (Instituto Brasileirode Meio Ambiente) a licença de instalação que permitiu o iníciodesta UHE.

E N E R G I A E L É T R I C A N A R E G I Ã O S U L

A realidade socioeconômica dos Estados do Sul não pode sercompreendida sem a existência de um eficaz sistema de produçãoe de distribuição de energia elétrica. Este sistema começou comas iniciativas essencialmente locais de alguns pioneiros. Depois,passou a atrair os interesses de empresas e de capitais estrangeiros,que aproveitavam a flexibilidade permitida pela legislação,essencialmente municipal e estadual. Com o passar do tempo, ogoverno central começou a intervir diretamente nesse estratégicosetor da economia, criando uma legislação reguladora dasconcessões e, adiante, no cenário de políticas centralizadoras,implantando o Ministério de Minas e Energia e a Eletrobrás. Noâmbito dos Estados, surgiram as empresas estaduais de energiaelétrica, que assumiram a hercúlea tarefa de implantar sistemasde distribuição integrados nos espaços urbanos e rurais, além defazerem investimentos também na área da geração.

Foi assim que, a partir dos anos 1960, a energia elétrica começoua ser disponibilizada de maneira crescente nos Estados do Sul. Essainfra-estrutura começou a garantir a expansão econômica, em todosos seus segmentos. Claro que estamos falando de um processo noqual nem tudo ocorreu de forma harmônica e igualitária. Aeletrificação rural, por exemplo, só foi considerada prioritária muitomais tarde. De outra parte, na implantação dos primeiros projetoshidrelétricos e termelétricos de maior porte, não foi dada maioratenção às suas conseqüências negativas, especialmente em termossociais e ambientais. Os denominados “alagados” pela implantaçãoda UHE Passo Real, no Rio Grande do Sul, nos anos 1960,exemplificam bem a questão. As legítimas reclamações dosatingidos pela formação do lago dessa hidrelétrica foramconsideradas equivocadas, pois tratava-se de um projeto deinteresse do Estado. O mesmo aconteceu com os expropriados pelaimplantação da Itaipu binacional. Os planos de reassentamento

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das populações atingidas e a legislação de proteção ambientalsurgiram bem mais recentemente, e ainda não estão totalmenteassimilados pelas empresas estatais e privadas do setor elétrico.Nesse sentido, a formulação do Projeto Uruguai pela Eletrosul, nosfinais dos anos 1970, teve um papel pedagógico. De um lado, pelaprimeira vez se desenhou o aproveitamento integral do potencialenergético de uma bacia hidrográfica. De outro, motivou osurgimento da Comissão Regional de Atingidos por Barragens(CRAB), que estabeleceu novos parâmetros de organização dapopulação afetada e de encaminhamento de suas reivindicações.

Deve-se considerar que a implantação de projetos hidrelétricosimplica a consideração da existência de múltiplos atores sociais ede diferentes interesses políticos, econômicos e empresariais. Nãose trata só de desafios de Engenharia, tampouco do domínio denovas tecnologias. Cada projeto tem sempre sua especificidade.Mas, em comum, todos apresentam problemas de intervenção nanatureza e na vida das populações locais ribeirinhas. Taisconstatações são hoje reconhecidas internacionalmente, enecessitam ser cada vez mais internalizadas por todos quantos têmparticipação nos processos de tomada de decisão referente àimplantação de novos empreendimentos. Não basta pensar osprojetos hidrelétricos como de interesse da melhoria da qualidadede vida da maioria da população de um Estado ou de uma região.É preciso assegurar àqueles que são prejudicados por tais projetos,devido à desapropriação de suas propriedades, por seureassentamento forçado, por perda de empregos e de relações devizinhança, entre outros efeitos negativos, que tenham efetivaoportunidade de reconstituírem suas condições de vida em termossocioculturais e econômicos, O mesmo vale para as questõesambientais, que têm tido normalmente um tratamento superficiale não plenamente satisfatório. Um bom exemplo é a falta de soluçãoadequada até o momento para garantir a circulação das espéciesde peixes que necessitam subir os rios para realizar a desova, aconhecida piracema. É necessário, pois, ter clareza que os projetoshidrelétricos que tanto têm permitido a expansão econômica dasociedade como um todo também têm faces sombrias quenecessitam permanente atenção e monitoramento.

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A Região Sul do Brasil, formada pelos Estados do Paraná, SantaCatarina e Rio grande do Sul, tem uma área de 577.214 km²,distribuída em 1.159 municípios. Sua população, pelo censo de2000, era de 25.089.783 habitantes, dos quais 80,94% vivem emáreas urbanas. O crescimento populacional da região foiacentuado: em 1900, contava com 1.796.495 habitantes,eqüivalendo a 10,30% da população do País. Em 1940, o númerode habitantes havia saltado para 5.735.305; em 1960, atingiu11.892.107; em 1980, chegava aos 19.380.126 de residentes. Em2000, os sulistas representavam cerca de 14,79% da populaçãototal do Brasil. No cenário nacional, a região é reconhecida porsuas potencialidades econômicas. Em 1998, o Produto InternoBruto (PIB) atingiu 159.679 bilhões de reais, o segundo maior doPaís. A renda per capita anual, no mesmo ano, foi de R$ 6.611,00.

No ano de 1999, havia na Região Sul cerca de 984.583 empresas,representando 23,5% do total existente no País. O número deestabelecimentos rurais, em 1995, era de 1.003.180. O Índice deDesenvolvimento Humano (IDH) mais elevado do Brasil, em 1996,era o do Rio Grande do Sul, seguido de perto por Santa Catarinae pelo Paraná, revelando condições sanitárias e expectativas devida bastante razoáveis.

Contando com expressiva diversidade étnica, com diferentestradições culturais, a Região Sul possui recursos naturais deimportância, ressaltando-se o carvão mineral, o potencial de suasbacias hidrográficas, os recursos marinhos e florestais. É grandeprodutora de soja, milho e trigo; de papel e celulose; de frutas declima temperado; e de café. Ocupa posição de destaque comoprodutora de laticínios, e de carnes de frangos e de suínos; e naprodução de veículos, de motores elétricos, de máquinas agrícolase industriais, de eletrodomésticos e de tecidos, além da prestaçãode serviços. No cenário das exportações nacionais, os Estadosaparecem nas seguintes posições, em 1999: Rio Grande do Sul,US$ 4,998 bilhões; Paraná, US$ 3,932 bilhões; Santa Catarina, US$2,567 bilhões, que representaram em conjunto 23,9% dasexportações do País. É neste contexto que se devem entender asdiferentes iniciativas governamentais e privadas para dotar aRegião com uma infra-estrutura de serviços, envolvendo

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eletrificação, estradas, portos, aeroportos e comunicações, bemcomo as crescentes pressões comunitárias para a sua permanenteampliação. É impossível, pois, pensar a Região Sul sem a existênciadessa base material que é a energia elétrica, indispensável para aconcretização dos mais diferentes projetos econômicos, sociaisou culturais, além de garantia de conforto e de bem-estar àspopulações dos conglomerados urbanos e rurais.

Segundo dados do Anuário Estatístico do Brasil (IBGE, 1999), acapacidade nominal instalada das usinas de energia elétrica naRegião Sul, em 1998, era de 8.506 MW. Desse total, 1.505 MWeram decorrentes de geração térmica. A geração hidráulica erapredominante, atingindo 7.000 MW. A energia disponível era de44.692 GWh, sobressaindo-se o Paraná com a disponibilidade de32.482 GWh. Além de atender às necessidades internas, ocorre atransferência de significativa parcela da energia disponível paraoutras regiões do País, em particular para o Sudeste, através degrandes linhas de trasmissão. Neste cenário, destaca-se, pelovolume, a energia produzida na UHE Itaipu Binacional.

No novo cenário das privatizações que estão em andamentono setor elétrico, cabe ressaltar que o potencial hidrelétrico daRegião Sul está em fase final de aproveitamento. Os últimosprojetos de importância estão sendo implantados nas bacias doUruguai ( RS/SC) e do Tibagi (PR). Há disponível o potencialrepresentado pelo carvão mineral, cujas jazidas são significativaspara a geração térmica, desde que superado o problemaambiental. No contexto do aproveitamento do gás boliviano, háesforços governamentais para a implantação privada determelétricas que consumiriam este combustível. Já está instaladaa UTE Uruguaiana, de capital privado, aproveitando o gásoriginário da Argentina. Há também novas experiências degeração térmica por célula a combustível e da utilização dabiomassa, além do aproveitamento das fontes de energia solar eeólica. A diversificação da matriz energética, pois, implica tambémo crescente investimento em pesquisas de fontes alternativas, alémda conscientização da sociedade sobre questões como eficiênciaenergética e proteção ambiental.

Cabe ainda enfatizar o papel dos setores públicos envolvidos

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na questão energética, seja definindo políticas, seja decidindosobre novos empreendimentos. A energia elétrica cada vez maisdeve ser compreendida como um bem público, no qual asintervenções dos governos federal e estaduais, com ou sem aparticipação de segmentos privados, devem sempre visar aointeresse da sociedade. Este parece ser o maior desafio nestemomento de mudança do modelo do setor elétrico.

C O N C L U I N D O

A decisão da Eletrosul de aproveitar o potencial energético dabacia do Uruguai, em seu trecho nacional, ocorreu num cenáriode autoritarismo político (governo militar), e de planejamentocentralizado e verticalizado. As populações potencialmenteatingidas pelos empreendimentos eleitos como prioritários (Itá eMachadinho) mobilizaram-se através da CRAB e lograram abrirdiscussões com a Eletrosul. O grupo indígena aldeado na AI.Ligeiro (RS), desde o primeiro momento, reivindicoucompensações pela perda de parte de suas terras, de benfeitoriase de parte da estrutura viária. Com o passar do tempo e apostergação continuada do início das obras, a percepção dosíndios sobre os efeitos deletérios do projeto da UH ficou maisclara, e não poucos líderes se manifestaram desgostosos econtrários à sua implantação.

A privatização do setor elétrico brasileiro, que está em marcha,reorientou as estratégias da Eletrosul para a implantação das UHsde Itá e Machadinho. Os consórcios que foram criados têm aparticipação de consumidoras que utilizam grandes blocos deenergia elétrica, destacando-se empresas de alumínio e decimento.

No caso específico de Machadinho, a Eletrosul alterou o projetoinicial, deslocando o eixo da barragem à montante do Rio Apuaê,objetivando minimizar o número de atingidos, entre eles osindígenas. E na definição do projeto final, como também naformatação do Consórcio, não considerou mais os indígenas daAI. Ligeiro como potencialmente afetados. Em outras palavras,quase 20 anos depois de os índios terem tomado conhecimento

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do projeto da UH Machadinho; de terem assumido uma posiçãofavorável ao projeto, desde que houvesse compensaçõessignificativas para o grupo; e terem, em diferentes momentos,manifestado à Eletrosul suas angústias pelo adiamentocontinuado do início das obras, a Eletrosul simplesmente osconsidera como “não mais potencialmente atingidos” e, portanto,não passíveis de quaisquer compensações pela implantação daUH.

A realidade do processo de privatização do setor elétrico nocenário neoliberal aparece, assim, por inteiro. As noções de“direito difuso”, de “efeito global” e de “externalidade”, referidasno início do trabalho, não estão sendo consideradas tanto pelosburocratas da Eletrosul quanto pelos novos parceiros privadosintegrantes do consórcio que vai implantar a UH Machadinho.Tudo indica que, no cenário da privatização que atinge o setorelétrico brasileiro, haverá pouco espaço para discutir os direitosdas populações afetadas. Ou seja, estamos diante de perspectivasde retrocesso perante as poucas conquistas obtidas durante o curtoespaço de redemocratização do País. Por isto, impõe-se a obtençãode orientações claras do governo federal, através da adequadaregulamentação, para que os projetos hidrelétricos estejam sujeitosà observância de uma legislação que, antes de tudo, considere osdireitos de cidadania das populações atingidas, com destaquepara as minorias étnicas e a transparência da tomada de decisões.

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AS HIDRELÉTRICAS, OS ÍNDIOS E O DIREITO

Desde 1988, quando foi promulgada a nova ConstituiçãoFederal (CF), os povos indígenas tiveram garantido oreconhecimento dos “[...] direitos originários sobre as

terras que tradicionalmente ocupam” (Art. 231). Também foramexplicitados na Constituição o respeito à “diferença cultural elingüística” e a “obrigatória consulta” aos interesses desses povosem caso de aproveitamento de recursos hídricos ou de exploraçãomineral em suas terras. Tais dispositivos, estabelecidos noCapítulo VII da CF, intitulado “Dos índios”, em seus artigos 231e 232, entre outros, efetivamente significaram conquistas, poisficaram delineadas as bases políticas e jurídicas das relações doEstado brasileiro com os diferentes povos indígenas localizadosem seu território.

Foi, portanto, a CF de 1988 que

[...] projetou para o campo jurídico normas referentes aoreconhecimento da existência dos povos indígenas e definiu as pré-condições para a sua reprodução e continuidade. Ao reconhecer osdireitos originários dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmenteocupadas, a CF incorporou a tese da existência de relações entre os índiose essas terras anteriores à formação do Estado brasileiro” (PAIVA eSANTOS, 1994).

Conforme já dissemos em outro lugar (SANTOS, 1995), éimportante lembrar que a CF foi elaborada e aprovada numcontexto de redemocratização do País. Naquela oportunidade,lideranças indígenas de diferentes povos exerceram junto ao

Originalmente apresentado no GT 17, Ambiente, População e Cultura/Grandes Projetose Populações Locais, integrante da programação da XX Reunião Brasileira deAntropologia, realizada em Salvador, BA, entre 14 e 18 de abril de 1996.

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Congresso Constituinte legítimas pressões reivindicando aexplicitação de direitos que assegurassem sua continuidade comoetnias. Essa luta esteve centrada no reconhecimento das terrastradicionalmente ocupadas por essas minorias. Diferentes segmentosda sociedade brasileira deram apoio a tais reivindicações, articuladoou não, através de organizações não-governamentais (ONGs) eassociações científicas. Antropólogos, juristas, religiosos eindigenistas participaram ativamente deste processo. Assim, o art.231 da CF explicitou, pela primeira vez, que

[...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegere fazer respeitar todos os seus bens.

De outra parte, foi garantido o usufruto das riquezas do solo,dos rios e dos lagos existentes nas terras tradicionalmenteocupadas pelos índios (parágrafo 2, art. 231 da CF). Ficou tambémexplícito que

[...]o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciaisenergéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terrasindígenas só podem ser efetivados com a autorização do CongressoNacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes asseguradaparticipação nos resultados da lavra, na forma da lei (parágrafo 3).

Esta prévia audiência das comunidades indígenas afetadas porprojetos hidrelétricos ou de exploração mineral, conforme játivemos oportunidade de explicitar (op. cit, 1995, p.88),constituiu-se numa inovação legislativa, destinada a assegurar a sua relativaautonomia. Trata-se do reconhecimento de que essas populaçõestêm o poder de vetar tais projetos, ou seja, o Estado não podesimplesmente decidir e impor, como fazia até recentemente.

É preciso lembrar, ainda, que “as terras tradicionalmenteocupadas pelos índios.” (parágrafo 2, art. 231) integram “os bensda União” (item XI, art. 20, da CF). Os índios, pois, não sãoproprietários das terras que ocupam no sentido que normalmentedamos à propriedade. Eles não podem dispor dessas terras paraa venda ou para garantir, por exemplo, uma transação comercial.

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Por isso mesmo, o parágrafo 4 do Art. 231 explicita que “[...] asterras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, eos direitos sobre elas, imprescritíveis”. E o parágrafo 5 do mesmoartigo estabelece que

[...] é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo,ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ouepidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse dasoberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido,em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Noparágrafo 6 do mesmo artigo, fica também explicitado que: [...] são nulose extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham porobjeto a ocupação, o domínio e a posse das terras que se refere esteartigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e doslagos nelas existentes. Ressalvado relevante interesse público da União,segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e aextinção direito de indenização ou ações contra a União, salvo, na formada lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Por fim, o Art. 232 explicita que “[...] os índios, suascomunidades e organizações são partes legítimas para ingressarem juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo oMinistério Público em todos os atos do processo”.

As Constituições estaduais promulgadas no ano seguinte(1989), particularmente dos Estados da Região Sul, como nãopoderiam deixar de ser, reafirmaram os dispositivos estabelecidosem favor dos povos indígenas, e comprometeram os governantescom o respeito e a valorização das diferenças culturais indígenas,bem como com programas de apoio destinados a garantir acessodos índios à educação, aos sistemas de saúde e para odesenvolvimento de práticas econômicas que lhes garantissem aauto-sustentação.

É preciso lembrar que, tornando-se o Brasil independente dePortugal, desde o primeiro projeto de Constituição, elaborado em1823, já havia preocupações com a “catequese e a civilização “ dosíndios (título XIII. art. 254). A Constituição que foi outorgada em1824, porém, não fez menção aos indígenas. A questão voltou a serdiscutida em 1834, com a adoção do Ato Institucional de 1834,quando se transferiu para as Assembléias Provinciais a competência

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para promover “[...] a catequese e a civilização do indígena e oestabelecimento de colônias” (art. 11, parágrafo 5).

Com a Proclamação da República, surgiu uma proposta deConstituição, em 1890, que reconhecia a existência de povosindígenas e lhes assegurava um relacionamento centrado naproteção e na não violação de seus territórios. Por esta proposta, aRepública no Brasil seria organizada considerando a existência dedois tipos de Estados confederados: os Estados ocidentaisbrasileiros, que seriam formados pelas populações resultantes dafusão do branco com o índio e o negro; e os Estados americanosbrasileiros, constituídos pelas “hordas” indígenas. Esta propostanão prosperou, e a Constituição aprovada em 1891, como a primeirada República, não fez também qualquer referência aos indígenas.

Somente em 1934, com a elaboração de uma nova Constituiçãoconseqüente da Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas,aparece uma primeira referência aos deveres da União em relaçãoaos índios. Explicitava esta Constituição que “[...] competeprivativamente à União” legislar sobre a “[...] incorporação dossilvícolas à comunhão nacional” (Art. 5, XDC.m) e, adiante, noArt. 129, que: “Será respeitada a posse das terras dos silvícolasque nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, noentanto, vedado aliená-las”. Com o Golpe de Estado promovidoem 1937 por Getúlio Vargas, nova Constituição foi outorgada ànação. A íntegra do Art. 129, acima referido e integrante daConstituição de 1934, foi mantida.

Em 1946, com a redemocratização do País, instala-se umCongresso Constituinte. Novas e interessantes discussões relativasao relacionamento do Estado com os indígenas ocorreram. Apesarda participação nesse processo de forças políticas progressistas,prevaleceu a idéia da “incorporação dos silvícolas à comunhãonacional” (Art. 5, XV, r). Contudo, no Art. 216, ficou, mais umavez, reconhecido o respeito à “[...] posse dos indígenas sobre asterras onde se achem permanentemente localizados, com acondição de não as transferirem”.

A ditadura militar que se instalou no País em 1964 promoveu aoutorga de uma nova Constituição (1967). Esta Constituiçãoreafirmou o propósito da “[...] incorporação dos silvícolas na

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comunidade nacional” (Art. 8, XVII). Explicitou, também que asterras ocupadas pelos indígenas integram o Patrimônio da União(Art. 14). E, em seu Art. 186, ressaltou que: “É assegurada aossilvícolas a posse permanente das terras que habitam, e reconhecidoo seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todasas utilidades nelas existentes”. O Ato Institucional nº l, de 1969,que promoveu alterações na Constituição de 1967, reafirmou aintenção do Estado na “[...] integração dos indígenas à comunhãonacional” e definiu, em seu Art. 198, que

[...] as terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termosque a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente eficando reconhecido o seu direito de usufruto exclusivo das riquezasnaturais e de todas as utilidades nelas existentes.

O Estatuto do Índio, ainda em vigor (2007), foi aprovadoatravés da Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1971. Por esta Lei, foidefinido um conjunto de “Princípios”, “Definições”, “Direitos”,etc., considerados pelo legislador, à época, como de interesse dosindígenas. Regulamentou-se, assim, o Art. 198, da EmendaConstitucional de 1969. O Título III do Estatuto trata “Das Terrasdos Índios”. Fica explicitado em seu Art. 24 que:

O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direitoà posse, o uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidadesexistentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploraçãoeconômica de tais riquezas naturais e utilidades.

E, a seguir, no parágrafo l deste Artigo, se esclarece que “[...]incluem-se, no usufruto, que se estende aos acessórios e seusacrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das viasfluviais compreendidos nas terras ocupadas”.

No Art. 20 deste mesmo Título, definem-se as condições emque a União poderá intervir nas terras indígenas, “sempre emcaráter excepcional,” “se não houver solução alternativa” edependendo a providência de Decreto do presidente daRepública. No item “d” do parágrafo l, diz-se que a intervençãopode ser decretada “[...] para a realização de obras públicas queinteressam ao desenvolvimento nacional”.

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Efetivamente, foi com base nesse último dispositivo que,durante o regime militar, diferentes áreas indígenas acabaramobjeto de projetos hidrelétricos, justificados como de interesse parao desenvolvimento nacional.

Uma das primeiras discussões sobre esta questão ocorreuquando participamos da elaboração do relatório “Projeto Uruguai:os barramentos e os índios” (UFSC/Eletrosul/Funai, 1978).Naquela oportunidade, o dr. Caio Lustosa, a nosso pedido,estudou a questão da ocupação de terras indígenas porhidrelétricas na bacia do Rio Uruguai, explicitando umainterpretação que pretendia garantir aos indígenas a devidaindenização, nos casos da irreversibilidade dos projetos. O parecerem causa, ao seu final, consignava:

À justa e prévia indenização, peculiar aos casos corriqueiros dedesapropriação, corresponde, em se tratando de subtrair os índios àssuas terras, uma reparação sui-generis: “área equivalente à anterior,inclusive quanto às condições ecológicas”. Não há de se cogitar naespécie, de “quantum” indenizatório; sim de “quid” indenizatório. Oque deve se viabilizar é uma sub-rogação real. E o que pretendeu olegislador, bem atento ao que representa para o índio a “sua terra”: ados seus antepassados, suas lendas, seus mitos. Não hesitamos emvislumbrar que, pré-concebidamente, pretendeu-se obstaculizar, aomáximo, o desenraizamento e o despojamento, mais ainda, de nossoíndio, tão espoliado séculos afora (p. 61).

