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ETNICIDADE E MEDIAÇÃO

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ETNICIDADE E MEDIAÇÃO

CARLOS GUILHERME DO VALLEORGANIZADOR

ETNICIDADE E MEDIAÇÃO

Etnicidade e Mediação

Projeto, Produção e CapaColetivo Gráfico Annablume

Annablume EditoraÁrea Sociologia

Conselho CientíficoIrám Jácome

Jacob Carlos LimaJosé Ricardo RamalhoJosué Pereira da Silva

1ª edição: novembro de 2015

© Carlos Guilheme do Valle

Annablume EditoraRua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros

05415-020 . São Paulo . SP . BrasilTelevendas: (11) 3539-0225 – Tel.: (11) 3539-0226

www.annablume.com.br

ÍNDICE

• Prefácio 7 Marcos Otavio Bezerra

• Apresentação – Etnicidade e mediação como política e cultura 13Carlos Guilherme do Valle

• Capítulo I – Formação de identidades culturais em contextos migratórios 61 Giralda Seyferth

• Capítulo II – Estado e povos indígenas no Brasil contemporâneo: da tutela à ação do movimento indígena 87 Antonio Carlos de Souza Lima

• Capítulo III – Eduardo Galvão e os estudos de aculturação no Brasil: ou ‘santo de casa também pode fazer milagres’ 117 João Pacheco de Oliveira

• Capítulo IV – Assim estou narrando, e não me vá embolar tudo depois: dialogia, políticas de representação e processo etnográfico entre os Uitoto-murui (Colômbia) 133 Edmundo Mendes Pereira

• Capítulo V – processos sociais e resolução de conflitos entre os apãniekra jê timbira: umaabordagem etnográfica de uma situação social 159Luis Augusto Sousa do Nascimento

• Capítulo VI – “cada índio em seu lugar”: análiseda experiência citadina de indígenas no maranhão 189Rodolpho Rodrigues de Sá

• Capítulo VII – indigenismo e mediação: o caso do rio grande do norte 211Cláudia Moreira da Silva Hofmann & Carlos Guilherme do Valle

• Capítulo VIII – a construção da identidade étnica:o caso do são gonçalo da mussuca (laranjeiras, SE) 245Wellington de Jesus Bomfim

• Capítulo IX – o coco de zambê e a emergência étnica quilombola em simbaúma (RN) 273Cyro Almeida Lins

• Capítulo X – “não é se associar, é se aconchegar”:notas sobre o processo de reorganização políticada comunidade quilombola de capoeiras 295Maíra Samara de Lima Freire

• Capítulo XI – sentidos da identidade entre militantesnegros de mossoró (RN) 323Francisco Carlos de Lucena

• Capítulo XII – memória, família e cor: tempos da cunhãvelha e de acauã 355Carlos Guilherme do Valle

• Sobre os autores 397

PREFÁCIO

Marcos Otavio Bezerra1

“On a dit que cette fonction diacritique de l’État, fonction à propre-ment parler de « définition », c’est-à-dire de délimitation est dans la nature même de l’État, (...), mais elle est, semble-t-il, plus impérative et par là même plus prescriptive dans le cas de l’État nationalement républicain, dans l’État qui prétend à une homogénéité nationale to-tale, (...) homogénéité politique, sociale, économique, culturelle (no-tamment linguistique et religieuse).”

Abdelmalek Sayad2

A coexistência de populações socioculturais diversas no interior das fron-teiras dos estados nacionais constitui, contemporaneamente, um desafio político, econômico, intelectual e moral. Não pelo enriquecimento e ga-nhos mútuos que propicia (culturais, estéticos, gastronômicos, econômicos e de conhecimento, entre outros), mas pelas múltiplas e, lamentavelmente, crescentes formas de conflito emergentes entre elas. Conflitos cujas faces mais conhecidas estão associadas à concorrência por oportunidades de trabalho, ao acesso a serviços públicos, às disputas por territórios e às ma-nifestações de violência religiosa, étnica e racial. Este tem sido um tema central da investigação antropológica e é nele que se inscrevem as contri-

1. Professor Titular, Universidade Federal Fluminense. 2. Immigration et « Pensée D’État ». Actes de La Recherche en Sciences Sociales, 129, 1999, p. 5-14.

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buições dessa oportuna e instigante coletânea constituída de artigos elabo-rados por pesquisadores inseridos nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A questão da diversidade sociocultural em território brasileiro é aqui examinada a partir de experiências recentes de emergência de identidades étnicas e reivindica-ções de direitos de populações imigrantes, indígenas e quilombolas. Estas experiências têm como uma de suas principais referências os marcos legais e institucionais estabelecidos pela Constituição de 1988, que reco-nhece os direitos culturalmente diferenciados de populações situadas em território brasileiro (como populações tradicionais, quilombolas e indíge-nas). Como demonstram os textos dessa coletânea, esses marcos expressam mudanças históricas importantes na configuração das relações dessas po-pulações com o Estado brasileiro, nos modelos intelectuais de compreen-são da participação das mesmas na sociedade brasileira e nas organizações políticas dessas populações no quadro das instituições nacionais. Passados somente alguns anos desde sua regulamentação, é importante, no entanto, alertar para o fato de que esses direitos encontram-se neste exato momento diante de ameaças efetivas de desfiguração. Constituem alvo destas amea-ças sobretudo os dispositivos legais e institucionais que regulam o acesso e o controle por parte destas populações de suas terras tradicionalmente ocu-padas. Áreas de preservação ambiental, indígenas, ribeirinhas e quilom-bolas, resguardadas legalmente, têm sido sistematicamente desrespeitadas seja em nome da realização de obras modernizantes (barragens, hidrelétri-cas, estradas, portos, etc.), seja em razão de interesses ligados ao comércio de madeira, à pecuária, mineração e ao agronegócio. Cabe aqui lembrar que o estoque de terras livres no país tem diminuído e seu valor comercial aumentado; o que tem intensificado os avanços sobre as terras que por defi-nição legal devem permanecer sob o domínio do Estado. Estes avanços, por sua vez, podem ser compreendidos como um movimento cujo propósito é liberar estas terras de seus usos tradicionais e legais e, desse modo, incor-porá-las ao mercado. Por conseguinte, não me parece mera coincidência que nos últimos anos tenham crescido simultaneamente, por um lado, os indicadores de ampliação das áreas destinadas a estas distintas atividades econômicas e, por outro, os indicadores de violência e assassinatos de lide-ranças ambientalistas e indígenas. A mobilização dos direitos constitucionais relativos às populações cultu-ralmente distintas está associada a processos complexos que envolvem,

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frequentemente, as próprias populações reconhecidas como sujeitos destes direitos, os representantes de diferentes órgãos estatais, organizações civis, universitárias, partidárias, religiosas e agências multilaterais. Ao se obser-var com atenção esses processos, como propõem os autores, constata-se que eles implicam em diferentes práticas de mediação social. Desse modo, a interrogação a respeito da relação dessas práticas de mediação com as reivindicações de identidades étnicas é a questão central que atravessa e articula os textos dessa coletânea. A esse respeito, cabe ressaltar que a des-crição do lugar da universidade pública nesses processos – através de seus programas de extensão, cursos de graduação e pós-graduação, programas de pesquisa e elaboração de laudos técnicos – é uma das contribuições im-portantes do livro. Assim, a partir de situações empíricas cuidadosamente examinadas, os autores reúnem evidências e exploram possibilidades ana-líticas que permitem identificar como as práticas de mediação e as relações de poder nas quais se inscrevem contribuem, através da perspectiva da et-nicidade, para a “singularização social” e a “formação de sujeitos coletivos”. A análise das redes de agentes e processos que configuram em cada caso as ações coletivas por reconhecimento étnico de imigrantes, indígenas e quilombolas, é precedida de uma detalhada e útil introdução elaborada por Carlos Guilherme do Valle (PPGAS/UFRN) sobre diferentes abordagens a respeito da mediação, mediadores e modos de poder, como a tutela. Para tanto, ele retoma autores clássicos da sociologia e de estudos sobre campe-sinato, patronagem, clientelismo, mudança cultural e contato interétnico. O organizador da coletânea chama atenção para algumas questões, e modos de pensá-las, em jogo em situações que se observam práticas de mediação: incorporação de grupos e comunidades às ações de instituições modernas como o Estado, o mercado e a democracia; a resistência, integração e as-similação destes grupos às instituições nacionais; as assimetrias de poder econômico, político e de prestígio; os laços de dependência e subordinação; o encontro entre culturas e sistemas de regras distintos; as condições so-ciais que favorecem o surgimento e desaparecimento de mediadores, suas práticas e ganhos; os espaços sociais nos quais as mediações são exercidas e os elementos em jogo nas mediações. A introdução tem pelo menos dois efeitos de conhecimento, considerando os artigos que lhe seguem: ajuda o leitor a identificar em cada uma das situações examinadas dados empíricos e formulações relacionadas à questão central proposta pela coletânea e evi-dencia a importância de se tomar a sério como foco de análise as práticas e os efeitos da mediação em situações que envolvem etnicidade, formas de

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organização coletiva e implementação de políticas do Estado dirigidas a populações reconhecidas como culturalmente diversas. Entendo, no entan-to, que de modo correto, a coletânea não apresenta proposições no sentido da delimitação da mediação como um fenômeno autônomo, ao qual se ar-ticularia um novo domínio de investigação. A atenção às práticas de mediação contribui, por sua vez, para invalidar as abordagens essencialistas dos processos de constituição de identidades culturais com base em critérios étnicos. Nesse sentido, ao se inspirarem em uma perspectiva histórica e dinâmica de compreensão da identidade étnica, os artigos demonstram como esses processos mobilizam agentes com diferentes interesses, envolvem entidades e pessoas dotadas de força e recursos sociais desiguais e são atravessados por violentas lutas classificató-rias – das quais resultam, por exemplo, as identidades como nacional/não nacional, indígena/não indígena, quilombola/não quilombola e as possi-bilidades de acessar ou não direitos relativos, por exemplo, à permanência na terra ocupada e às políticas públicas estatais. Assim, a reconstrução do espaço de relações sociais nos quais as práticas de mediação se inserem per-mite, por exemplo, compreender como dispositivos legais são mobilizados nas disputas a respeito da inclusão de populações em categorias sociais que são ao mesmo tempo estatais e identitárias (como tradicionais, indígenas e quilombolas). É nessa dupla condição, portanto, que essas categorias parti-cipam da formação dos grupos étnicos. A complexidade dos processos de reconhecimento de identidades e sujeitos coletivos com base em critérios étnicos, seu caráter histórico, dinâmico e a atuação de mediadores pode ser acompanhada através da reconstrução detalhada que os autores fazem das situações estudadas. Observa-se em cada uma delas a relação de populações imigrantes, indígenas e quilombo-las com grupos sociais que dividem o mesmo território, com representantes das instituições estatais, com pessoas e organizações não- governamentais que apoiam suas demandas, o modo como fazem uso dos direitos consti-tucionais, como se organizam para garantir sua aplicação e constroem e reelaboram suas identidades. Ao se comparar o conjunto, salta aos olhos, a singularidade de cada uma das situações. A identidade étnica pode estar re-lacionada à valorização de uma experiência comum (como a imigração), ao compartilhamento de uma memória ou aos valores e práticas culturais con-cebidas como comuns (por exemplo, a “germanidade”, as danças e as festas, etc). Mas as reivindicações de reconhecimento étnico podem também ge-rar tensões e conflitos entre integrantes do próprio grupo. É o caso exami-

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nado de alunos indígenas em escolas urbanas que experimentam uma crise de pertencimento tanto na cidade quanto em suas aldeias ou as divisões no interior de comunidades quilombolas entre as pessoas que negam a identi-dade quilombola e aquelas que a reivindicam. Divisões também podem ser observadas entre os agentes que ocupam as posições de mediação uma vez que se envolvem em disputas pelo monopólio da representação dos grupos e participam das discussões sobre o valor e o reconhecimento de certas experiências culturais. Assim, cada uma das situações analisadas pode ser entendida como uma variação do processo mais geral de construção de identidade étnica, formação de sujeitos coletivos e mobilização e aplicação de dispositivos legais e institucionais. As análises empreendidas na coletânea sobre as práticas de mediação nos processos de constituição de identidades étnicas dão lugar também a refle-xões sobre sua importância nas formas de acesso das populações às polí-ticas públicas, como as relativas à educação, saúde e fomento às atividades econômicas. A participação de mediadores na execução dessas políticas - funcionários estatais, membros de organizações não-governamentais ou representantes das populações – é uma dimensão importante do modo como são operacionalizadas e da determinação daqueles que delas pode-rão usufruir. A possibilidade de que em torno destas políticas públicas se atualizem formas de tutela, clientelismo ou, ao contrário, estejam sendo experimentadas formas de auto-representação dos grupos é algo que pode ser lido em páginas da coletânea. Considerando ainda a relação entre políticas públicas e práticas de media-ção, cabe lembrar que a distância entre o direito e os programas tais como existem no papel e o modo como se objetivam no cotidiano dos potenciais beneficiários é grande. O processo de implementação das políticas públi-cas envolve a participação de uma gama variada de agentes, negociações, interpretações, distorções e reelaborações que acabam por determinar seus sentidos efetivos para os agentes encarregados de sua execução e para as populações que por elas são alcançadas. No limite, as intervenções e media-ções podem resultar na própria negação dos direitos formalmente estabele-cidos ou na anulação em termos práticos dos esforços e conquistas políticas e jurídicas obtidas pelos grupos. Este é um aspecto que por si só justifica a importância analiticamente atribuída às práticas dos agentes que se encon-tram em posições de mediação. Outro é o fato de que as apropriações da le-gislação, das políticas públicas e de suas instituições têm, como evidenciam os textos, efeitos e desdobramentos diferenciados junto às populações.

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A Constituição Federal de 1988 garantiu às populações indígenas, antes sob o regime da tutela, o direito de representarem seus interesses através de suas organizações e participarem dos espaços de elaboração e execução de políticas públicas que lhes concernem. Ao percorrermos as páginas do livro, observamos, desse modo, as iniciativas e os esforços empreendidos por populações socioculturalmente diversas para terem seus direitos reco-nhecidos. Fazem parte destes esforços, cabe sublinhar, os questionamentos e as recusas por parte destas populações de que o Estado e outros agentes detenham o monopólio de falar em seus nomes e de se apresentar como porta-vozes de seus interesses. O material empírico reunido pelos autores permite acompanhar os investimentos efetuados em um trabalho artesa-nal, cotidiano e persistente que tem o propósito de criar as condições para que membros dessas populações representem a si mesmos em diferentes domínios de relações nos quais seus interesses estejam em questão. Inves-timentos realizados em educação e formas de ação coletiva, por exemplo, ganham sentido à medida que constituem recursos sociais importantes para que estes possam assumir a condição de representantes de si mesmos, abram mão de mediadores e, assim, tracem seus próprios rumos e interve-nham tanto quanto possível em seus próprios destinos. Este livro merece ser lido não só pelo fato de abordar teoricamente e em-piricamente temas atuais como os conflitos entre populações sociocultu-ralmente diversas ou as ameaças a seus direitos tão duramente conquista-dos. A interrogação sobre a relação entre etnicidade, formas de ação co-letiva e práticas de mediação é um convite ao desenvolvimento de novas investigações.

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APRESENTAÇÃO – ETNICIDADE E MEDIAÇÃO COMO POLÍTICA E CULTURA

Carlos Guilherme do Valle

Esta coletânea reúne artigos de antropólogos vinculados aos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Fede-ral do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Museu Nacional∕Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trata-se de um dos resultados obtidos do projeto de intercâmbio Procad, intitulado “Processos Sociais, Cultura e Identidades” (edital Procad nº 01∕2005 Capes∕MEC) financiado durante os anos de 2006 a 2010 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES). Além de trabalhos de docentes, apresentamos aqui artigos de alunos egressos do PPGAS∕UFRN, que realizaram missões de ensino e pesquisa no PPGAS∕Museu Nacional. Além do livro, o projeto gerou missões de ensino e pesquisa, disciplinas oferecidas por docentes, participações em bancas examinadoras e eventos acadêmicos que foram organizados pelos dois programas, tal como a Semana de Antropologia da UFRN, durante o tempo de vigência do Procad. Sem contar com a atmos-fera calorosa que se observou nos encontros entre professores e estudantes dos dois programas, mesmo se eles não estavam formalmente ligados ao projeto de intercâmbio, acreditamos que os dois programas de pós-gradua-ção ensejaram um período frutífero de trocas e diálogo acadêmico sistemá-tico durante o período de vigência do projeto Procad1 .

1. O projeto “Processos Sociais, Cultura e Identidades” estava sob responsabilidade de dois coordenadores, cada um vinculado à uma das instituições do projeto de intercâmbio: Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS∕Museu Nacional∕UFRJ) e Carlos Guilherme do Valle (PPGAS∕UFRN). Dentre os professores que atuaram no projeto, temos: 1) Adriana Vianna; Antonio Carlos de Souza Lima; Fernando Rabossi, Gilberto Velho, Giralda Seyferth, João Pacheco de Oliveira, José Sérgio Leite Lopes e Renata Menezes (Museu Nacional∕UFRJ) e 2) Angela Torresan; Edmundo Pereira; Eliane Tânia Freitas;

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Como temas axiais do projeto, arrolamos os seguintes, que englobavam os interesses e as trajetórias de pesquisa dos docentes e discentes envolvidos no Procad: 1) “identidades e políticas públicas”; 2) “família, gênero e reli-gião”; 3) “corpo, saúde e doença”. Nesse livro, estamos trazendo parte da produção acadêmica que foi desenvolvida através dos encontros acadêmi-cos e das dissertações de mestrado supracitadas, sobretudo aquela produ-ção voltada ao tema da etnicidade e das identidades, da cor e das relações raciais, da mobilização política e das políticas públicas. Além disso, os ar-tigos evidenciam uma articulação temática, que, aos poucos, se delineou através da edição da presente coletânea e orientou a escolha de seu título: etnicidade e mediação. De início, trato do tema da mediação a partir da visão teórica antropológica.

