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Entre a República e a Poliarquia: uma análise comparada do pensamento de Madison e Dahl 65 José Alexandre da Silva Junior e Ranulfo Paranhos Professores do Instituto de Ciências Sociais (UFAL). Doutores em Ciência Política (UFPE). Gabriel Augusto Miranda Setti Professor do Instituto de Ciências Sociais (UFAL), Doutor em Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB) Dalson Britto Figueiredo Filho Professor do Departamento de Ciência Política (UFPE), Doutor em Ciência Política (UFPE). Willber Nascimento Mestrando em Ciência Política e bolsista CNPq (UFPE), Graduado em Ciências Sociais (UFAL). Lucas Emanoel Silva Graduando em Ciência Política (UFPE). Introdução O pensamento filosófico-político clássico influenciou a formação e o desenvolvimento da teoria política contemporânea. Muitos dos problemas que preocupavam Platão e Aristóteles podem ser encontrados em formas de projetos de lei dentro das comissões no Congresso Nacional. A representação, por exemplo, está presente 65 Esse artigo é uma versão modificada e ampliada de um trabalho publicado na Revista Em Tese, Vol, 14, 2014.

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Entre a República e a Poliarquia:

uma análise comparada do pensamento de Madison e Dahl65

José Alexandre da Silva Junior e Ranulfo Paranhos

Professores do Instituto de Ciências Sociais (UFAL). Doutores em

Ciência Política (UFPE).

Gabriel Augusto Miranda Setti

Professor do Instituto de Ciências Sociais (UFAL), Doutor em Doutor

em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB)

Dalson Britto Figueiredo Filho

Professor do Departamento de Ciência Política (UFPE), Doutor em

Ciência Política (UFPE).

Willber Nascimento

Mestrando em Ciência Política e bolsista CNPq (UFPE), Graduado

em Ciências Sociais (UFAL).

Lucas Emanoel Silva

Graduando em Ciência Política (UFPE).

Introdução

O pensamento filosófico-político clássico influenciou a

formação e o desenvolvimento da teoria política contemporânea.

Muitos dos problemas que preocupavam Platão e Aristóteles podem

ser encontrados em formas de projetos de lei dentro das comissões

no Congresso Nacional. A representação, por exemplo, está presente

65 Esse artigo é uma versão modificada e ampliada de um trabalho publicado

na Revista Em Tese, Vol, 14, 2014.

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

no pensamento de Rousseau e Stuart Mill e continua sendo um dos

temas mais debatidos pela Ciência Política contemporânea. É

impossível estimar em que medida a influência dos clássicos se

processou de forma direta ou indireta. Todavia, é impossível negá-la.

Nestes termos, esse artigo sistematiza alguns conceitos do

pensamento de James Madison e Robert Dahl em perspectiva

comparada. Especificamente, o foco repousa sobre as noções

madisonianas de facções, separação de poderes e república, bem

como sobre o conceito de poliarquia elaborado por Dahl.

O referido desenho de pesquisa está dividido em cinco

seções. A próxima parte discute a noção madisoniana de facção.

Depois disso, o objetivo é analisar o conceito de separação de

poderes. A terceira seção discute as noções de república e

poliarquia a partir de Madison e Dahl, respectivamente. Na quarta

parte operacionalizamos os dados empíricos referentes à poliarquia

no mundo, América Latina e Brasil. A última apresenta nossas

principais conclusões.

O pluralismo e as facções em Madison

De acordo com Dahl (1956), os escritos de Madison

influenciaram não só o desenvolvimento da democracia, mas

também a difusão do pluralismo como ideal nos Estados

Unidos. Dahl, citado por Bobbio (1994), argumenta que o

pluralismo pode ser definido da seguinte forma:

Em lugar de um centro singular de poder soberano, devem

existir muitos centros, mas nenhum deles deve ou pode ser

inteiramente soberano. Na perspectiva do pluralismo norte-

americano, o único soberano legítimo é o povo, mas o povo

não deve nunca ser um soberano absoluto (...). A teoria e a

prática do pluralismo norte-americano tendem a afirmar que a

existência de uma multiplicidade de centros do poder, sem que

nenhum deles seja inteiramente soberano, ajuda a controlar o

poder e a assegurar o consentimento de todos para a solução

pacífica dos conflitos (BOBBIO, 1994: 15).