Nos anos 1980, o processo de redemocratização do Paísampliou esta discussão. A legislação estabelecida pelo ConselhoNacional de Meio Ambiente (Conama), a partir de 1986, obrigouo setor elétrico a rever suas práticas tradicionais relativas àimplantação dos projetos hidrelétricos. Em 1987, a Eletrobrás criouum Comitê Consultivo de Meio Ambiente (CCMA) e convidoupara integrá-lo um grupo de cientistas ligados às áreas ambiental,jurídica e antropológica. Depois, fez instalar o Comitê de MeioAmbiente do Setor Elétrico (Comase), que

[...] articulava as diversas empresas subsidiárias ou concessionáriascom vistas à implementação de estratégias que viessem permitir amelhor compreensão das questões socioambientais de interesse do setorelétrico” (PAIVA e SANTOS, 1994).

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Paralelamente, a Eletrobrás instalou um Departamento deMeio Ambiente e estimulou as demais empresas do setor elétricopara que também criassem setores voltados para o trato dainterface socioambiental dos projetos hidrelétricos, recrutando etreinando pessoal especializado. Diversas consultorias foramrealizadas por recomentação do CCMA, e, especificamente, sobreo afetamento de indígenas por hidrelétricas, procedeu-se aoresgate das tragédias ocorridas, entre outras, em Tucuruí, ItaipuBalbina e Itaparica. Ficou claro, assim, que os povos indígenasestavam arcando com prejuízos sérios e, em muitos casos,irreparáveis.

As discussões que aconteceram durante a Assembléia NacionalConstituinte, os lobbies praticados legitimamente por diferenteslideranças indígenas, cientistas, lideranças civis e ONGs,certamente permitiram a melhor compreensão de toda estaproblemática. Entendeu-se que o sentido da terra e do territóriopara os povos indígenas é bem diferente daquele que temos emnossa sociedade. Terra e território têm relação direta comidentidade, ethos, cultura, organização social e economia dosdiferentes grupos indígenas. Não é possível, assim, pensar asobrevivência biológica e a reprodução cultural desses grupossem que se lhes assegure, pelo menos, parte de suas terras deocupação imemorial, deixando-as livres dos empreendimentosde interesse da nossa sociedade, a começar pelas hidrelétricas.

Aliás, esta tem sido uma questão que tem obtido unanimidadena maioria dos seminárioss, e encontros acadêmicos e fóruns deONGS, realizados no País nos últimos anos: as terras indígenasdevem ser preservadas de todo e qualquer empreendimento“desenvolvimentista”. Lembramos como exemplo o documento“Política energética. Barragens e populações atingidas”, resultantede uma reunião que congregou antropólogos, sociólogos e outrosprofissionais na Universidade Federal de Santa Catarina em 25de novembro de 1986, e as recomendações conseqüentes doSeminário Internacional “A questão energética na Amazônia:avaliação e perspectivas socioambientais”, realizado em Belémdo Pará entre 12 e 15 de setembro de 1994. Um item apenas,referido no primeiro documento, é suficiente para esclarecer sobre

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a seriedade dos propósitos dos cientistas e sobre a profundidadedas suas reflexões, pois destaca: “A relevância e o significado dasperdas dos níveis sócio-organizativos e culturais, que no caso daspopulações indígenas implica na extinção de experiênciascivilizatórias alternas que integram o patrimônio dahumanidade”.

Atualmente, está em tramitação no Congresso Nacional oProjeto de Lei nº. 2.057/91, que trata do Estatuto das SociedadesIndígenas. Uma Comissão Especial da Câmara de Deputadosaprovou, em junho de 1994, um projeto substitutivo, cujo relatorfoi o deputado Luciano Pizzatto. A mudança de governo e delegislatura (janeiro/95), e divergentes opiniões e interessespraticamente paralisaram esta tramitação. O ministro da Justiça,Nelson Jobim, promoveu consulta aos diferentes Ministérios sobreitens específicos do Estatuto, admitindo a aceitação de emendassubstitutivas. No momento (janeiro/96), a Funai realizava umesforço para avaliar as propostas ministeriais mais significativascom a intenção de encaminhá-las, através de exposição daPresidência da República, ao Senado. O objetivo seria obter aaprovação final, pelo Congresso, da nova proposta de Estatutodurante este ano.

É oportuno lembrar que a nova proposta de Estatuto do Índiocomeçou a ser discutida e formulada logo após a promulgaçãoda nova Constituição (1988). Gradativamente, surgiram trêspropostas. Uma delas, formulada pela Funai; outra, pelo Núcleode Direitos Indígenas (NDI); e a terceira, pelo ConselhoIndigenista Missionário (CIMI). As duas últimas propostas foramintensamente debatidas durante os anos 1990 e 91. Foramincontáveis as reuniões havidas entre lideranças indígenas, ONGs,antropólogos, advogados, religiosos, lideranças políticas einstituições governamentais. Ocorreram dificuldades para aharmonização de alguns pontos controversos entre as propostasoriginárias do CIMI e do NDI. O substitutivo formulado eaprovado pelo deputado Pizzatto pretendeu superar, pelo menosmomentaneamente, tais divergências. Tem-se, agora, aexpectativa de que as propostas de emendas sugeridas pelosdiferentes órgãos do governo Fernando Henrique Cardoso — que

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sempre se disse comprometido com as minorias indígenas1 —permitam tanto o refinamento desse texto legal, como a suaaprovação final.

O novo Estatuto objetiva regular a situação jurídica dos povosindígenas, com o “[...] propósito de proteger e fazer respeitar suaorganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, osdireitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupame todos os seus bens” (Art. l). No Capítulo “Dos RecursosHídricos”, diz:

Art. 101 — O aproveitamento de recursos hídricos, incluídos ospotenciais energéticos, em terras indígenas deverá ser precedido deautorização do Congresso Nacional, observadas as mesmas condiçõese o procedimento estabelecidos para a mineração em terras indígenas,através dos órgãos federais responsáveis, especialmente no tocante àelaboração de laudo antropológico e relatórios de impacto ambiental,ao processo licitatório e sua subordinação a contrato escrito entre aempresa interessada, pública ou privada, e a comunidade indígena.

Art. 102 — Aplicar-se-á ao pagamento de comissão às comunidadesindígenas pelo aproveitamento dos recursos hídricos ou seus potenciaisenergéticos, no que couber, o disposto nos arts. 84 e 85 desta lei.

Art. 103 — Quando o aproveitamento de recursos hídricos em terrasindígenas implicar a perda da ocupação, do domínio ou posse da terrapelas comunidades indígenas, o Poder Público é obrigado a ressarcir ascomunidades afetadas com novas terras de igual tamanho, qualidade evalor ecológico, e a indenizá-las pelos impactos sofridos.

Parágrafo único. Quando a perda for de parte da área indígena, areposição será em terras contíguas às remanescentes.

É oportuno, pois, destacar que o Título V do Estatuto trata“Do Aproveitamento dos Recursos Naturais Minerais, Hídricose Florestais”, e no Art. 79, há o destaque de que as atividades de

1 A controvérsia foi aberta pelo ministro da Justiça, Nelson Jobim, sobre ainconstitucionalidade do Decreto 22/91. Editado pelo governo Collor com o objetivode regulamentar os procedimentos administrativos para a demarcação das terrasindígenas, e a conseqüente assinatura pelo presidente Fernando Henrique, em 8/1/96, do Decreto 1.775 abriram um enorme campo de discussão sobre as reaisintenções e compromissos do governo FHC com os povos indígenas. A reação daslideranças indígenas, de ONGs, de indigenistas e antropólogos, neste momento, dáuma idéia da dimensão do problema criado pelo ministro Jobim, ao,intransigentemente, argumentar a necessidade de albergar o chamado “contraditório”no processo demarcatório.

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2 É conveniente observar que, através da Lei Complementar n° 59, de 1/10/91, o governo

pesquisa e lavra “reger-se-ão pelo disposto nesta lei e, no quecouber, pelo Código de Mineração e pela legislação ambiental”.No Art. 80, enfatiza-se que a pesquisa e a lavra de recursos mineraisem terras indígenas só podem ser realizadas mediante autorizaçãodo Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, sendo-lhes asseguradas participação nos resultados da lavra”. Os artigos82 e 83 e seus parágrafos tratam em detalhe da exploração mineral,sempre referindo “à proteção dos direitos e interesses dacomunidade indígena afetada”. O Art. 84 adianta que

As condições financeiras referidas no artigo anterior incluem opagamento às comunidades indígenas afetadas de:

I - renda pela ocupação do solo;II- participação nos resultados da lavra.

Seguem-se três parágrafos normatizando a participação dacomunidade indígena nos resultados da exploração mineral. Aseguir, no Art. 85 e parágrafos, trata-se da normalização do usodos recursos decorrentes da exploração mineral por parte dascomunidades indígenas, ressaltando-se, no parágrafo l, que

Caberá à comunidade indígena administrar as receitas de que trataeste artigo, podendo assessorar-se livremente para elaboração do planode aplicação referido no caput, cuja implementação será acompanhadapelo órgão indigenista federal.

Detalham-se nos artigos 86 até 100, de forma minuciosa,diferentes procedimentos que regulam a ação dos órgãos degoverno e de empresas mineradoras nos processos de habilitaçãoe de implantação de projetos para a exploração de recursosminerais em terras indígenas.

Percebe-se, assim, a intenção do legislador quando, ao tratar,no Capítulo II, dos Recursos Hídricos, ter enfatizado no caput doartigo 101 que o

[...] aproveitamento dos recursos hídricos [...] em terras indígenasdeverá ser precedido de autorização do Congresso Nacional, observadasas mesmas condições e o procedimento estabelecidos para a mineraçãoem terras indígenas2.

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Conclui-se, pois, que o aproveitamento de recursos hídricosem terras indígenas está sujeito à observância de regras bemdefinidas, expressas tanto na Constituição Federal, e reafirmadasnas Constituições Estaduais, como no Estatuto do Índio (Lei 6.001,de 19/12/1973), ainda em vigor. O novo Estatuto das SociedadesIndígenas, em tramitação no Congresso Nacional, por sua vez,articula e detalha esta questão no Título V, quando focaliza o “[...]aproveitamento dos recursos naturais minerais, hídricos eflorestais”. Embora ainda não aprovado, o novo estatutoreenfatiza os princípios definidos na Constituição Federal,destacando que, em qualquer hipótese, o aproveitamento derecursos hídricos em terras indígenas depende da anuência dacomunidade afetada e da autorização do Congresso Nacional.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 2057, de 1991, Estatuto das SociedadesIndígenas. Aprovado por Comissão Especial em 29/6/94. Brasília, DF, 1994.FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Legislação. Brasília, DF, 1979.GOVERNO DO PARANÁ. Lei Complementar 59. Curitiba, 1º de outubro de 1991.PAIVA, Eunice e SANTOS, Sílvio Coelho dos. Os povos indígenas e o Setor Elétrico.

In:___ Informativo Comase. Rio de Janeiro: Eletrobrás, Ano l, n.3, agosto de 1994,p.6.

COMASE, Eletrobrás. A UHE de Cotingo e a questão indígena: relatório apresentadoao CCMA. Rio de Janeiro: Eletrobrás, 1994. Dez./1994.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro:Auriverde, 1988.RICARDO, Beto e MARÉS, Carlos. Decreto do medo. São Paulo: Jornal Folha de São

Paulo, Tendência e debates. p. 1-3. maio/1996.SANTOS, Sílvio Coelho dos. Os direitos dos indígenas no Brasil. In:___SILVA, Aracy L.

& GRÜPIONI, Luiz Doniseti (Org.) A temática indígena na escola. Brasília. DF:MEC/MARI/Unesco, 1995. p.87-105.

___. Povos indígenas e a Constituinte. Porto Alegre: Movimento/UFSC, 1989.UFSC/ ELETROSUL/ FUNAI. Projeto Uruguai. Os barramentos e os índios. Relatórios.Florianópolis, 1978.

do Paraná dispôs sobre a repartição de 5% do ICMS aos municípios com mananciaisde abastecimento e unidades de conservação ambiental. Trata-se de um royaltieecológico, que permite compensar e estimular os municípios que têm enquistadoem seus territórios terras indígenas, para que recebam recursos específicos, o quepermite o desenvolvimento de programas em favor dos índios.

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M A S S A C R E

Tem quase cinqüenta anos que eu moro aqui, moço, e nessetempo os índios mataram um bocado de gente. Mataram oBalduíno. Mataram o pai do meu tio. Mataram dois

imigrantes. Feriram dois ou três brasileiros e um colono. Umdia, ainda no claro, roubaram uma roça de milho de um homemque morava aqui perto. Depois disso, se não fosse alguém atrásdeles, eles fariam o que quisessem. Então fomos, eu e o ZéDomingo. Mas mandados pela Justiça. Pra espantar os índioscom a boca da arma.”

Quem me contava o episódio era um caboclo, Ireno Pinheiro,baixo, cerca de 70 anos, pés no chão, calça remendada, chapéu depalha, camisa de listras. Aparentemente, uma pessoa comum,pobre como tantos outros moradores da encosta da Serra Geral,uma zona de acesso difícil e imprópria tanto para a agriculturacomo para a criação. Na verdade, porém, por trás da aparênciasimples, diante de mim estava o único homem que conseguilocalizar no Sul do Brasil auto-identificado como caçador de índiosou bugreiro, como são geralmente conhecidos tais indivíduos naregião. Estimulado por minha atenção, Ireno Pinheiro continuousua narrativa:

“Chegamos perto do acampamento dos índios numa hora feia.Era trovoada e relâmpago que não acabava mais, uma barulhadae um escurão danado. Nós tava tão perto que podia escutar elesfalar. Eles tavam reunidos em torno de um fogo, na boca de umagruta. Nós, por cima, deitados de comprido. Esticando o braço,quase dava para encostar o cano da Winchester na cabeça do mais

Publicado em: Revista do Homem, São Paulo: Abril, 1976. p. 92-94. Ano 1, n. 9 Recebeuo prêmio Abril de 1976 como a melhor entrevista.

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próximo. Aí eu disse pró Zé Domingo: espera eu dar a volta pelooutro lado pra começar o serviço. Assim fizemos. Tomei meuposto, dei sinal pro Zé, e começamos a festa. Pam, pam, pam! Ah,uma coivara com bastante taquara não estourava tanto quantoali. Eu tava só com a Winchester e o facão, mas eu atirava assimmeio bem, segurava uma paca correndo a uns duzentos metros.Sozinho, gastei pra mais de vinte balas. O falecido Zé, não seiquanto gastou. Nem sei quantos morreram. E olha que a genteera só dois, já não era como antigamente, quando os companheirosda tropa eram quinze, vinte...”.

Ireno Pinheiro certamente não foi o último caçador de bugresdo Brasil, mas era sem dúvida o último do lugar Santa Rosa deLima, um vilarejo miserável de casas escassas, onde fui pararseguindo uma confusa corrente de boatos. Até a casa de Ireno, eulevara cinco horas, vencendo a pé os 15 quilômetros que aseparavam da sede do município. O jipe fora abandonado, inútil,no meio do caminho, à margem de um riacho que engrossaraameaçadoramente, alimentado por uma chuva fora de época.

Espicaçando um guia preguiçoso que me fora indicado peloprefeito, fiz questão de prosseguir. Afinal, durante anos eu vinhacoletando informações sobre as matanças de índios no Sul do País,matanças promovidas pelas companhias de colonização paralimpar a terra, a fim de negociá-la com os imigrantes que chegavamda Europa atraídos por mil promessas de riqueza imediata. E desdeo momento em que eu recebera informações sobre a existência deIreno Pinheiro, andava obcecado por encontrá-lo.

Mais que uma testemunha, Ireno era um ativo participante dofenômeno que eu estudava. E agora, finalmente, lá estava ele, orosto redondo queimado pelo Sol e pelo vento frio da serra, eonde se destacava, no lugar do olho esquerdo, uma cicatriz quepurgava, resultado da explosão do ouvido de uma espingardade carregar pela boca durante uma caçada, como ele veio a meexplicar mais tarde.

Ao saber que eu me interessava por objetos índios,interrompera a narrativa e dirigira-se para o interior de sua casa,de onde voltara com um saco nas mãos. Nesse trajeto, notei queusava nas costas, presa à cinta, uma garrucha de dois canos.

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“Tenho aqui algumas coisas que os índios fizeram.Antigamente, havia muito por aí, isso aqui era um matão de fazermedo. Só vim pra cá com minha mulher, porque a gente tinhaque arrumar um pedacinho de terra, e nesse tempo...”

Divagava, tornava-se muito dificil arrancar informações querealmente me interessavam, mas resolvi não interromper.

“Em cima da serra, só tinha lugar para gente de dinheiro,gente que tinha léguas e léguas de campo e pinheiral. Não sendodono, pra morar lá tinha que ser como peão. Unha e carne como patrão. Rio abaixo, era só colono. Brasileiro pobre tinha eraque se meter nas brenhas, onde tavam os índios. Eu, por mim,já gostava da vida do mato, das caçadas, já tinha andado poressas bandas com meu pai, meu tio. Daí que arrumei mulher evim botar meu rancho aqui. Não tivemos família. A mulhermorreu faz mais de vinte anos. Mordida de cobra. Eu fui ficando,peguei gosto daqui, assim, sozinho...”

Suas pausas me preocupavam. Parecia querer dar o assuntopor encerrado, olhava em volta incomodado, atento a algum ruídono mato que eu não era capaz de ouvir. Voltei à carga. E os índios,Ireno? Como foram seus primeiros contatos com eles?

“De princípio, vez ou outra eu via algum vestígio. Um barulho.Um assobio. Mas ver, não via. Só sabia que eles andavam por aí.Mas, aí, um dia, fui atirar num macuco no poleiro, pertinho decasa. Disse pra mulher: ‘Faz um fogo, que eu vou buscar o macuco.Peguei a espingarda e fui, já sabia do poleiro dele fazia dias. Eratardinha. Vi o bicho, fiz a mira devagarzinho e atirei: pam! Sentio estouro no chão. Arriei a espingarda e fui ajuntar, mas onde?Procurei, procurei, e nada. Pensei que o cachorro tivesse ajuntado.Gritei pra mulher, perguntei se o cachorro tava solto. Não tava.Aí escutei um assobio, que nem macaco, logo em cima da grota.Vi que o malvado do bugre é que tinha pego. Arreneguei. Gritei:‘Vem cá, filho do cão!’. Outro assobio, e mais outro. Ah, mandeichumbo na direção e vim pra casa. De noite, foi um inferno... Oque choveu de pedra no rancho! E eu mandando tiro. Mais pedra,mais tiro, assim a noite toda. De madrugada, houve um berreiroenorme do lado deles, mas nem sei se acertei algum, eles sumiram.Aí jurei que índio nenhum ia me tirar dali.”

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“Peguei a mula e fui com a mulher até Santa Rosa. Lá é quesoube da morte do irmão do meu tio, pela mão dos bugres, doisdias antes. Parece que eram os mesmos, atiraram no falecido ZéBráulio de flecha, primeiro no braço e depois na barriga. Nessa,ele caiu, e os bugres vieram buscar a flecha. Aquilo tem farpa,gancho, foi puxar, e os bofes saltaram fora, coitado... Ah, fiqueidanado. Falei, então, com o chefe da colônia e com o delegado.Eles me deram uma Winchester 44, uma garrucha e munição, edisseram pra eu não sair de onde tava. Se os índios voltassem,era pra afugentar eles, assim não assustavam mais os colonos maisembaixo nem roubavam as roças. Foi aí, isso antes da Revoluçãode 30, que mandei buscar o Zé Domingo pra morar comigo. Eleera meu parente, e juntos começamos a socorrer os colonosquando os índios apareciam. Pra isso, agente estava sob ordem,os empregados da companhia chamavam a gente. Ou, então, odelegado. Mas a gente só fazia aquele espanto, não fazia outromal. Tinha gente que pegava uma bugrinha e judiava. Nós, não.Além do que, no nosso tempo, eles já eram poucos, o grosso játinha acabado com os ataques das tropas montadas pelo governoe pelas companhias. Até meu pai teve numa dessas...”

Orgulhoso do passado da família, agora Ireno fala sem parar,emendando casos, mas sempre atento aos ruídos no mato.

“Numa batida que o meu pai deu com a turma do Martinhobugreiro, tinha mais uns trinta, metidos ali pela Vargem Grande,onde tinham sumido umas reses de um colono. Os índiosandavam por ali, mas o que eles queriam era o acampamentomaior. No fim de uma semana de marcha, o Martinho fez a tropaparar e seguiu à frente, sozinho. De tardinha, voltou, sabendo aocerto do acampamento. Pela madrugada, mandou atacar. O paicontava que o berreiro era dos infernos. As crianças se agarravamcom as mães. Os homens, atordoados, não conseguiam sair dolugar. A turma não tinha nem tempo de carregar as armas denovo. Iam de facão mesmo, subindo e descendo, cortando. O pailembra de uma meninota que saiu correndo pro mato, quando oprimo dele agarrou ela pelos cabelos e desceu o facão. O açodesceu pelo ombro até as partes. Cortou que nem bananeira.Depois, tacaram fogo nos ranchos. Sobraram só uma mulher e

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três crianças, mas a mulher morreu logo, diz que de judiaria quefizeram com ela. As crianças, mandaram pra capital, o governadorbatizou elas na catedral, foi uma festa daquelas, o Martinho deherói e tal... Agora, as crianças, não sei que fim tiveram. Aqui naserra, conheci muito fazendeiro que pegava no laço os índiospequenos. Os que não morreram logo não deram em nada. Viviambêbados, nenhum deles casou, todos morreram cedo. São umagente ruim, esses desgraçados.”

Acaba o caso com ódio, os olhos varando o mato. Pergunto-lhe, então, de outros bugreiros, tento arrancar-lhe o máximo damemória.

“O Martinho limpou a região até pros lados de Curitiba. Maspro sul, pro Araranguá e fronteira com o Rio Grande, já tinhaoutros. Era o Natal Coral, o Maneco Angelo, o Veríssimo. No RioGrande, mesmo, não conheci ninguém, mas sei que tinha. E prolado de São Paulo, soube de gente de uma estrada de ferro quepassava os domingos passarinhando os bugres. Muita gentecomeçou cedo e ganhou muito dinheiro. Besteira foi o que fez oNatal Coral. Quando voltava de uma batida, trazia as orelhasdos índios na salmoura, só pro riso. Mas depois os colonos sóqueriam pagar com a prova das orelhas, e ele se aborreceu, parouaté, que os índios já estavam ficando cada vez mais raros.”