REVISITANDO A MEDIAÇÃO COMO TEMA ANTROPOLÓGICO

No século inicial de gênese e formação do pensamento sociológico, Émile Durkheim prenunciava no livro Divisão do Trabalho Social, lançado em 1894, questões que interessam a qualquer um que se preocupe com a temá-tica da mediação, revelada através da existência de grupos que intercalam os indivíduos e o Estado (1973: 321). Embora tivesse um foco particular, notavelmente o do trabalho, das profissões e da economia, o sociólogo francês apontava para questões que nos podem ser ainda caras, investidas agora por outros registros empíricos e orientações teóricas. Do mesmo modo, Marcel Mauss, no Ensaio sobre a dádiva (2003), discutiu a respeito da matriz relacional que fundamenta todas as trocas e transações entre pes-soas, famílias e grupos, em sua dimensão duplamente material e simbólica, antecipando diversas questões que explicam os modos, práticas e processos de mediação. Na tradição sociológica alemã, Georg Simmel (1950) foi ou-tro autor que salientou a relevância da “tríade” e da “significação socioló-gica do terceiro elemento” como uma figura que contribuía com a relação entre dois grupos ou duas pessoas, facilitando ou dificultando os canais e as interações entre membros de uma “díade”. Esses três conhecidos auto-res exemplificam como o tema da mediação tinha antecedentes que foram aos poucos se constituindo em uma problemática própria, mais particular,

Elisete Schwade; Francisca Miller (UFRN). Ao todo, dezesseis alunos do PPGAS∕UFRN e quatro do PPGAS∕Museu Nacional∕UFRJ realizaram missões de ensino e pesquisa.

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que seria complementada por interesses analíticos que se apresentavam de modo claro e empírico em pesquisas específicas. Mas foi na vasta literatu-ra antropológica sobre campesinato que apareceu de modo recorrente o tema da mediação - brokerage no jargão acadêmico anglo-saxão - voltan-do-se às premissas do contato entre comunidade e Estado-Nação, embora a discussão sobre os modos de mediação e as práticas de “mediadores”, que refletia a problemática das relações entre individuo e sociedade, tenha sido também abordada nos estudos antropológicos de sociedades complexas, tal como destacou Gilberto Velho (2001; 2010). Contudo, meu foco aqui será, em particular, o da mediação, privilegiando, em primeiro lugar, a produção acadêmica sobre campesinato2. A ideia de mediação foi sendo, então, constituída e redefinida aos poucos a partir das pesquisas etnográficas, além de estudos sociológicos e de ciência política, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960. Pode-se dizer que os ante-cedentes teóricos da discussão encontram-se nos estudos de comunidade e do ‘continuum’ folk-urbano, que tiveram o antropólogo Robert Redfield (1969) como referência. Mas veremos que outros autores se inseriram cen-tralmente no debate intelectual sobre a temática. Em termos gerais, os an-tropólogos enfocavam, sobretudo, as relações entre ‘patrão’ (o proprietário ou dono de terras) e seus ‘clientes’. Por trás de traços voluntários, informais e até de amizade, essas relações escondem uma forma de reciprocidade as-simétrica ou desigual, que dispõem as pessoas ou grupos em posições de força social diferenciada. Os grupos ou comunidades rurais passavam por um processo contínuo, mas acelerado de articulação com esferas regionais e nacionais através de entidades partidárias, dos aparelhos administrativos e as políticas públicas (saúde, educação, etc.), dos mercados de escoamento dos produtos econômicos, demanda e oferta de trabalho, etc. Esses proces-sos marcariam uma fase de transição de tais grupos, acarretando mudanças no sistema de relações de trabalho, além da patronagem (WOLF, 2003)3 .Em seu livro The People of the Sierra, Julian Pitt-Rivers (1954) reconhece que havia um tipo de vínculo presente através das relações de patronagem,

2. Destaco que pesquisas etnográficas, urbanas e rurais, em sociedades nacionais tiveram a Universidade de Chicago como um dos seus principais contextos institucionais de reflexão acadêmica.3. O estudo da patronagem foi sendo teoricamente adensado aos poucos e era restrito o debate acadêmico sobre mediação. Podemos destacar as pesquisas de George Foster (1963, 1967) sobre o ‘contrato diádico’, que dialogava com o trabalho de Pitt Rivers (1954), ao tratar das relações duais, formais e informais, tanto entre pessoas de mesmo status socioeconômico como aquelas diferenciadas por status desigual.

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sobretudo ao analisar a amizade como uma instituição social relacionada de modo direto com a autoridade do patrão, dois princípios que regiam a vida social do pueblo andaluz que pesquisou. Um vínculo que se processa-va não somente em termos locais, mas alcançava outros planos sociais, tal como na intercessão de favores. A extensão do vínculo seria importante para entender o sentido que definiria depois a mediação em termos analíti-cos. Segundo esse autor, a dinâmica de relação entre Estado e pueblo devia ser entendida como contrastante e desigual, o que viria a ser atenuada pelo sistema de patronagem, que viabilizaria, então, uma mediação entre as duas esferas, a da amizade e a da ‘lei’, como duas éticas ou, talvez melhor, como dois sistemas de sanções justapostos. Deve-se destacar que Pitt Rivers não usou diretamente a ideia de mediação. Ela aparece mais como uma relação, o contato entre dois níveis sociais em oposição, o interior e o exterior, tal como se dispõe através do dualismo entre parte e todo4 .Em conhecido artigo, Eric Wolf (1971 [1956]) iria refletir sobre a relação entre nação e “comunidade”, não se detendo, porém, sobre a patronagem (WOLF, 2003). Ele sustentava que havia uma relação de ‘dependência’, por um lado, entre as comunidades, em termos locais, e o sistema social mais abrangente, de outro lado, portanto em termos da Nação. Assim, julgava que as comunidades desempenhavam funções particulares dentro do sis-tema social e que existiam, em segundo lugar, “grupos de orientação na-cional”, cujos agentes teriam papel central na articulação de níveis sociais distintos, mas integrados entre si. Seu foco primava, portanto, muito mais nas relações entre grupos e planos sociais5. Através de uma linha de con-tinuidade histórica, Wolf recompôs diversos momentos de formação da nação mexicana, tomando como princípio a existência de conexões – ora esporádicas, ora dinâmicas – entre comunidade e Estado. Ao questionar a

4. “Há muitas situações nas quais o patrão ou o padrinho é de valor. Ele não é apenas capaz de favorecer seu protegido dentro do pueblo. Acima de tudo, é sua relação com os poderes de fora do pueblo que lhe confere valor” (PITT-RIVERS, 1971: 141; minha tradução).5. “Chamarei eles de grupos de orientação nacional. São usualmente encontrados em mais de uma comunidade e seguem modos de vida diferentes daqueles seguidos por seus companheiros mais orientados para a própria comunidade. Eles são comumente os agentes de grandes instituições nacionais que alcançam diretamente a comunidade... As comunidades que formam parte de uma sociedade complexa não podem ser vistas mais como sistemas autocontidos e integrados em si mesmos. É mais apropriado vê-las como termini locais de uma rede de relações de grupo que se estendem através de níveis intermediários a partir do próprio nível da comunidade para aquele da nação. Na própria comunidade, essas relações podem ser totalmente tangenciais entre si” (WOLF, 1971: 1065; minha tradução).

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imagem de uma “comunidade” isolada, Wolf discutiu as suas “conexões” com o Estado-Nacional, destacando a mobilidade entre os níveis sociais, mas ela não atinge a todas as pessoas, somente algumas delas, que estabele-cem de modo mais especializado a relação local-nacional:

Indivíduos que são capazes de operar tanto em termos das expecta-tivas orientadas para a comunidade como para aquelas orientadas para a nação tendem, então, a ser selecionados para mobilidade. Eles tornam-se os mediadores (brokers) econômicos e políticos das rela-ções nação-comunidade, uma função que carrega suas próprias re-compensas (WOLF, ibid: 1072; minha tradução).

Há uma pessoa que, por sua ‘função’, um ‘modo de vida diferente’ ou porque tem ‘expectativas’ particulares, acaba por transitar entre contextos locais e nacionais. Apesar da amplitude de suas possíveis atribuições, esboça-se um perfil específico na literatura especializada, aquele do mediador (broker), cuja especialização deriva em larga medida de sua mobilidade e, com isso, alcança vantagens e recompensas, viabiliza contatos e alianças, além de fa-cilitar políticas institucionais que, de outra maneira, não estariam à sua disposição.Segundo Eric Wolf, se o mediador consegue certo grau de autonomia de-vido a sua mobilidade, ela não deixa de ser relativa, afinal ele depende do apoio alcançado através das relações que mantém, seja com seus seguidores na comunidade como externamente com pessoas que atuam nas institui-ções nacionais. Mas Wolf parece sugerir que o plano nacional e os apare-lhos de Estado têm forte determinação sobre as comunidades e os planos locais através da transferência ou imposição de poder e a necessidade de segurança/dependência que essas comunidades podem ter6 . Os mediadores são agentes que obtém ganhos econômicos e sociais, ge-rando contatos e alianças. Todavia, a prática dos mediadores costuma ser especialmente ambígua e problemática, já que atuam numa esfera interme-

6. Ao salientar a função que caracteriza a mediação, Wolf está naturalizando a relação entre comunidade e Estado como dois níveis sociais a analisar. Apesar de registrar que seria expressa através de formas culturais, a função seria explicada só como um vínculo tributário da diferenciação “tradicional/moderno”, que é também em si naturalizada.

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diária, onde há “colisão de interesses” de grupos locais e nacionais ou extra--locais. Os mediadores ajudam a abafar o conflito de interesses, mantendo o canal de contato entre grupos, o que ‘estabiliza’ as relações que poderiam ser de confronto. Eles também “protegem” ou “defendem” a “comunidade” dos interesses desiguais originados da esfera nacional/extra-local. Assim, a “comunidade” possui interesses específicos que precisam ser garantidos e assegurados por parte de seus mediadores. O tema da proteção, da defesa e da segurança da comunidade não se encontra somente nos estudos de Eric Wolf, mas aparece difusamente na literatura sobre patronagem7. Apresentado através de uma figura específica, a mediação envolve um grau de assimetria, que pode ser tanto econômica ou política, entre os níveis ou planos sociais. Essa assimetria supõe uma concepção de poder como algo que se ‘transfere’ do centro para as margens, além de implicar a de-terminação das instituições nacionais ou mais gerais sobre os elementos da comunidade local (the local termini). Haveria, portanto, a delegação do poder através da prática de mediação de uma pessoa ou grupo particular. No caso da necessidade de segurança/dependência, ela se apresenta por-que os grupos sociais, tanto centrais como os locais, estariam envolvidos em uma unidade social mais abrangente, cujas relações complementares sugerem, portanto, intercessões, não apenas de poder, mas ainda de valores e padrões de comportamento que podem ser definidos como um ‘caráter nacional’ (1956: 1075). Essas são as duas premissas básicas de todo o cam-po de estudos de patronagem e de mediação: a transferência de poder e a proteção da comunidade através do mediador. São aspectos presentes nos estudos de Kenny (1960) e Foster (1963; 1967). Os dois autores entendem que a relação patrão-cliente possibilita a prática de mediação entre a co-munidade local e o Estado-Nação, considerados como níveis distintos de ordenação de poder. Assim, Michael Kenny (1977 [1960]) considera os mediadores como figuras típicas da institucionalização local de níveis nacionais ou mais gerais. Desse modo, pode ser tanto o prefeito, o padre, o delegado, o médico como tam-bém o proprietário de terra, que dependem da autoridade ou da liderança construída localmente. Por seu turno, eles estão ligados a outros “patrões”

7. Se consideramos os estudos de Foster (1963 e 1967) sobre o “contato diádico” ou os de Michael Kenny (1977), veremos que eles encaram a patronagem como uma fonte de proteção e assistência por parte do patrão ao cliente. Ver também Wolf (2003).

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cuja esfera de atuação e poder é muito maior8 . Além disso, a possibilidade de conferir ‘segurança’ tem ainda uma conotação simbólica. Para Kenny (1960), a patronagem pode ser exercida através da padronização da auto-ridade, seja na forma de comportamento como da objetividade de princí-pios culturais e religiosos. O patrão pode ser um “protetor”, um “guia”, um “modelo” cujo “poder é imaginário ou real” (KENNY, ibid). Detendo-se no alcance dos valores morais e das representações, Kenny deu a diretriz para outros estudos sobre patronagem e mediação, sobretudo Boisssevain (1966, 1977) e Sydel Silverman, (1977). Essa autora compreende a patronagem es-pecialmente através dos vínculos de mediação entre patrão-cliente, tratan-do também da importância da interface entre Estado-Nação e comunidade, entendidos como dois sistemas interdependentes:

O conceito [de mediador] refere-se a um status que funciona como vínculo entre um sistema local e um sistema nacional. Em termos das interações, o mediador pode ser visto como alguém cuja ação é originada a partir do sistema nacional e que, em seu turno, origina ação no sistema local. De algum modo, a direção é reversível, mas o mediador continua a ser o elemento do meio. Todavia, se o media-dor fosse definido apenas como alguém que age como um meio de contato entre os dois sistemas, isso iria incluir um conjunto muito amplo de fenômenos ao ponto de perder virtualmente seu sentido (SILVERMAN, 1977: 294; minha tradução).

Silverman não privilegiava o contraste de interesses grupais, mas, sobre-tudo, destacava a conjunção entre os dois planos (“sistemas”), abarcados por uma totalidade social mais abrangente, historicamente definida através da constituição dos Estados Nacionais, cujas dinâmicas sociais acentuavam contatos, relações e demandas institucionalmente criadas através de ser-viços, mercados e políticas públicas. Tomando o caso da comunidade ru-ral de Colleverde, Silverman mostra como se configurou historicamente a

8. “O prefeito, o padre, o sargento da Guarda Civil, os doutores, o proprietário rico são bem conhecidos líderes ou ‘chefes’ que desempenham, conforme o movimento que os dirige, um papel inovador ou controlador nos negócios locais. Sua amizade, seus interesses, sua influência, sua benevolência e, de fato, seus serviços devem ser solicitados em caso de necessidade ou dificuldade. Em seu turno, eles estão associados, como clientes também, às cidades através de patrões urbanos mais poderosos” (KENNY, 1977: 357; minha tradução).

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conjunção entre planos sociais distintos, tendo um sistema de patronagem específico associado a um sistema de cultivo da terra (mezzadria) que vi-gorava através de uma relação formal entre um proprietário e uma família camponesa, complementada por aspectos mais ‘informais’. Dentre eles, ha-via uma contínua troca de favores por onde sobressaiam traços afetivos e pessoalizantes, que incluíam a família camponesa. A relação entre patrão e cliente criava laços de dependência por meio da ajuda e de proteção. Aqui deve-se recuperar as preocupações teóricas de Eric Wolf (1971; 2003), pois Silverman entende que a mediação do patrão possibilita os contatos entre os planos abrangentes da nação e os locais da comunidade, além de dar ajuda e proteção aos seus clientes9 .Mas se o mediador estabelece tal ‘contato’, suas ações dependem de inte-resses tanto ao nível local como do nacional. Há um fluxo de motivações e intencionalidades atingindo o mediador, originadas de agentes e grupos dos dois sistemas. Para Silverman, a mediação afigura-se fortemente como uma prática que permite o estreitamento mais intenso e progressivo de relações entre atores e grupos, distanciados a princípio pela inserção em níveis sociais distintos, os nacionais e os locais. Assim, o patrão ajuda seus clientes quando atua como seu mediador em contextos, situações e relações exteriores que eles não teriam condições de alcançar ou se vincular. Essa autora buscou definir melhor a ideia de mediação, restringindo o seu alcan-ce. Os mediadores deveriam ser caracterizados pelo cumprimento de duas premissas básicas. Primeiro, eles deveriam estar voltados a funções críticas, importantes para a relação entre a esfera nacional e a esfera local ou da co-munidade. Em segundo lugar, eles precisam controlar de modo exclusivo essas mesmas funções. Podemos citar aqui atividades econômicas, servi-ços burocráticos e cuidado médico como algumas dessas funções. Embora Eric Wolf tivesse alertado para a posição estratégica dos mediadores no controle de funções na relação entre comunidade e nação, ele considerava essas pessoas de modo indiferenciado. Dessa forma, Sydel Silverman parti-cularizava a mediação diante de outras possibilidades de contato e relação entre atores e grupos dos níveis nacionais e locais. Haveria, assim, “me-diadores” e também “intermediários”. A mediação seria um tipo especial

9. “Poderia aparecer, de fato, que os patrões são particularmente bem adaptados a desempenhar a função de mediação entre o sistema local e o nacional. O patrão tem comumente um status distinto nos dois sistemas e atua efetivamente nos dois. Além disso, a relação entre patrão e cliente é estável e durável (SILVERMAN, idem: 297; minha tradução).

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de intermediação, pois coloca em questão uma assimetria ou desigualdade entre as pessoas, especialmente no caso de patrões e clientes, cujos valores e princípios estariam fundados por um modelo de relações hierárquicas/tra-dicionais. A mediação não pode ser, assim, associada a qualquer pessoa ou qualquer instituição que simplesmente facilita e mantém contatos entre os níveis nacionais e locais, afinal algumas delas não precisam se caracterizar por um vínculo desigual e hierárquico, tal como, por exemplo, a princípio, os sindicatos e os partidos trabalhistas, cujas agendas seriam pautadas por princípios igualitários10 :

“... há uma importante distinção que precisa ser feita entre a catego-ria mais ampla, ‘intermediário’, e o tipo especial de intermediário, o ‘mediador’. (...) Os mediadores podem tomar sua função porque pos-suem previamente uma posição social mais elevada, ou eles podem alcançar uma posição superior como resultado da afirmação de um papel de mediador. Em qualquer caso, a relação entre o sistema local e o nacional confirma uma forma ‘vertical’.” (SILVERMAN, idem: 294; minha tradução).