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

A dispersão do poder assume um papel central no conceito

de pluralismo. Antagonicamente à posição hobbesiana de

poder centralizado e absoluto, o pluralismo apenas é possível

se o poder for compartilhado. Dessa maneira, como os

diferentes grupos competem entre si, o regime torna-se

equilibrado, já que nenhum deles consegue se tornar

dominante. Para os propósitos deste artigo, é interessante

analisar o conceito de pluralismo em relação ao conceito de

facção. Para Madison (2003),

Entendo por facção uma reunião de cidadãos, quer formem

a maioria ou a minoria do todo, uma vez que sejam unidos e

dirigidos pelo impulso de uma paixão ou interesse contrário

aos direitos dos outros cidadãos, ou ao interesse constante e

geral da sociedade (MADISON, 2003: 60).

Ou seja, facção é um determinado agrupamento de

indivíduos, que ora constitua minoria ora maioria, que aja no

sentido de suprimir os direitos naturais de qualquer parte da

coletividade. Tecnicamente, é improvável que a maioria dos

cidadãos aja no sentido de ameaçar a promoção dos direitos da

maioria dos indivíduos. Isso porque, logicamente, a maioria

não pode oprimir a si própria. Todavia, nada impede que a

maioria aja deliberadamente no intuito de oprimir os direitos

da minoria. Por exemplo, algumas pesquisas de opinião

indicam que a maior parte da população brasileira é favorável a

redução da maioridade penal66. No entanto, a eventual

modificação da lei seria aplicada a uma minoria, que são

exatamente os jovens infratores.

Por outro lado, uma minoria organizada pode tentar

suprimir os direitos naturais da maioria e/ou promover

políticas com benefícios concentrados para grupos específicos.

Esse comportamento pode ser observado quando o lobby de

66 Ver http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/90-apoiam-

reducao-da-idade-penal-c8e24o0vlosyiway5n00aryvi

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um determinado segmento procura influenciar as decisões

governamentais (rent creation) e/ou evitar desfavores políticos

(rent extraction)67. De acordo com Dahl (1956), Madison

estava mais preocupado com a tirania da maioria do que no

contrário.

Para federalistas como Madison e Hamilton, a

democracia antiga não possuía mecanismos que defendessem a

propriedade das minorias. Portanto, um dos papéis da

República era garantir a propriedade a partir da construção de

mecanismos institucionais que impedissem que uma maioria

sobrepujasse os direitos políticos e econômicos das minorias

(VITULLO, 2009). Para Dahl (1990) a preocupação de

Madison em relação a maioria foi posta em “xeque” a partir

dos elitistas. Ao contrário do que pensava John Stuart Mill,

Tocqueville, Madison e Hamilton, quem governa, na prática, é

sempre uma elite68 independente do regime político.

De acordo com o próprio Madison, um dos principais

objetivos do governo republicano é minimizar a influência das

facções. Existem duas formas de evitar os efeitos negativos

gerados pelo comportamento faccioso: “ou prevenir-lhe as

causas, ou corrigir-lhe os efeitos” (MADISON, 2003: 60). Para

combater as causas da facção, Madison sugere limitar a

liberdade individual. Todavia, esse remédio “é pior do que o

mal” (MADISON, 2003: 60). Seguindo a lógica madisoniana,

a liberdade não pode ser suprimida com o objetivo de evitar o

comportamento faccioso.