Já começa a escurecer, o guia me cutuca para que voltemosenquanto há luz, mas não ouso interromper Ireno, truncar o seudepoimento.

“Teve um alemão aqui, o Wandresen, que cismou deentrar no mato atrás dos bugres, queria também a sua orelha praprovar sua macheza. Matou um, mas no que tava tirando a orelha,pimba!, pulou outro bugre por cima dele. Rolaram, o Wandresense defendeu na faca, mas saiu ferido. Depois dessa, ficou comtanto medo da vingança dos outros índios, que até se mudou pracidade. Fez bem, porque os índios vingam mesmo. Eu, por mim,não ando nunca desarmado, sei que ainda tem uns deles por aí,tou sempre preparado. Pedi ao prefeito pra me arrumar umagarrucha de cano grosso. Fizeram esta aqui. É cano de espingarda28, carrego sempre bem socada, cada cano até o meio. Já enxergopouco do olho que tenho, por isso prefiro chumbo grosso. Assim,

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não tem como errar. Não se pode facilitar, os bugres vingam, sãogente como nós, decerto também têm paixão pela família. A genteassusta, assusta eles, mas algum sempre sobra, não esquece. Aí,se facilitar, ele mata mesmo.”

A escuridão em torno de nós vai aumentando aos poucos, oguia ameaça me abandonar, caso não voltemos imediatamente.Contrariado, acabo finalmente concordando, mesmo porque Irenome parece cada vez mais preocupado com o ruído que cresce domato à nossa volta e endossa a urgência da nossa partida. Nadespedida, ele me estende a mão calosa e parece pedir desculpaspor sua situação atual, a casinha de tábuas mambembes, ondemal cabe o seu catre.

“O senhor devia ter conhecido isso aqui tempos atrás, quandotudo era mato e não faltava caça. Agora, tudo é colônia, só ficou aserra. A caça é pouca. Tudo é difícil. Os índios já não metem maismedo, por isso ninguém precisa mais de mim. Pouca gente vemme visitar, e eu até já perdi o jeito de contar os casos, de falar.Mas esse sertão aqui, quem limpou fui eu, Ireno Pinheiro. Opessoal sabe disso. O prefeito sabe. Os índios também. Por isso,desculpe se não lhe acompanho até o rio. Não posso facilitar.”

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FRIC, A LIGA PATRIÓTICA E OS ÍNDIOS

Aocupação dos vales litorâneos em Santa Catarina porimigrantes europeus, no século XIX, foi articulada num contexto de afirmação de um Estado nacional que tivesse

por base uma população “branca”, se não em termos numéricos,mas certamente em termos econômicos e ideológicos. Sendo assim,a idéia de “vazio demográfico” dominou as ações governamentaisreferentes às negociações das terras destinadas à colonização.

Os Xokleng eram os tradicionais ocupantes das terraslocalizadas entre o litoral e a borda do planalto, desde a altura deParanaguá até quase Porto Alegre. Este povo indígena estavadividido em diversos subgrupos, e tinha na caça e na coleta abase de sua reprodução biológica e sociocultural. A ocupação dosCampos de Lages e Curitibanos por criadores de gado, no séculoXVIII, já havia tirado dos indígenas largas parcelas de seuterritório tradicional e, em conseqüência, as fontes de recursosprotéicos representadas pelo pinhão e a fauna associada. A MataAtlântica, que cobria as serras e os vales litorâneos, ficou, assim,como último refúgio para esses índios.

Com o estabelecimento dos núcleos coloniais, a partir de SãoPedro de Alcântara (1829), inicia-se um novo ciclo de tomada aosindígenas de seu território tradicional. Agora, não havia mais paraonde recuar. O litoral e o planalto estavam ocupados. No RioGrande do Sul, a colonização desenvolvia-se em direção àsfronteiras com Santa Catarina. No Paraná, o mesmo processoavançava também em direção à Província catarinense. Osindígenas, portanto, estavam confinados.

Publicado originalmente em: CONGRESSO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE SANTACATARINA. Anais... 4 a 7 de setembro de 1996. Fpolis: IHG-SC, 1997. p. 704-714.

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Não é de estranhar, pois, que diversos atritos ocorressem entreos índios e os colonos. Ambos eram vítimas de um processo detomada de decisões alheio aos seus interesses. Os colonos tiveramde descobrir que, na realidade, as terras que pretendiam dominartinham como ocupantes um aguerrido grupo indígena. Asreclamações dos colonos quanto à sua insegurança teve comoresposta governamental a criação de uma “patrulha de pedestres”para proteger as colônias. Mas a efetiva “limpeza do sertão” foiencomendada às “tropas de bugreiros”, que dizimaram a maior partedos Xokleng. Na medida em que as colônias se afirmavam e seexpandiam, um quadro cada vez mais trágico se instalava no sertão.O agravamento desta situação, no início do século XX, provocoudiferentes manifestações de protestos, seja da imprensa, seja de unspoucos, porém, ativos, humanistas, livres-pensadores e maçons.

A L I G A P A T R I Ó T I C A

Em 4 de dezembro de 1906, foi fundada em Florianópolisa Liga Patriótica para a Catechese dos Silvícolas. A Liga eraconseqüência de intenso esforço do então major-engenheiro PedroMaria Trompowsky Taulois, positivista e maçom, para dar fim àviolência contra os índios, tendo o apoio de um pequeno grupode políticos, humanistas e intelectuais. Sua diretoria ficou assimconstituída:

Presidentes de Honra — Coronel Gustavo Richard(governador) e Abdon Baptista (vice-governador);

Presidente: Raulino Horn; vice-presidente, Emílio Blum;Primeiro secretário: León Eugênio Lapagesse;Segundo secretário: Clementino Brito;Tesoureiro: José Pedro da Silva;Oradores: cônego Manfredo Leite e Henrique Valgas.A instalação pública da Liga ocorreu no Palácio Municipal,

tendo na ocasião o cônego Manfredo Leite feito incisivopronunciamento. Informa o Jornal A Reforma (6/12/1906) quePedro Maria Trompowsky Taulois formulou uma proposta aosparticipantes, definindo os objetivos da “Liga” e comprometendoseus membros “para a efficaz catechese dos nossos silvícolas,

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demonstrando ser iníqua a pratica até agora seguida doextermínio do bugre”. Finalizava com um encaminhamento deorganização da diretoria, que é bastante esclarecedor quanto aosfundamentos ideológicos que presidiam seus esforços, conformevemos:

A Liga será presidida por uma administração, cujos deveres serãodiscriminados em regulamento especial, não esquecida porém, a Mulher,a Providência do Lar, na phrase de A. Comte, a quem será confiada àmissão da caridade, tributo que a “Liga” presta à Mulher na sua tríplicemissão social de Filha, Esposa e Mãe.

Ainda segundo a mesma notícia, foi organizada uma Comissãode Propaganda envolvendo os jornais O Dia, Reforma, A Fé e O Ideal.

Imediatamente, se iniciaram os trabalhos de divulgação dosobjetivos da Liga. Em 22/12/1906, o Jornal Comercio de Joinville davauma notícia sobre a sua fundação, destacando que “À Liga Patrióticaofereceram os Srs. Otero Gomes & C., de Porto Alegre, a quantia de1:000$000 [um conto de réis] para auxílio de sua nobre missão”.

Uma carta circular foi encaminhada para diferentesautoridades e líderes municipais. O Jornal Novidades, de Itajaí (10/3/1907), noticia o conteúdo desta mensagem, destacando que:

Em nome desta Liga e mormente em nome dos princípios dehumanidade, apelamos para os generosos sentimentos de V. Exa., nosentido de envidar todos os esforços para o fim de evitar o extermíniodos bugres que habitam as nossas selvas.

Em resposta a esta circular, ocorreram manifestações de apoioe de adesão que foram publicadas nos jornais nos primeiros mesesde 1907. Quase simultaneamente, acentuaram-se as manifestaçõescríticas àqueles que pretendiam a defesa dos indígenas. Apolêmica criada permite-nos compreender tanto o quadro políticoe ideológico dominante como o esforço realizado pelo pequenogrupo que acreditava em outras formas de relacionamento entrebrancos e índios1. Ainda na mesma circular, esclarecia-se:

1 Em 1890, os positivistas apresentaram uma proposta de Constituição para o Brasil,garantindo espaços territoriais para os povos indígenas que formariam um conjuntode “Estados Americanos Brazileiros confederados”. Esta proposta não prosperou.

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[...] o que a “liga” ardentemente deseja é que se estabeleça umacorrente de sympathia em favor do pobre silvícola brasileiro; que, emvez de acossá-lo por toda parte e obrigá-lo a passar uma vida de misériano interior das matas, se lhe proporcione meios de catechese ecivilização.

Neste mesmo início de ano (1907), publica-se em Curitiba umfolheto de autoria de Pedro Trompowsky Taulois sob o título Asmatanças de bugres e o Urwaldsbote, onde o autor tece duras críticasà posição assumida pelo jornal que se editava em Blumenau emfavor do extermínio indígena, além de fazer a defesa dos objetivosda Liga. Ainda no início de 1907, convidado pela Liga, através dePedro Trompowsky Taulois, para “pacificar” os índios, circulaem Florianópolis, Itajaí, Blumenau e Curitibanos o naturalista eviajante tcheco Albert Vojtech Fric2.

É preciso destacar que a polêmica não era nova. Vieira da Rosa,em obra publicada em 1905 (p. 309), acusava:

“E falavam das barbaridades, das depredações praticadas pelossilvícolas, censuram-n’os e perseguem-n’os a tiros de fuzil, mas não selembram que assim procedendo tornam-se mais ferozes que os própriosíndios”.

Também é preciso compreender as circunstâncias quetrouxeram Fric a Santa Catarina.

Tudo indica que Toulois havia se aproximado do positivismoainda na Escola Militar. Aderiu com entusiasmo à CampanhaAbolicionista e participou da Revolução Federalista, fiel aogoverno de Floriano Peixoto, integrando a coluna que adentrouo Paraná por Itararé (TREVISA, 1980, p. 34). Engenheiro militar,fez carreira atingindo com a reforma, em 1923, o posto de general-de-brigada (arquivo IHGSC). Sabe-se, também, que em 1902 foium dos fundadores da Loja Maçônica Ordem e Trabalho, em

O “Apostolado Positivista do Brazil”, tendo “A princípio, a Ordem por baze, oProgresso por fim”, teve uma ação intensa em favor dos índios na República. Em1894, por exemplo, o “Apostolado” publicava o livreto de J. Mariano de OliveiraIndígenas brazileiros.

2 Fric é grafado corretamente com um pequeno “v” sobre a letra “c”, pronunciando-se“Fritch” (STAUFFER, 1960 p.169).

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Florianópolis3. Em 1906, participou do Congresso do LivrePensamento e Maçônico em Buenos Aires. Nesta ocasião, através deDario Vellozo, outro humanista entusiasta da maçonaria que viviaem Curitiba, conheceu Albert V. Fric.

Foi por iniciativa de Fric que os participantes do Congressoaprovaram moções favoráveis aos índios (TREVISAM, op. cit., p.34). As teses positivistas dominaram o encontro, e Fric logrou passarpara os presentes todo o quadro de violência e selvageria quedominava as relações entre brancos e índios na América do Sul, emespecial, no Brasil. Como positivista e livre-pensador, Fric assumiaposições logo tomadas como anticlericais.

Segundo Trevisan (op. cit, p. 34) na Revista Acácia, editadapelo Instituto Neo-Pitagórico de Curitiba (1910, Tomo III,p. 273),há uma pequena biografia de autoria de Dario Vellozo sobre PedroMaria Trompowsky Taulois, dizendo: “Em 1906, [...] após asresoluções do Congresso Maçônico de Buenos Aires, o ilustreengenheiro militar fundava em Florianópolis a Liga em prol dosíndios. “Fric encontrava-se no Paraguai, quando recebeu deTaulois o convite para vir a Santa Catarina e assumir, em nomeda Liga, as tarefas de “pacificação”.

É de Fric o seguinte depoimento:

Cheguei a esta capital cheio de entusiasmo, crendo encontrar aquicondições para romper o preconceito que se tem de que o índio é indomável,crendo encontrar aqui terra onde as sementes de humanismo e amor aopróximo, plantadas por meus amigos, haveriam de florescer e dar frutosque se reproduzissem em todo o Brasil, em toda a América do Sul. Fiqueium tanto desiludido, mas ainda não perdi a esperança de que estas idéiastriunfarão (Cf. TREVISAN, op. cit., p. 34).

FRIC, O CONGRESSO DE AMERICANISTAS EM VIENA E A CRIAÇÃO DO SPI

Nascido em Praga em 1882, Fric chegou ao Brasil pela primeiravez em 1901. Havia interrompido na Escola Técnica Superior o

3 A Fé (12/12/1906) traz uma notícia que ilumina um pouco as relações entre a maçonariae o clero catarinense. Diz a notícia: “Em função de sua nomeação para cônego[Manfredo Leite] na Catedral do Rio, Pedro M. Trompowsky Taulois e todos osmembros da sede da maçonaria catharinense teceram louvores e felicitações pelamais estimada pessoa de quem se trata e o cargo obtido”.

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curso de Engenharia Civil, decidido que estava em viajar para aAmérica do Sul. Segundo Trevisan (op. cit., p. 19), Fric referiu-semais tarde a esta viagem dizendo:

Em 1901, pelo mês de maio, cheguei pela primeira vez a este País(Brasil), a passeio, e cheguei como todo estrangeiro, cheio de idéiaspreconcebidas, considerando inferior tudo que não fosse de origemestrangeira e sem nenhum conhecimento da língua nativa. Entrei pelosertão adentro, atravessando o Estado de São Paulo e descendo o Tietê,até o Mato Grosso.

Trevisan (op. cit., p. 19) informa ainda sobre esta viagem,dizendo que “ao fim de seis meses, em lastimável estado físico,retornou à casa de seu compatriota, em Vila Mariana, na capitalpaulista. Dali, outros amigos levaram-no até o porto de Santos,de onde regressou à Europa”.

Fric realizou outras três viagens ao Brasil, percorreu outrospaíses da América Sul, tomando-se um etnógrafo, naturalista, eviajante experimentado e conhecido. Diversos museus da Europae Estados Unidos se interessaram por suas reproduçõesetnográficas. Foi um dos primeiros pesquisadores a fazer uso damáquina fotográfica para o registro etnográfico e tornou-se umconferencista de sucesso. A lista de suas obras é extensa, conformeTrevisan (op. cit., p. 20-21). Faleceu em 1944 em Praga.

Foi na sua terceira viagem que Fric esteve em Santa Catarina.Recebeu da Liga Patriótica

O título de “pacificador dos índios”. A seguir viajou de Florianópolispara Itajaí e Blumenau. A reação à sua presença, especialmente emBlumenau, foi enorme. O jornal Der UrwaIdsbote publicou diversosartigos e notas criticando Fric, seus objetivos e seus companheiros daLiga. O jornal Novidades (17/3/1907), de Itajaí, simpático à causaindígena, noticia: “No Max [nome de uma embarcação], vindo deFlorianópolis, esteve nesta cidade o Sr. Alberto Fric. O Sr. Fric érepresentante do Museu Real Etnográfico de Berlim e assistente doMuseu Etnográfico de “Freie und Haustadt”, Hamburgo. Além dessestítulos que lemos no seu cartão de visita, tem o de pacificador dos índiosde Santa Catarina. Nesse caráter o dr. Fric seguiu, no mesmo dia, paraBlumenau. Os nossos votos são para que algum bem, em favor dosinfelizes aborígines, resulte do seu empreendimento generoso e que seconserve sobranceiro às amarguras que há de encontrar em sua missão.

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Conforme já dissemos em outro lugar (1973, p. 124), “[...] otratamento que recebeu em Blumenau foi o menos acolhedorpossível”, levando-o a publicar no Novidades, em 24 de março,um artigo sobre a indiferença com que a população de Blumenautratava a questão indígena. Fric viaja então para Palmas (PR) como objetivo de obter o concurso de alguns índios Kaingang à tarefaque se propusera executar, a pacificação dos Xokleng. Resumiaseu projeto, segundo Trevisan (op. cit., p. 36), da seguinte maneira:

[...] garantir aos índios uma reserva suficiente, com possibilidadede sobreviverem, proibindo-se e punindo-se as caçadas, os negócios deescravos, e devolvendo-se as crianças capturadas aos seus pais, poispai nenhum existe, mesmo índio, que não intente retirar seu filho dacasa do inimigo, no caso de não ter conseguido vingar-se.

Com tal estratégia, apoiado pela Liga, conseguiu do governoestadual uma área de 30.000 ha, tidas como devolutas, no AltoVale do Itajaí. Isto provocou a ira dos grupos interessados nosnegócios da colonização. As manifestações contra seu projeto nãoficaram apenas nos limites dos jornais.

Segundo Trevisan (op. cit., p. 37), Fric foi dispensado de suacondição de enviado dos museus de Hamburgo e Berlim, tendosofrido sério revés financeiro. Aborrecido com tais fatos, Fric nãotentou mais concretizar a proposta de “pacificação “dos Xokleng.A Liga Patriótica também desapareceu do noticiário jornalísticonos meses seguintes. A luta de Fric, entretanto, prosseguiu.

Foi no cenário do XVI Congresso Internacional de Americanistas,realizado em Viena, em 1908, que ele reapareceu apresentando umextenso trabalho sobre as iniqüidades que se praticavam contra osindígenas no Sul do Brasil, em nome da colonização e do“progresso”. Conforme já dissemos (1973 p. 118) e tendo como baseStauffer (1960, p. 169-172), Fric demonstrou que

[...] no sul do Brasil a colonização se processava sobre os cadáveresde centenas de índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros,atendendo os interesses de companhias de colonização, de comerciantesde terras e do governo. E finalizou, solicitando que o Congresso[...]protestasse contra estes atos de barbárie para que fosse tirada estamancha da história moderna da conquista européia na América do Sule dado um fim, para sempre, a esta caçada humana.

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As veementes declarações de Fric repercutiram na imprensaeuropéia. Na Alemanha, alguns jornais (STAUFFER, 1960, p.172)chegaram a levantar a hipótese de que Fric estava tentando detero fluxo de emigração para o Sul do Brasil. Interesses políticosda Alemanha diante do Império Austro-Húngarocontextualizavam a reação contra as denúncias de Fric. No Brasil,a questão tornou-se motivo de um amplo debate, quando o prof.Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, tentou refutaras declarações de Fric. Com efeito, em outubro de 1908, noInstituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Ihering, quandofazia seu pronunciamento por ter sido eleito sócio honorário,prometeu falar na sessão seguinte sobre a situação dos índiosno Sul do Brasil.

Anteriormente, Ihering manifestara opinião sobre o indígenacomo “um frio objeto científico”. Nesses primeiros dias deoutubro, circulou em São Paulo trabalho de sua autoria contendoreferências bastante estereotipadas sobre os índios.

Foi Sílvio de Almeida, intelectual nacionalista, que publicouno Estado de São Paulo, em 12 de outubro, um extenso artigocontestando Ihering. O texto de Ihering que mais alarmouAlmeida era o seguinte: “[...]os actuais índios do Estado de SãoPaulo não representam um elemento de trabalho e de progresso”.

Como também nos outros Estados do Brasil, não se pode esperartrabalho sério e continuado dos índios civilizados e, como os Caingangsselvagens, são um empecilho para a colonização das regiões do sertãoque habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançarmão, senão o seu extermínio (Cf. SANTOS, 1973, p.119, e STAUFFER,1960, p.177).

O debate cresceu. Jornais, institutos de História e Geografia,museus, academias de ciência começaram a discutir sobre a vidae o destino do indígena. O papel do Estado como agenteresponsável pela proteção foi ressaltado. A discussão foialimentada pela disposição de Ihering em afirmar e reafirmar suasposições antiindígenas. O nacionalismo embrionário da VelhaRepública, inspirado no positivismo e apoiado na maçonaria,recolocava o indígena como objeto da responsabilidade do Estado.

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E foi Rondon, numa conferência, que objetivamente sintetizou:

[...] Há vinte anos que trabalho no meio deles, e até hoje os tenhoencontrado por toda parte de peito aberto aos nobres sentimentos dahumanidade; de inteligência lúcida e pronta a apreender tudo quantose lhes quer ensinar; invencíveis às fadigas do mais rude labutar; amigosconstantes e fiéis dos que os tratam com bondade e justiça. Não precisorepetir o auxílio que eles prestaram [...] para emprender-se o quanto éinjusta a acusação levantada contra eles de serem indolentes e inúteis[...] RONDON, referido por SANTOS, op.cit., p. 119-120).

Como conseqüência dessa discussão que se espalhou pelo País,e objetivando pôr um fím ao quadro de violência que se haviainstalado contra os índios, o governo da República criou, em 1910,o Serviço de Proteção aos Índios4. O SPI teve forte inspiraçãopositivista, e Rondon foi seu primeiro diretor. Diferentes gruposindígenas foram atraídos, nos anos imediatos, ao convívio com asociedade nacional, entre eles os Xokleng de Santa Catarina. Osideais de Fric, de Taulois e da Liga, afinal, prevaleceram.

4 Foi efetivamente criado com a nominação de “Serviço de Proteção aos Índios eLocalização de Trabalhadores Nacionais”, cuja sigla era SPILTN.

__________

SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramáticaexperiência dos Xokleng. Florianópolis: Edeme, 1973. Porto Alegre: Movimento,2.ed. 1988.

STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do Serviço de Proteção aos Índios. In:Revista de História, n. 37 e seguintes. São Paulo, 1959.

TAULOIS, Pedro Trompowsky. Carta de Palmas (Santa Catharina) ao dr. AlbertoFric. Florianópolis: Typ. da Livraria Moderna, 1907.

TREVISAN, Edilberto. Vultos tchecos no Brasil e no Paraná. In: Boletim do InstitutoHistórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, v. 37, ano 1980. Curitiba, 1980.

VIEIRA DA ROSA, José. Chorografía de Santa Catharina. Florianópolis: Typ. da LivrariaModerna, 1905.

Reforma; O Ideal; A Fé; O Dia; Novidades; O Pharol (Itajaí); Commercio (Joinville);Vanguarda (Campos Novos); Der Urwaldsbote (Blumenau); .