Além disso, a pluralidade de canais de interação entre as agências nacionais e a comunidade acabou por dificultar a prática de mediação dos patrões. Em termos históricos, houve uma progressiva intensificação dos contatos com o nível das agências nacionais, o que descreveu, ademais, o próprio processo de integração do Estado-Nacional, lembrando que a autora enfo-cava as transformações sociais na Itália do século XIX aos meados do século XX. Para Sydel Silverman, a patronagem e a mediação eram fenômenos an-tagônicos à integração nacional e à centralização do Estado, representando aspectos de um nível sociocultural peculiar das sociedades pré-industriais. Desse modo, temos a visão que os Estados-nação fortalecem a integração progressiva de todas as suas comunidades locais através da assistência dada pelas agências do Estado em substituição à proteção e segurança gerada por patrões-mediadores. Na verdade, esta posição não se apresenta apenas no texto seminal de Sydel Silverman, mas se evidencia em boa parte da litera-

10. Se Sydel Silverman não opera de modo explícito sobre a distinção hierárquico-igualitário ou tradicional-moderno, mas está, assim mesmo, pautando-se pela diferença entre tradicional (patronagem) e moderno (Estado-Nação).

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tura antropológica sobre patronagem (WOLF, 1971 [1956]; FOSTER, 1967; KENNY, 1977; BOISSEVAIN, 1966, 1977; GELLNER, 1977), que aborda grupos e comunidades que passaram por um processo contínuo, mas ace-lerado, de contato com esferas nacionais e regionais como, por exemplo, na forma de instituições públicas (administrações municipais, estaduais e federais; políticas de saúde, educação, etc.), agências extra-locais (corpo-rações trabalhistas, partidos políticos) e também de mercados de escoa-mento de produtos econômicos (demanda/oferta de trabalho; entrepostos comerciais). Esse tipo de processo serve para caracterizar uma etapa de transição na história destas comunidades rurais, que provoca mudanças no sistema de relações de patronagem. Assim, as “funções críticas” de-sempenhadas pelos mediadores no contato local/nacional são assumidas progressivamente pelas agências públicas, ou seja, pelo Estado. Isso viria a descaracterizar a exclusividade da mediação e, por conseguinte, afetava os padrões de autoridade tradicionais, mais informais e pessoalizados. Nesse caso, há uma pergunta que não se cala: a mediação e a patronagem seriam fenômenos necessariamente ultrapassados?11 Outro antropólogo, Jeremy Boissevain (1966, 1977), afinava-se também à ideia de que a patronagem teria emergido historicamente a partir da pre-mência de se criar e manter relações entre sistemas e níveis distintos, locais e nacionais. Tomando dois contextos distintos, mas culturalmente articu-lados, Sicília e Malta, Boissevain confirma a existência de um complexo de relações de patronagem, fundado na diferenciação assimétrica e recíproca entre patrão e seus clientes, que esperam a sua proteção e ajuda, sobretudo em contextos onde prevalece a violência, as desigualdades sociais e os peri-gos da infração moral, tal como sucedia historicamente no cotidiano rural siciliano. Do mesmo modo que os outros autores comentados, Boissevain encara o patrão como a pessoa que atenua as dificuldades de contato dos seus clientes com o ‘exterior’, querendo ele se referir às instâncias e aos pla-

11. Com a integração nacional e o eclipse da patronagem, imaginava-se a efetividade de uma sociedade democrática, cujo modelo seria o das ‘sociedades ocidentais desenvolvidas’ onde as esferas de favor e proteção estariam bem reduzidas. Não estou dizendo que os pesquisadores da patronagem entendiam as ‘sociedades modernas’ como ideais, mas parecem sugerir que elas representavam uma etapa específica de um processo geral de todas as sociedades humanas: a formação do Estado-nacional, das economias de mercado e de sistemas burocrático-formais. Para uma reflexão sobre a importância da ideia de ‘integração’ para se entender o Estado-Nação, ver Peirano (2006a).

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nos sociais de maior abrangência, portanto inseridos na esfera do Estado-Nacional12 . A proteção decorre, então, da manutenção de um conjunto de relações pau-tadas em vínculos de amizade, compadrio, parentesco e patronagem. As posições diversas de uma mesma pessoa representam a superposição de status, seja de amigo, de parente, amigo ou cliente. Assim, um patrão pode ser ainda cliente de outro patrão, inserindo-se numa rede de relações de patronagem que ultrapassa o contexto local e não se restringe ao contato entre duas pessoas, qual seja, o ‘contato diádico’ descrito por George Foster (1967). Boissevain tornou teoricamente famoso o caso empírico do pedi-do de recomendação (raccomandazione) feito por um estudante siciliano, Salvatore, para um advogado, secretário do Partido Cristão da cidade de Si-racusa, a fim de conseguir o contato com um professor universitário de ou-tra cidade, Palermo. O advogado entrou, assim, em comunicação com seu primo que, por sua vez, apresentou o estudante Salvatore ao assistente do professor, possibilitando depois o esperado encontro. Boissevain mostrou, assim, como uma rede de relações sociais foi formada, calcada em vínculos de parentesco e amizade. Salvatore ficava atado ao advogado, seu mediador, através de um favor, que precisava ser depois retribuído. O estudante ficaria atado também ao professor que lhe ajudaria a entrar na Universidade, favor que seria retribuído através do trabalho de Salvador na candidatura política do professor:

A pessoa chave no sistema é o homem que está no meio, o media-dor [broker], que tem relações diádicas com uma variedade ampla de pessoas e está, portanto, na posição de colocar duas pessoas, possi-velmente desconhecidas uma da outra, em uma relação mutuamente benéfica por meio da qual ele próprio consegue alguma vantagem. Essa é a ‘razão de ser’ [raison d´etre] do mediador, o qual mostra ter uma grande variedade na Sicília como em outros países mediterrâ-neos” (BOISSEVAIN, ibid: 25; minha tradução)

12. “A patronagem é encontrada através das relações recíprocas entre patrões e clientes. Por patrão, quero especificar uma pessoa que usa sua influência para assistir e proteger outra pessoa, que, então, se torna seu ‘cliente’ e, em retorno, provê certos serviços a seu patrão. A relação é assimétrica, pois a natureza dos serviços trocados pode diferenciar-se consideravelmente. A patronagem é o complexo de relações entre aqueles que usam sua influência, posição social ou algum outro atributo para assistir e proteger outros e, então, aqueles que eles ajudam e protegem” (BOISSEVAIN, 1966: 18; minha tradução).

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Boissevain evidenciou como se estabelecia uma rede de relações de patro-nagem, articulando patrões e clientes em torno de favores e proteção, cujo alcance referia-se à possibilidade de mediação presente através das rela-ções mantidas entre os diversos atores de uma mesma rede social. Nela, a pessoa chave é o ‘homem que está no meio, o broker’, ou seja, o mediador (BOISSEVAIN, 1966: ibid). O caso descrito por Boissevain evidencia como o problema da mediação refere-se à patronagem por meio de vínculos de amizade e compadrio, sem se restringir à uma “função” articuladora entre nacional-local, tal como os outros autores privilegiaram. Além disso, o me-diador não precisa atuar sempre como “patrão”, mas estar igualmente na posição de “cliente”, enredado a vínculos que se estendem muito além das esferas locais.Para finalizar essa discussão antropológica da mediação, será preciso con-siderar o tema da mediação e do clientelismo político. Há uma vasta lite-ratura sobre esse tema que buscou entender a gênese do fenômeno, suas características estruturais e os efeitos sobre a ordem de articulação entre comunidade e Estado-Nação. Autores como Weingrod (1968), James Sco-tt (1969), Duncan Powell (1977), Luigi Graziano (1977) e Adrian Mayer (1987) apoiaram-se em estudos antropológicos para compreender o clien-telismo político, visto como uma característica de sociedades que passam por processos de transição e de formação do Estado-Nacional. Duncan Powell ressaltou que esses processos levaram à incorporação dos campo-neses ao sistema eleitoral mais abrangente. Do mesmo modo, Scott pesqui-sou a transição dos imigrantes europeus nos Estados Unidos à condição de eleitores, o que seria comparável a contextos tão díspares como a Ma-lásia, as Filipinas e certos países africanos. No caso da Sardenha, Wein-grod mostrou que as políticas desenvolvimentistas do Estado-Nacional adequavam-se a esquemas político-partidários específicos. Para esse autor, os partidos políticos seriam responsáveis pela captação e distribuição de recursos, alcançados junto de agências de desenvolvimento. Consideran-do as redes sociais necessárias para isso, os membros partidários passam a mediar com destaque entre os diversos níveis de decisão e de apoio políti-co. A integração continua sendo uma questão central para o entendimento das estruturas e dinâmicas políticas, além de apontar elementos singulares para se entender a mediação como prática social e política, sobretudo nos países em desenvolvimento. Quando há maior intensificação das relações entre as agências estatais e as comunidades locais, reduz-se a distância ou lacunas (gaps) que separam os dois níveis. Os contatos entre níveis distintos

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requerem agentes sociais precisos, que podem atuar explicitamente através das relações de patronagem (“patrão-cliente”), quando existe e se dispersa a autoridade e a representação das agências centrais e do Estado-Nacional: advogados, fazendeiros, políticos, comerciantes, etc. Mas suas práticas de mediação podem ser localizadas e eventuais. Para Weingrod, não há necessariamente transferência do poder e do impe-rativo de segurança originado na esfera do Estado, tal como vimos antes. Ao contrário, esse autor privilegia muito mais a dispersão de autoridade e a formação de elites que ocupam cargos públicos e administrativos nos contextos locais. Assim, deve-se investigar as práticas sociais que produ-zem relações de poder ao nível da própria localidade ou da comunida-de. Weingrod abordou o tema da mediação como um canal por onde se constitui diretamente a própria relação “local-nacional”, definida, de fato, pela distância entre os níveis sociais. Os partidos políticos costumam es-tar inseridos no processo de implantação de políticas públicas e de desen-volvimento, especialmente quando atuam como canais de distribuição de recursos. Essa tarefa se associa diretamente às práticas dos mediadores. Desse modo, os partidos podem se conduzir por princípios de patrona-gem, já que recompensas podem ser oferecidas, favores e lealdades passam a ser medidos, tendo por base vínculos informais e voluntários. Trata-se de um fenômeno, aliás, bem conhecido nos mais diversos países, inclusive os “modernos” e/ou “desenvolvidos”, onde, vez por outra, emerge algum ‘escândalo’ de caráter público e nacional, envolvendo troca de favores, re-cursos e apoio político.A antropologia se aproxima, então, das questões tratadas pela ciência políti-ca, tal como afiança Weingrod (ibid) e Graziano (1977), quando os estudos de patronagem não ficam restritos à análise de comunidades ‘tradicionais’ ‘em transição’ porque passaram a estar mais articuladas a esferas mais gerais ou nacionais. Na verdade, o problema da relação entre comunidade e Esta-do-Nação tem uma abrangência muito maior, sendo impossível limitar-se aos casos ditos tradicionais. A dicotomia tradicional-moderno perde a sua dimensão mais rígida quando os casos concretos passam a ser estudados, escapando também da polarização entre “isolamento-integração”, suposta pelos estudos mais clássicos de patronagem. Ao contrário, deve-se focalizar a problemática das relações entre os níveis locais-nacionais, sem se fixar na dicotomia tradicional-moderno. Encontramos a operação de padrões ‘tradicionais’ em sociedades chamadas ‘modernas’, centralizadas, integra-das e de alto grau de formalização político-burocrática. Se essa polarização

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tornou-se hoje problemática em termos analíticos, não se pode igualmente descartar a diferença entre local-nacional, pois entendemos através dela os canais de contato, as relações que se desenrolam entre os dois níveis, sem também substantivar em demasia essa distinção como se ela fosse muito rígida, tal como criticam as pesquisas sobre as articulações entre níveis, planos e escalas, ponto que será discutido mais adiante. A objetividade dos canais, vinculações e nexos que se estabelecem entre ní-veis e planos sociais distintos, locais e nacionais, torna-se matéria central de abordagem antropológica, permitindo entender a mediação como um pro-blema ao mesmo tempo social e político. Segundo as sutilezas destacadas por Silverman, quem media ou intermedia? Por onde se consegue identifi-car uma dinâmica específica de patronagem? Ou temos ainda modalidades variadas de mediação? Esse é um ponto importante para Boissevain (1977), quando a mediação se exerce através de modalidades também distintas de ‘dependência’. A patronagem define uma relação, digamos, ‘clássica’, assi-métrica entre patrão-cliente com conotações pessoais e morais de longa duração, cujo sentido se apresenta também pela prática de mediação. Mas a dependência pode ser afirmada através da inserção mais direta das ações e diretrizes governamentais, o que implica a presença de mediadores sin-gulares como o prefeito e o médico. Além disso, a dependência pode se realizar entre pessoas de um mesmo grupo social, sem evidente assime-tria, o que mostra um tipo de ‘mediação organizacional’ por meio da qual haveria suporte e lealdade mútua através do reconhecimento da mesma posição social e política. Assim, o tema da mediação pode ser pensado até no caso de organizações igualitárias, corporativas e formais como os sindi-catos, os partidos políticos, as organizações não governamentais (ONGs), grupos ativistas e articulações políticas de cunho étnico, que podem estar estruturadas de modo hierárquico, ainda que pautadas no princípio de re-presentação política, tal como justifica Boissevain:

Tanto o mediador [broker] organizacional e seu cliente são membros de um mesmo grupo. Eles compartilham, assim, de certa lealdade grupal. Os dois esperam suporte um do outro como membros do mesmo grupo. Suas relações tornaram-se formalizadas no sentido de que elas podem ser expressadas como direitos e obrigações. (....). A mediação [brokerage] organizacional está se tornando o tipo mais proeminente de relação com as autoridades. É uma relação mais

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igualitária, uma relação de incorporação no mesmo grupo formal (BOISSEVAIN, 1977: 90; minha tradução).

Pode-se indagar se não há, mesmo com o igualitarismo presente nas re-lações que supõem a mediação organizacional, a operação de autoridade similar aos padrões de patronagem e mediação que Boissevain chamava de “tradicionais”. Assim, organizações vistas como igualitárias podem manter idiomas e padrões antagônicos de relação e dependência, convivendo de modo contraditório, mas socialmente positivo, enquanto alternativas viá-veis de condução dos vínculos sociais. Esses idiomas e padrões variados de mediação e autoridade podem ser operados em certos contextos e situações em proveito dos interesses particulares dos mediadores per se, mesmo os ‘organizacionais’, sem eles serem definidos explicitamente como ‘patrões’. Assim, a intermediação, segundo o termo usado por Silverman, poderia ser transmutada em mediação, quando interesses particulares não corporati-vos e não igualitários aparecem13 .Ao diferenciar “mediador” e “intermediário”, Silverman propôs um ponto de vista mais vantajoso para se considerar relações tradicionais de patro-nagem e entender, sobretudo, os efeitos de mediação que se estabelecem entre níveis sociais diversos, o local e o nacional, tomando-os em termos de sua diferença hierárquica, pois seria o patrão aquele que tem o controle de funções críticas de contato entre um nível e o outro. Mas se fossemos recuperar a proposta de Georg Simmel, os mediadores produzem efeitos amplos e significativos entre duas pessoas, grupos e níveis sociais, sem que estejam de fato atuando apenas “porque possuem previamente uma posição social mais elevada” (SILVERMAN, ibid: 294). De certo modo, Boissevain e Weingrod reforçam essa ideia, talvez sem o explicitar suficientemente, o

13. Os partidos políticos estão normalmente inseridos nos processos de implementação de projetos públicos e de desenvolvimento, sobretudo participando como canais de distribuição de recursos (Scott, 1969). A mediação pode se realizar dessa forma. Os partidos podem operar através de princípios de patronagem e clientelismo, afinal recompensas, favores e lealdades estão em jogo, conseguidos por meio de vínculos informais e voluntários. Por seu turno, conflitos internos de grupos sociais e políticos, que explicitam competição e faccionalismo, podem indicar os alinhamentos eleitorais de seus membros, que passam a se acusar mutuamente e a seus candidatos. O clientelismo político e/ou eleitoral fortalece-se em tal quadro sócio-político, pois recompensas e vantagens acabam por ser distribuídas em campanhas eleitorais, mas não apenas nelas, estipulando o grau de acesso aos recursos e objetivando interesses particulares, o que pode demonstrar o ‘idioma’ que passa a guiar os atores sociais, criando lealdades ou oposições.

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que nos estimula a ter um foco mais amplo sobre as práticas de mediação, em seu exercício singular, em torno daquilo que Simmel chamou, de modo muito original, como o “fluxo e refluxo da vida social” 14. Embora o estudo de Silverman e de todos os autores discutidos enfatizem uma abordagem sistêmica e funcional, ainda que seja aparente a questão do conflito e das relações de poder, remetidas a um contexto histórico, entendo que essa literatura acadêmica possa contribuir para entendermos questões contemporâneas, que sejam amparadas por um aporte teórico mais atuali-zado. Não precisamos ir muito longe, se consideramos as transformações passadas pelo campesinato, os povos indígenas e as comunidades negras rurais ao longo da formação do Estado-Nacional brasileiro, o que nos faz retomar a discussão do “desenvolvimento” e da “integração” entre níveis locais e nível nacional. Não tenho a intenção de estender a discussão, pois estaria me aventurando em uma tradição consolidada de pesquisas sobre campesinato e cliente-lismo político, inclusive produzida no Brasil 15. Contudo, vale a pena pen-sar em trabalhos feitos entre nós que ilustram a importância de se com-preender as relações geradas entre planos sociais diferenciados, se local, se regional ou nacional, mesmo lidando, tal como sugere Bezerra (2006) no caso das dinâmicas políticas e eleitorais, com as variadas práticas que constituem as relações e articulações entre estes planos, que as possibilitam e produzem sentidos variados de acordo com as posições e pontos de vista dos agentes e atores em questão. Assim, podemos citar estudos brasileiros que investigaram as transformações mais recentes das estruturas agrárias

14. “A gesture, a way of listening, the mood that radiates from a particular person, are enough to change the difference between two individuals so that they can seek understanding, are enough to make them feel their essential commonness which is concealed under their acutely differing opinions, and to bring this divergence into the shape in which it can be ironed out the most easily. The situation does not have to involve a real conflict or fight. It is rather the thousand insignificant differences of opinion, the allusions to an antagonism of personalities, the emergence of quite momentary contrasts of interest or feeling, which continuously color the fluctuating forms of all living together; and this social life is constantly determined in its course by the presence of the third person, who almost inevitably exercises the function of mediation. This function makes the round among the three elements, since the ebb and flow of social life realizes the form of conflict in every possible combination of two members” (SIMMEL, 1950: 148).15. Uma ampla revisão mais recente da literatura sobre campesinato, em seus diversos aspectos e questões, encontra-se nos quatro livros da coleção História Social do Campesinato do Brasil, editados por Neves e Silva (2008) e Godoi, Menezes e Marin (2009). A esfera de estudos de Antropologia da Política passou também por uma grande ampliação desde meados da década de 1990, veja Palmeira e Barreira (2006).