No que diz respeito em impor ou até mesmo incentivar

que todos os cidadãos compartilhem as mesmas opiniões,

paixões e interesses, Madison considera essa opção

67 Ver Stigler (1971) e McChesney (1997). 68 Para maiores interessados nesse argumento, ver Dahl (1990). Acerca das

elites políticas ver os capítulos concernentes à Mosca, Pareto e Michels in

Souza (1954). Para um comentário acerca do pensamento desses três ver

Perissinoto (2009).

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

impraticável. Defende justamente o oposto: a pluralidade de

opiniões e a heterogeneidade de paixões. E esses elementos

apenas podem florescer em terras livres.

Em síntese, não é possível eliminar as causas das facções.

Nas palavras de Madison: “concluamos que não é possível

prevenir todas as causas de facções e que não resta outro

remédio que corrigir-lhes os efeitos” (MADISON, 2003: 63).

Nesse sentido, o autor defende a formação de um governo

capaz de diminuir o efeito nocivo do “espírito faccionista”.

Essa construção vai depender em larga medida do desenho

institucional, ou seja, das regras de procedimentos que regulam

a ação política estratégica. Esse é um dos legados mais

importantes deixados pelos Federalistas: instituições

importam69.

Ratificando essa visão, Dahl (1956) argumenta que uma

das proposições fundamentais do pensamento madisoniano

pode ser sintetizada na seguinte hipótese: “na ausência de

controles externos, qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos,

tiranizará os demais” (DAHL, 1956: 14). Logo, a separação

dos poderes é vital para evitar a própria dissolução dos

controles externos, o que por sua vez é um fator decisivo para

que nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos tiranize os seus

semelhantes.

Tirania e Separação dos poderes

Para compreender porque a grande maioria dos governos

representativos adota um arranjo institucional que separa os

poderes, é necessário entender a origem desse princípio.

Historicamente, a preocupação com a divisão dos poderes

69 Outro componente central para evitar o comportamento faccioso é a

extensão territorial da república. Isso porque um grande território

comportaria uma maior quantidade de diferentes interesses, dificultando

assim, a aglutinação de interesses comuns de caráter opressivo.

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

remonta à Grécia antiga e tinha como principal objetivo evitar

a tirania. Para Aristóteles:

Os vários grupos ou classes sociais participam do

exercício do poder político, ou aquela em que o exercício da

soberania ou o governo, em vez de estar nas mãos de uma

única parte constitutiva da sociedade, é comum a todas.

Contrapõem-se-lhe, portando, as constituições puras em que

apenas um grupo ou classe social detém o poder político (apud

PIÇARRA, 1989, 32-33).

Locke também refletiu sobre a importância da

separação dos poderes. Inegavelmente, para Locke, o

Legislativo é o poder supremo.

A concepção lockeana, todavia, pressupõe que

independentemente da forma de governo e do desenho

institucional, a principal finalidade de qualquer governo é

garantir a preservação da propriedade. De acordo Madison, o

governo não foi menos instituído para defender a pessoa dos

cidadãos do que para defender a sua propriedade, e, portanto,

uma e outra coisa devem ser igualmente representadas por

aqueles que exercem as funções do governo. Logo, a separação

dos poderes deverá ser elaborada tendo como principal meta

conservar a propriedade. Aqui é possível identificar a relação

mais íntima dos Federalistas com o liberalismo. O objetivo

final é implementar um governo limitado que garanta

efetivamente o livre desenvolvimento das faculdades mentais e

econômicas dos indivíduos.

É possível identificar dois critérios para separar os poderes

no pensamento de Madison: (1) a natureza humana e (2) a

natureza da função. A natureza humana tende a abusar do

poder e uma forma de evitar esses abusos é a separação dos

poderes. Dessa maneira, é preciso compartilhar o poder no

sentido de enfraquecê-lo. Uma concepção defendida por

Hamilton e compartilhada por Madison é a de que os homens

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

são “ambiciosos, vingativos e rapaces”. Pensar de modo

diferente, “seria ignorar o curso uniforme dos acontecimentos

humanos e desafiar a experiência acumulada ao longo dos

séculos” (in: Os clássicos da Política, 2006: 249). Assim

sendo, os mecanismos de controle serão elaborados no sentido

de controlar a propensão humana ao abuso do poder.

