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CIÊNCIA EPIDEMIOLOGIA Os tons da diferença Variações no canto de acasalamento mostram que pode haver mais de uma espécie de transmissor da leishmaniose visceral E studosfeitos pe- la Fundação Os- waldo Cruz (Fio- cruz), do Rio de Janeiro, sugerem que os mosquitos tlebótomos hoje chamados de Lutzomyia longipalpis, principais trans- missores da leishmaniose visceral em humanos nas Américas, podem pertencer a várias espécies irmãs de in- setos hematófagos - e não apenas a uma única, como se acredita. A análise do ma- terial genético de populações diferentes, provenientes de pontos do país, reforça a tese de que há, no mínimo, três tipos distintos talvez quatro, de L. longipalpis. Os pesquisadores ainda não conse- guiram precisar se cada uma dessas va- riedades de L. longipalpis, que pratica- mente não cruzam entre si, pode vir a ' ser rotulada de uma nova espécie. Es- tão, no entanto, convencidos de que to- dos os mosquitos não são exatamente iguais."Na Venezuela,já foram levanta- das evidências consistentes de que há pelo menos duas espécies irmãs de L. longipalpis", diz Alexandre Peixoto, da Fiocruz, coordenador dos estudos, que trabalhou com tlebótomos oriundos das localidades de Sobral (Ceará), Jaco- bina (Bahia), Lapinha (Minas Gerais) e Natal (Rio Grande do Norte.). "No Bra- sil, parece ocorrer o mesmo." Esse tipo de informação taxonômica é impor- tante na luta contra a doença, pois o combate da leishmaniose visceral re- quer um melhor controle - e conheci- mento - de seus agentes transmissores. mosquito tlebótomo trans- missor da leishmaniose vis- ceral. "Podemos estar diante de uma situação semelhante ao mosquito Anopheles gam- biae, que transmite a malá- ria na África", diz Peixoto. Por meio de uma série de es- tudos, os cientistas descobri- ram que há um complexo de sete espécies de mosqui- tos ao redor do A. gambiae. Se ficar comprovado que os mosquitos capazes de transmitir a leishmaniose visceral pertencem a um complexo de espécies apa- rentadas, será preciso descobrir o papel dessas desconhecidas variedades de L. longipalpis na disseminação da doença. Cada uma dessas potenciais novas es- pécies pode ter um peso diferente na propagação dessa moléstia, caracteriza- da por febres de longa duração, perda de peso e inchaço do baço e fígado. Se não tratados, os sintomas podem levar à morte em um ou dois anos. ''Além de ser fundamental para o estudo evolutivo dos tlebótomos, a confirmação da existência de um com- plexo de espécies irmãs em torno do L. longipalpis pode ter repercussões na epidemiologia da doença",avalia Peixo- to. O jeito mais comum de uma pessoa pegar leishmaniose visceral é ser mor- dida por um L. longipalpis infectado pelo protozoário Leishmania chagasi, o agente causador da doença. No país, há cerca de 2 mil casos novos de leishma- niose visceral por ano, com um índice de mortalidade próximo dos 10%, de acordo com o Ministério da Saúde. L. longipalpis: indícios de pelo menos três espécies distintas Do ponto de vista da aparência (mor- fologia), não há diferenças significati- vas entre os exemplares do mosquito obtidos em cada uma dessas localida- des, mas há distinções perceptíveis do ponto de vista molecular e comporta- mental. Depois de seqüenciar e analisar uma região de um gene chamado de period em populações de L. longipalpis dessas quatro regiões, Luiz Guilherme Bauzer, do grupo de Peixoto, viu que esse material genético é bastante diver- so em cada uma das amostras, uma evi- dência a favor da idéia de que se trata de quatro espécies distintas. Com a colaboração de colegas de duas universidades britânicas (Keele e Leicester) e de Nataly de Souza (Fio- cruz), Peixoto gravou e analisou o con- teúdo do canto entoado pelos machos de L. longipalpis dessas diferentes lo- calidades. Mais uma vez, o resultado aponta para a existência de cantos dis- tintos, outro indício de que pode haver um complexo de espécies em torno do PESQUISA FAPESP 80 • OUTUBRO DE 2002 43

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Page 1: EPIDEMIOLOGIA Ostons da diferença€¦ · • CIÊNCIA EPIDEMIOLOGIA Ostons da diferença Variações nocanto de acasalamento mostram que pode haver mais de uma espécie de transmissor