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tradicionais. Essas pesquisas abordaram, alguns mais e outros menos, o tema da mediação (PALMEIRA, 1979; SIGAUD, 1979, 1980; LOPES, 1978; HEREDIA, 1979, 1989; RINALDI, 1980; GARCIA JR, 1983; NEVES, 1997, 1998). Estes autores procuraram entender as mudanças sofridas na plantation de cana de açúcar, com a modernização dos engenhos em usi-nas, a expulsão de antigos moradores das propriedades rurais, as formas alternativas envolvendo o trabalho rural, inclusive das unidades domésti-cas ou familiares. Posso citar, sobretudo, a pesquisa de Lygia Sigaud sobre trabalhadores rurais que passaram a ser mediados por empreiteiros a fim de conseguir trabalho. Segundo Sigaud (1979), o empreiteiro derivava seu caráter especial, enquanto mediador, exatamente por sua mobilidade so-cial e, com isso, alcançava vantagens e recompensas, viabilizava contatos e alianças, além de facilitar políticas institucionais que, de outra maneira, não estariam à sua disposição.Do mesmo modo, as etnografias brasileiras que têm sido feitas da “políti-ca” podem ajudar a entender como patronagem, clientelismo e mediação igualmente operam no contemporâneo, sem que tenhamos que nos restrin-gir à definição do “patrão” ou do “coronel” como figura social de sentido tradicional, associadas ao mundo rural, tal como vemos no livro clássico de Leal (2012 [1949]). Assim, o clientelismo político pode operar em termos das redes e fluxos de melhoria, suporte e desenvolvimento local, ocupando funções próprias dos aparelhos de Estado, além de criar uma base político--eleitoral. Diversas pesquisas recentes têm ampliado o alcance da discussão seminal de Victor Nunes Leal, mostrando que políticos, quando “ajudam”, “atendem pedidos”, “recorrem” ou “procuram apoio” a seus eleitores, estão criando e mantendo relações ‘complexas’ de um sistema de reciprocidade, cujos sentidos e efeitos se apresentam através de aparelhos burocráticos, partidos, corporações e outras agências vistas como ‘modernas’, suposta-mente isentas de personalismo, mas que acabam sendo constituídas através de relações pessoais, lealdades e facções políticas (PALMEIRA, 1996, 2006; PALMEIRA e HEREDIA, 1995, 1997; BEZERRA, 1999, 2006; KUSCHNIR, 1999; 2000). O que Moacir Palmeira identificou como o tempo da política, cujo significado envolve a sazonalidade dos períodos eleitorais, pode moti-var esforços pessoais de saber a quem recorrer, de buscar alguém que possa agir como mediador a fim de solucionar problemas familiares e pessoais. O mediador é capaz de gerenciar e resolver conflitos, negociando socialmen-te, embora ele possa gerar também disputas e intrigas, pois estamos lidando aqui com a dinâmica de facções políticas que se opõem (1996, p. 176-182).

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Deve-se ter cuidado de não naturalizar ideias como ‘clientelismo’, ‘demo-cracia’ e mesmo ‘política’, afinal elas correspondem a contextos sociais es-pecíficos, cujos valores e ideário refletem significados culturais que não podem ser universalizados (KUSCHNIR, 2000: 142), ou seja, temos con-cepções específicas da política, do favor e da mediação. Isso pode explicar como as práticas de mediação podem estar associadas à questões, eventos e contextos tanto cotidianos como singulares que não se restringem à políti-ca eleitoral, tal como no caso das chamadas parcerias entre “sociedade civil” e Estado, que envolvem pessoas ligadas a instituições civis, agências gover-namentais ONGs (TEIXEIRA, 2004). As relações entre Estado e sociedade civil são fluidas e definidas por múltiplas linhas cuja própria complexidade constitui a vida societária. Essas relações evidenciam a existência de redes sociais entre níveis distintos, o que não equivale dizer que sejam apenas ‘redes comunicativas, mas redes de reciprocidade, que geram obrigações de diferentes naturezas, que não tem sentido único” e que podem conden-sar-se em projetos de cidadania, mas também em formas de clientelismo (PALMEIRA, 1998: 15). A complexidade heterogênea da mediação foi tam-bém apontada na discussão do desenvolvimento social e da atuação direta de mediadores políticos, tal como discutido de modo bem aprofundado na coletânea organizada por Neves (2008), enfocando mais detidamente os exercícios de mediação que se instauram através do “desenvolvimento rural”. É preciso salientar que estas pesquisas antropológicas recentes ques-tionam dualismos e polaridades como local/nacional (PALMEIRA, 2006), mostrando que é muito mais profícuo entender as complexas relações entre níveis que se articulam e conectam ao invés de se negarem entre si, por exemplo considerando a atuação de sindicatos, dos variados modos de par-ticipação popular, a atuação de organizações não governamentais (ONGs), que imprimem sentido mais complexo às práticas de mediação. ETNICIDADE E MEDIAÇÃO COMO POLÍTICA E CULTURA

Se privilegiamos até agora os estudos que tratam do campesinato e do clien-telismo político, podemos seguir através do campo de estudos e pesquisas que enfocam mediação e etnicidade16 . No que se convencionou chamar de

16. Não pretendo fazer uma longa digressão teórica sobre as ideias de etnia e etnicidade, mas vale dizer que essa discussão não pode ser completamente separada da reflexão sociocultural sobre raça

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“antropologia política”, a partir da década de 1950, encontramos os antece-dentes teóricos dessa discussão. Estava presente o debate sobre os dilemas e entraves de contato e de comunicação entre grupos e esferas sociais, além do diagnóstico de uma relativa ausência de instituições e agências no caso dos Estados-nacionais. Diversos estudos apontaram para o papel do mi-ddleman, do mediador, do empreendedor e do broker, ou seja, categorias analíticas de teor similar e/ou próximo ao do debate até agora tratado sobre mediação, mas referindo-se, em grande medida, ao impacto da “mudança social” e/ou “cultural” a partir de contextos coloniais modernos. Segundo Oliveira Filho (1988: 37), esses estudos passam a destacar a heterogeneida-de social presente no contato entre os colonizadores europeus e os povos nativos. Desse modo, não havia uniformidade societária e nem tinha uma única via de incorporação de valores culturais e práticas sociais coloniais, ditas “externas”. Embora fossem estudos que contribuíam para “descrever a função de mediação entre estruturas políticas e econômicas assimétricas, tais papéis vêm em geral associados a uma teoria onde a mudança cultural possa ser explicada por escolhas, cálculos e interesses de atores individuais somente” (OLIVEIRA FILHO, ibid), o que destaca, portanto, uma premissa utilitarista da ação social, inibindo uma análise mais complexa e histórica das dinâmicas culturais e políticas. O debate antropológico sobre a dinâmi-ca política oscilou, portanto, entre uma abordagem teórica que enfatizava as ações individuais, de modo simplista e unidirecional, e outra, muito mais adequada, que reconhecia a importância central dos processos coletivos em sua dimensão histórica, definidos através de ideologias, valores culturais, metáforas e simbolismos que se apresentam nas interações e ajudam a des-crever as formas de transação social e política, o que inclui, portanto, aqui também as práticas de mediação, pois pode-se ter a resolução de conflitos,

(BANTON; 1979; POUTIGNAT E STREIFF-FENART, 1998). Isso está presente tanto no debate antropológico do século XIX bem como na própria reflexão sobre comunidades étnicas em Max Weber (2000). Até a década de 1960, a concepção teórica de etnia não foi essencialmente revista. Estava implícito o problema da definição de uma unidade social. A renovação mais importante se deu com Fredrik Barth (1969) ao privilegiar o estudo da manutenção de fronteiras étnicas, que permitem identificar os critérios de diferenciação entre grupos (étnicos), sobretudo através de formas de classificação, que podem ser vistas como identidades étnicas. Ao invés de se pautar na presença e continuidade de formas culturais exclusivas e estáveis, Barth destaca os processos sociais de interação entre pessoas e grupos que permitem explicar os modos de diferenciação social e, assim, étnica, pois supõe o entendimento subjetivo em uma origem comum, tal como sugere Weber (ibid). Para o debate brasileiro sobre etnicidade, ver Cardoso de Oliveira (1976; 2006); Cunha (1986); Oliveira Filho (1988; 1999b).

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a comunicação de informação, as trocas de ideias e valores, a circulação de bens e serviços entre pessoas, redes e coletividades17 . Na etnologia brasileira, o trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira (1972; 1996) apontava, na década de 1960, para “agentes interculturais” que, “mais do que simples elementos de ‘comunicação’ ou de ‘transmissão intercultu-ral’, “podem ser também em determinadas situações de contato, compo-nentes da estrutura de poder e de liderança do sistema interétnico” (1972: 95). Sua proposta teórica visava ultrapassar a limitada compreensão que existia nos estudos de aculturação e contato cultural, que eram, então, pre-valentes na Antropologia norte-americana. Sua pesquisa indicava a impor-tância de se lidar com formas de mediação, agregando o aspecto da política e das relações de poder em situações de “fricção interétnica” (1996). Além disso, Cardoso de Oliveira alertou para o impacto causado por espaços ins-titucionais, tais como os postos indígenas, para facilitar a ‘assimilação’ e ‘in-tegração social’ indígena. Havia uma preocupação evidente em sua análise sobre integração, o que reflete um contexto teórico particular da etnologia brasileira, mas sua obra sugere um foco sobre os dilemas de mediação18 . Foi João Pacheco de Oliveira quem refletiu com mais atenção sobre a he-terogeneidade social interna nos grupos étnicos, o que permite pensar nas relações complexas que se verificam entre eles em um campo intersocietá-rio19 . Assim, abordou a importância da pesquisa se deter nos agentes de contato que “não podem ser descurados ou tratados como fatores exter-nos”, mas articulados aos contextos, situações e processos que envolvem os grupos étnicos. Esse autor buscou contornar o foco dualista presente

17. Dentro do debate “transacionalista”, Kapferer alerta também criticamente sobre a ênfase de um modelo ideológico ocidental para se entender os padrões de interação e transação social que envolvem, sobretudo, a negociação de significados em termos das práticas sociais (1976). Para uma revisão aprofundada da discussão teórica sobre contato e política, veja Oliveira Filho (1988: 24-59) que oferece, no capítulo 1 de sua tese, elementos de uma reflexão sobre o tema da ‘mediação’, inserindo-o no bojo da reflexão antropológica mais geral sobre o ‘contato’. Ver também a ideia do ‘empreendedor’ proposta por Barth (1972; 1981).18. Percebe-se, em Roberto Cardoso de Oliveira, uma rejeição ambígua da proposta norte-americana da aculturação. Ao mesmo tempo que faz sua critica, ele continua usando categorias que eram operantes nesse debate, sobretudo norte-americano, tal como ‘integração’ e ‘assimilação’. Até o uso da categoria ‘agente intercultural’ parece remeter-se, segundo Oliveira Filho (1988: 49) ao tema da aculturação.19. Para esse autor, campo político intersocietário é uma “noção de sentido operacional” que “costura a sua realidade justamente em função de sua condição bicultural, pois é a virtualidade da dupla leitura das ações, dos atores e das motivações que instaura e potencializa a sua existência. A cultura aparentemente partilhada nada mais é do que uma fina crosta de sobreposições e entrecruzamentos de significados” (1999: 23).

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na teoria da fricção interétnica, ao destacar que o “problema é o de como descrever e encarar teoricamente os indivíduos e grupos não indígenas que intervêm na situação de contato” (OLIVEIRA FILHO, 1988: 49). Ao rejeitar as propostas que privilegiam a ação individual em si mesma, que “superva-loriza a liberdade e autonomia desses indivíduos”, Oliveira Filho pretende articulá-la, sobretudo, às formas de organização, valores e ideologias que caracterizam os quadros de interpretação nativos, portanto culturalmente definidos, sem descaracterizar a pluralidades de atores presentes em situa-ções históricas específicas (ibid, 1988: 49-53). Isso pode ser observado em seu estudo de antropologia histórica sobre os índios Tükuna (1988; 1999), na discussão do modelo de ação indigenista, inclusive em sua interface com a prática dos etnógrafos como atores sociais (1987), inseridos “em uma teia de relações de força e de sentido em que o campo do observado depende de opções realizadas em múltiplos níveis frente a expectativas e compulsões dos indígenas e dos demais atores igualmente presentes naquela situação etnográfica” (1999: 62; OLIVEIRA, 2010). Mas os efeitos próprios do esta-tuto jurídico da tutela sobre os indígenas, enquanto “padrão de legalidade”, historicamente definido, que se impôs de forma administrativa-institucio-nal e, ao mesmo tempo, esteve condicionado por aspectos socioculturais que se apresentam em cada situação histórica interétnica (1988), acabam sendo igualmente destacados por Oliveira Filho, o que impede que a pes-quisa se atenha a um foco exclusivo da ação social. Assim, a tutela supõe uma “dimensão educativa, pedagógica, de que se reveste a relação (suposta de aprendizado e proteção) entre tutor e tutelado” (1989: 224) 20. De modo pioneiro, o antropólogo Robert Paine explorou, em “The nursery game: colonizers and the colonized” (1977)21 , o tema da tutela ao abordar

20. Segundo Oliveira Filho, há “duas suposições básicas sobre as quais se assenta a necessidade desse mandato: 1) o tutelado não é plenamente capaz de defender, expressar ou mesmo conhecer os seus reais interesses, havendo necessidade de alguém que atue ou decida em seu lugar para evitar que ele sofra ou seja lesado em consequência de atos que outros com eles concluíram; 2) o tutelado não domina plenamente os códigos da sociedade nacional, necessitando de alguém que o oriente, mostrando os modos corretos de proceder em cada situação, disciplinando os seus modos de manifestação e evitando que ele transgrida as normas e entre em choque com direitos, valores ou interesses alheios” (1988: 225).21. Robert Paine (1926-2010) foi um antropólogo inglês, radicado no Canadá. Publicou estudos sobre etnicidade, tutela, patronagem, mediação, etc. Suas primeiras pesquisas foram realizadas entre os Saami do norte/nordeste da Escandinávia, tendo colaborado com Fredrik Barth na década de 1960. Dentre suas publicações como organizador, temos Patrons and Brokers in the East Artic (1971), The White Artic: Anthropological essays on tutelage and ethnicity (1977), Advocacy and Anthropology (1985), publicados pelo Institute of Social and Economic Research, Memorial University of Newfoundland (Canadá).

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as relações entre os Inuit (esquimós) e os canadenses nos processos so-ciais e históricos de contato interétnico, sobretudo em regiões do Nordeste canadense. Para ele, as relações entre os Inuit e os canadenses envolvem um modo de tutela, que se concretiza através de apoio, atenção e suporte dados aos povos nativos, cujas instruções, se seguidas e assimiladas podem responder às expectativas do modelo indigenista canadense, o que permite algum tipo de ‘recompensa’. Segundo Paine, a “tutela” preenche um “vácuo social” (1977: 78). Voltamos à discussão sobre as relações entre as agências de Estado e as comunidades locais, aqui etnicamente diferenciadas, com a presença de agentes governamentais mais variados a desempenhar atribui-ções de assistência de caráter público e nacional. Assim, Paine fez uma con-tribuição teórica ao trazer o debate sobre patronagem e tutela em termos da etnicidade, embora não tenha realizado um estudo mais detalhado dos processos e modos da gestão governamental. No caso brasileiro, Antonio Carlos de Souza Lima investigou a gênesis his-tórica do “poder tutelar’ que seria, para esse autor, uma “forma de ação so-bre as ações dos povos indígenas e sobre seus territórios” (1995: 73), o que implica considerar na formação do Estado Nacional brasileiro, sobretudo a partir da República Velha, certas modalidades de definir, agir e controlar os índios, produzindo, assim, a “capacidade civil relativa a estas populações e a necessária tutela jurídica por parte do Estado” (SOUZA LIMA, 2002a: 14). O poder tutelar se exerce em termos práticos através de ações e inter-venções diretas, além da consolidação de significados e concepções muito próprias, de uma política indigenista, cujas características expõem tecnolo-gias e modos de mediação entre os índios, os agentes administrativos mais diretamente envolvidos e as esferas mais abrangentes de definição e elabo-ração do indigenismo (SOUZA LIMA, 2002b). Desse modo, ao buscarem o exercício concreto da tutela, as agências indigenistas, tal como o antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (Fu-nai), através de seus agentes e técnicos desempenham práticas de mediação que articulam povos indígenas e o Estado-Nação. Ao contornar o sentido restrito da ideia de ‘dependência’, Souza Lima em seu artigo no presente livro oferece uma discussão definitiva sobre os efeitos do poder tutelar no caso do indigenismo brasileiro. As pesquisas mais recentes de Souza Lima indicam que o tema da mediação se amplia significativamente, quando consideramos em detalhe as impli-cações processuais e concretas da implantação histórica da administração pública e das políticas governamentais no Brasil, pois temos a reelaboração