No que diz respeito à natureza da função, Madison

considera que a separação de poderes é um elemento essencial

à liberdade, argumentando que se a Constituição tentar

promover ou até mesmo favorecer, direta ou indiretamente, o

acúmulo de poder, ela deve ser sumariamente rejeitada.

Para Madison,

para manter a separação dos poderes, que todos assentam ser

essencial à manutenção da liberdade, é de toda necessidade que

cada um deles tenha uma vontade própria; e, por consequência,

que seja organizado de tal modo, que aqueles que o exercitam

tenham a menor influência possível na nomeação dos

depositários dos outros poderes (...) é necessário que as

nomeações para as supremas magistraturas legislativas saiam

do povo, que é a fonte primitiva de toda a autoridade, por meio

de canais que não tenham entre si a mínima comunicação

(MADISON, 2003: 317).

Para Dahl (1956), Madison estava muito preocupado com

a possibilidade da tirania ser exercida pelo Legislativo. De

acordo com Madison, não se exige a separação absoluta dos

poderes como mecanismo para evitar a tirania. Ele exemplifica

com a carta constitucional de New Hampshire para ilustrar o

seu argumento de que não há uma separação total dos poderes.

O problema, segundo Madison, é de o poder exercer

completamente ou demasiadamente as funções do outro. Em

outras palavras, deve-se procurar evitar não o contato entre os

poderes, mas a ingerência sistemática de um poder sobre as

atribuições do outro.

No entanto, é a aversão à tirania legislativa que ocupa

maior atenção de Madison. Dessa forma, a ideia era consolidar

a separação dos poderes que pudesse minimizar a supremacia

320 Entre a República e a Poliarquia

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

do Legislativo frente aos demais poderes. O objetivo é conferir

mais equilíbrio à relação entre os poderes, almejando o

fortalecimento do Executivo. É possível identificar nos

próprios artigos dos Federalistas uma tendência ao

enfraquecimento do Legislativo em detrimento do

fortalecimento do Executivo.

Para Madison, o problema é que, nos governos

republicanos, o poder legislativo tende necessariamente a

predominar, e não é possível dar a cada um dos outros poderes

meios suficientes para a sua própria defesa. O único recurso

consiste em dividir a legislatura em muitas frações e em

desligá-las uma das outras, já pela diferente maneira de elegê-

las, já pela diversidade de seus princípios de ação, tanto quanto

o permite a natureza das suas funções comuns e a dependência

comum com que elas se acham da sociedade. Mas este mesmo

meio ainda não basta para evitar todo o perigo das usurpações.

Se o excesso de influência do corpo legislativo exige que ele

seja assim dividido, a fraqueza do poder executivo, pela sua

parte, pede que seja fortificado. O veto absoluto é, a primeira

vista, a arma mais natural que pode dar-se ao poder executivo

para que se defenda: mas o uso que ele pode fazer dela pode

ser perigoso e mesmo insuficiente (MADISON, 2003:

318/319).

Claramente, para que o controle mútuo seja efetivamente

exercido é necessário o contato entre os poderes, e não seu

isolamento. É justamente isso que Madison defende: um poder

com capacidade de fiscalizar o outro, evitando a concentração

plena de poderes na mesma mão. Dada a dupla tendência à

usurpação e à expansão que o poder possui, não é suficiente

apenas prescrever constitucionalmente os seus limites.