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FO R M A Ç Ã O U N I V E R S I T Á R I A E L I D E R A N Ç A SI N D Í G E N A S N A R E G I Ã O S U L

O desenvolvimento do ensino bilíngüe entre as populações Kaingang e Xokleng, a partir do anos 1970, associado aoincremento da presença das Igrejas Pentecostais e do

Conselho Indigenista Missionário provocaram a emergência denovas lideranças indígenas na Região Sul. Professores monitoresindígenas assumiram diferentes funções e, em alguns casos,chegaram à condição de pregadores, administradores ou caciquesde áreas indígenas. Diferentes conselhos indígenas foram criados,tanto por iniciativa dos índios e ONGs como de órgãos degoverno. Neste cenário, o ingresso em cursos universitárioscomeçou a ser uma aspiração para muitos indígenas, seja paramelhor exercerem suas funções, seja para assegurarem condiçõespara disputar as novas oportunidades de trabalho que passarama surgir no interior das Terras Indígenas, no seu entorno e naprópria Funai.

Movimentos indígenas não são fenômenos recentes noBrasil. Contudo, nesta comunicação tomaremos como referênciasituações ocorridas a partir dos anos 1970. A reunião que ocorreuem Barbados, em 1971, quando um grupo de antropólogos latino-americanos denunciou o genocídio e o etnocídio de que eramvítimas as populações indígenas, responsabilizando as sociedadesnacionais por tais práticas, é um marco de referência para acompreensão do que ouso chamar de “novos movimentosindígenas”. A repercussão da chamada “Declaração de Barbados”(GRÜNBERG, 1972) influenciou uma tomada de posição por parte

Apresentado na mesa-redonda “O diálogo intercultural como espaço e instrumento danova cidadania”. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 24, Recife, 2004.

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da Igreja Católica. A criação do Conselho Indigenista Missionário(CIMI) e a promoção de diversas Assembléias Indígenas, nummomento em que as praticas indigenistas governamentais eramextremamente autoritárias, foram estratégicas para aconscientização, formação e envolvimento de diferentes líderes.O mesmo aconteceu com a criação das primeiras organizaçõescivis (ONGs) de apoio aos índios, tais como a Associação Nacionalde Apoio ao Índio (Anaí), criada em Porto Alegre (RS) em 1977, eas Pró-Índio de São Paulo e Rio de Janeiro, fundadas tambémnos anos de 1977 e 1978.

Numa outra perspectiva, na Região Sul cabe destaque ainiciativa promovida pelo Summer Institut of Linguistics (SIL),com o apoio da Funai, sob a orientação da lingüista e missionáriaÚrsula Weisemann, que instalou em Guarita (RS) uma escola depreparação de professores monitores bilíngües. Esta iniciativapermitiu a reunião de diversos jovens Kaingang que eramoriginários de diferentes TIs em torno de um projeto escolar. Maistarde, alguns jovens Xokleng foram também envolvidos. Foi aprimeira vez que no Sul do Brasil jovens indígenas, com diferentesexperiências, puderam conviver e discutir a realidade de seuspovos. Embora tendo uma motivação religiosa, odesenvolvimento dessa proposta abriu novas perspectivas ecertamente influiu na formação de novos líderes. Durante algunsanos, esta proposta habilitou cerca de 20 a 30 jovens e logrou alocá-los como professores monitores em diferentes TIs. Esses monitoresforam contratados pela Funai, e, rapidamente, se tornaramprivilegiados observadores das práticas exercidas pelosfuncionários desta instituição. Sobre vários aspectos, osprofessores monitores tinham vantagens em relação aos antigoscaciques para o exercício da mediação entre os funcionários e osindígenas. Assim, muitos logo alcançaram uma condiçãodiferenciada no interior das comunidades que estavam a servir.

Foi, entretanto, durante o movimento que levou à expulsão dearrendatários e posseiros do interior das TIs, nos finais dos anos1970, que novas lideranças indígenas emergiram e se afirmaram.Em Mangueirinha (PR), o jovem cacique Cretã assumiu incontesteposição de destaque, denunciando abusos praticados por

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políticos, e empresários locais e regionais contra os indígenas esobre o patrimônio florestal da TI. Sua morte, algum tempodepois, em condições em que o acidente ou o ato criminosoficaram mal explicados, teve repercussão nacional. Em Nonoai(RS), em processo semelhante ao ocorrido em Mangueirinha eoutras TIs, emergiu o cacique Nelson Xangrê. A situação dessaTI era trágica. O governo do Rio Grande do Sul somente sesubmeteu à autoridade do SPI, como órgão federal responsávelpela política indigenista do Estado brasileiro, nos finais dos anos1950. Diferentes governos incorporaram diversas terras deocupação tradicional indígena ao patrimônio do Estado gaúcho.Os indígenas atingidos pelo arbítrio governamental foramtransferidos e incorporados às TIs remanescentes. A TI de Nonoaifoi sucessivamente dividida. Metade foi transformada em parqueflorestal estadual. Depois, já no governo Brizola, uma parcela doparque foi loteada e distribuída para colonos “sem terra”. Umaterceira área foi apropriada por um fazendeiro. O pouco quesobrou de terras nessa TI ainda estava arrendado ou ocupadopor posseiros. Foi aí que os indígenas liderados por Xangrê semovimentaram logrando a expulsão dos arrendatários eposseiros. A reação da sociedade regional, entretanto, nãodemorou. O cacique acabou deposto e passou a viver refugiado,temeroso por sua vida. Entre os Xokleng, a situação era outra. Onúmero de intrusos na TI não era significativo. Porém, nestemomento, exacerbavam-se as pressões regionais para a exploraçãodo patrimônio florestal controlado pelos índios. Tradicionalmente,o cacicado era exercido por índios Kaingang que haviam sidolocalizados na reserva pelo “pacificador”, com o objetivo defacilitar os trabalhos de atração e submissão dos Xokleng. Acooptação pela agência de proteção desses caciques era objetiva.Outros líderes Xokleng foram envolvidos, e, em conseqüência dafalta de condições para sobreviver, a exploração florestal seincrementou fortemente nos finais dos anos 1970, pois a ameaçada formação de um lago de contenção no interior da TI, emconseqüência da implantação da Barragem Norte, era umarealidade. Entre outros fatos, destacamos que, nesse momento,um grupo de líderes Kaingang e Xokleng pleiteou à Funai a

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cessação da tutela. Simultaneamente, as informações disponíveisdão conta de que a maioria dos indígenas que apareciam comolíderes formais estava de acordo com a exploração intensiva dosrecursos florestais da TI.

Tradicionalmente, entre os Xokleng, a liderança eramomentânea, e a organização social não tinha mecanismos paraestimular formas mais intensivas de cooperação entre os membrosdo grupo. O importante era o indivíduo que tinha waikayú, isto é,que tinha coragem, lutava com as onças, matava brancos e era omais bravo entre os bravos (HENRY, 1941, p.114-118). A mitologiaKaingang também relaciona bravura e coragem com a onça. Nocaso, não se trata de matar a onça, e sim de ter a onça como umaespécie de guia. O autoritarismo e a concentração de poder,bastante visíveis entre os Kaingang, poderiam ser assimrelacionados com quem tem força e astúcia, ou seja, com quem seidentifica e é identificado como tendo uma relação especial coma onça. Mas adianto que este é um ponto que merece maioraprofundamento. O fato a ressaltar é que alguns dos líderesXokleng e Kaingang são temidos e tolerados, provavelmente, porserem bravos. O movimento indígena no Sul do Brasil tomounovos ímpetos com as discussões que antecederam a elaboraçãoda Constituição Federal. Depois, em torno de questões ligadas àselaborações das Cartas Estaduais e do Estatuto do Índio, além daluta pela demarcação das terras indígenas, este movimento seconsolidou. Foram criados Conselhos Indígenas Regionais,Conselhos de Caciques Estaduais e Conselhos de Líderes Locais,além de Conselhos Estaduais com participação de lideranças, ede representantes de órgãos estaduais e federais. Os monitoresbilíngües se articularam. Outros funcionárioss indígenas dosquadros da Funai passaram também a ter participação ativa nasmais diferentes discussões. Tornaram-se comuns as candidaturasde indígenas a postos eletivos nos municípios onde estãolocalizadas as TIs. Movimentos localizados visando, por exemplo,à reintegração das terras do Parque Estadual à TI Nonoai; aindenização dos prejuízos causados pela Barragem Norte, emIbirama; a demarcação das terras do Toldo Chimbangue (SC); aindenização pelo asfaltamento de estradas no interior na TI

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Chapecó; a luta pela recuperação das terras do Toldo Iraí, etc.,tornaram-se freqüentes. Também passou a acontecer umadiscussão mais profunda em torno da ocupação de funções dechefia no âmbito da Funai, em particular nas AdministraçõesRegionais da Funai — ADRs e nos Postos Indígenas. Líderesindígenas formais acabaram controlando esses processos, de talsorte que aquelas características de bravura associadas à onça,parece, fizeram silenciar muitos burocratas “brancos”.

A substituição do administrador regional da ADR—Chapecó,em 1992, foi paradigmática. O PMDB indicou um político localsem maior expressão para o cargo. A falta de experiência doindicado no trato com a questão indígena era flagrante. Aslideranças indígenas que acompanhavam o processo aceitaram aindicação, desde que fossem aceitos três indígenas comoassessores do novo administrador. Como essas indicações não seconcretizaram no prazo estabelecido, numa reunião entre aslideranças e o administrador, alguns líderes o assustaram tanto,que este achou melhor abandonar o cargo. Logo em seguida, essesmesmos líderes apresentaram ao presidente da Funai o nome deum indígena, também líder, para ocupar a função deadministrador regional. E justificaram: “este pelo menos é índioe é bravo”. O novo administrador logo designou outros indígenas,parentes seus, como assessores imediatos. Colocou outrosparentes na chefia de postos da região. Prestigiou ou elegeucaciques de sua confiança. Na TI Ibirama, depois de uma intensadisputa eleitoral para a Câmara Municipal, com acirramento do“faccionalismo interno”, dois líderes indígenas, de partidosdiferentes, assumiram as funções de vereador. Logo em seguida,um deles foi escolhido para assumir a chefia da TI, com o aval doadministrador regional. Em conseqüência dessa escolha, umaúnica família passou a controlar todas as funções de mando formalna TI. Foi dessa forma que o novo administrador regional obtevea confiança da quase totalidade dos novos integrantes doConselho Indígena. Mister se faz lembrar que as TIs sempretiveram um grupo de servidores “brancos” que, bem ou mal,faziam a mediação entre a sociedade regional e os indígenas. Emtese, este grupo estava à disposição dos indígenas para orientá-

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los e socorrê-los. Ou seja, a infra-estrutura das TIs (outrorachamadas de Postos Indígenas ou Áreas Indígenas) estava aodispor dos índios. Conforme já demonstramos em outro lugar(SANTOS, 1970), a realidade não era essa. A exploração dopatrimônio da TI sempre esteve na mira dos mandatários daagência oficial de proteção, em particular após 1964.

Não se deve, pois, estranhar que o salutar exercício do poderpor parte de indígenas esteja permanentemente ameaçado decontaminação decorrente da avidez do processo econômico. Asterras e os recursos naturais existentes nas TIs têm valor e sãodisputados pela sociedade regional. Daí decorrem, quase sempre,o envolvimento de líderes indígenas e a conseqüente apropriaçãoindividual daquilo que deveria ser, e é, um bem coletivo. Note-se, ainda, que, neste processo, o absenteísmo da Funai, comoagência responsável pela prática do indigenismo oficial, éflagrante.

Segundo pesquisa recente realizada na jurisdição da ADRChapecó (SC) sabe-se da existência de 45 alunos Kaingangfreqüentando cursos de Ensino Superior. A Funai tem apoiadoparcialmente esses estudantes. Existe uma Associação de AlunosUniversitários Kaingang e Guarani, sediada em Chapecó (SC),para facilitar a obtenção de apoio e recursos financeiros quegarantam a manutenção dos estudantes.

C O N C L U S Õ E S

Apesar do que está expresso na CF referente aos povosindígenas, o Estado brasileiro continua a manter práticasindigenistas ultrapassadas. A burocracia instalada na agência deproteção oficial tem nítidas posturas corporativistas. O queinteressa a uma parte dessa burocracia é ter possibilidade deassumir o controle dos recursos financeiros alocados a projetosde suporte a certos grupos indígenas, impactados por projetosde “desenvolvimento”. Ou, então, o resguardo de suas condiçõessalariais. O indigenismo oficial, assim, é destituído de objetivos enão está voltado para a salvaguarda dos interesses dos povosindígenas assistidos. Está longe, muito longe, de se concretizar a

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idéia de Roberto Cardoso de Oliveira de traduzir a sigla Funaicomo Fundação das Nacionalidades Indígenas, fazendo esta opapel de um ministério do exterior no interior. Não é pequeno odistanciamento dos antropólogos desse indigenismodesenvolvido por indigenistas exclusivamente preocupados comsua sobrevivência funcional. Por outra parte, à sombra dosburocratas do indigenismo oficial, desenvolveu-se uma situaçãomuito particular. Diversos líderes indígenas assumiram funçõesnos quadros da Funai. A maioria desses líderes está cooptadapelos detentores de mando na agência oficial de proteção e pelasociedade regional, costumando se apropriar por si, ou por suasfamílias e facções, das diferentes vantagens que os cargos lhesasseguram. Isto tem criado diferentes tensões no interior dediversas TIs e, certamente, será motivo de graves conflitos nofuturo. O encaminhamento adequado dessas questões passa,certamente, pelo estabelecimento de novos pactos entre o Estadoe os povos indígenas. Uma nova política indigenista deve serdelineada e praticada. A presença crescente de indígenas nasesferas de decisão do órgão oficial de proteção deve ser ampliada,desde que centrada numa participação mais igualitária eresponsável. Assim sendo, qualquer discussão sobre os projetosde futuro de uma TI passa, necessariamente, pelo envolvimentodos líderes não formais que, em regra, estão mais afinados comos interesses de suas comunidades. Entre esses, certamente, osindígenas que estão freqüentando cursos de Ensino Superior.

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GRÜNBERG, Georg (Cord.). La situación del indígena en América del Sur. Montevideo:Tierra Nueva, 1972.

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Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC, 1970.SILVA, Priscila Ligniéres Ludovico da. Seu futuro depende de você, estude.

Florianópolis: UFSC (Trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais).Florianópolis: UFSC, 2004.

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HIROSHIMA OU A ÉTICA DO GENOCÍDIO

Setenta e cinco mil pessoas mortas. Milhares de homens, mulheres e crianças com lesões graves, necessitando até ofim de suas vidas dos mais variados auxílios de aparelhos,

medicamentos e atenção médica. Milhares de esterilizados,homens e mulheres. Milhares de condenados a não sereproduzirem por receio de gerarem deficientes. Milhares dehorrorizados. Milhares de descrentes da condição humana. Tudoisto conseqüência da primeira explosão atômica realizada comoato de guerra e tendo como alvo uma cidade. Hiroshima. Estenome, sem esquecer Nagasaki, deve estar sempre presente entretodos aqueles que lutam pela paz, pelos valores humanos, pelavida.

A violência da ação norte-americana em Hiroshimaultrapassou em muito todos os atos de guerra conhecidos. Asjustificativas alinhavadas até hoje não convenceram ninguém, anão ser aquelas pertinentes a um ato que pretendia justificar ahegemonia estadunidense em nível mundial. Para tal objetivo,pouco significado teria a população civil de Hiroshima. Tampoucomilhares de mortos e de mutilados. A ética que prevaleceu foi ado genocídio. Que diferenças há entre as vítimas de Hiroshima ea dos campos de concentração nazistas?

É de estarrecer o que os chamados aparelhos de Estado e suasburocracias podem decidir e realizar. Mais ainda, as burocraciasmilitares. A bomba lançada sobre Hiroshima foi ato muito bemplanejado. Nada falhou. E atrás da cidade em chamas, o mundointeiro se submeteu aos interesses das potências nucleares. Claro,

Publicado no Jornal O Estado, Florianópolis, em 11 de agosto de 1985.

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as experiências atômicas prosseguiram, e os estoques de ogivasse acumularam. Estoques para explodir a Terra uma centena devezes, se necessário. Os esforços para entrar no clube atômicotambém prosseguem. E até o Brasil não vê a hora de reinvidicarseu ingresso. Desgraça. Sim, talvez para nós, civis nãocomprometidos com o autoritarismo, com o colonialismo e coma chamada ordem mundial vigente. Para outros, não tanto. Afinal,já não somos uma nação produtora e exportadora de armas emlarga escala?

A violência, quando promovida e estimulada pelo Estado, nãoencontra limites. A guerra é apenas uma manifestação organizadadessa violência. Há múltiplas outras formas não tão explícitas deviolência. Destaco a exploração das nações ricas sobre as naçõespobres; a imposição de uma ordem social injusta, baseada emprivilégios; a violência da dominação étnica e racial. Já vai longea época em que as forças em luta se desfrontavam homem ahomem, oportunizando desafios e condições de sobrevivênciapara os contendores mais ágeis. Muito mais distantes tambémestão práticas tribais como as dos Tupinambá, que se enfrentavamem guerras para capturar vivos os mais valentes guerreiros,sujeitos a posterior sacrifício. A guerra que conhecemos é cadavez mais praticada por homens dominados pela máquina, pelatécnica, pela ciência.

Hiroshima e seu pesadelo são um fardo para toda a humanidade.Fardo que deve ser cotidianamente pesado, a fim de que seja semprelembrado. Isto, porque a catástrofe atômica não é algo intangível.Ela esta aí, ameaçando-nos a todos. Como defesa, temos muitopouco. Por isso, é fundamental uma consciência crítica sobre ofenômeno da militarização crescente das nações, associada a umavisão clara dos papéis nefastos que em nome do Estado podemexercer as burocracias, militares ou não.

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CHERNOBYL, MEIO AMBIENTE E BUROCRACIA

O desastre de Chernobyl e as conseqüências imediatas da nuvem radioativa que se espalhou pela Europa merecemuma ampla reflexão nesta semana do meio ambiente. Fui

testemunha involuntária e vítima potencial desta desgraça.Circulava na Europa, em países atingidos pelo aumento daradioatividade, coincidentemente ou por azar, desde o dia dodesastre, 25 de abril.

Inicialmente, o que me impressionou foram as notíciasdesencontradas e mesmo a falta de informações. As populações nãosabiam o que se passava. O cotidiano das cidades não foi alterado. Ocomércio, a indústria, os bancos, as escolas funcionaramnormalmente. Os turistas iam e vinham sem quaisquer limitações.Posteriormente, obtive informações com amigos sobre reaçõesocorridas em diversos pontos da Europa. Disto, depreendi que omedo e as preocupações maiores eram manifestos entre as pessoasjá conscientizadas sobre os limites da natureza diante das ambiçõesdesenfreadas dos homens. Nesse sentido, não foram poucos osprofessores e intelectuais que em diversos países proibiram seusfilhos de sair à rua para brincar ou mesmo para ir à escola nos diasimediatos ao desastre, numa vã tentativa de lhes resguardar a saúde.

As manifestações de protesto organizadas pelos movimentosecológicos, sociedades civis e partidos políticos comprometidoscom a preservação da natureza e, portanto, interessados na defesado homem não chegaram a ter a magnitude esperada. Em algunscasos, essas iniciativas foram mesmo insignificantes, diante dadimensão presente e futura do desastre.

Publicado em: Jornal O Estado Florianópolis, 6/jun./1986.

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Além da crença generalizada das benesses da ciência, aexplicação deste quadro envolve, a meu ver, tanto interesseseconômicos como políticos. Em tese, parcela ponderável daprodução agrícola européia está comprometida. O mesmo ocorrecom a produção de laticínios. Não foram poucos os comentáriosda imprensa sobre a contaminação do leite decorrente do fatode estarem as vacas expostas às chuvas radioativas, ouabsorverem quantidades de radioatividade através daspastagens. Também é de se lembrar que a Europa temnecessidade crescente de consumir energia elétrica. Oaproveitamento ou não da energia nuclear pode alterarsubstancialmente a economia européia. Outrossim, a questãopolítica tem que ser entendida acima de seus limites ideológicos.O silêncio inicial imposto pela URSS sobre o desastre não deveser compreendido como decorrente de uma oposição ideológicaao Ocidente. O que transparece, em meu entender, é o poderdas burocracias. Não importa que essas burocracias sejamobjetivamente estatais ou privadas, autoritárias ou não. Tantoassim, que os países do Ocidente europeu também não semanifestaram de forma clara e necessariamente contundentesobre o desastre e suas conseqüências. Tampouco houve maioresdivulgações sobre os acertos de cúpula, visando, em princípio,a resguardar os prejuízos econômicos sofridos de maneiramanifesta por alguns setores do processo produtivo, emparticular aqueles ligados à agropecuária. A preocupação detodos quando se manifestavam, entretanto, era a de transmitiruma idéia de eficiência no controle das conseqüências possíveisdo desastre, assegurando, afinal, que “não havia maiores riscospara ninguém”.

Por sua vez, a mídia eletrônica se deteve em intermináveisdebates científicos sobre a catástrofe. Nesse sentido, não se podealegar falta de informações. Contudo, ao promover mesas-redondas e discussões científicas sobre a questão com o naturalhermetismo dos cientistas convidados para tais debates, astelevisões acabaram afastando o público. Objetivamente,achamos que as populações não foram suficientementeinformadas sobre o que acontecia. Acrescente-se, ainda, o fato

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de ser a radioatividade algo insidioso, que atinge as pessoassem maiores alardes. Isto, evidentemente, criou uma fortedesconfiança popular para aqueles informes e protestos maiscontundentes.

Neste quadro, portanto, cabe uma reflexão maior. O desastrede Chernobyl foi apenas um exemplo da agressividade com queo homem está ocupando o espaço terrestre. Agressividade,evidentemente, que não foi, nem é, única. Agressividade que,efetivamente, está sendo patrocinada pelas burocraciasparticulares e governamentais, tanto do leste como do oeste.Agressividade que é tanto mais sofisticada quanto mais ricos ospaíses ou as empresas que patrocinam os grandes projetoseconômicos. Projetos que, objetivamente, tentam resguardar osprivilégios já obtidos, ampliando-os. Projetos que também,claramente, interessam aos privilegiados que gozam do poderde decisão e as benesses decorrentes. Por isso, cabe ampliar cadavez mais os grupos civis que se preocupam com o meio ambiente.Cabe apoiar as iniciativas desses grupos. Cabe contribuir para acrescente afirmação dos defensores do meio ambiente nosprocessos de tomada de decisão. Ou seja, cabe uma ação forte nosentido de discutir o meio ambiente a partir de uma visão políticacada vez mais crítica.