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de modelos de mediação, muitos deles de evidente perfil tutelar (SOUZA LIMA, 2002a; TEIXEIRA e SOUZA LIMA, 2010). Por exemplo, podemos considerar as políticas de saúde e educação indígenas através de “planos, ações e tecnologias de governo” de recorte específico, “diferenciado”, que foram gestadas nas duas últimas décadas (SOUZA LIMA e MACEDO E CASTRO, 2008). Parece que isso se tornou mais relevante quando obser-vamos as intervenções, práticas e tecnologias administrativo-burocráticas que têm como seu foco maior os grupos étnicos, em especial os povos in-dígenas e as comunidades quilombolas, o que tem chamado a atenção de vasta produção antropológica desde o início da última década. Estas po-líticas públicas estão articuladas com a garantia de direitos diferenciados, pautados no reconhecimento legal e que têm, como um de seus eixos, os processos de regularização fundiária, mas também as esferas da saúde e da educação, e ajudam a fortalecer identidades étnicas, a criação de su-jeitos políticos e, ainda mais, a definir um conjunto de serviços, ações e produtos que são dirigidos a comunidades remanescentes de quilombo e a povos indígenas (OLIVEIRA, 1998; ALMEIDA, 2002, 2010; O’DWYER, 2002, 2010; SANTOS e OLIVEIRA, 2003; ATHIAS, 2007; SOUZA LIMA e HOFFMANN, 2007; GARNELO e PONTES, 2012). Além disso, as lutas de reconhecimento mostram as práticas e intervenções concretas dos agen-tes mais diversos, inclusive estimulando modos de mediação, cujo perfil pode ser religioso, não-governamental, acadêmico, ativista, ambientalista, etc. Como muito bem expressou O’Dwyer, “a existência legal de um gru-po depende das ações e dos significados que são produzidos no campo do reconhecimento dos direitos diferenciados de cidadania” através de “lutas concorrenciais” entre os mais diversos agentes em torno da definição de políticas públicas (2010: 14). De fato, muitas pesquisas apontam para os efeitos de catalisação que estes mediadores produzem (ALMEIDA, 1993; BARRETTO FILHO, 1992; 1999; CONKLIN e GRAHAM, 1995; ARRUTI, 2006; PALITOT, 2010; PINHEIRO, 2012). Até mesmo os antropólogos pre-cisam ser elencados. Devemos pensar nas práticas de mediação e de par-ticipação direta em que estão envolvidos, não referida apenas às suas pes-quisas de campo, mas incluindo suas intervenções no caso de assessorias e consultorias, nas perícias antropológicas, em parcerias, nos projetos de cooperação internacional (SAMPAIO SILVA et al, 1994; ALMEIDA, 2001; O’DWYER, 2002, 2010, 2012; OLIVEIRA E IGLESIAS, 2002; LANGDON, 2004; LANGDON e GARNELO, 2004; TEIXEIRA, 2004; SOUZA LIMA e BARRETTO FILHO, 2005; LEITE, 2005; SILVA et al, 2008; BARROSO--HOFFMANN, 2009). Mas não se pode minimizar que indígenas e qui-

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lombolas realizam práticas de mediação e estabelecem contato direto com esferas e níveis sociais diversos, mobilizando recursos de modo geral tanto em termos econômicos, políticos como culturais, muitas vezes enquanto lideranças comunitárias, sem contar o alcance das práticas e agenciamentos quando ocupam posições administrativas da esfera pública. Desde a dé-cada de 1990, as pesquisas que tratam do associativismo e da mobilização étnico-política, algumas vezes em um plano de articulação entre diferentes povos que compõem o movimento indígena no Brasil e na América Latina, mostram isso, sem contar a relação que se verifica entre a mobilização indí-gena e a produção da cultura (BROWN, 1993; MATOS, 1997; OLIVEIRA E IGLESIAS, 2002; SOUZA, 2003; LUCIANO, 2006; OLIVEIRA, 2010; PALI-TOT, 2010; BAINES, 2012; PERES, 2013; OLIVEIRA, 2013; etc.). Até o momento, privilegiamos o plano societário e político, mas as pes-quisas e os estudos citados demonstram que a mediação envolve, supõe e mobiliza conteúdos culturais, significados e concepções que, em certos mo-mentos, evidenciam contrastes culturais e, em outros contextos, sugerem, de fato, compartilhamento de sentidos e significações. As transações de significado fazem parte desse cenário de relações, modos de comunicação e contato entre índios e ‘não-índios’ através, muitas vezes, de práticas de mediação. Em razão disso, as ambivalências, contradições e disjunções de sentido podem estar presentes, sobretudo quando lidamos com “diferentes esferas e províncias de significação” de uma mesma sociedade, isto é, com a “capacidade de negociar e transitar por universos pautados por valores e crenças distintos” (KUSCHNIR, 2000: 145). Segundo Bruce Kapferer, es-sas disjunções podem indicar que subsistem processos de administração e negociação de sentidos e significados através de mediadores, o que mostra como a mediação envolve repertórios culturais que estão sendo apresenta-dos, de modo simultâneo, para agentes sociais diversos em interação (1976: 9). Além disso, esses processos são decorrentes de “redes complexas em que relações são mantidas; nos processos de fluxo e de resposta entre organi-zações e instituições em que os indivíduos são ativos” (KAPFERER, 1976: 16; tradução minha). Desde a década de 1980, João Pacheco de Oliveira tem destacado a importância da coexistência e da pluralidade de referen-ciais culturais em contextos e interações interétnicas (OLIVEIRA FILHO, 1988). Assim, mundos sociais estão em interação através de agentes e atores variados, cuja heterogeneidade sugere que a negociação de significados e sentidos seria uma questão central para se entender as práticas e processos de mediação que se desenrolam em sua dupla face, seja societária como

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cultural. Também Conklin e Graham (1995) evidenciam a mesma ideia ao discutir a convergência, no fim do século XX, de uma agenda ambientalista--ecológica transnacional e de uma crescente mobilização política indígena, tomando o caso dos Kayapó e suas lideranças, que se tornaram mediadores culturais a seu modo, produzindo discursos, imagens e vídeos, apropriadas por pessoas, grupos e audiências em contextos variados, tanto em termos nacionais, no Brasil, como em uma escala global. Nesse caso, índios, am-bientalistas, artistas e personalidades internacionais, como o músico inglês Sting, se posicionam e se alternam em práticas de mediação que expõem trocas, comunicação e disjunções na tradução e compreensão das concep-ções culturais que estão sendo apresentadas por parte dos atores sociais e suas redes de atuação e inserção (CONKLIN e GRAHAM, ibid). Por sua vez, ao tomar as práticas e representações de missionários e indí-genas em suas relações mútuas, Paula Montero adverte criticamente sobre as abordagens que priorizam a “decifração das particularidades culturais como sistema e no suposto da sua incomensurabilidade” (2006a: p. 10). Ao abordar a prática missionária, a antropóloga salienta que as relações entre indígenas e agentes missionários podem ser definidas como ‘interculturais’ na medida que possibilitam traduções e mediações culturais (MONTERO, 2006a; 2006b). Assim, sugere que se privilegie o estudo do ‘espaço social e simbólico” das interações, o que ela define como ‘espaço de mediação cultural’. Para essa autora, “quando nos colocamos o problema das relações interculturais em termos de mediações o plano da análise se desloca para o espaço das conexões de sentido entre o pensamento indígena e o não-indí-gena” (2006b: 46)22 . A mediação cultural constitui-se como processo rela-cional entre agentes e atores que estabelecem sentidos e significados entre si, tal como João Pacheco de Oliveira tem destacado em sua longa produção acadêmica. Estamos encontrando afinidades e convergências sobre a dis-cussão de mediação entre autores variados que se pautam, muitas vezes, em abordagens teóricas distintas, mesmo se a ênfase é dada sobre as práticas culturais e/ou as práticas sociopolíticas, embora elas possam ser encaradas de modo concomitante de acordo com os estudos. Por exemplo, o indige-nismo estudado por Souza Lima (1995; 2002b) supõe, de modo simultâneo,

22. Continua: “Ora, essas passagens não se produzem no abstrato, pela convergência natural entre categorias e repertórios percebidos como equivalentes ou apropriáveis. Para serem inteiramente compreendidos é preciso descrever, ao mesmo tempo, os sentidos nativos e missionários em confronto e as práticas significativas promovidas pelos agentes mediadores que procuram adequar conceitos às experiências e percepções” (MONTERO, 2006b: 46).

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concepções e práticas que evidenciam-se em sua dimensão mediadora de significações e experiências. Como muito bem apontou Oliveira no livro A Viagem da Volta, a tutela não deixa de “exercer uma função de mediação intercultural e política” (1999: 17).Certamente, a reflexão sobre mediação cultural não se restringe às dimen-sões e processos étnicos que estamos privilegiando, pois questões seme-lhantes se verificam em contextos urbanos (VELHO, 2001, 2010; VELHO e KUSHNIR, 2001). Assim, em situações e processos variados, há media-ção societária e cultural entre atores e agentes que produzem articulação de mundos sociais diferentes, mesmo se eles estão inseridos em universos mais abrangentes, tal como o da sociedade nacional, com duradoura histó-ria de interações e contatos que expressam tanto cooperação como nego-ciação e conflito. Desse modo, há sempre espaço para singularização cul-tural e social através das práticas e processos de mediação, que dependem certamente das relações historicamente construídas entre pessoas, grupos e instituições. Como Oliveira tem destacado, existem modos abertos e per-manentes de reelaboração cultural (1999b), o que se apresenta através das tradições, cosmologias, rituais, cultura material, etc., que devem muito às recombinações, apropriações e traduções culturais pelas quais passam. Foi assim que se verificou com as reelaborações e “múltiplas apreensões” do toré, que foi considerado por indígenas e agentes mediadores das mais va-riadas maneiras (tradição, brincadeira, folguedo, ritual, religião), conforme as situações e contextos históricos (GRÜNEWALD, 2005). Como agentes mediadores, as lideranças indígenas também reelaboram e ressignificam o toré e outras tradições como elemento crucial de suas práticas de mediação diante dos mais diversos atores sociais com quem interagem. Deve-se extrair da presente discussão, seguindo a proposta de Pierre Bour-dieu (1989a) que não se pode naturalizar os mecanismos que criam a sepa-ração entre agentes e os grupos. Nesse caso, as práticas de mediação pre-cisam ser consideradas criticamente, pensando o problema da dificuldade de contato e comunicação entre níveis societários como sendo a evidência de uma “distância diferencial” entre aqueles que têm “competência social e técnica”, os mediadores, para a garantia de suporte, de apoios diversos, de ajuda, de intervenção vista como necessária e/ou merecida para os que são mediados. Em uma primeira dimensão, os mediadores são aqueles que têm controle de valores, idiomas e instrumentos técnicos que estão em jogo, embora esse controle não seja, de modo algum, absoluto e derive, em uma segunda dimensão, das relações mantidas com aqueles que recebem

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ou merecem o apoio, as pessoas e os grupos que fazem parte do processo de mediação. Pode ser interessante pensar aqui as implicações da política indigenista e das políticas públicas de modo geral, quando seus agentes ocupam posições cruciais em práticas e processos de mediação. Segundo Neves (2008), a mediação, desenvolvida por atores políticos especializa-dos (agências do Estado, instituições, Ongs, etc.), é uma intervenção pro-motora de interação entre universos de significação: “As relações que são construídas entre mediadores e mediados, referenciam-se por significados atribuídos aos recursos e aos temas que são delas expressivos; por confli-tos e tensões, problemas estruturantes das práticas de ambos agentes. Os desdobramentos não são dados a priori, sua dinâmica é relativamente in-definível” (NEVES, 2008: 38). Assim, os significados, valores e referencias culturais de mundos sociais coexistem também em termos da sua distân-cia diferencial (BOURDIEU, 1989a). Desse modo, levamos em conside-ração a agência em toda sua complexidade, o que inclui a compreensão, tal como sugere Oliveira Filho (1999), das relações de força e sentido que se estabelecem entre as pessoas e grupos de mundos sociais em interação. Certamente, as práticas e processos de mediação implicam efeitos de po-der que envolvem centralmente os elementos que estão sendo trocados e nivelados por essa passagem de recursos, apoios, sentidos e valores entre mundos sociais e universos de significação, que acabam sendo hierarqui-zados entre si.

Em síntese, a mediação se concretiza exatamente por 1) ser uma relação singular, especial, que estabelece um vínculo ou canal entre níveis e mun-dos sociais distintos, envolvendo trocas e transações entre pessoas, redes, instituições e coletividades; 2) essa relação não deixa de ser uma relação de poder que se gera através de agenciamentos que não deixam de ser as-simétricos – pois partem de uma diferença de autoridade, competência e conhecimento, aquele que media sabe e se autoriza pelo saber em mediar e pela possibilidade de mediar; 3) o mediador não ocupa uma posição de-finitiva em um campo social, mas cria e estabelece um nexo entre campos, níveis e redes particulares; 4) a mediação implica e opera somente atra-vés da articulação, muitas vezes tensionada, de universos de significação cultural cuja singularidade se mostra exatamente através da relação que se constitui entre pessoas, redes e grupos. Assim, a mediação é historicamen-te criada porque nem todo mediador consegue sê-lo sem riscos, impasses e contestações societárias. A mediação pode ser vista como um “recurso” que demanda investimento e uma constante negociação de significados e

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sentidos entre as partes que estão sendo mediadas, os planos e níveis de relação e hierarquização.

MEDIANDO TEXTOS E AUTORES

Os trabalhos reunidos neste livro abarcam contextos etnográficos e histó-ricos muito diferentes. Revelam os investimentos de pesquisa que foram desenvolvidos por seus autores, alguns deles com larga experiência e longa trajetória profissional, outros que estavam em período inicial de formação acadêmica, enquanto alunos de pós-graduação em Antropologia Social. Assim, a coletânea apresenta uma diversidade de trabalhos que exibem in-vestimento analítico e etnográfico variado, conforme as experiências acu-muladas de pesquisa. Temos, então, os trabalhos de Giralda Seyferth, João Pacheco de Oliveira, Antonio Carlos de Souza Lima, Edmundo Pereira e Carlos Guilherme do Valle, todos eles docentes, respectivamente da UFRJ e da UFRN. Além deles, encontramos os artigos de Cláudia Moreira da Silva Hofmann, Cyro de Almeida Lins, Francisco Carlos Lucena, Luiz Augusto de Nascimento, Maíra Samara Freire, Rodolpho Sá e Wellington Bomfim, que foram estudantes do curso de mestrado em Antropologia Social da UFRN, entre os anos de 2006 a 2011. Embora todos eles sejam atualmente Mestres, estavam em estágios distintos de formação acadêmica, pois alguns deles iniciavam a pós-graduação, enquanto outros tinham finalizado o cur-so de mestrado. Todos autores oferecem uma discussão privilegiada da etnicidade, dos pro-cessos e fluxos culturais, das modalidades e práticas de mediação, o que expõe a variedade de questões presentes nos artigos aqui contidos. Os tex-tos mostram uma clara influência da proposta teórica do antropólogo no-rueguês Fredrik Barth a respeito das dinâmicas e fronteiras étnicas, dos grupos étnicos como formas de organização social, além de preocupações mais recentes deste autor sobre cultura, processos culturais e tradições de conhecimento (BARTH, 1969; 1984; 2000). Além de Barth, temos o aporte teórico de um variado espectro de antropólogos e cientistas sociais: Max Weber, Pierre Bourdieu, Georges Balandier, Max Gluckman, Victor Turner, Clyde Mitchell, etc. Além deles, autores ligados à Antropologia brasileira são igualmente referência constante: Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Eduardo Galvão, Emilio Willems, Roberto da Matta; Alcida Ra-mos; Mariza Peirano, sem contar o diálogo estabelecido com autores que

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compõem a coletânea: Giralda Seyferth, João Pacheco de Oliveira, Antonio Carlos de Souza Lima, etc. No caso do trabalho de João Pacheco, o autor evidencia como o debate teórico antropológico se articula às questões de ordem histórica e político-societária, cuja dimensão envolve múltiplas es-calas e níveis de determinação social. Ao tratar de aspectos teóricos da obra de Eduardo Galvão sobre assimilação e aculturação, João Pacheco mostra como a leitura de clássicos da etnologia nos permite pensar em questões que vêm sendo enfrentadas por muito tempo pelos antropólogos brasilei-ros. São esses ‘encontros’ culturais e intelectuais que articulam grupos, re-des e figurações sociais diversas, inclusive antropológicas, enunciados pelo debate sobre processos globais, que estavam de algum modo presentes na reflexão de Galvão sobre os “encontros de sociedades”. Isso nos permite pensar e articular o que é discutido por João Pacheco em seu artigo com as questões históricas reportadas por Giralda Seyferth, cujo texto, apoiado em uma perspectiva atualizada da teoria da etnicidade, enfoca particularmente os processos históricos de imigração europeia no sul do Brasil.Através dos trabalhos presentes, podemos conhecer diversos modos de ela-boração cultural e as demandas sociais em favor de sentidos e categorias identitárias, que estão conjugados a valores específicos de germanidade ou italianidade (no artigo de Seyferth), de africanidade ou ancestralida-de africana (nos artigos de Valle; Lucena; Almeida; Bomfim e Freire), de indianidade (nos artigos de Hofmann & Valle; e Sá), remetidas para uma construção imaginada mais abrangente, ao mesmo tempo a anular diferen-ças e a tensionar a construção de semelhanças: a brasilidade torna-se tanto um dilema como uma problemática. A brasilidade tem sido um horizonte englobante e problemático para imigrantes, teuto-brasileiros, quilombolas, indígenas, agentes do movimento negro, mas também para os agentes me-diadores, tais como aqueles comprometidos com as práticas de ‘asssimila-ção’, ‘nacionalização’ e ‘abrasileiramento’ de pessoas que, na medida do pos-sível, poderiam se tornar, algum dia, “cidadãos brasileiros”. Pode ser tanto a ‘origem’ comum como a valoração do sangue e da relação com famílias específicas que ajudam a reger os vínculos de identificação e pertencimento étnico e social. Todos eles potencializam modos de singularização que po-dem ser negados por outros modos, mais ou menos abrangentes, conforme o plano, escala ou nível que está sendo priorizado. Eles consistem nos dile-mas e paradoxos da auto-atribuição ou da identificação étnica. Usando as palavras de Seyferth ao tratar de uma das contribuições de Fredrik Barth sobre etnicidade e cultura: “é preciso evidenciar as formas pelas quais os