É necessário colocar “a ambição contra a ambição” e

atrelar os interesses humanos às obrigações dos cargos

governamentais, de modo que não haja transgressão sem

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

punição. Em suma, a “rivalidade de interesses” é o segredo de

todos os negócios humanos, privados ou públicos. E essa

rivalidade se demonstra especialmente importante durante a

distribuição do poder, quando a principal meta é garantir que o

mesmo (o poder), seja amplamente compartilhado, de tal modo

que um possa exercer controle sobre o outro: “que o interesse

privado de cada indivíduo seja uma sentinela dos direitos

públicos” (MADISON, 2003: 318).

Por fim, é possível afirmar que Locke, Monstesquieu e

os Federalistas são importantes referências no que diz respeito

à separação de poderes. Cada um deles, com suas

particularidades e inseridos em diferentes contextos históricos,

refletiram sobre um problema que além de ocupar a atenção da

Ciência Política contemporânea é absolutamente importante

para compreender como funciona grande parte dos sistemas

políticos atuais.

Democracia: República e Poliarquia

No contexto histórico em que Madison estava inserido,

Dahl (1956) argumenta que a definição de democracia se

aproximava muito mais de um igualitarismo radical e/ou da

noção de democracia direta do que qualquer outra coisa. Dessa

forma, Madison se opunha claramente à implementação de

uma forma de governo que se identificasse com esses

conceitos. Por exemplo, para Madison, o espírito faccionista é

inerente ao governo democrático (democracia direta grega).

Para Madison,

é impossível ler a história das pequenas repúblicas da Grécia e

da Itália sem sentir horror ou aversão diante das confusões que

continuamente as agitavam e da rápida sucessão de revoluções

através das quais se mantinham em um estado de constante

oscilação entre os extremos da tirania e da anarquia. Quando

ocorriam períodos ocasionais de tranquilidade, apenas serviam

como contrastes de curta duração das violentas tempestades

que se sucediam (in: Os clássicos da Política, 2006: 249).

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

De acordo com Dahl (1956), a noção de república

desenvolvida por Madison se aproxima fortemente da noção

mais contemporânea de democracia representativa. Dentro do

pensamento madisoniano, uma república é um governo em

que: “todos os poderes procedem direta ou indiretamente do

povo e cujos administradores não gozam senão de poder

temporário cada, a árbitro do povo ou enquanto bem se

portarem” (MADISON, 2003: 237).

Madison considera o governo republicano como a única

alternativa possível para os desejos de uma nação livre. Ele

apresenta exemplos históricos de outros países que não podem

ser efetivamente considerados governos republicanos já que

não conservam os princípios, a essência de tal regime. Não

basta ser um governo republicano de direito, é necessário sê-lo

de fato. Em síntese, Madison afirma que todos esses exemplos

(...) mostram a extrema inexatidão com que a palavra república

tem sido empregada nas discussões políticas (MADISON,

2003: 237). Analiticamente, Madison distingue o conceito de

república da noção de democracia a partir de dois pontos

centrais: (1) a república apresenta maior extensão territorial e

maior quantidade de cidadãos. Esse é um dos maiores

problemas da democracia antiga segundo Dahl (2001). (2)

Como se dá a delegação de poderes. Para Madison essa

segunda característica aumenta o espírito público e garante que

as decisões tomadas sejam as melhores para o bem da nação.

Segundo Vitullo (2009), Hamilton também defendia

essa distinção entre república e democracia. Ele observa que a

superioridade da república se tornava mais marcante

principalmente pelo fato de que o poder político se realizava

por meio da representação, evitando assim os grandes

problemas oriundos da realização de assembleias.