• CIÊNCIA

EPIDEMIOLOGIA

Os tons da diferençaVariações no canto de acasalamentomostram que pode haver mais de uma espéciede transmissor da leishmaniose visceral

Estudosfeitos pe-la Fundação Os-waldo Cruz (Fio-cruz), do Rio deJaneiro, sugerem

que os mosquitos tlebótomoshoje chamados de Lutzomyialongipalpis, principais trans-missores da leishmaniosevisceral em humanos nasAméricas, podem pertencera várias espécies irmãs de in-setos hematófagos - e nãoapenas a uma única, comose acredita. A análise do ma-terial genético de populaçõesdiferentes, provenientes depontos do país, reforça a tese de que há,no mínimo, três tipos distintos talvezquatro, de L. longipalpis.

Os pesquisadores ainda não conse-guiram precisar se cada uma dessas va-riedades de L. longipalpis, que pratica-mente não cruzam entre si, pode vir a 'ser rotulada de uma nova espécie. Es-tão, no entanto, convencidos de que to-dos os mosquitos não são exatamenteiguais."Na Venezuela,já foram levanta-das evidências consistentes de que hápelo menos duas espécies irmãs de L.longipalpis", diz Alexandre Peixoto, daFiocruz, coordenador dos estudos, quetrabalhou com tlebótomos oriundosdas localidades de Sobral (Ceará), Jaco-bina (Bahia), Lapinha (Minas Gerais) eNatal (Rio Grande do Norte.). "No Bra-sil, parece ocorrer o mesmo." Esse tipode informação taxonômica é impor-tante na luta contra a doença, pois ocombate da leishmaniose visceral re-quer um melhor controle - e conheci-mento - de seus agentes transmissores.

mosquito tlebótomo trans-missor da leishmaniose vis-ceral. "Podemos estar diantede uma situação semelhanteao mosquito Anopheles gam-biae, que transmite a malá-ria na África", diz Peixoto.Por meio de uma série de es-tudos, os cientistas descobri-ram que há um complexode sete espécies de mosqui-tos ao redor do A. gambiae.

Se ficar comprovado queos mosquitos capazes detransmitir a leishmaniosevisceral pertencem a umcomplexo de espécies apa-

rentadas, será preciso descobrir o papeldessas desconhecidas variedades de L.longipalpis na disseminação da doença.Cada uma dessas potenciais novas es-pécies pode ter um peso diferente napropagação dessa moléstia, caracteriza-da por febres de longa duração, perdade peso e inchaço do baço e fígado. Senão tratados, os sintomas podem levarà morte em um ou dois anos.

''Além de ser fundamental para oestudo evolutivo dos tlebótomos, aconfirmação da existência de um com-plexo de espécies irmãs em torno do L.longipalpis pode ter repercussões naepidemiologia da doença",avalia Peixo-to. O jeito mais comum de uma pessoapegar leishmaniose visceral é ser mor-dida por um L. longipalpis infectadopelo protozoário Leishmania chagasi, oagente causador da doença. No país, hácerca de 2 mil casos novos de leishma-niose visceral por ano, com um índicede mortalidade próximo dos 10%, deacordo com o Ministério da Saúde. •

L. longipalpis: indícios de pelo menos três espécies distintas

Do ponto devistada aparência (mor-fologia), não há diferenças significati-vas entre os exemplares do mosquitoobtidos em cada uma dessas localida-des, mas há distinções perceptíveis doponto de vista molecular e comporta-mental. Depois de seqüenciar e analisaruma região de um gene chamado deperiod em populações de L. longipalpisdessas quatro regiões, Luiz GuilhermeBauzer, do grupo de Peixoto, viu queesse material genético é bastante diver-so em cada uma das amostras, uma evi-dência a favor da idéia de que se tratade quatro espécies distintas.

Com a colaboração de colegas deduas universidades britânicas (Keele eLeicester) e de Nataly de Souza (Fio-cruz), Peixoto gravou e analisou o con-teúdo do canto entoado pelos machosde L. longipalpis dessas diferentes lo-calidades. Mais uma vez, o resultadoaponta para a existência de cantos dis-tintos, outro indício de que pode haverum complexo de espécies em torno do

PESQUISA FAPESP 80 • OUTUBRO DE 2002 • 43