Por fim, cabe esclarecer que não há dúvida alguma sobre asameaças ecológicas que pesam sobre os países do TerceiroMundo. A internacionalização da economia e os interesses dospaíses ricos atestam isto de forma inequívoca. Aos países ricos,interessam o domínio tecnológico e o controle do capitalfinanceiro. Basta isto para justificar a aglutinação dos esforçosdos diversos grupos que estão hoje engajados na defesa do meioambiente, dos direitos do homem e na luta contra os privilégios,em particular os privilégios das burocracias estatais e privadas,objetivamente autoritárias ou não.

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ESPERA DO GADO NA TERCEIRA

Angra do Heroísmo, cidade de 25.000 habitantes, capitalda Ilha Terceira, Açores. Alto das Covas, um bairro central, dia 24 de junho, domingo. Integrando as “festas

joaninas”, que acontecem anualmente entre 23 e 29 de junho, eisque ocorreu logo após ao meio-dia, como parte da programaçãofestiva, a “espera do gado”. Ou, em termos catarinenses, realizou-se a “farra-do-boi”.

A “espera do-gado” em Angra é única nos Açores e sóacontece durante as festas de São João. Meia dúzia de touros,especialmente criados para tal fim, são soltos em ruas e praçaspreviamente escolhidas e anunciadas. Caminhõesestrategicamente colocados nas bocas das ruas impedem que osanimais tomem rotas imprevistas. Ao mesmo tempo, servem deplataforma para os muitos assistentes. As sacadas do casariocolonial, declarado patrimônio mundial pela Unesco, ficamapinhadas. Homens, mulheres e crianças, jovens e velhos dacidade, do interior da Ilha, das ilhas vizinhas, do continente,além de turistas, todos querem ver as brincadeiras. No centroda praça e nas ruas onde vai acontecer a “farra”, homens jovense maduros preparam-se para a chegada dos touros. Nas árvoresda praça e nos muros das residências, muitos procuram abrigoseguro. Outros desfilam sozinhos ou em pequenos grupos. Nãopoucos olhares, sorrisos e até palavras são dirigidas para asmuitas jovens que estão posicionadas nas sacadas e abrigos. Aocasião é também propícia para a aproximação entre os doissexos. Não poucos namoros começam aí. As lojas, os jardins e

Publicado originalmente em O Estado. Florianópolis, 11/set./1990. Republicado em DiárioCatarinense com o título “A farra nos Açores”, em 19/ago./1990.

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frentes das casas mais vulneráveis estão protegidos por tapumesde madeira não inferiores a l,50 m de altura.

A animação é geral. À medida que o momento da soltura dogado se aproxima, as expectativas aumentam. A movimentaçãose intensifica entre os que estão no meio da praça ou nas ruas.Não poucas mulheres e homens idosos tomam lugar nas sacadase sobre os caminhões. À uma da tarde, um foguete assinala queos animais foram soltos. A gritaria aumenta, na medida em queos animais se aproximam da praça, numa carreira perigosa.Muitos se apressam em buscar lugar seguro. Ao chegarem àpraça, os touros se dispersam, correndo para um lado e outro, àprocura de uma saída que não existe. Este é o instante em queos riscos são maiores para os “farristas”.

Uma distração pode ser fatal. Os animais, pressionados, emtodos tentam investir. As provocações são muitas por parte dosimprovisados toureiros. A cada correria, um frenesi. A multidãogrita, manifestando medo ou crítica àqueles mais temerosos que,logo ao aproximar dos animais, correm apavorados em buscade um refúgio seguro, nem sempre possível.

As situações de ridículo causadas pelo medo parecem alegraros observadores. Uma avaliação contínua dos atores, sejamparticipantes, sejam expectadores, está ocorrendo. Os animaistambém são considerados em função de sua maior ou menoragressividade. A multidão exige cada vez mais dos improvisadostoureiros e dos touros. A intenção é aumentar as correrias e asdemonstrações de coragem e ousadia. Volta e meia, um dosanimais leva vantagem e pega um desavisado. Situações fatais,porém, são raras.

Duas horas depois, tudo acabado. Dois foguetes assinalam ofinal da “farra”. Os animais são capturados e encerrados emgaiolas especiais e, depois, transportados para as fazendas decriação, à disposição de novas “corridas”. Aqui, não se matamos touros. Desarmam-se as barreiras feitas com os caminhões eas proteções às casas. A população debanda. Risos e comentáriossobre o acontecido se fazem ainda ouvir. Mas é fim de festa. Asposturas municipais são rígidas, e há que observá-las. A espera-farra acontece uma vez por ano, em horas e locais determinados.

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A sensação é de envolvimento total da população. Uma alegria,dizem todos.

Na Ilha Terceira, este tipo de “corrida” é única. Só ocorre nodia de São João. No resto do ano, entre abril e outubro, entretanto,acontecem as corridas de touro na corda. Neste caso, um únicotouro é colocado a correr, também em ruas e praças, preso poruma corda de 50 a 100 metros. Este cabo é seguro por um grupode homens, que controlam o espaço em que o animal pode fazersuas investidas. Na Ilha Terceira, esta é a forma mais comum de“brincar” com o touro.

Somente em 1989, ocorreram, devidamente autorizadas pelosconselhos locais, mais de 250 corridas. Todas também comhorários para começar e terminar. E para evitar que muitos ilhéusabandonassem o trabalho para participar das corridas de tourona corda, as autoridades da Ilha determinaram este ano que taiscorridas só poderiam ter início após as 18 horas, encerrando-seduas horas depois. A “espera do gado” em Angra, porém, porsuas características e envolvimento, aparece como expressãomaior deste ritual de enfrentamento entre homem e touro. Porisso, merece ter horário especial. Sempre acontece dia 24 de junho,por volta das 12 horas. Nao é por outra razão, também, que énesta data que o turismo encontra seu auge na Ilha.

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C E M A N O S D E L I B E R D A D E E P O B R E Z A

Estamos comemorando o centenário da abolição doescravagismo no Brasil. Maio, 13, ano de 1888. A princesaassinou a Lei redentora. A liberdade estava dada. O País

ficava livre de uma chaga social. Ficava também modernizado,pois deixava de ter castas: a dos homens livres e a dos homensescravos. Definitivamente, se instalava uma nova ordem social.Ano e meio depois, a democracia chegava propondo ordem eanunciando progresso, com a República.

Será que, efetivamente, isto aconteceu da maneira como a históriaoficial transmite nos livros didáticos de História e OSPB? Quais asforças que levaram ao Império assumir sua própria autodestruição?

Não pretendemos falar das contribuições do negro à cultura e àsociedade brasileiras. Nem do Carnaval, do futebol, da música, dadança, dos cultos afro, etc. Queremos apenas focalizar algunspontos para uma reflexão que estimule o resgate da verdadehistórica. Creio que devemos isto, neste momento, ao homem negro.

Lembro, primeiro, que o Brasil foi um dos últimos países daAmérica a acabar com a escravidão. A luta abolicionista no País,apesar de seus heróis, foi, na verdade, diminuta. As teorias sociaisque haviam fundamentado a Revolução Francesa, de 1789, e osideais de liberdade e igualdade tiveram pouca repercussão entrenós, simplesmente porque a maioria absoluta da população eraanalfabeta. Segundo, a burguesia que dominava a Colônia e, depois,o Império, era essencialmente agrária, totalmente dependente dotrabalho escravo e voltada para o mercado europeu.

Neste contexto, podem se entender as resistências às iniciativas

Publicado originalmente em O Estado. Florianópolis, 13 maio de 1988.

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anti-escravagistas e a forte repressão aos movimentos libertáriosconduzidos pelos próprios negros, como por exemplo, os quilombos.Mas não é por esse caminho que se podem explicar medidas legaiscomo as leis do ventre livre e cessação do tráfico negreiro.

Na verdade, ontem, como hoje, para entender o que aconteceno Brasil é preciso estar atento para o contexto externo. No séculoXIX, a Inglaterra se afirmou como senhora do mundo colonial. Umforte surto industrial ocorreu na Europa. A importação de matérias-primas mantinha em atividade uma enorme frota de barcos a vela.Barcos que faziam as rotas metrópole-colônia vazios, porque nãohavia consumidores nas colônias. Isto se modificou no século XIXou um pouco antes. Na ida, agora iam migrantes para as colônias.A Europa havia descoberto uma forma de se desfazer de seusexcedentes populacionais; de aproveitar a capacidade ociosa dasembarcações; e de criar condições para a implantação de economiasmonetárias nas áreas coloniais.

O passo seguinte foi o de dar um fim à escravidão. Isto era umimperativo para a expansão das economias monetárias ealargamento dos mercados consumidores de manufaturados. Porisso, a Inglaterra assume posições, ditas humanitárias, para fazercessar o tráfico negreiro no Atlântico Sul. Por isso, também, o Brasilvai incrementar a imigração.

Emprego, escolas, saúde, acesso à terra, etc., após o 13 de maio,nem pensar. O negro, efetivamente, passou a ser livre, porém nãoalcançou a cidadania. Continuou um indivíduo de segunda classe,sem direitos, sem destino e sujeito ao preconceito do branco.

Sua luta por ascensão social tem sido dura e destituída defacilidades. Facilidades que não são favores, e sim direitos.

Compreenda-se, por fim, que o Brasil é um país negro. Apesardo IBGE, a população negra e mulata é majoritária. Ela também émajoritária como população subempregada, mal nutrida eanalfabeta. O negro só é minoria quando se pensa sobre o númerode negros que têm acesso aos centros de poder ou a padrões sociaise econômicos mais elevados. O negro, pois, continua vítima deuma estrutura social perversa. Uma estrutura madrasta que,entretanto, tem sabido se manter rechaçando alternativas para aplena cidadania das maiorias deserdadas.

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O PANORAMA SOCIODEMOGRÁFICONO INÍCIO DO SÉCULO

Segundo o recenseamento realizado em 1900, a população de Santa Catarina era de 320.289 pessoas, sendo l6l.558 homens e 158.731 mulheres. Anteriormente, em 1872, data

do primeiro censo, a população atingia 159.802 pessoas. Depois,em 1890, quando ocorreu o segundo levantamento populacional,os dados apontam 283.769 residentes. A confíabilidade dessesdados deve ser relativizada, pois não poucas eram as dificuldadespara a realização de um levantamento populacional no interior,onde as estradas não passavam de trilhas e a população rural erabastante rarefeita. A referência básica eram os assentamentosexistentes nas paróquias. Nesses primeiros levantamentoscensitários, não aparecem indicações quanto à idade, à cor, àescolaridade e, muito menos, à situação econômica dos moradores.

Em 1900, o Estado de Santa Catarina contava com 25municípios. Blumenau e Florianópolis apareciam como as cidadesmais povoadas. No Planalto, Lages apresentava-se como oprincipal núcleo urbano. O Oeste inexistia, e no Sul, Lagunacomeçava a ceder espaço para Tubarão, Araranguá, Urussanga eCriciúma.

É de se compreender que, nesse momento, Santa Catarina aindanão tinha a conformação territorial que conhecemos hoje. Adefinição da fronteira com a Argentina havia ocorrido em 1897,quando, através da mediação do presidente Grover Cleveland,dos Estados Unidos, o Brasil acertou suas divergências com opaís vizinho, na assim denominada área de Palmas (ou Missões,

Publicado em A realidade catarinense no século XX. Fpolis.: IHG/SC, 2000. p. 105-120.

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para os argentinos). Entre 1900 e 1904, uma Comissão Mistademarcou a fronteira, abrindo picadas, levantando coordenadasgeográficas, desenhando mapas e fixando marcos em pontosestratégicos. A tarefa foi executada essencialmente por militares,envolvendo a definição dos limites ocidentais (Oeste) dos atuaisEstados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.

De outra parte, desde 1853, quando foi criada como Província,políticos do Paraná reivindicavam estender seus limites até o RioUruguai. Essa pretensão teve, como sabemos, váriosdesdobramentos políticos, jurídicos e socioeconômicos, além daGuerra do Contestado. Guerra que trouxe à tona faces daorganização do Estado brasileiro, em particular, da hierarquia depoder assentada na força militar e nos interesses econômicos,internos e externos, e num verdadeiro desprezo pela realidadesocial das populações subalternas.

A definição dos limites de Santa Catarina com o Paraná sóaconteceu em 1916, quando, por pressão federal, foi estabelecidoum “acordo” entre os dois Estados. Santa Catarina adquiriu,assim, os contornos geográficos que apresenta hoje, se nãoconsiderarmos o episódio do Território do Iguaçu (1943—46).

Foi ainda no contexto da definição dos limites com o Paranáque, em 1917, o governo de Santa Catarina criou os municípios deMafra, Porto União, Joaçaba (Cruzeiro) e Chapecó. O objetivo eraadministrar a área que, até então, estava em disputa. A instalaçãodessas sedes municipais, com as conseqüentes presenças dascomarcas judiciárias, paróquias e unidades escolares, foi a baseque passou a fundamentar a conquista do Oeste.

E T N I A S E T R A D I Ç Õ E S C U L T U R A I S

Na passagem do século, a população luso-açoriana eramajoritária nas cidades e vilas do litoral. Na região dos campos deLages, que incluía Curitibanos e Campos Novos, predominavamos descendentes de paulistas. Essa população tinha suas raízes emPortugal, nos Açores e na Madeira, e em São Paulo. A mestiçagemestava há muito tempo presente, envolvendo os indígenas da terrae os negros, importados como escravos da África.

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Como sabemos, em Santa Catarina primeiro aconteceu aocupação do litoral, no cenário da estratégia portuguesa deexpandir seus domínios em direção ao Rio da Prata. Depois, noséculo XVIII, a região de Lages acabou sendo ocupada porpaulistas interessados em manter o “caminho de tropas”, queligava o Rio Grande às feiras de Sorocaba, em S. Paulo.

No litoral, os luso-açorianos marcaram a paisagem praticandoa pesca, explorando pequenas propriedades agrícolas, construindofortalezas e atuando na incipiente burocracia do Império e, depois,da Província. Na região dos campos de Lages, a população seidentificava com a economia pastoril, com a fazenda de criação.Como dissemos em outro lugar (SANTOS, 1971), os hábitos devestir, com bombachas, botas e esporas, com o tradicional chapelãoe seu barbicacho, e o poncho usados nos dias frios; a maneira defalar com regionalismos peculiares, e o modo de agir deram àpopulação serrana uma identidade à gaúcha. Mas esta identificaçãoé apenas aparente. As raízes da “gente da serra” estão em São Paulo,e não no Rio Grande do Sul. Foram os paulistas que fundaramLages, estabelecendo as primeiras fazendas e fixando as bases dodomínio que, mais tarde, vieram a dar motivo às reivindicaçõesdo Paraná sobre seus limites ao sul.

Embora tendo trajetórias históricas diferentes, essas populaçõestinham em comum a língua, a religião e a noção de pertencimentoà embrionária identidade nacional. A base cultural era a mesma,de origem portuguesa, enriquecida pelas contribuições indígenae africana. A família tinha uma organização centrada no domíniopaterno, exercendo a mulher, quase sempre, um papel secundário.A mulher ideal era aquela que paria muitos filhos; que viviareclusa no lar, ocupada com os trabalhos domésticos; que seencarregava da educação dos filhos. As famílias, sob algunsaspectos, se aproximavam daquilo que em Antropologiachamamos de “famílias extensas”. Festas do Divino, do SantoPadroeiro, as disputas políticas e, às vezes, as guerrasmovimentavam tanto as pequenas cidades como as áreas rurais.

Poucos eram os que tinham recursos mais expressivos,representados por propriedades e dinheiro. A maioria vivia daprodução de subsistência, com eventuais vendas de excedentes.

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O trabalho braçal era a tônica. O transporte de mercadorias eraassegurado pelos barcos a vela, pelos “vapores” que ligavam osportos do litoral ao resto do País, por umas poucas linhas de trem epelas tropas de muares. Na capital e em algumas cidades, circulavamalguns jornais, geralmente servindo de instrumento para o controlepolítico da população. As condições sanitárias eram precárias, poisna passagem do século ainda não havia redes de água encanada ede esgotos. A eletricidade somente chegou a Florianópolis eBlumenau na primeira década do século XX. As doenças endêmicasgrassavam, e a expectativa de vida girava em torno de 50 anos. Nasprincipais cidades, poucos eram os leitos hospitalares disponíveis;raros eram os médicos; escassos eram os estabelecimentos de ensino,públicos e privados. Na zona rural, em particular nas fazendas decriação, as primeiras letras eram ensinadas pelos próprios pais,quando esses eram alfabetizados. Mais raramente, quando se tratavade ricos proprietários, eram contratados professores itinerantes paraproceder à alfabetização da meninada.

Os incentivos governamentais à imigração facilitaram alocalização de alemães e italianos, inicialmente nos vales litorâneosdo Itajaí, Cachoeira e Tubarão. Esses imigrantes marcaram apaisagem com a exploração familiar de pequenas propriedadesrurais e a instalação, junto às sedes das colônias, de pequenosempreendimentos industriais. Em algumas dessas colônias, com oapoio dos países de origem, foram instalados escolas, igrejas,bandas, clubes de tiro, etc. Ainda no século XIX, jornais em línguaalemã começaram a ser editados em Blumenau e Joinville. Napassagem do século, diversos núcleos coloniais estavamconsolidados como cidades. As atividades econômicas garantiamtanto o abastecimento local como a exportação de diversosprodutos; e começava a se esboçar a participação de imigrantes,ou de seus descendentes, no processo político estadual e nacional.

A maioria dos imigrantes foi inicialmente localizada em áreasrurais, objetivando a exploração agrícola. Os lotes de terras tinhamcerca de 25 ha. Pressupunha-se que este era o módulo ideal parauma família. Em regra, os imigrantes eram jovens. Assentadosem seus lotes, tendo parentes ou amigos como vizinhos, tratavamde desbravar a terra, para logo realizarem as primeiras culturas.

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As administrações das colônias asseguravam uma certa base paragarantir a sobrevivência dos recém-chegados. Muitos imigrantesforam envolvidos na abertura de estradas ou de outras obras,com o objetivo de lhes assegurar alguns ganhos. O crédito para aaquisição de ferramentas, sementes, armas e munição tambémexistia, na maioria dos casos. Os países de origem dos imigrantestambém asseguravam uma certa assistência.

Por tudo isto, muitos imigrantes tiveram sucesso. Novascolônias, oficiais e privadas, gradativamente, foram sendo abertaspara abrigar os descendentes que careciam de novas terras oupara atender às novas levas que chegavam. Numa perspectivada Antropologia, se poderia dizer que esses imigrantes formavamuma “frente agrícola” que se expandia gradualmente pelos valesacima a cada 20 anos, ou seja, quando da formação de uma novageração. Efetivamente, se tomarmos o Vale do Itajaí comoreferência, percebemos que a Colônia Blumenau, criada em 1850,teve sua expansão marcada pelas fundações de Timbó e Indaial,por volta de 1870; Ibirama, 1890; e Rio do Sul, 1910,aproximadamente.

Nas colônias, as relações sociais tinham dinâmicas um tantodiferenciadas daquelas que predominavam no litoral e na serra. Aagressividade das relações econômicas era mais intensa, pois oimigrante chegava com o objetivo explícito de melhorar suascondições de vida, isto é, de obter sucesso econômico. Poder-se-iadizer, lembrando Max Weber, que o espírito do capitalismo estavamarcadamente presente nessas relações. A valorização do trabalho,a engenhosidade e a abertura para a adoção de novas tecnologias,o gosto pelas atividades culturais, eis algumas características quelogo passaram a ser reconhecidas como próprias da maioria, dosimigrantes. A indústria apareceu e se afirmou em muitas colônias,num contexto que deve incluir as experiências vividas pelosimigrantes ainda na Europa; a existência de um mercadoconsumidor; a possibilidade de importação de máquinas e detecnologia; a existência de capitais entre os imigrantes; e aspossibilidades de exportação da produção excedente.

Ainda em termos de relações sociais, poderiam enfatizarpráticas de cooperação para o alcance de metas econômicas ou

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para a concretização de obras que eram de interesse comum, comopor exemplo, a construção da escola ou da igreja. De maneiragenérica, e talvez por todos estarem vivenciando experiênciasnovas, pode-se dizer que as relações sociais eram relativamenteintensas nas áreas coloniais. As festas aconteciam motivadas porcasamentos, batizados, inaugurações de igrejas e clubes. Asvisitações aos parentes, nessas ocasiões, eram comuns,especialmente quando esses viviam em comunidades vizinhas.Daí, decorram, talvez, as motivações que vieram a permitir asprogramações das festas, que hoje marcam o calendário de muitascidades do Estado.

De outra parte, muitos núcleos coloniais mantinham estruturasde poder que os fechavam em torno de si mesmos. Nesse sentido,a noção de pertencimento estava voltada para o próprio“umbigo”, isto é, para a própria colônia, ou, ainda, para o país deorigem. Essa situação, com o decorrer dos tempos, e especialmenteapós a malconduzida “campanha de nacionalização”,e a SegundaGuerra Mundial, se alterou. Mas, na passagem do século, tudoindica que as identidades e lealdades tinham como referênciasprimeiras os países de origem e as próprias colônias. O Estado deSanta Catarina e o Brasil, para a maioria, parece, eram referênciassecundárias e um tanto estranhas, para não dizer distantes.

N E G R O S , C A B O C L O S E Í N D I O S

O Brasil foi o último país da América a declarar o fim daescravidão. Em Santa Catarina, o movimento antiescravagista tevemaior expressão na capital e em algumas cidades do sul. Onúmero de escravos não era muito elevado (cerca de 10.000, em1881, segundo CABRAL, 1968), pois a base econômica, devido àimigração, já estava assentada no trabalho livre. Isto, entretanto,não minimiza as agruras vividas pela população negra nemdesonera a dívida social que temos, ainda hoje, para com seusdescendentes.

Na passagem do século, alguns grupos de ex-escravos e seusdescendentes já formavam pequenas comunidades em locaisperiféricos às cidades ou vilas. Em alguns casos, ocupando terras

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cedidas por particulares ou tolerados pelas autoridades, no casode terras públicas. Em alguns poucos casos, terras devolutas emáreas rurais ou glebas doadas por beneméritos cidadãospermitiram uma ocupação comunitária. Mas não há dadosconfiáveis que permitam estimar o número dessa população,identificada hoje como afro-brasileira. O fato a registrar é queessa população se encontrava, em maioria absoluta, nos escalõesinferiores da pirâmide social e não tinha quaisquer perspectivasde ascensão.