Por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista,

Madison defende que “num tal governo é mais possível que a

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

vontade pública, expressa pelos representantes do povo, esteja

em harmonia com o interesse público do que no caso de ser ela

expressa pelo próprio povo” (MADISON, 2003: 64). Com

efeito, algum crítico poderia argumentar que Madison, ao

considerar que os representantes representarão os interesses de

seus representados mais fielmente do que eles próprios, não

considera o risco de desvio de representação. Todavia, esse

argumento não se sustenta. Isso porque o próprio Madison

reconhece que em alguns casos (...) homens de caráter

faccioso, cheios de prejuízos, filhos de circunstâncias locais e

de projetos sinistros, por intriga, por corrupção e por outros

meios ainda, obter os votos do povo e atraiçoar-lhe depois os

interesses. Reduz-se, pois, a questão em saber se a grandeza ou

pequenez das repúblicas é mais favorável à eleição dos

melhores defensores do bem público: duas considerações sem

resposta fazem que a decisão seja a favor da primeira

(MADISON, 2003: 64).

Ao se comparar a definição de república de Madison e o

conceito de Poliarquia de Dahl (1970), algum analista poderia

argumentar que o segundo incorpora, com mais sofisticação e

refinamento, as propriedades do primeiro. Para Dahl (1971), as

“poliarquias são regimes que foram substancialmente

popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e

amplamente abertos à contestação pública” (DAHL, 1971: 32).

As poliarquias são sistemas em que a escolha dos

representantes é feita pelo povo e sua rotatividade é definida

constitucionalmente. As regras do jogo são formuladas de tal

sorte que o poder deriva do povo, os árbitros do poder são

escolhidos pelo povo e possuem mandatos temporalmente

regulados. Nesse sentido, é possível afirmar que quando

Madison analisa em que medida o plano da Convenção reflete

ou não os princípios republicanos ele estabelece, ainda que de

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

forma primitiva, a base dos eixos para se pensar a poliarquia de

Dahl (inclusividade e contestação pública).

Outro ponto que aproxima esses autores é o esforço

teórico comum no sentido de separar o que é uma verdadeira

república de sua versão “pirata”. Madison se preocupou em

distinguir o conceito de república da noção de democracia

direta. Dahl, por sua vez, abandonou o conceito de democracia

em função da noção de poliarquia. Inegavelmente, o conceito

de democracia é um dos termos mais polissêmicos da teoria

política (democracia direta, representativa, deliberativa,

participativa, elitista, de alta intensidade,

minimalista/procedimental, entre outros). Nesse sentido, tanto

Madison quanto Dahl oferecem importantes ferramentas

analíticas para se pensar mais sistematicamente a democracia.

Para operacionalizar o conceito de poliarquia, Dahl (1971)

identifica oito características institucionais. O quadro 1

apresenta essas informações.

Quadro 1: Requisitos de uma democracia para

um grande número de pessoas

I. Formular preferências

II. Exprimir preferências

III. Ter preferências

igualmente consideradas

na conduta do governo

São necessárias as seguintes

garantias institucionais

1. Liberdade de formar e aderir a

organizações;

2. Liberdade de expressão;

3. Direito de voto;

4. Elegibilidade para cargos públicos;

5. Direito de líderes políticos

disputarem apoio;

6. Fontes alternativas de informação;

7. Eleições livres e idôneas;

8. Instituições para fazer com que as

políticas governamentais

dependam de eleições e de outras

manifestações de preferências.

Fonte: reproduzido pelos autores a partir de Dahl (1971).

325 Entre a República e a Poliarquia

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

Essas oito garantias são reduzidas a duas dimensões:

(1) contestação e (2) inclusividade. Quanto maior for o grau de

contestação política e inclusividade mais próximo o regime

encontra-se da poliarquia. A figura 1 abaixo ilustra as

dimensões da poliarquia.

Figura 1: Dimensões da Poliarquia

Inclusividade (participação)

Fonte: Dahl (1971)

Na terminologia de Dahl, nos regimes classificados

como Hegemonias fechadas, tanto a inclusividade quanto a

contestação são fracamente desenvolvidas. Os regimes que

apresentam alta inclusividade, mas que ainda não

desenvolveram um sistema de competição e institucionalização

das regras do jogo, são definidos como Hegemonias inclusivas.