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pertencimentos coletivos são compreendidos e mobilizados, pois a cultura enraizada na vida cotidiana tem valor na categorização da identidade (ét-nica), sendo as fronteiras intergrupais socialmente construídas” (Seyferth, nesse volume). As identidades étnicas e sociais acabam por ser valorizadas, legitimadas ou silenciadas por agências governamentais e instituições ligadas ao Estado-Nacional, que no Brasil vem se formando historicamente, se redefinindo a partir das relações de força e reordenações políticas em um mesmo espaço ou território, ele mesmo definido e redefinido segundo processos históricos e geopolíticos. Como afirma Kapferer: “[...] o caráter burocrático dos Esta-dos modernos cria uma ênfase particular na identidade, além de ser ativo na construção de identidades e nos modos em que as pessoas passam a se ver como possuidoras de identidades com forma e conteúdo particular” (KAPFERER, 1995: 68). Assim, os artigos da presente coletânea mostram como colonos, indígenas e quilombolas são historicamente associados aos agenciamentos político-identitários, legitimados pelas ordens e práticas de adscrição definidas pelo Estado-nacional que, ao mesmo tempo, criam identidades que subscrevem e garantem direitos específicos (OLIVEIRA, 1999b; ARRUTI, 2006). Surtem efeitos de construção das subjetividades, cujo sentido e alcance resolvem-se através da agência criativa das pessoas e das figurações sociais a que pertencem. Os artigos discutem a respeito dos processos de auto-atribuição, de reconhecimento e de definição ét-nico-racial (indígena; quilombola; negro, etc), tal como se verifica nos tex-tos de Lucena, Bomfim, Hofmann & Valle, Lins, Sá, Valle e Seyferth. Mas, voltando à discussão da mediação, as identidades podem ser, aos poucos, formadas através de relações complexas e lutas classificatórias entre agen-tes mediadores, que têm o poder de classificar, definir e nomear (BOUR-DIEU, 1989b), ou mesmo investir para que a identidade seja registrada e documentada, quando ela envolve um compromisso, uma lealdade e uma aposta, tal como nas práticas clientelistas com fins eleitorais, quando o ‘pa-trão’ ajuda na obtenção do titulo eleitoral de seus ‘clientes’ (PEIRANO, 2006b: 126). Os artigos da coletânea expõem a importância das práticas e formas cultu-rais em termos da dinâmica étnico-identitária, ainda que reconheçam que passam, em razão de sua historicidade, por um processo constante de ree-laboração e de usos sociais, o que evita qualquer visão estática e uniforme da cultura. Assim, os artigos de Giralda Seyferth, Carlos Lucena, Samara Freire, Cyro Lins, Wellington Bomfim mostram, respectivamente, exem-

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plos disso, tais como a fundação de sociedades de canto e tiro, as sociedades teatrais, a Oktoberfest (Seyferth); a louvação ao Baobá e o grupo de teatro Negro e Lindo (Lucena); o Ponto de Cultura Quilombola – Baobá e a Asso-ciação de Quilombolas de Capoeiras (Freire); o coco de zambê como brin-cadeira e o grupo de capoeira (Lins); a dança de São Gonçalo (Bomfim). Os autores expõem as relações sutis e complexas entre cultura, política e identidade; cultura e mediação; cultura e identidade. Assim, a materiali-zação do que está sendo definido e produzido como “cultura” e “história” realiza-se através das produções do tempo e da memória: a dança de São Gonçalo, o coco de zambê, o “livro de Acauã”, os livros dos descendentes de alemães e imigrantes europeus no Brasil, etc. Deve-se pensar, então, a relação que existe entre a criação e reprodução das formas culturais e a micropolítica que se engendra a partir do campo intersocietário (OLIVEI-RA FILHO, 1988) que articula vários agentes, grupos e instituições. Certa-mente, há reapropriação de fenômenos, práticas, eventos e formas culturais tidas como ‘tradicionais’, que passam a ser definidos e percebidos, mesmo diferencialmente, em termos plurais de apreensão e decodificação. Assim, as brincadeiras como o toré dos Eleotérios (artigo de Hofmann & Valle); a dança de São Gonçalo (Bomfim), o coco de zambê (Lins) podem passar a ser entendidas como “folclore”, “tradição”, “ritual”, enfim, como “cultura”. Essas formas e práticas culturais não deixam de ter relação e articulação com investimentos de ordem político-ideológica que se produziram em diver-sos momentos da formação e reelaboração da “cultura nacional” e de suas apresentações singulares: folclore, cultura popular; cultura nordestina; etc. Entendido como uma matriz e substrato de assimilação de diversas tradi-ções culturais, o “folclore brasileiro” passou a ser concebido e investigado na medida que se pensava que populações tradicionais estariam sendo ‘as-similadas’, tornadas brasileiras e, portanto, seu futuro enquanto expressões culturais singulares estaria comprometido. Lins destaca exatamente isso em seu artigo ao notar como as populações indígenas e negras seriam tra-tadas para se entender a história do Rio Grande do Norte. O incentivo de experiências culturais, tal como o coco de zambê, abordado em seu texto, é desenvolvido em grande parte por pessoas que atuam como mediadores, tanto culturais como sociais e políticos, de grupos que vêm sendo alvo de políticas públicas. Na mesma direção, segue Wellington Bomfim ao escla-recer sobre as diversas formas de apropriação da dança de São Gonçalo da Mussuca, que antes, na década de 1970, foi entendido como uma “manifes-tação folclórica”, mas vem a ser recentemente notado, apropriado ou res-

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significado como expressão quilombola, uma adjetivação que se relaciona às dimensões político-culturais em torno do reconhecimento de direitos de segmentos sociais, particularmente étnicos (ARRUTI, 2006). Essa dis-cussão me permite fazer um paralelo com minhas próprias preocupações de pesquisa sobre a relação entre cultura, etnicidade e política. No caso do torém, a dança que caracterizou os ‘caboclos”, ‘descendentes de índios’ Tremembé do aldeamento de Almofala (Ceará), ela mereceu atenção de folcloristas a partir da década de 1960 (VALLE, 1993; 1999; 2005). A partir de meados da década de 1980, o torém passou a ser investido através de outras ressignificações e leituras em um processo gradativo de etnicização, o que corresponde a um contexto histórico de situações variadas e articu-ladas de etnogênese, de emergências, fortalecimentos e resistências étnicas, categorizações que dependem da definição e da perspectiva tomada, se in-dígena, se ativista, se antropológica ou, mesmo, se as três se imbricam entre si e se associam ainda a outras mais, também especializadas, por exemplo a missionária, a indigenista, etc. Não é por menos que podemos verificar intrigantes associações e nexos históricos entre os processos de mobiliza-ção e etnicização indígena e quilombola em que os antropólogos tiveram uma atuação relevante e complexa (ARRUTI, 2006). Estou tratando aqui da temática da mediação, ponto que alinhava os mais diversos trabalhos dessa coletânea23 . Quando consideramos os usos sociais e políticos que vêm sendo feito da ideia de “cultura” na contemporaneidade, percebemos que certas práticas e formas culturais passam a ser vistas como mais legítimas e autorizadas do que outras, especialmente quando a “cultura” se torna foco crucial de po-líticas públicas específicas e dos modos de administração pública. Muitas vezes, são os antropólogos que atuam como mediadores, tal como parece se apresentar nos textos de Lins e Bomfim, quando pesquisa e interven-ção se aproximam, sendo difícil e complexo estabelecer o limite de uma prática e de outra. A própria trajetória de vida se articula à essa complexa e ambígua pluralidade de posições e relações, tal como sugere também as trajetórias de Maíra Freire e de Wellington Bomfim que, oriundos ou se

23. Muito bem interpretado por Vilhena (1997), o “movimento folclórico brasileiro” teria como um de suas principais formas de ação a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), que iniciada em finais da década de 1950 , teria continuidade duas décadas depois, mostrando interessante articulação entre esferas diversas de produção cultural-intelectual, o que engendra canais de relação e mediação entre níveis locais-regionais e o nacional, evidenciando o patrocínio de instâncias e entidades públicas e governamentais em diversos escalões.

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inserindo no Movimento Negro em seus respectivos estados (Rio Grande do Norte e Sergipe), passam a fazer pesquisa sobre questões que se torna-ram caras para seu próprio ativismo. No caso de Freire, seu interesse mi-litante desembocou na própria pesquisa, o estudo da mobilização política quilombola da comunidade de Capoeiras, que também era focalizada por práticas de mediação específicas do Movimento Negro potiguar. Ou, então, no caso de Bomfim, temos o estudo da Dança de São Gonçalo, que passou, em determinado momento histórico, a ser valorizada como prática cultural “afrodescendente”, mesmo que sua origem remeta-se a um santo católico português. Essa prática dúplice, complexa em termos dos múltiplos signi-ficados evidentes na trajetória do pesquisador, foi igualmente exposta pela situação de mediação que Luiz Augusto Nascimento enfrentou, asseme-lhando-se, de algum modo, com o dois casos citados (Freire e Bomfim). No artigo de Nascimento, não se trata de militância no movimento negro, mas sua atuação indigenista através de uma ONG, que desenvolvia projetos entre os grupos Jê. Por outro lado, o artigo de Lucena recupera o surgimento do Movimento Negro no contexto urbano de Mossoró, enquanto o trabalho de Freire ex-põe como o grupo ativista negro Kilombo, sediado em Natal, passou a atuar em áreas rurais, sobretudo em comunidades quilombolas. São essas diver-sas trajetórias junto da produção prática de discursos que se tornam social-mente autorizados através da mediação política e cultural (ARRUTI, 2006). Como um saber especializado, a Antropologia não deixa de ser aproveitada diferencialmente de acordo com os agentes em questão. Mas também comentamos antes, nessa introdução, que a mediação im-plica um processo de significados negociados na prática e em interações precisas. Essa questão é apontada no artigo de Edmundo Pereira, quando trata de sua pesquisa etnográfica, do tema da reflexividade e da dialogia, problematizando-a e colocando-a como aspecto central de seu artigo, que enfoca seu encontro, enquanto antropólogo, com seu interlocutor de pes-quisa, Don Ángél Ortiz na Colômbia. Em termos das questões levantadas, o antropólogo também media, inclusive pela textualização etnográfica, ao selecionar eventos e questões discursivamente. Apoiando-se em Pels e Sa-lemink (2000: 4), Pereira considera que as “táticas” do pesquisador impli-cam ou partem de “relações específicas entre poder e troca que atualizam e determinam o valor dessas estratégias discursivas”. Seria interessante atentar para um trecho do diário de campo usado por Edmundo Pereira: “Entreguei-lhe os presentes que trazia: uma rede, anzóis, linha de nylon,

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alguns cadernos, canetas, fósforos e tabaco, e uma carta de apresentação (escrita por Juan Echeverri, em bue e espanhol)”. Pensemos que, além da própria reflexividade e da dialogia, a mediação se coloca como um tema e um problema a ser pensado pelos antropólogos, que está presente, além das trocas, simbólicas e materiais, sempre presentes, na própria dimensão da carta de apresentação, que materializa e institui mais outro canal de mediação, a do pesquisador que media a chegada de outro antropólogo. Está em questão a confiança que se constrói ao longo do tempo, a carta objetivando uma relação e criando um vínculo de mediação, que se daria agora no próprio ato de textualização etnográfica, que segue do caderno de campo ao próprio artigo – mediando não apenas relações, mas tradições de conhecimento distintas, a do conhecimento nativo, a do conhecimento etnográfico revertida agora em reflexão teórica sobre a dialogia na pesquisa de campo. Certamente ressalta a confiança e, ainda mais, um plano singular de entendimentos relacionais mútuos, cuja base se deu através de “acor-dos” e efeitos que mostravam tanto relações de poder como de negociação: “Foram emitidos dois documentos em que ambas as partes reconheciam comum acordo com relação à minha permanência, além do próprio don Ángel que com esta já consentira” (Pereira, nesse volume). Vê-se aqui si-milaridade etnográfica com uma situação clássica da literatura antropoló-gica sobre mediação, já discutida nessa apresentação: o caso estudado por Jeremy Boissevain (1966) da carta de apresentação que um professor sici-liano recebe de um jovem protegido por um de seus “clientes”. Ainda mais, sugere a dimensão dos modelos de transação de conhecimento, tal qual foi exposta por Fredrik Barth (2000), em que a formação de um expert envolve a intensa pressão sobre quem está sendo ensinado. Mas devemos pensar ainda que os objetos, as materialidades e os produtos culturais consistem em elementos mediadores entre pessoas e grupos, por-tanto “agenciando” os diversos níveis que existem entre os vários tempos e momentos que foram contemplados pelas pesquisas. Desse modo, temos os livros que foram usados pelos quilombolas de Acauã, tal como está no artigo de Valle, como ‘documentos’ que mediam entre tempos – o passado, o presente e o futuro - e também entre conjuntos de pessoas que conver-gem e interseccionam. A memória é, assim, igualmente mediadora entre os tempos, portanto uma memória que seria praticada e produzida ao mesmo modo que se torna palpável, enquanto sinais que se afirmam ou, então, si-lenciam através do não-dito (POLLAK, 1989).

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Deve-se salientar ainda mais que o próprio debate sobre mediação se con-solidou quando os pesquisadores encaravam contextos e grupos que pas-savam por processos históricos de transformação social, onde havia um verdadeiro confronto entre mundos que aparentemente não se afinavam e se estranhavam, tal como a Itália rural estudada por Silverman (1977a), e o Sul “colono” brasileiro, pesquisado por Giralda Seyferth. Sobre esse ponto, José Maurício Arruti (2006) desenvolve questões importantes, pois seria nos processos de territorialização e identificação étnica que se desenvol-vem formas singulares de mediação que, em alguns momentos, convergem entre si e, em outros, se individualizam ou apartam nas suas especificida-des (sociais, histórico-políticas, culturais, etc.). Assim, as práticas e saberes antropológicos podem ser produzidos através de agenciamentos singulares que envolvem os dilemas e questões próprias da mediação (político, social, cultural) entre os mais diversos planos e níveis de interação e interlocução, mas também de conflito.Em diversos textos, temos a evidência de que conflitos, antagonismos e tensões enquadram socialmente o que está sendo descrito pelas pesquisas antropológicas. Apesar dos mais diferentes contextos etnográficos apresen-tados, em diversos estados brasileiros (Maranhão, Sergipe, Rio Grande do Norte, Santa Catarina), o conflito parece ser uma chave de orientação para as dinâmicas societárias que foram investigadas, mesmo que o conflito seja significado e compreendido de modo singular de acordo com os contextos e agentes envolvidos. Não há uma ‘essência’ própria do conflito, mas sua sig-nificação depende exatamente das relações de força que se constituem entre pessoas, grupos e agências e como elas se acomodam a essas relações. Ao recuperar, então, um autor caro para o debate até agora detalhado, Georg Simmel (1950), os conflitos aparecem e se resolvem através das díades e das tríades, mais propositalmente, “dividindo e reinando”, ao suscitar efeitos que coordenam e reordenam as relações de poder entre os diversos agentes. De fato, devemos reconhecer que a mediação é um aspecto de uma “tríade” entre pessoas, atores, agentes e grupos sociais em sua ampla diversidade, cujas demandas e intencionalidades, definidas cultural e socialmente, im-plicam, muitas vezes, relações de força e de poder. Assim, temos pessoas e figuras que estão abarcadas por uma hierarquização social de competência, que refletem práticas de mediação: patrões, santos, parentes, mas também professores, lideranças políticas, ativistas, profissionais de saúde e agentes governamentais. Podemos pensar nos árbitros em situações de conflito e de clivagem faccional, negociando relações e contextos, tal como o acidente

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ocorrido entre os índios Apãniekra Jê Timbira, discutido no artigo de Luiz Augusto Nascimento. Além disso, os mediadores não desempenham apenas práticas de contato, facilitando as relações sociais e interações entre grupos de diferentes níveis. Na maioria das vezes, a mediação está associada às relações de poder. Desse modo, uma etnografia do contato interétnico, dos modos de construção da etnicidade é, sobretudo, uma etnografia das relações de poder entre os mais diversos agentes, grupos e instituições, que se afiguram e se alinham através de idiomas e linguagens culturais variadas, que podem se articular ou se enfrentar entre si, tal como sugere Neves (1998; 2008). Isso está bastante aparente no trabalho de Nascimento, que aborda o conflito que se irrompe a partir do acidente que causou a morte de uma jovem indígena Apãniekra. Apoiando-se na perspectiva de Victor Turner e Max Gluckman, o autor mostra como o estado tensional e conflitivo que foi gerado pela morte aci-dental de Patricia Prwncwyj levou as chefias e lideranças indígenas Prwn-cwyj buscarem mediadores externos que pudessem negociar em prol da resolução do grande conflito interno. Enquadrados por valores culturais distintos que se articularam historicamente através das relações interétni-cas, os modelos de julgamento à disposição dos Apãniekra colocaram-se, de algum modo, em ação a partir da inserção e da interação entre agentes indígenas e não indígenas, que mediaram o drama social. Valeria pensar, aqui, nos efeitos de poder que estariam sendo agenciados exatamente por estas modalidades de prática de mediação, ao mesmo tempo intelectual e política, tal como aparece no artigo de Hofmann & Valle. Em síntese, os artigos da presente coletânea mostram que a questão crucial a ser pensada é, portanto, a da singularização social e cultural. No entanto, os modos de singularização devem-se, de certo modo, à uma articulação direta e positivada das práticas de mediação e dos esquemas de poder, por-tanto elementos desiguais, que se evidenciam nas relações entre agentes indígenas e não indígenas. A presença de agentes não indígenas foi fun-damental para que demandas políticas e culturais de caráter étnico pudes-sem se fortalecer. Nesse sentido, relações de poder foram geradoras de uma positividade própria para a emergência de grupos que estavam ‘em busca da realidade’, tal como indica o texto de Hofmann & Valle, a respeito da construção da etnicidade entre os Eleotérios do Catu (RN), que se consti-tuiu em relação direta à formação do campo indigenista no estado do Rio Grande do Norte. Em resumo, o que está em jogo seria a historicidade de formação de sujeitos coletivos e identidades indígenas especificas em um

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campo intersocietário que pode ser analisado em termos antropológicos, o que se apresenta nos diversos trabalhos aqui publicados. Para finalizar, gostaria de agradecer a todos os autores envolvidos na ela-boração do presente livro em razão do longo tempo que transcorreu desde o convite inicial, em 2009, à finalização do presente livro. Em segundo lu-gar, gostaria de agradecer ao professor e amigo Luiz Fernando Dias Duar-te (Museu Nacional) pelo apoio inestimável à elaboração desta coletânea. Para concluir, gostaria de mencionar (in memoriam), o apoio sempre de-monstrado pela Professora Lygia Sigaud, do PPGAS∕Museu Nacional, que acompanhou durante longo tempo o desenrolar do projeto Procad, cuja morte súbita impediu que ministrasse a aula magna do PPGAS∕UFRN no ano de 2009. Em outubro de 2008, Lygia aceitou gentilmente o convite para realizar uma conferência e, depois, já doente chegou a reiterar seu desejo de estar com o corpo docente e discente da UFRN em março de 2009. Esse tra-balho é dedicado à sua memória por sua reconhecida seriedade acadêmica e a forte visão institucional que lhe caracterizou, inclusive pelo evidente apoio que deu ao intercâmbio entre os programas de pós-graduação de An-tropologia Social da UFRN e do Museu Nacional∕UFRJ.