A sociedade escravocrata que se havia desenvolvido no Brasilimpôs uma rígida separação entre brancos, negros e mulatos. Oescravo, durante séculos, fora visto como objeto e vivia totalmentesujeito a seu senhor. Alienados de sua condição social, os escravostiveram poucas oportunidades de reação. Mas elas ocorreram.As fugas para o interior do sertão e a formação de quilombostambém aconteceram. Em muitas situações, houve aproximaçõescom indígenas, daí resultando casos de miscigenação. Hoje, algunsgrupos remanescentes lutam para lograr a identificação e ademarcação das terras que se tornaram de ocupação tradicional.Trata-se de pequenas comunidades rurais, que desenvolverampráticas coletivas de resistência e de sobrevivência.

Nas áreas urbanas, como conseqüência da presença de escravosenvolvidos nas lides domésticas e de outros subordinados aprojetos econômicos que necessitavam de mão-de-obra demaneira intensiva, ocorreram dois processos de inserção na novaordem da sociedade de classes que se instalou no país após aAbolição. O primeiro se compromissou com um “ideal debranqueamento”, aceitando o preconceito e as diferenciaçõessociais entre brancos e negros. O segundo centrou-se numa“ideologia da negritude” denunciadora da espoliação socialvivida pelos negros. A exclusão social e econômica explícita daspopulações negras continua presente neste final de século, sendoo maior obstáculo para superar a sua alienação social.

À margem da ordem escravocrata, gradativamente foram seestabelecendo em distantes pontos do sertão fugitivos da lei edos patrões, desertores dos exércitos em guerra e peões expulsosdas fazendas de criação. A sobrevivência desses indivíduos era

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garantida pela fartura da natureza, que permitia a caça, a pesca ea coleta abundantes. Pequenas roças cultivadas nas “coivaras” ea extração da erva-mate garantiam o resto.

A miscigenação de “brancos”, indígenas e negros foi comum.Formaram-se, assim, diferentes redutos habitados basicamentepor “caboclos”. Essa população era essencialmente pobre.Raramente algum indivíduo era alfabetizado. O pouco queconseguiam como excedente na produção permitia a aquisiçãodo essencial em termos de roupas, ferramentas, munição e sal.Esses excluídos sociais, em boa parte, acabaram envolvidos pelaexpansão colonial que ocorreu em Santa Catarina. Serviram comoagregados nas fazendas; participaram de diversas guerras, emlealdade aos patrões; foram mateiros e guias dos serviços deagrimensura; serviram como mão-de-obra nas tarefas deinstalação das colônias; exerceram o ofício de “caçadores deíndios”, ou seja, de bugreiros, por imposição do sistemagovernamental; finalmente, como seguidores dos monges,acabaram envolvidos na Guerra do Contestado.

Os bolsões de floresta, onde os imigrantes começaram a serlocalizados nos vales litorâneos, era território dos índios Xokleng.Mas para o Oeste, às margens dos campos que estavam sendoocupados por fazendas de criação, os Kaingang e Guaraniexerciam seus domínios. Esses grupos reagiram de diferentesformas à presença dos “brancos”, conseguindo chegar ao presente.

A reação dos Xokleng tornou-se paradigmática do processode conquista da terra na Região Sul. Esses índios foramenvolvidos, simultaneamente, pelas frentes de colonização quese instalaram no Rio Grande, Santa Catarina e Paraná. Eramnômades, praticantes da caça e da coleta. A floresta, com sua faunae flora, era fundamental para a sua sobrevivência.

Intensificando-se a colonização, a cada dia mais terras eramtomadas aos Xokleng. À falta de como prover suas necessidadesalimentares, os indígenas passaram a assaltar as propriedadesdos colonos. Ou a atacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito.A violência cresceu quando as companhias de colonização e osgovernos provinciais passaram a subsidiar grupos armados quese adentravam no sertão para dizimar os índios. Bugreiro foi

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profissão criada pelo capitalismo em expansão para afugentar“pela boca da arma” os índios avessos à submissão. Essa tragédiasó foi parcialmente controlada com a criação, em 1910, do Serviçode Proteção aos Índios (SPI), que logrou a “contatação” de algunsgrupos Xokleng.

Não se pode esquecer, neste momento, a luta travada poraqueles que se opunham ao extermínio indígena. Em 1906, porexemplo, foi criada em Florianópolis a Liga Patriótica para aCatechese dos Selvícolas, numa exitosa iniciativa do major-engenheiro Pedro Maria Trompowsky Taulois. A Liga teve comopresidentes de honra o governador Gustavo Richard e o vice-governador Abdon Baptista. No ano seguinte, a Liga comissionouo viajante e antropólogo tcheco Albert Vojtech Fric para realizartrabalhos de atração dos Xokleng no Vale do Itajaí. A tarefa deFric não era fácil, e ele foi hostilizado por órgãos de imprensa epor autoridades locais. Por trás dos objetivos da Liga, estavampropostas progressistas defendidas por positivistas e maçons, nemsempre aceitas ou compreendidas.

Fric acabou sem condições de executar seus planos, mas nãoabandonou o propósito de contribuir para salvaguardar os interessesdos indígenas. No XVIII Congresso Internacional de Americanistas,realizado em Viena em 1908, ele denunciou as violências que secometiam no Sul do Brasil, em particular em Santa Catarina, contraos índios com o objetivo de liberar as terras para os imigrantes. Essadenúncia provocou o repúdio da Alemanha e, no Brasil, de Hermannvon Ihering, cientista de origem alemã que dirigia o Museu Paulista.Ihering aproveitou a oportunidade em que recebia o título de “sóciohonorário” do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo parafazer um pronunciamento rebatendo as críticas de Fric. O debatetomou vulto, e desse confronto de idéias emergiu a necessidade deo Estado assumir a ação protetora, o que aconteceu através da criaçãodo Serviço de Proteção aos Índios, anteriormente referida. Percebe-se a importância do debate e o poder das idéias. Percebe-se, também,que tanto na capital como no interior, havia uma elite intelectualcapaz de assumir pontos de vista diferentes e conseqüentes com asdivergências político-ideológicas do mundo de então.

No Oeste, desde o século XVIII, quando da abertura de um

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outro “caminho de tropas” que cortava os “Campos de Palmas”ligando a região das Missões, no Rio Grande, às feiras de Sorocaba,em São Paulo, os índios Kaingang e Guarani sofriam os impactosda convivência com os “brancos”. Com a instalação da ColôniaMilitar Chapecó, onde hoje se situa a cidade de Xanxerê, em 1882,os Kaingang aldeados na região se sentiram animados para solicitarao governo uma área de terras onde pudessem viver sossegados.Há muito, experimentavam toda a sorte de violências, destacando-se a prostituição das mulheres e o trabalho compulsório (escravo)dos homens, imposto por tropeiros, ervateiros e pelos primeirosdonos de fazendas na região. Foi atendendo aos reclamos dessesindígenas e, ao mesmo tempo, já pretendendo a liberação de terraspara a colonização, que o governo do Paraná, em 1902, criou umareserva indígena entre os Rios Chapecó e Chapecozinho. Essareserva, hoje denominada TI Chapecó, é formada por terrasremanescentes daquela que o governo do Paraná criou, sob ajustificativa de ter jurisdição sobre a área.

Quantos indígenas havia em Santa Catarina em 1900? Esta éuma questão difícil de ser respondida. Sabe-se que o extermíniodos Xokleng estava em pleno andamento. E os Guarani eKaingang estavam submetidos às mais diferentes violênciaspraticadas pelos “brancos”. O fato importante que deve serdestacado é aquele relacionado à presença indígena em todo oterritório de Santa Catarina. É temerário falar em números, mascertamente não se pode continuar a pensar que o Estado antes edepois da chegada dos “brancos” era desabitado, implícito naexpressão “vazio demográfico”, que aparece em diferentesdiscursos e textos oficiais. Percebe-se, assim, que a terra foiusurpada ao índio pela força. O imigrante também foi, em muitoscasos, vítima. Os governos e as companhias de colonização nãotinham interesse em alertá-lo sobre a presença indígena. E quandoocorreram reclamações diplomáticas sobre a insegurança vivida,o Brasil minimizou as queixas e denúncias. Passou, contudo, acriar reservas para o confinamento dos grupos indígenassobreviventes, liberando em definitivo seus territóriostradicionais. Os indígenas que sobrevivem hoje em Santa Catarinavivenciam condições precárias de vida. Muitos ainda reivindicam

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a demarcação de terras de ocupação tradicional. Outros, como osGuarani, em maioria circulam pelas rodovias vendendoartesanato e trabalhando como “bóias-frias”. A ação indigenistado Estado continua precária, para dizer o mínimo, neste final doséculo XX.

M O D E R N I D A D E E G U E R R A N O S E R T Ã O

Ainda no Império, o Brasil projetou uma ligação ferroviáriaentre São Paulo e o Rio Grande do Sul. Além de motivaçõesmilitares, havia interesse em articular a malha ferroviária que seconstruiu no Rio Grande com o centro do País, visando à melhorcirculação da produção. Esse projeto foi concretizado em 1910,quando o trecho entre União da Vitória (PR) e Marcelino Ramos(RS) foi concluído. Uma empresa norte americana foi responsávelpela obra, mediante a cessão pelo governo federal de 15quilômetros de terras de cada lado do eixo da ferrovia.

Nesse último trecho, a estrada seguia o curso do Rio do Peixe,afluente do Uruguai. Tal área, desde a criação da Província doParaná, em 1853, vinha sendo disputada. O Paraná pretendeuque seus domínios a sudoeste fizessem divisa com o Rio Grande.Santa Catarina contestou e recorreu ao Supremo Tribunal Federal.A discussão se arrastou pelos escaninhos da burocracia jurídica.Em 1904, Santa Catarina obteve decisão favorável a seu pleito noSupremo. O Paraná, porém, opôs sucessivos embargos.

Era essa a situação, quando a Brazil Railway Companycomeçou a assentar os trilhos e a expulsar os posseiros das terrasde sua concessão. Um corpo de segurança, com cerca de duzentoshomens armados, fazia valer os interesses da empresa. Umagrande madeireira foi instalada pela companhia para explorar asflorestas de pinheiro e imbuia que cobriam a região. Ao final dostrabalhos de assentamento de trilhos, em Marcelino Ramos, acompanhia dispensou um grande número de operários que haviatrabalhado na obra, sem qualquer indenização.

Essa massa de trabalhadores desempregada e centenas deposseiros que haviam sido expulsos de suas terras em função daconcessão dada pelo governo se transformaram no estopim que

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levou à deflagração da Guerra Sertaneja do Contestado (1912—1916). O aglutinador, entretanto, desses elementos foi a crençaque se espalhara na região a respeito dos poderes sobrenaturaisde um monge identificado como santo, o São João Maria. Quandomorreu, o imaginário popular criou a expectativa de seureaparecimento. Logo, surgiu outro monge, intitulando-se JoãoMaria de Jesus, e que faleceu por volta de 1906. E, depois, oterceiro, que se identificava como José Maria d’Agostini. Suaspregações atraíam o povo, dando-lhe esperanças do surgimentode um mundo melhor, mais justo, mais humano.

A presença de José Maria em Curitibanos provocou a interferênciado governo de Santa Catarina, que sugeriu a sua transferência e a deseus seguidores para o outro lado do Rio do Peixe. Mas o governodo Paraná não concordou. Tropas foram enviadas para expulsar os“catarinenses invasores”. Ocorreu o combate de Irani, quando ocomandante das tropas do Paraná foi morto. Tambem morreu omonge José Maria. A guerra estava começada.

O conflito de Canudos (Bahia) estava presente na memórianacional. No Contestado, circulava também uma indisposiçãocontra a República. A espoliação dos posseiros pelo governo emfavor de uma companhia estrangeira era um fato. Neste quadro,se deu a reação governamental. A resistência cabocla surpreendeu.Ocorreram treze expedições militares. Pela primeira vez no Brasil,utilizou-se o avião como arma de guerra. Acredita-se que maisde 20.000 pessoas estiveram envolvidas, e alguns milhares forammortos. Em 1916, o conflito foi dado por encerrado. Paraná e SantaCatarina definiram um acordo, homologado pelo governo federalem 1917, dividindo quase meio a meio a área conflagrada.

A modernidade chegou a Santa Catarina, assim, pelos trilhosda São Paulo — Rio Grande e pelo uso do avião como instrumentobélico. A população cabocla da região foi dizimada. Em seu lugar,ao lado dos trilhos, surgiram novas colônias. A frente pioneirainiciada pelos imigrantes no Rio Grande do Sul, no século anterior,logo começou a se movimentar em direção ao antigo territóriocontestado. Novos imigrantes chegavam. A modernidade, odesenvolvimento e a miséria se confundiram num único processo.

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P O D E R A U T O R I T Á R I O E V I O L Ê N C I A

É ilusório pensar que o Brasil é um “país cordial”. A violênciasempre esteve presente no cotidiano das relações sociais e, emparticular, como maneira de afirmação dos detentores do poder.Proclamada a República, com a queda de Deodoro, vimos explodiraqui no Sul a Revolução Federalista. Os revolucionários gaúchose seus seguidores, alcunhados de “maragatos”, bem como astropas legais, apelidadas “pica-paus”, praticaram não poucasiniqüidades contra a população civil nos Estados do Sul. Aspraticas da “sangra” e do fuzilamento foram comuns, de parte aparte. Na Ilha de Anhatomirim, próxima a Florianópolis, foramfuzilados a mando de Moreira César, preposto de FlorianoPeixoto, diversos militares e civis. Em seguida, Hercílio Luz,governador nomeado, promove a mudança do nome da cidadecapital do Estado. Desaparece Desterro. Surge Florianópolis. Tudodecidido arbitrariamente, embora tenha havido manifestação do“Congresso Representativo”, isto é, da Assembleia Legislativa,que aprovou por unanimidade a Lei nº 111, de lº de outubro de1894. Detalhe importante a destacar: neste momento, não haviaoposição no Congresso. Floriano, o vice-presidente que assumiraarbitrariamente poderes ditatoriais, estava sendo homenageadonão pelo povo catarinense, mas sim por uma parcela da elite quechegava ao poder. Parcela que fora responsável, pouco antes, pelaeliminação física e o silenciamento, pelo medo, da facçãooponente.

É de se compreender, portanto, que durante a Guerra doContestado muita violência fosse cometida. Os caboclos emguerra, crentes das profecias dos monges e desesperançados coma justiça dos poderosos, viram cair sobre si a força da repressãooficial. Civis armados pelo Estado fizeram o trabalho sujo,matando quem tinha e quem não tinha envolvimento com aguerra. A degola foi comum, mesmo daqueles que seaproximavam das tropas legais em busca de proteção. Por suavez, os caboclos não deixaram de dar o troco, embora o númerode militares vitimados na guerra tenha sido infinitamente menor.

É de se compreender, também, que por trás da repressão oficial

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estava o projeto de criação de um Estado nacional unitário, sob oponto de vista étnico e cultural. O Brasil estava em construção.Construção como Estado republicano, centralizado e autoritário.Estado que concentrava, ou pretendia concentrar, o monopólioda violência através de suas forças militares e policiais.

Em Santa Catarina, a noção do Estado nacional levou osgovernos locais a incrementarem ações voltadas para a criaçãode um sentimento de pertencimento, isto é, a construção de umaidentidade catarinense. No primeiro governo de Hercílio Luz(1894—98), foram instituídos o brasão de armas, a bandeira e ohino do Estado. Também foi definido o primeiro mapa doterritório catarinense. Logo em seguida, em 1896, foi criado, como apoio governamental, o Instituto Histórico e Geográfico. OInstituto aparece como uma instituição não-governamental, masassumiu incumbências de definir a trajetória da formação do povocatarinense, e de justificar e valorizar os aspectos simbólicos datrajetória do povo e de suas lideranças políticas, fundamentaispara a aceitação da idéia de pertencimento. Quase ao mesmotempo, intelectuais ligados ao governo e ao Instituto elaboraramas primeiras versões da história estadual. Mais tarde, já na décadade 1920, a Academia Catarinense de Letras vai assumir outrastarefas nesse contexto de afirmação de um projeto de construçãoda nação, à qual, em tese, todos deveriam pertencer.Paralelamente, no início do século, iniciava-se a ampliação darede escolar pública; melhoravam-se os sistemas de transporte,com a implantação de ferrovias e estradas; estendiam-se as linhastelegráficas e telefônicas. A modernidade e o Estado pareciam seconfundir, tendo como horizonte o progresso e a ordem, expressosna vontade dos que detinham o poder. Poder que se manifestavasempre de forma autoritária, como por exemplo, no episódioocorrido em 1920, em Blumenau, quando os operários Fritz Koche Georg Sterneck, juntamente com suas famílias, foramdeportados para a Alemanha, por terem se envolvido nummovimento de greve numa indústria têxtil.

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D I V E R S I D A D E É T N I C A E I D E N T I D A D E

Santa Catarina, hoje, apresenta-se como um verdadeiromosaico étnico. Sua população, nesta passagem do milênio,estimada em cerca de 5,5 milhões de pessoas, é formada por gentedas mais variadas origens. De uma área para outra, notam-sediferenças flagrantes quanto aos costumes e maneiras de ser doshabitantes. No litoral, os luso-açorianos dominam a paisagemhumana. A pesca, o fabrico de farinha, a renda de bilro, a louçade barro, a farra-do-boi e os pratos feitos com frutos do mar sãoalguns itens dessa caracterização. Nos campos do planalto, apopulação vivencia costumes ligados às atividades de criação degado. A marca é a “cultura gaúcha”, centrada no uso do cavalo,do churrasco e do chimarrão. Nos vales litorâneos e em diferentescidades do interior, os alemães marcam sua presença com clubesde tiro, bandas musicais, jardins floridos e inumeráveis festas. Ocultivo da videira e o fabrico do vinho são os elementos que maisse destacam nas áreas de colonização italiana. São famosas acozinha italiana e a Festa da Uva em Urussanga. Mas não é só.Descendentes de poloneses, ucranianos, austríacos, sírios,libaneses, gregos, judeus, japoneses, espanhóis e portugueses,entre outros, mantêm suas tradições, seu folclore e sua maneirade ser. Aparecem, ainda, neste mosaico, com marcas bastantedefinidas, populações negras e remanescentes dos povos Guarani,Kaingang e Xokleng. São, pois, diferentes etnias que formam agente catarinense.

Durante a ditadura de Vargas, o Estado vivenciou uma“campanha de nacionalização.” Acusava-se que aqui, como emtodo o Sul, havia prosélitos do nazi-fascismo, e que a Alemanhae a Itália pretendiam ampliar sua influência junto à populaçãoformada por imigrantes. Escolas comunitárias foram fechadas.Jovens foram recrutados para prestar o serviço militar em outraspartes do País. Quartéis do Exército foram instalados em diversasáreas onde a presença de imigrantes era acentuada, com o objetivode integrar e nacionalizar. A síndrome dos “quistos étnicos” e oreceio de controle do Sul do País pela Alemanha e pela Itáliaespalharam-se. A repressão foi forte, e não poucas famílias

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sofreram agressões físicas e morais, além de perdas materiais,tudo isso, durante uma ditadura que foi ambígua em relação aospaíses em guerra, mas que sabia aproveitar a oportunidade paraafirmar um Estado-nação unitário, monoétnico e culturalmentehomogêneo. Daí serem palavras de ordem a integração, aaculturação e a assimilação dos contingentes migrantes que, porrazões da própria negligência dos governos federal e estaduais,mantinham relativamente intactas suas tradições culturais,línguas e identidades étnicas.

Mas a proposta estatal de homogeneidade não vingou.Quando se fala em Santa Catarina, logo se percebe asingularidade de um Estado onde prevalece a diversidade depaisagem, de tradições, de identidades e de biótipos. Háfronteiras, geralmente sutis, entre os diversos grupos queprotagonizam a vida humana nesta parte do Brasil. Às vezes,os governantes intentam passar a imagem de uma região de“trabalho e de festas”, rica e harmônica em termos sociais eeconômicos. A realidade não é assim, como bem demonstram omovimento dos “sem-terra”, os cinturões de miséria no entornodas maiores cidades, os “sem-teto” e os “bóias-frias”.

O importante é concluir que a diversidade étnica e cultural dagente catarinense é positiva. O local tem seu espaço em relaçãoao nacional. O isolamento de muitas comunidades hoje estárompido. Os meios modernos de comunicação asseguraram aintegração econômica e política de toda a região, sem eliminarpor inteiro as diferenças. Esta heterogeneidade étnica e culturaltem sua própria dinâmica, reenfatizando e reafirmandoidentidades e comportamentos sociais. A identidade do gaúchoé produto de uma construção social, assim como as demaisidentidades. Estereótipos e preconceitos de um grupo étnico sobreo outro continuam a existir. Imagens positivas e negativas sobreidentidades também acontecem. Esta gente, enfim, hoje, temorgulho das suas etnias de origem, das suas tradições culturais,da sua nacionalidade brasileira e da sua identidade catarinense.

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S O B R E A S F U N Ç Õ E S D A U N I V E R S I D A D E

São múltiplas as funções da universidade. Lembrando Merton, podemos dizer que algumas dessas funções sãomanifestas, enquanto outras aparecem como latentes.

Contradições não faltam para ser arroladas. A questãofundamental, parece-me, é estabelecer alguns parâmetros quepermitam a visualização da universidade que desejamos. Ou seja,que a universidade deve ser pública, gratuita, autônoma (tantosob o ponto de vista pedagógico quanto administrativo efinanceiro), democrática, crítica, competente e criativa. Se todosestamos de acordo com uma universidade que contemple essesobjetivos básicos, por que não temos essa instituição à nossadisposição? Visto que, para muitos integrantes da comunidadeuniversitária, tais proposições podem ser identificadas como“velhas aspirações.” Lembro Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes,Anísio Teixeira e seus escritos sobre a universidade. Ou, então,por que não decidimos logo construir a universidade quequeremos e que, efetivamente, contemple esses parâmetrosfundamentais? Claro está que a questão não é simples.

Não se trata de contar com o entendimento de algunssegmentos e assim concretizar suas aspirações, com passes demágica. No real, a luta é dura, desigual, com forças bastante fortesno sentido de manter a universidade como instituiçãocomprometida com a reprodução do status quo, ou seja a ordemsocial vigente. Daí a importância do enfoque dado ao semináriosorganizado pelo DCE. É preciso desmitificar a universidade, e

Publicado com alterações na coletânea Questionando a universidade que temos. Fpolis.:UFSC, 1986. Republicado em Educação Brasileira. Revista do Conselho deReitores das Universidades Brasileiras. Ano. 8, n. 17, Brasília, 1986. p. 127-157.