Os regimes que apresentam alta contestação mas que ainda não

permitem a participação popular no processo de seleção dos

representantes podem ser caracterizados, segundo Dahl, como

Oligarquias competitivas. Finalmente, sistemas fortemente

liberalizados e inclusivos são denominados de poliarquias. A

poliarquia é, nesse sentido, um sistema de governo mais

democrático. Na visão de Madison, por sua vez, quanto maior

for o sufrágio (inclusividade) maior será o descolamento dos

Co

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ção

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

representantes frente aos interesses particulares dos

representados. No original

Como cada representante será escolhido por um número maior

de cidadãos nas grandes do que nas pequenas repúblicas, será

mais difícil para os candidatos sem méritos utilizar com êxito

artifícios desonestos, que tantas vezes têm dado a vitoria nas

eleições; e os sufrágios do povo, sendo mais livres, terão maior

probabilidade de se concentrarem sobre pessoas que possuam

méritos mais atraentes e personalidades mais firmes e

propagadoras (MADISON, 2003: 65).

O sistema representativo, ao se tornar gradativamente mais

inclusivo e institucionalizado, passa a ser, dentro dessa visão,

fortemente responsivo em relação às demandas dos cidadãos,

agora eleitores. De forma geral, portanto, fica evidente que a

um dos principais objetivos perseguidos pelos Federalistas é

implementar um sistema amplamente representativo que seja

capaz de selecionar os indivíduos mais aptos a resistir às

paixões desordenadas e aos equívocos que podem tomar conta

do povo. Claramente, o representante não é, e não deve ser,

uma marionete do povo, segundo os Federalistas.

Dahl em Dados

Empiricamente, uma das mais bem sucedidas tentativas de

operacionalizar o conceito de Poliarquia foi implementada por

Coopedge, Alvarez e Maldonado (2008). Os autores utilizaram

um modelo de análise de componentes principais para reduzir

diferentes medidas de democracia as duas dimensões propostas

por Dahl: contestação e inclusividade. Essa seção reproduz esses

dados com ênfase na variação dessas dimensões na América

Latina e no Brasil. O gráfico 1 ilustra o posição dos países

segundo as dimensões de poliarquia.

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

Gráfico 1. Países segundo as dimensões da

poliarquia

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

As linhas traçadas no ponto zero em cada eixo representa as

médias de cada dimensão. Líbia e Myamar podem ser

considerados hegemonias fechadas enquanto Dinamarca e

Austrália figuram como poliarquias. Síria e Vietnã encontram-se

mais próximos da posição de hegemonias inclusivas. A

correlação entre as dimensões é de 0,549 (p-valor <0,000 ; n =

192). Os mapas 1 e 2 ilustram a variação da contestação e

inclusividade no mundo em 2000.

Mapas 1: Contestação no mundo (2000).

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

Quanto mais escura a tonalidade, maior a contestação

esperada no país analisado. As coras mais claras indicam

ausência de dados ou baixo nível contestação, ou seja, baixa

capacidade de se fazer oposição política.

Mapas 2: Inclusividade no mundo (2000).

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

O mapa 2 segue a mesma lógica de tonalidade de cores para

compreensão do grau de inclusividade política. A seguir, o

gráfico 2 apresenta a dispersão de países segundo contestação e

inclusividade para a América Latina.

Gráfico 2: Países da América Lativa segundo

as dimensões da poliarquia

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

329 Entre a República e a Poliarquia

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

Ao se considerar apenas os países da América Latina,

observa-se uma correlação de 0,229 (p-valor = 0,361; n = 18). A

média da contestação é de 1,21 enquanto a média da

inclusividade é de 0,74. Argentina, Brasil e Chile estão mais

próximos da poliarquia. Os mapas 3 e 4 ilustram a variação da

contestação e inclusividade para a América Latina no ano 2000.