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CAPÍTULO IFORMAÇÃO DE IDENTIDADES CULTURAIS EM CONTEXTOS MIGRATÓRIOS

Giralda Seyferth

Nós, brasileiros de sangue alemão, somos uma grande e também muito ativa parte do corpo da nossa nação americana, o Brasil. ... Somos mais de um milhão, nós, os descendentes dos 250 mil imigrantes ale-mães oficialmente contados, sejam eles da Alemanha, da Áustria ou do Sul da Rússia, que aqui no Brasil procuraram uma pátria (Heimat). Nossos antepassados de sangue alemão permaneceram aqui na terra do sul... e construíram um lugar honrado na história do Brasil.1

Inveja e ciúme não tinham lugar entre os novos colonos, pois não se formara ainda nenhuma aristocracia rural. Todos se uniam e se auxi-liavam sem indagar: És francês, boêmio, alemão, holandês, pomerano ou hunsrück? Igualmente não se perguntava pela crença que cada um professava, se católico, protestante ou livre pensador. Éramos colegas de profissão, e nos auxiliávamos onde e quando necessário.2

As duas citações em epígrafe, embora escritas em momentos diferentes e com conteúdos aparentemente distintos, traduzem o mesmo princípio de identidade cultural conformado pela etnicidade e pela experiência imigra-tória. O conteúdo do artigo de Wiederspahn, do qual foi extraída a pri-meira citação, é característico das matérias de jornais em língua alemã que defendiam o direito de manter as tradições culturais germânicas e sua cor-

1 Trecho de artigo publicado em vários jornais teuto-brasileiros (WIEDERSPAHN, H.O, “Unsere Pflichten als Deutschbrasilianer”, Kolonie Zeitung, 75J., 19/08/1937). 2. Da auto-biografia do imigrante Josef Umann (1981: 61).

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respondência com Volkstum3, numa época __ a década de 1930 __ em que se anunciavam as políticas de nacionalização. O artigo foi publicado pouco antes da intervenção direta do Estado visando forçar o “abrasileiramento” (ou assimilação), convencionalmente chamada “campanha de nacionaliza-ção”. A singularidade étnica pleiteada por Wiederspahn tem maior abran-gência: inclui todos os “brasileiros de sangue alemão” que têm uma história própria na nova pátria __ a história da imigração e colonização alemã no Brasil. Josef Umann tem como referencial um espaço mais restrito, a co-lônia onde recebeu um lote para cultivo, situada em área florestal inexplo-rada. Suas memórias falam das dificuldades, da sociabilidade e, principal-mente da solidariedade entre iguais __ imigrantes convertidos em colonos (os “colegas de profissão” mencionados no texto citado). Certamente não havia franceses ou holandeses em Alto Sampaio (Rio Grande do Sul), co-lônia onde foram assentados imigrantes alemães de diversas procedências, inclusive o grupo de Umann, oriundo da Boêmia (região hoje pertencente à República Tcheca). Como seus companheiros de travessia, era um artesão __ trabalhou como tecelão e lapidador de vidro e seu relato, em grande par-te, expõe as causas da emigração (trabalho insalubre, duro e mal remunera-do, fome, ausência de oportunidades de ascensão social, etc.); relembra sua atuação política como membro de um recém-criado Partido Operário, de orientação socialista e, sobretudo, da sua atividade na condição de colono numa frente pioneira4 e líder comunitário empenhado na preservação da vida cultural germânica, principalmente nos espaços associativos. Assim, embora em tempos e lugares diversos, e com estilos discursivos diferen-tes, ele e Wiederspahn utilizam os mesmos marcadores alusivos à condição de membro de uma etnia com destaque para o comunalismo lingüístico, a idéia de uma cultura comum de raízes germânicas, e a metáfora primordia-lista da “origem” (ou “sangue”) que dispensa a identificação pelo lugar do nascimento ou as categorias regionalizadas e converte a imigração num de-nominador comum __ elo de união de descendentes de alemães oriundos de diferentes lugares, inclusive da Alemanha. Daí a redução à categoria colono

3. A tradução mais usual para esse termo é “índole nacional”, mas Willems (1940: 142) apropriadamente, preferiu “idéia étnica”, que se aproxima do sentido dado a ele nas publicações teuto-brasileiras que, habitualmente, utilizaram seu sinônimo – Deutschtum – mais diretamente referido à etnia alemã, expressando germanismo ou germanidade.4. Juntamente com outras famílias de imigrantes alemães, Umann foi encaminhado para a Linha Cecília, aberta numa região colonial em 1877 onde os lotes não estavam demarcados (trabalho feito pelos próprios colonos) – situação que configura uma fronteira agrícola.

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realizada por Umann, e sua ênfase na sociabilidade e suposta igualdade do mundo colonial onde convivem boêmios, hunsrücker, pomeranos e ale-mães unidos pela mesma língua e espírito; e o sentido de “dever” (Pflicht) atribuído à preservação da língua e da cultura contido na matéria jornalís-tica assinada por Wiederspahn.Verifica-se aí um princípio de unidade para englobar, além dos austríacos, outros imigrantes pertencentes a grupos minoritários germânicos estabe-lecidos em vários países do leste europeu ou que, nas muitas mudanças de fronteiras internacionais, ficaram excluídos do território alemão, e cujo denominador comum era, principalmente, a língua alemã, apesar das dife-renças dialetais. Essa forma de inclusão faz parte da identidade mais geral evidenciada pela categoria Deutschbrasilianer (teuto-brasileiro) ou, mais raramente, pela categoria Brasildeutsch (alemão do Brasil) __ apropriadas pelas lideranças comunitárias, políticas e intelectuais para expressar a dife-renciação cultural resultante da imigração alemã. Emílio Willems deu pou-ca importância aos dados oficiais brasileiros para totalizar os números da “imigração alemã”, exatamente porque não dão conta dessa realidade mais ampla que passa pelo critério lingüístico. Diz esse autor: “o elemento étnico que integrou outras levas aportadas no Brasil, como austríacos, poloneses, russos e suíços, foi em grande parte germânico” (WILLEMS, 1980: 41). O uso dessa formulação de pertencimento (que também inclui a suposição de igualdade ou proximidade cultural) está implícito em algumas experiências coloniais marcadas pela utopia da igualdade social, e respaldado pela pre-sença, em algumas áreas coloniais bastante representativas (caso do Vale do Itajaí e da colônia de Alto Sampaio onde se fixou Umann), de imigrantes assumidamente alemães, mas que entraram no país computados por ou-tras nacionalidades. Na década de 1890, por exemplo, há registros oficiais sobre a entrada de um grande número de imigrantes “russos” (cf. tabela apensada em CARNEIRO, 1950), em sua maioria encaminhados para áreas coloniais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Uma das linhas coloniais abertas, na época, no município de Blumenau, por exemplo, recebeu a de-nominação Russenbach (Ribeirão dos Russos) porque ali foram assentados imigrantes que haviam deixado o Império Russo. No entanto, tratava-se, principalmente, de alemães e também poloneses, que viviam na região co-nhecida como “Polônia russa” (a principal cidade era Lodz, um pólo têxtil) __ hoje parte da Polônia (estado criado após a I Guerra Mundial).Essa realidade revela formas de inclusão propiciadas pelo processo migra-tório e a importância da dimensão cultural da etnicidade. Por isso, preten-

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do discutir os conceitos de etnicidade e identidade, essenciais à compreen-são da pluralidade instituída pela imigração no contexto do Estado-nação. Será privilegiada a interrelação entre cultura e identidade, numa análise comparativa cujos fundamentos empíricos são baseados nos discursos em torno das diferenças produzidas pela primeira geração de imigrantes ale-mães envolvidos em projetos coloniais particulares e as continuidades na longa duração percebidas nas publicações comemorativas do centenário da imigração e alguns dos seus desdobramentos atuais. A comparação, even-tualmente, pode incluir referências a outros grupos de imigrantes.Em texto onde discute o pluralismo cultural, Barth (1984) chama a atenção para as limitações de um conceito de etnicidade que não leva em conta a dimensão da cultura. Reafirma sua posição anterior, ao dizer que deve ser usado para descrever as fronteiras e as relações de um grupo social em ter-mos de um repertório altamente seletivo de contrastes culturais emprega-dos emblematicamente para organizar identidades e interações. Nesse caso, a noção de cultura é central, pois embasa a identidade coletiva que repercu-te na ação social5. Ou, dito de outra maneira, é preciso evidenciar as formas pelas quais os pertencimentos coletivos são compreendidos e mobilizados, pois a cultura enraizada na vida cotidiana tem valor na categorização da identidade (étnica), sendo as fronteiras intergrupais socialmente construí-das. A identidade, por sua vez, é dinâmica já que as diferenças (culturais) percebidas e significativas da demarcação das fronteiras transformam-se no tempo e no espaço ou estão em permanente negociação. História e terri-tório, portanto, são elementos importantes na conformação da etnicidade.À parte certo criticismo dirigido às proposições de Barth desde a formula-ção inicial sobre os grupos étnicos e suas fronteiras, que privilegiou a iden-tidade em sua dupla dimensão de “auto-atribuição e atribuição por outros” (BARTH, 1969: 13), a cultura é um indicador essencial pois, afinal, falar em etnicidade significa prestar atenção às diferenças culturais que embasam as identidades referidas a pertencimentos étnicos e nacionais. Isso tem efeitos os mais diversos no curso das relações sociais, pois produz categorizações em diversos níveis, negociações e conflitos, com repercussões políticas e econômicas. Não se pode subestimar os significados arbitrários dos marca-

5. O texto de Barth dá respaldo ao conceito de sociedades plurais, especialmente no âmbito do colonialismo e da formação ou emergência de novos estados onde ocorre a incorporação de grupos culturalmente singularizados num único sistema social. Aplica-se o paradigma da etnicidade, lembrando que seu modelo analítico refere-se, especificamente, ao pluralismo cultural.

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dores simbólicos das diferenças, culturalmente construídos __ internamen-te pelos membros dos grupos e minorias étnicas ou imputados, às vezes de forma estigmatizante, pelos outros. Sem esquecer o nacionalismo e a existência do Estado, agente consciente das etnicidades de suas populações constitutivas, conforme observação de Banks (1996). No caso da imigra-ção, a etnicidade é melhor compreendida em relação ao Estado e no con-fronto com o princípio de nacionalidade, quase sempre incompatível com a idéia de pluralidade cultural.Desde seu surgimento, etnicidade é um termo que sugere ubiqüidade, oni-presença, continuidade __ e, consequentemente, problemas de definição ressaltados por diversos autores (COHEN, 1978; SMITH, 1986; BANKS, 1996). Por outro lado, tem sido conceituada, simplesmente, como qualifi-cadora de grupo ou, conforme especificação de Glazer e Moynihan (1975: 1), um neologismo que, segundo os dicionários em língua inglesa, designa “o caráter ou qualidade de um grupo étnico”. Esse último ponto vem sendo contestado nas análises críticas sobre as apropriações do conceito, particu-larmente quando dão ênfase às qualidades primordiais de pertencimento e costumam usar etnicidade como adjetivo. Banks (1996: 6), por exemplo, afirma categoricamente que etnicidade não é simplesmente uma qualidade de grupos, mas um instrumento analítico útil (embora não único) para o entendimento das relações sociais. Daí o criticismo em relação aos traba-lhos de Barth, que ressaltam, entre outras coisas a preocupação axiomática com a formação do grupo no estudo da etnicidade (JENKINS, 1997: 165). Não obstante, sua importância para os estudos das relações interétnicas foi destacada no Brasil por Roberto Cardoso de Oliveira. Este autor chamou a atenção para a dimensão ideológica da identidade étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976), coisa que põe em evidência as apropriações de valo-res culturais e seus contextos sociais. Smith (1986) também deu atenção às diferenças culturais ao considerar a etnicidade um modelo sócio-cultural de organização e comunicação. Ela é, principalmente, mítica e simbólica, porque mito, símbolo e memória são seus atributos permanentes.Outra noção importante, que permeia os discursos “nativos” sobre etnici-dade é a de comunidade, apropriada analiticamente __ como categoria social __ por pesquisadores que estudam as identidades nacionais e étnicas em âmbito local. Anthony P. Cohen, por exemplo, retomou o conceito antro-pológico de comunidade numa análise comparativa realizada a partir de uma pesquisa entre os ilhéus de Shetland (Escócia), usando a noção de fronteira de Barth, mas não a de grupo étnico. Não oferece uma defini-

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ção objetiva, porém assinala que o uso do termo implica em destacar si-milaridades e diferenças, considerando que os membros de um grupo têm algo em comum e se distinguem, de modo significativo, de outros grupos putativos. O emprego dessa terminologia indica a relevância atribuída às fronteiras simbólicas acionadas na construção da identidade local e apro-xima-se, em parte, da definição de “comunidade imaginada” de Benedict Anderson (1983) aludida à idéia de nação. Segundo Cohen, etnicidade é um tipo de identificação internamente construído, e a cultura local (ou da comunidade), na forma simbólica, é considerada uma expressão da dife-rença dentro do Estado-nação. A comunidade, portanto, aparece como um local territorialmente circunscrito expressando etnicidade em oposição ao que é nacional. O autor reafirma o papel central atribuído à cultura local ao dizer que, estando ou não íntegras as fronteiras estruturais, a realidade da comunidade tem maior expressão na percepção dos seus membros acerca da vitalidade da sua cultura __ recurso e repositório de símbolos identitários (COHEN, 1985: 118).É evidente que essa apropriação nada tem em comum com os “estudos de comunidade”, que perduraram nas ciências sociais até a década de 1960. A comunidade deve ser pensada como um fenômeno da cultura, e não como totalidade em si mesma, e envolve a elaboração de uma identidade (local, étnica, etc.) __ o que supõe um sistema de representações, uma ordem sim-bólica com uma dimensão discursiva e outra atinente à realidade cotidiana.Tal como a comunidade, etnia é outra palavra carregada de significados simbólicos e seu entendimento passa pelos mesmos critérios de definição, pois denota uma identidade comum, memórias compartilhadas, uma no-ção de cultura, um sentido de solidariedade. Max Weber mostrou certa ir-ritação ao definir as duas em conjunto: comunidade étnica (assim como nação) é um conceito que se volatiliza, escapa do analista que tenta con-cebê-lo sociologicamente (WEBER, 1991: 275). Mesmo assim, concentra suas considerações no valor simbólico das características distintivas apro-priadas pelos atores sociais para construir seu pertencimento a um grupo ou comunidade, agindo juntos. Interessa a Weber, sobretudo, a ação social que propicia a formação da comunidade étnica e a subjetividade simbóli-ca que cerca o “sentimento comunitário” ou “consciência de comunidade” vinculada a habitus e crenças na origem comum.De certa forma, as considerações de Weber apontam para a importância sociológica das construções de senso comum da etnicidade e sua lógica

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simbólica na conformação grupal, sem fazer da noção de grupo ou comu-nidade um axioma. Mas ambas as noções __ grupo, comunidade __ e as cate-gorias de identificação que evocam tais coletividades, sinalizam o processo dialético de definição interna e externa marcado pela singularidade cultu-ral. O processo constitutivo das identidades culturais é um fenômeno ob-servável em contextos migratórios, particularmente aqueles relacionados à imigração, pois o princípio de nacionalidade (muitas vezes descolado da cidadania) que rege o ideal de “comunidade nacional” unívoca __ vinculada por Renan (1990) ao ideal de pátria, língua e território estatal __ não com-porta etnias múltiplas e as identidades que têm por base a distintividade étnica e cultural. O nacionalismo brasileiro foi bastante influenciado pela concepção de nação de Renan6, portanto, assumiu o ideal de assimilação dos ádvenas que participaram do processo de colonização. Em grande par-te, as etnicidades surgidas nesse contexto imigratório foram construídas em oposição ao ideal assimilacionista, reivindicando pluralismo cultural.O texto de Josef Umann, citado inicialmente, contém um discurso sobre a condição de imigrante, ao mesmo tempo que revela a realidade cotidiana numa colônia recém-fundada, mas onde emergem as diferenças demarca-doras da etnicidade. O título original é significativo de ambos: Lebenslauf von Josef Umann und zugleich Entwicklungsgeschichte der Linha Cecília Mun. Venâncio Ayres __ basicamente, a “trajetória de vida (ou carreira) de Josef Umann e simultaneamente a história do desenvolvimento da Linha Cecília, município de Venâncio Aires”. De fato, o autor fala das dificuldades econômicas enfrentadas na infância e adolescência e da falta de oportuni-dades de ascensão social na Boêmia natal, da travessia problemática en-frentada pelos emigrantes, da opção pela localização em um lote na Linha Cecília, associada à rede de parentes e amigos que lhe dera apoio ao decidir emigrar para o Brasil, já adulto, em 1877. A partir da localização, temos um relato sobre a construção de uma comunidade de alemães pequenos agricultores e proprietários de terra e moradia, com os elementos discursi-vos característicos da imagem do pioneirismo expressada na forma de luta contra uma “escura floresta virgem com suas árvores colossais” travada por gente que, no país de origem, pertencia à classe operária. A situação liminar de emigrante, porém, é ultrapassada pela necessidade de ficar naquele lugar e, trabalhando duro, alcançar uma boa vida:

6. O texto, intitulado “Que’st-ce qu’une nation?”, resulta de uma conferência pronunciada na Sorbonne/Paris em março de 1882, e publicada no mesmo ano. Ver Renan (1990).