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para isto é urgente entender suas funções na organização socialda sociedade mais ampla.

A universidade destaca como seus objetivos a formaçãosuperior do homem; a promoção do desenvolvimento dasociedade; o estímulo às atividades culturais; a busca doconhecimento científico e a disseminação de tecnologia. Paratanto, propõe-se a concretizar de forma integrada o trinômioensino, pesquisa e extensão. Apesar dos esforços de muitos, e dealguns exemplos positivos, a pesquisa e a extensão não têmlogrado alcançar os espaços que deveriam ter. Tampouco essasatividades têm conseguido envolver, efetivamente, a sociedade.Isto porque somos um país dependente das conquistas científicase tecnológicas feitas pelos países dominantes. Isto é, somosconsumidores de bens científicos, culturais e tecnológicosproduzidos fora de nosso país. Por trás disto, há interesseseconômicos e políticos bastante claros. É nesse contexto quedevemos valorizar as universidades autárquicas federais e suaslutas para não serem apenas “universidades-ensino”. Lutas quenão cessam, devido à abnegação e à tenacidade de muitos deseus alunos e professores. As condições para desenvolver ensino,pesquisa e extensão são precárias e se agravaram com a crise. Oorçamento de 1985 da UFSC, por exemplo, representa l6% doorçamento disponível na mesma rubrica em 1981. Um professorvisitante em 1980-81 era contratado com o salário médio mensalde 1.600 dólares. Neste ano, em média o mesmo salário deveráficar em torno de 500 dólares. O mesmo acontece com o valorde bolsas de pós-graduação, tanto para o País como para oexterior. O número de pretendentes a essas bolsas tem,proporcionalmente, diminuído, obviamente por falta decondições de sobrevivência. Mesmo assim, a UFSC conta comum corpo docente que está qualificado em cerca 60% com cursosde mestrado e doutorado. Pode-se falar do subaproveitamentodesse potencial. Pode-se falar da inércia da instituição, daburocracia. Mas é preciso sempre avaliar com objetividade ascondições efetivas em que o trabalho docente e de pesquisa serealiza. Nesse sentido, o saldo da UFSC é positivo.

É claro que a “universidade-ensino” é reconhecida peIa

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sociedade como necessária. Afinal, ela, em tese, forma os recursoshumanos de que a sociedade necessita preparar de maneira maissofisticada. A tradição brasileira de valorizar títulos e nãocompetência acaba sendo o grande suporte desse tipo deuniversidade. Por trás disto, convém destacar os valores dascamadas privilegiadas da sociedade e como eles são reproduzidos.Refiro-me ao tráfico de influências, ao apadrinhamento, tãocomuns na hora de o formando obter seu emprego. Refiro-me àscelebres “reservas de mercado” instituídas pelo poder público apartir dos interesses das corporações profissionais. Refiro-me àprópria reprodução dos interesses dessas corporações. Nestequadro, é preciso interrogar onde ficam os objetivos dauniversidade, em particular aquele pertinente à promoção dodesenvolvimento da sociedade?

Há que aduzir uma palavra sobre quem freqüenta auniversidade. Em tese, ela é uma instituição aberta a todos quetenham vocação e competência para estudos superiores. Naprática, uma forte seleção econômica discrimina quem entra equem não entra. Esta seleção não se dá apenas no vestibular. Elacomeça a ocorrer já no processo de gestação, acentua-se na escolade 1º grau e prossegue implacável no 2º grau. De tal forma que,para uma população de 130 milhões (1986), temos apenas 1,5milhão de estudantes universitários. E desses, apenas 300 mil emuniversidades federais.

O modelo econômico cultuado no Brasil a partir da decada de1960 certamente exigia a preparação de recursos humanos para apromoção da chamada modernização do País. O crescimento donúmero de vagas na universidade brasileira pós-reformacertamente atendeu a esta variável. Contudo, também atendeuaos anseios da burguesia nacional, que vislumbrou ampliar seusprivilégios. Na fase áurea do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, aconivência das camadas média e alta da sociedade é flagrantepara a ampliação das vagas nas universidades. Mas não emuniversidades que, efetivamente, estavam querendo fazer ensino-pesquisa-extensão, com seriedade e competência. Não emuniversidades públicas e gratuitas. A expansão se deu, comosabemos, sobre a “universidade-ensino”, expedidora burocrática

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de títulos e atenuadora de tensões sociais. E para não havermaiores embaraços para o sistema, decidiu-se estimular alocalização de instituições de Ensino Superior longe dos grandesaglomerados urbanos (lembram-se do Restaurante Calabouço, noRio de Janeiro, das passeatas estudantis para o aumento das vagasnas universidades federais?). Em paralelo, acelerou-se aimplantação dos campi universitários. Implantou-se um sistemade matrícula por créditos, que aniquilou com a identidade daturma. Impessoalizou-se o sistema de matrícula, através docomputador. Semestralizou-se o ano letivo, etc.

As funções da universidade são múltiplas. Não há comodesligar a universidade da sociedade mais ampla. Esta sociedadede uns poucos privilegiados e uma maioria de despossuídos queesta aí. Uma sociedade de classes, com muito poucos canais deascensão social. E, entre esses, apesar de tudo, o mais democráticoainda é a universidade. Neste quadro, o desafio que se impõe é oreferente à conquista de uma universidade que, efetivamente,atenda aos interesses da maioria da população. Uma universidadecomprometida com o desenvolvimento social como um todo. Umauniversidade na qual o ensino seja conseqüência também dasatividades de pesquisa e de extensão. Uma universidade que estejaa serviço da conquista da independência econômica do País ealtamente preocupada com a responsabilidade social que deveser assumida por seus professores e estudantes. Umauniversidade que não pretenda ser agência exclusiva da mudançasocial, mas que saiba de seus papéis e de suas limitações. Umauniversidade, enfim, que não pode deixar de valorizar acompetência, a seriedade, o trabalho e a dedicação de seusestudantes e professores.

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U M D I S C U R S O P E R T I N E N T E

Na última sexta-feira, fui duplamente surpreendido. Aadministração superior da Universidade, através do pró-reitor Dilvo Ristoff, certificou-me que meu nome estava

entre os professores e servidores técnico-administrativos queseriam homenageados pela passagem do trigésimo quinto ano dacriação da nossa universidade. E, ao mesmo tempo, transmitiu-meum convite do reitor para que eu aceitasse ser o porta-voz dosagraciados. Certamente, a tarefa que me estava sendo delegadanão era fácil. Entre os homenageados, estão diversas pessoas quebem poderiam se desincumbir da tarefa com maior competência esegurança. Não adiantaram, porém, as ponderações feitas ao prof.Dilvo. Por isto, estou aqui tentando transmitir da melhor maneiraos sentimentos que entendo serem dos homenageados, da nossacomunidade universitária, de familiares, amigos, companheiros,colegas e admiradores.

O grupo que tenho a honra e a satisfação de representar tem emcomum o fato de ter dado o melhor de suas vidas e de suascompetências para a Universidade. Como servidores técnico-administrativos e como professores, sempre se houveram comdedicação em suas atividades diárias. Para alguns, a vida profissionalcomeçou no mesmo momento em que a Universidade se instalavaentre nós. Ano 1960. O presidente Juscelino Kubistchek, num contextode um projeto de mudanças no País, entre outras, criou aUniversidade Federal de Santa Catarina. A instalação da novainstituição ocorreu em março de 1962. À sua frente, num trabalhosimultâneo de relações públicas, de diplomata, de político e de

Proferido no Centro Integrado de Cultura, Florianópolis, em dezembro de 1995, porocasião do 35º aniversário da UFSC.

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educador, estava o prof. Ferreira Lima, nosso primeiro reitor. Outrasilustres pessoas aqui estão também sendo lembradas, não por teremsido professores ou servidores, mas por serem beneméritos.

Nossa universidade surgiu pela reunião de diferentes faculdadesque existiam na cidade e que já representavam um esforçosignificativo de um denodado grupo de profissionais paraoportunizar aos jovens o acesso à escolarização superior. Nestecomeço, nada era fácil. Instalações físicas limitadas e dispersas pelacidade; falta de recursos financeiros; falta de equipamentos; debibliotecas; de laboratórios. A Trindade, onde havia sido instalada,pelo esforço e visão do prof. Henrique da Silva Fontes, a Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras, era um distrito distante e acanhado,com ônibus de hora em hora. O prof. Fontes encaminhou a soluçãoparcial do problema de transporte, adquirindo um ônibus, dirigidopelo inesquecível Vando, que transportava alunos, professores eservidores no começo e no final de cada manhã.

As demais unidades continuavam instaladas no centro dacidade. Discutia-se e rejeitava-se a hipótese de criar na Trindadeum campus que reunisse todas as unidades. A Reitoria foi instaladana Rua Bocaiúva, numa belíssima residência senhorial. Aadministração universitária se consolidava, sob o comando do prof.Ferreira Lima. A Universidade Federal de Santa Catarina começavaa despontar. Adquiria uma identidade e se afirmava no cenárionacional. Administradores, professores, funcionários e alunosdemonstravam dedicação, garra, criatividade, vontade de crescere de se afirmar.

A Universidade adquiria contornos próprios, demarcava seusespaços e crescia em credibilidade.

Os anos 1960 foram, portanto, dos “heróis fundadores”, fossemeles administradores, professores ou servidores técnico-administrativos. “Heróis fundadores” conhecidos e reconhecidos,uns, desconhecidos e anônimos, outros. Certamente, o númerodesses últimos é bastante elevado, o que amplia o sentido dessahomenagem e aumenta nossa responsabilidade, pois alguns dessesnossos companheiros inclusive já não estão mais entre nós.

Nos anos 1970, acontece a consolidação da Universidade. Ocampus na Trindade torna-se uma realidade. Implanta-se a reforma

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universitária, que estimulou maior integração entre unidades edepartamentos. A universidade se expande. Criam-se novos cursosde graduação. Começa a pós-graduação. A comunidade universitária“descobre” o que é uma universidade. Alunos, servidores técnico-administrativos e professores articulam-se em torno de objetivoscomuns: são aulas; são pesquisas em laboratório e no campo; sãoexperimentos; são trabalhos de extensão; são competições esportivas;são exposições artísticas e peças teatrais; são as apresentações doCoral; são angústias; são vitórias e também são derrotas. Criou-se,assim, uma “cultura” universitária.

Nos anos 1980, ventos fortes sacudiram a instituição. São temposde redemocratização do País, de anistia, de greves, de longas esofridas greves. A redescoberta da democracia transforma-se numprocesso penoso. Até então, cada um sabia onde estava. O governoera controlado desde 1964 por militares. Era fácil encontrarreferências neste contexto dicotômico. Ou se estava a favor oucontra. Agora, havia diferentes partidos políticos. Apareciamdiferentes opções e distintas interpretações. A referência dicotômicatão fácil, tão cômoda, desapareceu. Era necessário aprender a lidarcom a realidade democrática que se consolidava no País.Aprendizado difícil. Em certos momentos, a Universidade correuo risco de se confundir com uma Prefeitura do interior, no que serefere às suas disputas políticas internas. Felizmente, os espaçosacadêmicos, já conquistados, impediram que houvesse algumretrocesso. A Universidade crescia nos laboratórios; nas salas deaula; nas pesquisas de campo; nas teses e dissertações de seusprofessores e estudantes; com a participação séria e dedicada deum crescente número de servidores.

E chegamos aos anos 1990, redescobrindo com o velho Marx que“Toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisasse confundissem”. Assim, tomamos consciência de que a simplesacumulação de fatos não conduz ao conhecimento científico.

E, repetindo Bachelar, aprendemos que “antes de tudo é precisosaber colocar problemas. Os problemas não se colocam por simesmos. Todo conhecimento é uma resposta a uma questão.Ondenão há indagação, não há conhecimento científico. Nada vai por si.Nada é dado. Tudo é construído”.

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Por isso, há que questionar, neste momento, as ameaças quepairam sobre as universidades federais. Há indicações claras deum processo de desmonte, iniciado com Collor e que se estendeaos dias do presente. Incentiva-se uma campanha de descrédito,apresentando-se a instituição universitária, seus estudantes,servidores e professores como privilegiados por benesses indevidas.Nesta última semana, foi divulgada pela mídia uma lista desupostos marajás proposta pelo Ministério da Administração. Entredez servidores que lideravam o ranking de remunerações, noveeram professores. Evidente que a intenção dessa lista não foi decoibir abusos, como se propaga. O alvo principal, foi, sem dúvida,a instituição universitária federal. Caso contrário, provada ailegalidade dos atos administrativos que levaram essas pessoas areceberem salários não admitidos em lei, a providência competenteseria a responsabilização civil e penal das autoridades queadmitiram tais salários, além do ressarcimento à União dospagamentos indevidos. Mas, é óbvio, não é o caso.

E, também, por isso, neste mês de dezembro, estamos todosvivendo uma nova violência sendo exercida pelo Ministério daAdministração, através do Siape. Além dos cortes indevidos nossalários, humilham-se os profissionais das universidades federais,sejam eles ativos, sejam inativos. Todos têm que sair atrás deinformações sobre as razões dos cortes, para logo descobrirem queoutra coisa não se pratica senão o arbítrio.

Magnífico reitor, professor Antônio Diomário de Queiroz, emnome dos homenageados, nesta oportunidade, agradeço estamanifestação de carinho e apreço que a Universidade Federal deSanta Catarina demonstra ter por todos nós, seus professores eservidores técnico-administrativos. Esta homenagem, no momentoem que a Universidade comemora seus 35 anos de criação, é umtestemunho para nossos contemporâneos e nossos descendentesde que passamos por esta vida lutando e trabalhando para criaruma instituição competente, séria, consciente e comprometida comos valores maiores da humanidade, entre eles a ciência, a cultura eas artes. Por isso, a nossa Universidade tem todas as condiçõespara superar as ameaças próprias dos “modismos de época”.

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U M A F E S T A D A C I Ê N C I A

Entre 16 e 21 de julho do corrente ano (2005), acontecerá nocampus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)a 58a reunião anual da Sociedade Brasileira para o

Progresso da Ciência (SBPC). O tema do encontro não poderiaser mais oportuno: Semeando a interdisciplinaridade. Como emencontros anteriores, realizados em diferentes capitais e cidadesdo País, prevê-se a presença de 12 a 15 mil participantes. AComissão Organizadora está viabilizando a transmissão por TVdas principais conferências, e haverá cobertura pela mídia e pelainternet de todo o evento. Mesas-redondas, workshops eapresentação de painéis, além de conferências, estão previstos,envolvendo pesquisadores, estudantes de pós-graduação e degraduação, e professores das diferentes redes de ensino que sãoesperados no encontro.

Essa será a segunda vez que a SBPC promove suas reuniõesanuais no Estado. Em 1966, em Blumenau, aconteceu a 18ª ReuniãoAnual. À época, esse encontro teve enorme repercussão e,decisivamente, contribuiu para o surgimento da FundaçãoUniversidade Regional de Blumenau (FURB). Nessa cidade,funcionava apenas uma Faculdade de Ciências Econômicas. Tantoa presidência da SBPC quanto diferentes conferencistas cobraramdas elites locais a criação de uma universidade. Em 1985, a SBPCpromoveu uma reunião regional em Blumenau sobre o tema“Condições da vida humana na Região Sul”, congregando umpúblico de mais de duas mil pessoas. Na oportunidade, foramreconhecidos os avanços alcançados pela FURB, ressaltando-se a

Publicado em Jornal da Ciência, Rio de janeiro: SBPC, 2006. p. 3. ano 20, n. 568; ANotícia, Joinville, 7/fev./2006.

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importância do papel da universidade para a melhoria daqualidade de vida da população local e seu potencial decontribuição no desenvolvimento regional.

Uma outra reunião regional aconteceu em Florianópolis, em1996, focalizando o tema “Ecossistemas costeiros: doconhecimento à gestão”. Esse evento criou condições para adiscussão das áreas costeiras como ambientes complexos efundamentais para a reprodução da vida. Mangues, baías,estuários e sua degradação foram amplamente discutidos, bemcomo o seu potencial para a produção intensiva de proteínas naforma de criação de moluscos e de pescados. Não poucos projetosem desenvolvimento na UFSC e em outras universidades dolitoral foram apresentados, com destaque para a produção desementes de ostras, de mariscos e de vieiras em laboratório. Nocaso, como pano de fundo estava a valorização da populaçãolitorânea que vive do mar.

Como sói acontecer quando pesquisadores, professores,estudantes e administradores se encontram, o debate sobre osproblemas do País e, especialmente, sobre as políticasgovernamentais de ciência, tecnologia e inovação (CTI) deverãorecrudescer, neste ano em que também ocorrem eleições gerais.A escassez de recursos financeiros para promover odesenvolvimento científico é a tônica. Apesar dos avanços naformação de novos pesquisadores, do surgimento das fundaçõesde apoio e dos editais para financiamento de projetos, há muitoque fazer para que tenhamos na ciência uma base para garantir amelhoria da qualidade de vida da população como um todo. Bastalembrar que o País tem 180 milhões de habitantes e um númeromuito restrito de pesquisadores e de estudantes em nível superior.A educação básica está entre as mais deficientes do mundo. E aprofissão de professor é extremamente desvalorizada.

A SBPC tem realizado seu papel como organização voltadapara o incremento da ciência no País. A crítica faz parte do dia-a-dia de seus membros participantes, em particular, de seuspresidentes, diretores e secretários regionais. No passado, nãopoucos sócios foram enquadrados como subversivos porquelutavam por mais educação, mais ciência, mais competência, mais

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recursos financeiros, além de mais liberdade, mais ética e maisseriedade no trato da coisa pública. Hoje, essas bandeirascontinuam animando o cotidiano dos sócios e dos dirigentes daentidade.

Temos certeza de que a 58a reunião, a ser realizada num grandeclima de festa, será um marco para a conquista de novoscompromissos da sociedade, do Estado e do País com a ciência, atecnologia e a inovação.

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DAS COINCIDÊNCIAS NA PESQUISA E NAPRODUÇÃO ANTROPOLÓGICAS

AAntropologia no Brasil teve grande incremento a partirda implantação dos Programas de Pós-Graduação, nos finais dos anos 1960. Os campos tradicionais da pesquisa

etnográfica, focalizando povos indígenas e populações rurais eurbanas, se diversificaram rapidamente. Minha trajetória comopesquisador inclui, principalmente, investigações com indígenasno Sul do Brasil, abordando temáticas como contato interétnico,educação, direito de minorias e conseqüências sociais de projetosde desenvolvimento.

Nesta comunicação, quero destacar que alguns dos projetosque desenvolvi foram começados em circunstâncias não previstasinicialmente. As decisões que tive de tomar entraram mais noterreno das coincidências do que no cenário das escolhasprogramadas. Foram, portanto, fruto de circunstâncias. Queroexemplificar com duas temáticas que trabalhei intensivamente eque não foram escolhas realizadas inteiramente sob o meucontrole, como pesquisador. Trata-se, parodiando NorbertoBobbio, das muitas coincidências, azares e incertezas que regema nossa vida e que nos fizeram chegar até aqui como profissionaisda Antropologia.

Apresentado na mesa redonda “Trajectorias y Diversidad – Las Estrategias enInvestigación Etnográfica” In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL 6.– Montevidéu, Uruguai, 16/18 de novembro de 2005.

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S O B R E A E D U C A Ç Ã O I N D Í G E N A

Em 1972, obtive o grau de doutor na Universidade de São Paulocom a tese Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramática experiênciados Xokleng. Tratava-se de um longo estudo de “fricçãointerétnica”, focalizando a trajetória dos indígenas Xokleng,tradicionais habitantes do Sul do Brasil, em seu relacionamentocom os brancos. O contexto da violência praticada pelas frentesde expansão, que se incrementou com a imigração européia nosmeados do século XIX, foi amplamente ressaltado neste trabalhoque, diga-se, foi produzido no auge do autoritarismo impostopela ditadura militar (1964—84). A defesa da tese, as críticas dabanca e depois do público, pois a obra foi publicada em 1973,levaram-me a pensar num novo trabalho voltado para a análisedos grupos de extermínio dos indígenas, os bugreiros, que em regraeram formados por brasileiros mestiços, denominados caboclos.Esse mesmo contingente deu o suporte inicial às empresas decolonização e aos colonos, como força de trabalho e como fontede informação para o necessário domínio do meio ambiente.Aproveitaria, para tanto, boa parte do material bibliográfico e decampo que havia fundamentado minha pesquisa anterior. Osobstáculos, entretanto, para concretizar esse projeto foram muitos,em particular os financeiros. Depois de meses de tentativasfrustradas para obter financiamento, nada estava resolvido.

Por meios transversos, tive notícia de que a Fundação Fordestava abrindo um processo seletivo para projetos na área deeducação. Como eu tinha tido alguma experiência comoalfabetizador de adultos e como professor de curso Primário,resolvi propor um pequeno projeto de levantamento da situaçãodas escolas que funcionavam nas áreas indígenas no Sul do Brasil.Com surpresa, meses depois, tomei conhecimento de que aproposta fora aprovada e que os recursos financeiros para a suaexecução estavam garantidos.

Foi com esse projeto que logrei realizar um survey nasdiferentes áreas indígenas do Sul do País. O projeto inicial foibastante ampliado. As políticas praticadas pelo antigo Serviço deProteção aos Índios (SPI) e, depois de 1967, pela Fundação

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Nacional do Índio (Funai) em relação aos índios foram mais bemavaliadas. Os recursos da fotografia foram utilizados parademonstrar a degradação das reservas indígenas, e pudeoportunizar iniciação em campo de diversos estudantes.

Da proposta inicial, resultou o livro Educação e sociedades tribais(Porto Alegre: Movimento, 1975). Dei especial atenção nesse livro:(1) às relações de subordinação dos indígenas à sociedaderegional; (2) à falácia dos projetos econômicos implantados pelaFunai em terras indígenas; (3) às possibilidades e aos limites daeducação. Além disso, realizei uma avaliação da única experiênciade ensino bilíngüe que se desenvolvia na área abrangida pelapesquisa, por iniciativa de uma instituição religiosa. Fiz incluir,ainda, um apêndice onde focalizava os índios que viviam fora desuas aldeias, na periferia das cidades ou servindo como mão-de-obra em propriedades rurais.

Outrossim, dados dessa pesquisa serviram para fundamentardezenas de palestras e debates em torno da temática da educaçãoindígena.

Numa época em que a educação não era um tema exploradopela Antropologia, este livro acabou pioneiro. Ao mesmo tempo,me impôs a temática indígena como recorrente. Mas não só, nosanos seguintes a produção da obra O homem índio sobrevivente doSul (Porto Alegre: Garatuja, 1978), de que falarei no item seguinte,teve por base a documentação fotográfica e os dados de campoobtidos nessa pesquisa.