Mapas 3 e 4. Contestação Inclusividade na América Latina (2000).

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

Por fim, é possível analisar como essas dimensões variam no Brasil.

Os gráficos 3 e 4 ilustram essas informações.

Gráficos 3: Contestação e inclusividade no

Brasil (1950-2000).

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

330 Entre a República e a Poliarquia

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

No início da série (1950), a contestação aparece maior do

que a inclusvidade no Brasil. Em 1964 observa-se uma queda

abruta nos níveis de contestação, isso quer dizer que o

indicador captou o retrocesso institucional provocado pelo

golpe de estado. Depois disso, verifica-se uma clara tendência

democrática, já que ambos os indicadores aumentam ao longo

do tempo. O gráfico 4 reproduz essa informação a partir de

uma análise de trajetória.

Gráficos 4: Série histórica da contestação e

inclusividade no Brasil (1950-2000).

Fonte: elaboração dos autores a partir de Coppedge (2000).

Novamente é possível observar a ruptura institucional

provocada pelo golpe de 1964. Os níveis de contestação e

inclusividade atingiram o limite mínimo em 1968, ano da

adoção do AI-5, a maior expressão marcante da ditadura

militar no país. Mais uma vez ganha força a confiabilidade dos

dados, o que por sua vez ajuda a melhor compreender a

importância das dimensões da poliarquia propostas por Dahl.

Considerações Finais

Esse artigo discutiu os conceitos de facções, separação

de poderes e república na obra de James Madison, em

comparação com a noção de poliarquia de Robert Dahl. O

331 Entre a República e a Poliarquia

Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.47, n. 2, p.313—333, jul./dez., 2016

foco foi desenvolver uma perspectiva analítica comparada

entre os dois autores e, sempre que possível, estabelecer

analogias com outros autores como Locke e Montesquieu. A

análise defende que o pensamento político contemporâneo é

fortemente influenciado por noções clássicas de democracia.

Ainda que seja impossível mensurar com precisão

o quanto conceitos da teoria política clássica influenciaram a

teoria política contemporânea, não podemos relegar os autores

clássicos ao segundo plano. A contribuição clássicos permite

que a teoria política contemporânea seja capaz de tentar

oferecer explicações mais robustas às novas e velhas questões

enfrentadas pela disciplina.

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Bibliografia

Resumo: O objetivo desse trabalho é estabelecer a relação

entre as teorias políticas clássicas e contemporâneas a respeito

do conceito de democracia e poder. Metodologicamente

analisamos alguns conceitos elaborados por James Madison e

Robert Dahl. De maneira mais específica, esse trabalho lida

com as noções madisonianas de facção, separação de poderes

e república e sobre o conceito de poliarquia proposto por

Dahl. Descreve a contínua influência de alguns aspectos

próprios da teoria política clássica na forma como a teoria

política contemporânea lida com o tema. Conclui-se que a

contribuição dos autores clássicos permite que a teoria política

contemporânea seja capaz de tentar oferecer explicações mais

robustas aos “novos” problemas enfrentados pela disciplina.

ABSTRACT: The aim of this study is to establish the

relationship between the classical and contemporary political

theories regarding the concept of democracy and power.

Methodologically, we analyze some concepts developed by

James Madison and Robert Dahl. More specifically, this paper

deals with the Madisonian notions of faction, separation of

powers and republic and the concept of polyarchy proposed by

Dahl. We describe the continuing influence of some specific

aspects of classical political theory in the way contemporary

political theory deals with the issue. It is concluded that the

contribution of classical authors allows the contemporary

political theory be able to try to provide more robust

explanations to the "new" problems facing by the discipline.

Recebido para publicação em novembro/2014. Aceito em abril/2015. ________________________________

Palavras-chave:

Poliarquia; separação

de poderes; facção;

República

Keywords:

Polyarchy;

separation of

powers; faction;

Republic.