A P R O X I M A Ç Ã O C O M O S A D V O G A D O S

Logo depois da conclusão de meu doutorado, a área de ensinojurídico da minha universidade começou a organizar um cursode mestrado. Num certo momento, fui convidado para colaborarcom esse projeto devido ao fato, creio, do número insuficiente deprofessores doutores na instituição. Ao aceitar o convite paralecionar as disciplinas “Metodologia da Pesquisa” e“Antropologia do Desenvolvimento”, o que fiz por três anos,pretendi colaborar com a iniciativa e, ao mesmo tempo, vivenciaruma rara oportunidade de atuar no primeiro curso da área de

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Humanidades da universidade. Nesse momento, a possibilidadede implantar um curso de pós-graduação em Antropologia aindaestava distante.

Essa vivência com a área jurídica permitiu saber que a temáticaindígena não integrava o currículo do curso de graduação,tampouco era atraente para os alunos de pós-graduação. Algunsestudantes chegaram a me questionar, informalmente, darelevância de alguém dedicar seu tempo a essa temática. Essedesconhecimento, aos poucos, foi me colocando diante da faltade comunicação entre as diferentes áreas do conhecimento nauniversidade. Deixei de atuar no Programa de Pós-Graduaçãoem Direito para organizar e coordenar um curso de especializaçãode Ciências Sociais, com opções em Antropologia Social eSociologia, que foi implantado na UFSC em 1976. As relações comos profissionais do Direito, entretanto, não foram abandonadas.Gradativamente, tomei consciência de que era necessária umaaproximação crescente entre antropólogos e advogados, comvistas à defesa dos direitos dos povos indígenas.

Ao preparar os originais do livro O homem índio sobrevivente doSul, já referido, utilizei como epígrafe artigos da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geraldas Nações Unidas em 1948, com o objetivo explícito de ressaltaros direitos das minorias. Esse livro foi conseqüência do seminário“O índio sobrevivente do Sul”, organizado em Porto Alegre, noano anterior, por diversas entidades civis, e que se realizou naAssembléia Legislativa daquela cidade. Foi a primeira vez que,durante o regime militar, um número expressivo de antropólogos,advogados, religiosos, indigenistas e lideranças indígenas e civisse reuniu para explicitar e defender os direitos dos povosminoritários. Desse seminário, resultou a fundação da AssociaçãoNacional de Apoio ao Índio (Anai), entidade para a qual doei osdireitos autorais do livro acima referido. Logo em seguida, aindacomo efeito positivo desse encontro, surgiram as Pró-Índio deSão Paulo e do Rio de Janeiro.

Na luta pela afirmação dos direitos dos povos indígenas, em1980 organizamos uma reunião entre antropólogos e advogados,intitulada “O índio perante o Direito”. Esse encontro teve o apoio

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da Cultural Survival Inc. através do professor David Maybury-Lewis, da Harvard University (EUA). O professor Maybury-Lewisconseguiu uma dotação financeira para viabilizar a reunião elogrou publicar uma versão compacta em inglês dos documentosconclusivos (Occasional Paper 5, Cultural Survival, Cambridge,EUA, 1981). Da mesma maneira, a Revista Ciência e Cultura, daSociedade Brasileira para o Progresso da Ciência — SBPC, deudivulgação a essa versão compactada sob o título “Os índiosperante o direito” (1981, 33 (2): 161-166). A repercussão desseencontro foi expressiva. A SBPC, em sua 33ª Reunião Anual,realizada em junho de 1981, abrigou uma mesa-redonda sobre omesmo tema, e a Pró-Índio de São Paulo, em parceria com aAssociação Brasileira de Antropologia (ABA) promoveram umencontro denominado O índio e os direitos históricos.

Ao final do encontro em Florianópolis, foram aprovados osseguintes documentos: l) sobre terras indígenas; 2) sobre a tutelae a integração dos povos indígenas; 3) sobre a construção debarragens e os direitos dos povos indígenas; 4) sobre parquesnacionais em áreas de parques indígenas; 5) sobre o trabalho dosantropólogos e a Funai; 6) sobre o projeto Rondon e as áreasindígenas; 7) proposições e recomendações. A Editora da UFSCpublicou a coletânea dos trabalhos apresentados, o rol departicipantes (23 antropólogos, dez advogados e 11 convidadosespeciais), e os documentos conclusivos no livro O índio perante oDireitos: ensaios, que foi organizado por mim, em 1982.

Em outubro de 1983, logramos efetivar, com o apoio do CNPq,uma segunda reunião, agora denominada Sociedades indígenas e oDireito: uma questão de direitos humanos. Participaram 21antropólogos, nove advogados e sete observadores especiais. Ostextos das comunicações apresentadas, os documentos finais dosgrupos de trabalho e as moções aprovadas foram reunidas nolivro Sociedades indígenas e o Direito: uma questão de direitos humanos,que teve como organizadores Sílvio Coelho dos Santos, DenisWernner, Neusa Bloemer e Aneliese Nacke. A publicação foi feitapela Editora da UFSC em co-edição com o CNPq em 1985. Destaca-se, na apresentação, que a reunião objetivou a discussão de doisproblemas fundamentais: “[...] o primeiro refere-se à realidade

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pluri-étnica e multi-societária do Brasil, em confronto com aideologia tradicional, porém vigente, de Estado uninacional,consagrada na Constituição”. O segundo “[...] remete àformulação de estratégias que permitam cada vez mais aosintegrantes das sociedades indígenas terem assegurada aassistência jurídica, com vistas a garantir seus direitos junto àsociedade nacional envolvente”.

Com certeza, essas duas reuniões foram altamente estratégicaspara fundamentar as discussões que se sucederam nos anosseguintes relacionadas à elaboração de uma nova Constituição,fato que se concretizou em 1988. Nessa nova Carta Magna, ocapítulo “Dos Índios” assegurou aos indígenas direitos relativosao reconhecimento pelo Estado brasileiro da sua existência comopovos, garantindo-lhes sua perpetuação biológica e cultural,assistência à educação e à saúde, e direito às terras de ocupaçãotradicional. Um outro livro de minha autoria, Povos indígenas e aConstituinte (Porto Alegre: Movimento/UFSC, 1989), sintetiza osavanços que se pretendia alcançar no relacionamento dos povosindígenas com o Estado, incluindo outras reuniões e encontrosque ocorreram no País sobre essa temática. Certamente, oslegisladores não incorporaram todas as reivindicações na CartaMagna, porém há que reconhecer que consignaram algunsavanços.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, na qualforam delineadas novas relações entre os povos indígenas e oEstado brasileiro, o tema dos direitos dos índios passou a sertratado por várias organizações governamentais e não-governamentais. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA)teve várias iniciativas para aprofundar as questões relacionadasa essa temática, sempre contando com a participação deadvogados.

De minha parte, continuei participando de debates, realizandopalestras e produzindo textos sobre a questão dos direitos dospovos minoritários, em particular os índios. O tema continua,assim, no meu dia-a- dia. Poderia dizer, a esta altura, que o quefoi produto de situações não previstas virou tema permanente demeu cotidiano.

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Concluindo, vou apenas citar Grande sertão: veredas, deGuimarães Rosa, certamente um dos maiores expoentes daliteratura brasileira, destacando o diálogo em que Riobaldo, seupersonagem, diz:

Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo!— só estavaera entretido na idéia dos lugares de saída e chegada. Assaz o senhorsabe: a gente quer passar num rio a nado, e passa: Mas vai dar naoutrabanda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do queprimeiro se pensou.

BOBBIO, Norberto. O tempo da memória: de senectude e outros escritosautobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo:Brasiliense, 1987.

NÚCLEO DE DIREITOS INDÍGENAS. Textos clássicos sobre o Direito e os povosindígenas. Curitiba: Juruá/NDI, 1992.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro:Auriverde, 1988.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965 -SANTOS, Sílvio Coelho dos Povos indígenas e a Constituinte. Porto Alegre:

Movimento/Edusfc, 1989.____ (Org.) O índio perante o Direito. Florianópolis:Edufsc, 1983.____(Org.). Sociedades indígenas e o Direito: uma questão de direitos humanos.

Florianópolis: Edufsc, 1985.____. O homem índio sobrevivente do Sul. Porto Alegre: Garatuja, 1978.____ Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975.

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A I L H A : A L G U N S D E S A F I O S

Como todos sabemos, não são poucos nem pequenos os problemas que sob o título deste painel (Desafios Urbanos) poderiam ser arrolados. O que designamos

como urbano tem uma linguagem, que se expressa por ruas,avenidas, parques, praças, edifícios, lojas, trabalho, mão-de-obra,riqueza, pobreza, cultura, atividade social, etc. Em resumo, ourbano é uma expressão do ser humano, com suas congruênciase paradoxos. Paradoxos que, no nosso caso, de cidadãos partícipesde uma cidade capital de Estado, localizada numa ilha, e inseridano contexto brasileiro e latino-americano, em tempos da pós-modernidade, se exacerbam de maneira extraordinária e, porvezes, se tornam incompreensíveis. Poder-se-ia dizer, em outraspalavras, que nossa cidade tem muitas máscaras e que não é fácilpretender descobri-las todas. Poderíamos tentar desvelar algumasdessas máscaras, centrando nossas atenções no movimentourbano; no barulho; no transporte; na vida noturna; naverticalização; nas favelas; nos aparatos de saúde e de educação,na coleta e destino do lixo; na poluição; no abandono social decrianças, adultos e velhos; na miséria; na ostentação da riqueza,etc. Vou tentar, aqui, focalizar apenas duas questões que julgoessenciais considerar.

A primeira delas refere-se aos excluídos sociais, que dia a diase multiplicam. A segunda remete ao aparato burocrático e legalque conta a cidade para resolver seus problemas.

No que se refere à primeira questão, é necessário ter claro queuma área urbana, como a da nossa cidade, está inserida num

Apresentado no painel “Desafios Urbanos”, integrante do seminário “Fpolis. Século XXI– um projeto de vida para a cidade”, que ocorreu entre 6 e 10 de novembro de 1995.

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contexto mais amplo e, nesse sentido, seja em termos ambientais,seja em termos sociais ou econômicos, é necessário considerarsempre o local sem perder de vista a nossa inserção no planeta.Em tempos de pós-modernidade, de economia globalizada, dealtas tecnologias, o problema da exclusão social se acentua e seagrava. Desempregados, sem-teto, crianças de rua passaram deum hora para outra a estar presentes em nosso cotidiano.

É preciso lembrar que, nos anos 1950, Florianópolis não tinhamais que 50 mil habitantes. O núcleo urbano não tinha mais que25 mil pessoas. Poder-se-ia compreender a hieraquização socialda cidade, caminhando-se das favelas vizinhas à Prainha(localizadas junto aos morros do Mocotó e Mariquinha) emdireção ao centro da cidade, passando pelas Ruas Bulcão Viana eTiradentes, Praça XV de Novembro e Chácara do Espanha, locaisde residência da classe média, e daí chegando à AvenidaTrompowsky e à Rua Bocaiúva, onde se localizavam as vivendasdos poderosos. Ricos, remediados e pobres se encontravam napraça, no mercado, na igreja. A pobreza existente, tanto na áreaurbana como na zona rural do Município, era “administrável”.Nos anos 1960, primeiro com a instalação da UniversidadeFederal, depois com a transferência da Eletrosul, a área urbanacomeçou a mudar. O poder exercido pelos militares, centralizadoe autoritário,deslanchou políticas públicas que levaram ao êxodorural, à implantação de uma malha viária, à instalação de meiosde comunicação, à concentração da renda e, lógico, à expansãourbana. Florianópolis cresceu. Melhorou sua infra-estrutura.Tornou-se uma referência para todos que procuravam qualidadede vida. Foi redescoberta em suas belezas. Implantou-se umaindústria turística. Diversas obras públicas aconteceram, e acidade perdeu aquele ar provinciano. Nos anos 1980, com aredemocratização do País, começaram-se a perceber alguns dos(des)caminhos percorridos: especulação imobiliária, exclusão damaioria da população local dos benefícios conseqüentes dasmudanças; atração de mão-de-obra para empregos transitórios;favelização; etc.

Vale lembrar que, tradicionalmente, a cidade foi administradapor prefeitos designados pelo governo do Estado. Esses, também,

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muitas vezes, designados pelos ditadores “de plantão”. Oclientelismo político, centrado no cabo eleitoral, sempre foi atônica da administração do Município. Podemos estender istopara um passado mais distante, que nos permitiria compreenderas relações das populações de tradição luso-açoriana com asesferas de poder. Poder, na maioria das vezes, distanciado, masao qual, às vezes, era preciso recorrer. Uma parte dos excluídossociais de hoje, na verdade, são pessoas que perderam aquelasconexões tradicionais da estrutura social luso-brasileira parachegar aos detentores do poder, centradas no parentesco, nocompadrio, no cabo eleitoral, no patrão, quando a tônica darelação eram a fidelidade e a submissão, e a contrapartida, opaternalismo.

Para esses excluídos sociais, ampliados em númerocontinuamente pela realidade econômica perversa conseqüenteda globalização crescente da economia, a cidade necessitaestabelecer políticas públicas claras que objetivem a reintegraçãosocial desses contingentes. A base dessas políticas devem ser aeducação, a saúde, a cultura, o esporte, a formação profissional eos programas de habitação.

Cada vez fica mais claro para todos que a qualidade de vidanão pode ser reservada para uns poucos privilegiados. Nessesentido, os excluídos não podem se relacionar com o Estadosomente pela sua face repressiva. Em outras palavras, não seráviável pensar, por exemplo, a cidade de Florianópolis como umpólo de serviços e um centro de excelência turística, semequacionar objetivamente a questão dos excluídos sociais, numcontexto inclusive que ultrapassa as esferas de decisão doMunicípio em si. Ou seja, é preciso haver articulação crescenteentre a cidade com a área imediatamente conurbada, com a região,com o Estado, com o País. Hoje, nada se pode considerar de formaisolada. É sempre preciso pensar na “mão invisível” do mercado,dando atenção para os efeitos difusos e perversos da mudança.Nesse sentido, os recursos naturais, por exemplo, que durantelargo período eram entendidos pelas populações nativas (isto é,luso-açorianas) como de “propriedade comum”, onde seconcentravam recursos estratégicos de interesse de todos,

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passaram a ser tomados por um número crescente de “novosconsumidores” como de acesso livre, gratuitos, de uso ilimitado,e, em muitos casos, passíveis de apropriação individualizada.Exemplo, a Lagoa da Conceição, ontem, com seu potencial depesca, e hoje, a Lagoa como local para uso intensivo e livre porparte de proprietários de lancha, jet-sky, etc.

Deve ficar claro, ainda, que entre os excluídos sociais estouconsiderando largas parcelas da população nativa da Ilha. Essaspessoas pouco ou nada se beneficiaram da instalação, porexemplo, da UFSC ou da Eletrosul, nos anos 1960, na cidade.Também pouco se beneficiaram da implantação do turismo comoatividade econômica.

Aqui aparece o segundo ponto que quero destacar. Trata-sede um grande desafio para a máquina administrativa municipale se resume em como encontrar solução para esses e outrosproblemas, articulando objetivamente respostas que interessamtanto aos segmentos excluídos como aos demais cidadãos.

Sabemos que nossa cidade nasceu à sombra dos interesseshegemônicos portugueses no Atlântico Sul. De uma parte, haviaum projeto de transformar a Ilha num baluarte estratégico. Daías muitas fortalezas construídas por Silva Paes. De outro, osimigrantes açorianos eram simultaneamente submissos e arrediosàs decisões da Coroa.

Saltando para os anos 1980, também percebe-se que aspossibilidades de exploração pura e simples dos recursos naturaisda Ilha se esgotaram, junto com a crise do modelo concentradorde riqueza, bem apelidado de capitalismo selvagem. O sonho doemprego para quem vinha do interior acabou. O sonho deinvestimento com retorno rápido também ruiu para as camadasmédia e alta.

A máquina administrativa municipal, claramente, estádefasada em relação tanto aos novos tempos como a esses novosdesafios. A divisão municipal em Distritos e a correspondenteadministração através de Intendências, desaparelhadas de tudo,não atendem à realidade da cidade. O peso da burocracia não épequeno no orçamento deste ou de qualquer outro municípiobrasileiro. Mas aqui há a tradição de sermos um centro

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administrativo por excelência. Não tenho dados numéricos, mas,certamente, Florianópolis se aproxima, proporcionalmente, dacidade do Rio de Janeiro, em sua dependência, em termos deemprego, no Serviço Público. No caso do Município, certamente,se comparamos o número de funcionárioss com os de outrascidades de tamanho similar, no Sul do País, vamos certamenteconcluir que Florianópolis tem uma relação funcionários/númerode habitantes mais elevada. Nem por isso a burocracia municipalestá preparada para enfrentar os desafios que a cidade vive. Háque acrescentar, ainda, os problemas conseqüentes docorporativismo burocrático, do tradicionalismo político e dalegislação municipal, complexa e casuística.

A cidade entrou, como sabemos, há alguns anos no cenáriomundial, não só por seu potencial turístico, mas também comoopção para investimentos especulativos, quando não para a“lavagem” pura e simples de recursos financeiros de duvidosaorigem. Tudo isto, no dia-a-dia, é vivenciado pelo administradorinteressado em encontrar as melhores soluções para a nossacidade. O importante, entretanto, é compreender que o aparelhomunicipal, tal como está estruturado em termos de legislação ede organização administrativa e fiscal, tem limitações enormespara fazer valer os interesses do cidadão não privilegiado,especialmente no que se refere à coleta de tributos. Também temlimites para impor a legislação. Muito mais dificuldades encontrapara criar novas leis, novas normas, destinadas a manter sobcontrole o espaço territorial do Município. Os conflitos não sãopoucos nem desconhecidos.

Certamente, essas questões necessitam, antes de tudo, de umamaior visibilidade para todos nós. Não se pode mais aceitar aIlha como sendo domínio de poucos, com o aval das burocraciassubmissas às oligarquias. Conscientização crescente dosproblemas da cidade, de maneira integrada; treinamento eresponsabilidade profissional do servidor; respeito pelo cidadão;refinamento constante da legislação; descentralizaçãoadministrativa; definição democrática dos objetivos daadministração pública; são, entre outros, alguns caminhos quedevem ser cada vez mais e mais perseguidos e ampliados.

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M A I S E M A I S E D U C A Ç Ã O

Junto com as comemorações do Dia Nacional da Educação,em abril, apareceram dezenas de artigos na imprensa, eocorreram audiências públicas na Câmara Federal e emAssembléias Estaduais, além de seminários em universidades,

discutindo a situação da educação no Brasil, em particular oFundeb, e a questão das ações afirmativas em favor de índios eafro-descendentes. Também as carências da educação oferecida nasescolas públicas de Ensino Fundamental e Médio foram ressaltadascom vigor, tendo como referência um estudo divulgado pelaUnesco, informando que, em 2002, da primeira à quarta séries, ataxa de reprovação no Brasil atingiu 21%. Ficamos atrás de apenas15 países, a maioria localizados na África e no Caribe. Esse índicede reprovação era igual ao de Moçambique e superior ao do Haiti(16%) e de Ruanda (19%). Um vexame, e, apesar dos desmentidosoficiais de sempre, pouco mudou até o presente.

Por isso, a empresária Milu Vilela, embaixadora da Boa Vontadeda Unesco, disse que “[...] não podemos mais suportar ver aeducação colocada em segundo plano no debate político, comoocorre há décadas” (Folha de SP, 4/5/06). No dia anterior, oeducador, escritor e professor emérito da Unicamp Rubem Alvesdisse no mesmo jornal que “[...] a escola é chata porque está nasmãos de burocratas”. E, mais de dez anos atrás, o mestre DarcyRibeiro dizia, referindo-se às escolas públicas deserdadas em termosde políticas governamentais, falta de autonomia e baixos saláriosdos professores, que, desiludidos, os docentes faziam queensinavam e os alunos fingiam que aprendiam.

Publicado em A Notícia, Joinville, em 30 de maio de 2006.

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Foi nesse contexto que lembrei do mestre George Agostinho daSilva, que atuou na antiga Faculdade Catarinense de Filosofia,colaborou com a implantação da UFSC e atuou na Universidade deBrasília. Num folheto escrito em Lisboa, em 1974, dizia, depois defazer extensa crítica à situação da educação, que “[...] os gênios deque se orgulha a humanidade são simplesmente crianças queconseguiram sair ilesas dos sistemas de escola”.

Aqui em Santa Catarina, nos anos 1960, foi implantado junto àFaculdade de Educação da Udesc um Centro de Estudos e PesquisasEducacionais (Cepe). Com suporte financeiro fornecido pelaSecretaria do Plano de Metas do Governo (Plameg), várias pesquisasforam realizadas por uma jovem equipe de pesquisadores. Osresultados alcançados permitiram a elaboração do 1º Plano Estadualde Educação. Junto com a expansão da rede escolar, previam-se areciclagem do corpo docente, remuneração adequada e uma propostapedagógica centrada no estudante. Na prática, com mudançasoriundas do acordo MEC—Usaid, promovido pelos militares quehaviam assumido o poder em Brasília, pouco foi cumprido. Anosdepois, novas tentativas foram realizadas para estabelecer oplanejamento da educação. A mobilização dos professores foi forte,porém os avanços necessários foram parcamente alcançados. Opartidarismo político se acentuou, influenciando negativamente odesempenho escolar, tanto de professores como de estudantes.

Felizmente, algumas experiências pedagógicas e de organizaçãoescolar foram implantadas mais recentemente, em particular juntoàs áreas periféricas, reservas indígenas e áreas urbanas degradadas,testemunhando que, havendo vontade política como objetivo doEstado e dos governos, a escola pública pode funcionar plenamente.Falta ampliar essa vontade, definindo-se metas educacionaisobjetivas e práticas tendo como base, principalmente, recursosfinanceiros suficientes; a implantação da carreira docente; a adoçãoda escola em tempo integral nas áreas de risco; a inclusão digital; aeliminação da repetência e da evasão; e a aproximação crescentecom as famílias dos alunos e com a comunidade como um todo.

Só assim eliminaremos as grades que, de maneira torpe,guarnecem portas e janelas, separando as escolas do entorno social,em particular nas comunidades deserdadas economicamente.

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Criação da capa e formatação desta obra realizados em São Leonardo,Alfredo Wagner, Santa Catarina, julho de 2007.

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