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Muitos teriam regressado à pátria, se tivessem tido os meios para tal. Mas esta hipótese estava fora de cogitação, e por isso só restava pegar no duro. [...] Com o bom exemplo dos trabalhadores e o bom humor que a maioria dos boêmios alemães não perdem facilmente, tam-bém as pessoas mais idosas [...] tomavam ânimo novo e pegavam no duro, na medida de suas forças. Posteriormente divertiam-se com as circunstâncias miseráveis que tiveram que passar. Algumas famílias lograram mesmo atingir uma situação de bastante bem-estar, através do seu trabalho e persistência (UMANN, 1981: 55-56).

No relato sobre a experiência vivida no processo de colonização da Linha Cecília destacam-se as referências ao bem-estar e alegria de viver alcança-dos pelos colonos alemães – categoria de identidade que marca o imigrante numa situação igualitária. Ao mesmo tempo, está presente a dicotomia en-tre velha pátria e nova pátria: o boêmio alemão torna-se colono no Brasil, sem abandonar suas raízes. A parte final da Lebenslauf, acrescentada ao manuscrito incompleto pelos filhos, relata a dedicação de Umann às ativi-dades culturais e seu empenho na fundação de sociedades de canto e tiro __ lugares onde a sociabilidade, a Kultur e os valores próprios do germanismo eram preservados. Cantos e poemas escritos por Umann, alguns evocativos da condição alemã, foram incorporados às memórias. Um dos poemas foi musicado __ espécie de hino à bandeira da associação de canto (Gesangve-rein) __ portanto, transformado em Lied (canção que é expressão do espírito germânico) no qual a principal figura de retórica é a substituição do “sus-surrar sinistro das matas” pelo som do “canto alemão”.Outro exemplar dessa poesia “colonial” __ gênero bastante cultivado nas as-sociações e nos jornais e almanaques em língua alemã publicados no Brasil até 1939 __ tem o título “Wer soll wandern?”7 Fala da emigração e da pos-sibilidade de um futuro melhor num lugar cuja descrição corresponde ao mundo da colônia. É, realmente, uma síntese poética da própria trajetória bem sucedida onde, no final: “Vê-se alegre em meio a um mundo construí-do por ele próprio” (UMANN, 1981: 82).O uso da palavra wandern __ peregrinar __ tem um forte significado sim-bólico porque evoca o processo de busca da terra prometida __ uma busca

7. A organizadora (e tradutora) da publicação verteu o título para “Quem deve emigrar?” A palavra wandern significa peregrinar, andar __ um sentido talvez mais poético para falar da emigração. A opção da tradutora está correta, pois o texto é uma breve narrativa de migração.

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que envolve trabalho, esforço, sofrimento__ onde o peregrino emigrante pode conquistar um lar (Heim). Ao mesmo tempo, a pergunta do títu-lo tem uma resposta clara: não é uma simples aventura, devem emigrar aqueles que não têm esperança, que não conseguiram vencer o destino no lugar onde nasceram.A conquista de um novo lar, numa nova pátria, a própria vida cotidiana em lugares como a Linha Cecília ou nos núcleos urbanos emergentes nas áreas coloniais, a paisagem (basicamente a floresta paulatinamente substituída por campos cultivados) são os temas mais recorrentes na literatura teu-to-brasileira, especialmente na poesia8. Mas Heim (lar) e Heimat (pátria) e sua articulação com a vida colonial não supõem uma conversão imedia-ta ao novo (ou nova pátria). Isso pode ser percebido tanto nos textos de Umann __ um líder comunitário localizado numa pequena colônia __ como nos editoriais dos jornais e almanaques, na literatura (prosa e verso), nos discursos políticos, nas publicações comemorativas, etc., produzidos em lugares com maior visibilidade no contexto nacional. As primeiras gera-ções construíram uma identidade cultural fundamentada, por um lado, nos imaginados valores de germanidade e, por outro lado, na vida cotidiana das regiões “de colonização alemã”, marcada pelo uso da língua alemã. Para aqueles que se estabeleceram no Brasil __ conforme registrado por Umann nos seus versos sobre a peregrinação __ a condição de imigrante e, depois, de colono, é considerada irreversível. Construído o novo lar, o imigrante torna-se brasileiro e seus filhos serão brasileiros. A “velha pátria”, porém, está presente na nova, e a dupla pertença tem sua essência expressa-da na categoria de identificação __ Deutschbrasilianer __ popularizada pelas lideranças coloniais. As ambiguidades que cercam a categoria “imigrante” __ à parte as dificuldades da naturalização __ estão refletidas nessa retórica sobre a duplicidade de pátrias, bastante comum até a década de 1930 e co-locada sob suspeição pelo nacionalismo brasileiro, sobretudo no período conflituoso da 1ª Guerra Mundial.Afinal, o que é a “velha pátria” na nova terra? Simplesmente a cultura alemã do romantismo, a língua, os costumes, o habitus (WEBER, 1991, capítu-lo IV) __ conciliados com a colônia. Numa primeira versão, característica

8. Existem poucos estudos sobre essa literatura; entre elas destacam-se os trabalhos de Kuder (1936) e Huber (1993). Num artigo recente (SEYFERTH, 2004), analisei o papel exercido por ela na construção de uma identidade cultural vinculada à colonização.

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da primeira geração e, obviamente, não exclusiva dos imigrantes alemães, aparece o problema do desenraizamento. Uma frase contida no editorial do primeiro número do jornal Kolonie Zeitung, de Joinville, fundado em 1860, expressa essa condição de forma inequívoca: “Realmente, embaraçosa e de-salentadora situação a nossa, quando __ feito apátridas __ não mais sabemos, por assim dizer, a quem pertencemos!”O autor do editorial e fundador do jornal era Ottokar Doerfel, um imi-grante de perfil bem diferente de Umann, porém com atuação muito seme-lhante em âmbito comunitário. A colônia D. Francisca, fundada em 1851 pela Sociedade Colonizadora de Hamburgo, foi o ponto de partida para a ocupação de uma grande área ao norte da província de Santa Catarina, recebida como dote pela irmã do Imperador Pedro II na ocasião do seu casamento com o Príncipe de Joinville. Ali receberam lotes, por compra, imigrantes de várias procedências (suíços, noruegueses e gente de vários estados alemães), mas predominavam os alemães. De forma diversa de ou-tras colônias, esta foi constituída com um estatuto que garantia aos colonos o direito de uma organização comunal. Provavelmente esse ideal de comu-na atraiu imigrantes que não tinham interesse em assumir um lote colonial. Doerffel emigrou por razões políticas, em 1854; era advogado e pertencia a um grupo de intelectuais da Saxônia que emigraram juntos para Joinville. Trabalhou como contador na empresa colonizadora e, com a fundação do jornal, tornou-se um formador de opinião: o Kolonie Zeitung circulou de 1860 a 1939 e só interrompeu sua atividade entre 1917 e 1919, por causa da guerra mundial (ocasião em que foi proibida a publicação de jornais em língua alemã). Em 1860, Joinville era apenas uma pequena vila cercada de linhas coloniais em expansão. Mesmo assim, a partir de 1855 foram fun-dadas diversas sociedades culturais e recreativas, com ativa participação de Doerffel __ as mesmas associações de tiro, canto, etc, existentes no Alto Sampaio de Umann. Nas representações dos colonos, aparece como uma grande comunidade em construção, onde a maioria da população era de alienígenas não naturalizados. Daí o uso da palavra “apátrida” no texto de Doerffel, tendo em vista que a “verdadeira pátria” foi deixada para trás. Porém isso é rapidamente resolvido nesse discurso inaugural: a pátria está presente através da índole e espírito germânico dos colonos, cuja tarefa é conseguir o respeito e o reconhecimento da nova pátria sem que isso impli-que na perda da alte Vaterland (velha pátria). O desenraizamento, portanto, contém certo relativismo já que a vida na colônia, sob muitos aspectos, era concernente com os postulados da germanidade. Doerffel e os demais

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colonos com quem convivia em Joinville tinham uma identidade em con-cordância com alguns princípios do nacionalismo romântico alemão __ a idéia de Volksgeist, a comunidade de língua, a relevância dada ao Lied (traduzida na imediata fundação de sociedades de canto em praticamente todas as regiões coloniais), os costumes, a sociabilidade praticada nas asso-ciações (especialmente as de tiro), etc. Faltava, porém, algo essencial: eram estrangeiros, a maioria não havia obtido a naturalização __ um processo demorado e praticamente fora do alcance de colonos situados longe dos centros de poder. Por isso, no mesmo editorial o jornal é apresentado como veículo para defender os interesses dos colonos. Na realidade, a categoria Deutschbrasilianer estava sendo elaborada tendo em vista uma comunida-de cultural situada em território brasileiro, cuja abrangência simbólica é a imigração alemã. As trajetórias de Umann e Doerffel permitem visualizar em âmbito local um fenômeno mais geral de formação de etnicidade que, em grande parte, celebra o cotidiano colonial de onde emergem os elemen-tos simbólicos que a compõe __ a identidade virtualmente ancorada na con-vivência ou compartilhamento de uma trajetória comum de imigração. Em alguns lugares essa realidade da formação colonial teve maior notoriedade; é o caso de Blumenau, um espaço do território nacional chamado de “quis-to étnico” pelos nacionalizadores de 1937.No ano da fundação da colônia que receberia seu nome (1850), Hermann Blumenau publicou um livro destinado aos seus compatriotas alemães com interesse na emigração para o Brasil. Na página de rosto identifica-se: “ex-químico, agora colonizador junto ao Rio Itajaí na Província Brasileira de Santa Catarina”. O livro tinha o propósito de atrair alemães para seu projeto de colonização. Apresenta dados sobre o Brasil, incluindo a Constituição do Império e leis de colonização então vigentes em Santa Catarina, pro-víncia que considerou o melhor lugar para emigrantes, condena o regime escravista, informa que os imigrantes não podem ter escravos, elogia o cli-ma do sul, afirma que há problemas fundiários em muitos lugares, mas que seriam superados por nova legislação e que os “bugres” (nativos do sul do Brasil) são menos temíveis do que os indígenas da América do Norte. Ape-sar de algumas críticas ao modelo oficial de colonização, em razão das di-ficuldades encontradas pelos imigrantes alemães assentados em São Pedro de Alcântara desde 1829, aceitou a denominação de “paraíso terrestre do Brasil” atribuída à província de Santa Catarina. Esse tipo de consideração é indicativo de certo grau de utopia que estimulou a decisão de fundar uma colônia alemã no Vale do Itajaí, atraído também pela beleza da paisagem

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e pelas possibilidades econômicas oferecidas por uma região considerada “vazio demográfico”. Blumenau fez o curso de química na Universidade de Erlangen, onde conheceu e conviveu com o naturalista Von Martius, o geó-grafo J. E. Wappäus e Alexander Von Humboldt __ todos conhecedores e autores de obras sobre o Brasil. Tal convivência provavelmente influenciou a decisão de criar um núcleo colonial no Brasil, bastante próximo de um ideal comunal. Kiefer (1992) observou que tratava-se de um idealista preo-cupado com a questão emigratória e os problemas enfrentados por aqueles que deixavam sua pátria rumo aos Estados Unidos. Achava que os emi-grantes deviam estar unidos numa colônia livre onde pudessem manter sua língua e costumes. De fato, essa utopia continha a imagem de uma colônia homogênea num território (quase) paradisíaco, encontrado em Santa Cata-rina __ o lugar mais apropriado para receber seus compatriotas emigrantes!O empreendimento foi concretizado, com a chegada dos primeiros 17 imi-grantes, em setembro de 1850, após a organização de uma empresa coloni-zadora e de um longo período de negociação junto às autoridades imperiais e provinciais para obter a concessão de terras devolutas no médio Itajaí-a-çu. As dificuldades comuns às frentes de expansão do século XIX estabele-cidas em regiões de floresta densa marcaram o desenvolvimento da colônia e deram respaldo à imagem do colono pioneiro produtor de civilização. A historiografia local deu bastante destaque às atividades agrícolas realizadas por Blumenau e outros homens e mulheres notáveis da comunidade __ um fato que ajudou a reforçar uma identidade comum de “colono alemão” e a idéia de liberdade e igualdade peculiares à concepção de comuna. Cartas, relatos de viagem, a própria historiografia e a literatura ficcional sobre a colonização do Vale do Itajaí, referem-se ao trabalho árduo de todos, par-ticularmente das mulheres, inclusive aqueles que viviam no núcleo urbano ou Stadtplatz. A apreensão das condições reais de localização numa área de fronteira agrícola como um dos fundamentos da etnicidade, através da adoção da categoria oficial “colono” em sinonímia com povoador, é fenômeno co-mum ao contexto da colonização européia no sul do país. Portanto, é uma categoria social compartilhada com outros imigrantes e até hoje usada para distinguir os descendentes de europeus dos brasileiros. Sob esse as-pecto, a colônia Blumenau não produziu um discurso diferenciado das outras __ “italianas”, “polonesas”, “alemãs”. Afinal, o modelo de ocupação territorial era o mesmo, fossem as colônias particulares ou oficiais. Elas estavam sujeitas a uma legislação específica que regulamentou a imigra-

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ção junto com a colonização; a divisão do espaço, os tipos de cultivo, a divisão do trabalho, a diferenciação social interna, a condição de imi-grantes e descendentes eram semelhantes em toda parte, com pouquís-simas variações. O que permite distinguir as colônias umas das outras é, justamente, o sistema cultural trazido pela etnia majoritária em cada região. Ai sim, língua, padrões arquitetônicos, certas características da organização social, da sociabilidade, dos hábitos alimentares, às vezes a religião e, de um modo geral, aquilo que Abner Cohen (1974), na sua definição para etnicidade, denominou “padrões de comportamento nor-mativo” e o senso comum chama de costumes, hábitos, cultura.Mas se existe tal similaridade, pode-se dizer que cada colônia tem suas especificidades: certamente Blumenau é diferente do Alto Sampaio de Jo-sef Umann ou mesmo de Joinville (apesar da proximidade geográfica e da crença comum na germanidade). A versão mais utópica de uma comunida-de de indivíduos que compartilham a mesma nacionalidade (no sentido do nacionalismo étnico, definido por HOBSBAWM, 1990)9, estabelecida num Estado tolerante com a diferença nacional __ imaginada solução para o ex-cedente populacional sem perspectivas melhores na pátria __ está presente em outras iniciativas, tal como no caso de Joinville e seu estatuto comuni-tário, ou mesmo da famosa colônia Cecília de Giovanni Rossi. Revolucio-nário anarquista, Rossi acreditava nas possibilidades de sucesso de uma comuna socialista formada por imigrantes italianos, sob o lema “terra e li-berdade”. Para isso, em fins do século XIX, fundou no Paraná a colônia Ce-cília, uma experiência baseada no comunismo voluntário que fracassou10. O empreendimento de Hermann Blumenau ficou em evidência porque era baseado num ideal próprio de etnicidade. Queria formar uma comunidade alemã naquele lugar isolado, com o beneplácito do Estado, mas havia uma questão religiosa que também causou problemas. A grande maioria dos co-lonos que entraram no período de 10 anos sob administração da empresa colonizadora (portanto, particular) era da religião evangélica (luterana),

9. O nacionalismo étnico é definido por critérios etno-linguísticos __ portanto, aproxima-se da perspectiva primordialista de pertencimento nacional. De acordo com Hobsbawm (1990: 131) “mais ou menos na sgunda metade do século XIX, o nacionalismo étnico recebeu reforços enormes; em termos práticos através da crescente e maciça migração geográfica [...]”. 10. Rossi, e outras lideranças italianas atuantes no sul do Brasil assumiram a “causa” dos colonos em nome do igualitarismo anarquista, diante das condições precárias de existência em algumas áreas coloniais que também foram a razão do fracasso da colônia Cecília. Sobre essa experiência colonial, ver o trabalho de N. Stadler de Souza (1970).

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situação que desagradava a igreja católica detentora de poderes temporais durante o império. A utopia, portanto, visava à formação de uma comuni-dade evangélica luterana num país católico onde esse tipo de imigração era visto com reservas, dado o caráter assimilacionista do nacionalismo, em-bora houvesse uma corrente de pensamento dentro do aparelho do estado, e mesmo na esfera política, mais interessada no povoamento do território com imigrantes europeus e, por isso mesmo, pedia o fim da vinculação da igreja católica com o estado. Enfim, particularmente em Blumenau (mas não só ali) a diferença passava também pela religião, o que não era o caso dos italianos e poloneses, as duas outras etnias majoritárias no sistema de colonização e, portanto, consideradas mais “assimiláveis”. Com a falência da empresa colonizadora, em parte motivada pela dificuldade de atrair imi-grantes alemães, o que demandava muitos recursos, o governo brasileiro assumiu a colônia, mantendo Hermann Blumenau como diretor, posição que manteve até 1883, quando foi criado o município11. Definido por Kiefer (1992) como “liderança carismática”, a figura do Dr. Blumenau dominou a cena colonial até seu retorno à Alemanha em 1884.O lado mais utópico e idealista da idéia de uma comunidade germânica atraiu para a região imigrantes diversos do perfil de colono, e também mui-tos viajantes, entre eles o suíço von Tschudi e o alemão Gustav Stutzer e sua mulher Therese __ que lá estiveram nos tempos do Dr. Blumenau. O casal Stutzer produziu relatos de viagem e obras de ficção referidas ao cotidiano da colônia, publicadas na Alemanha, recaindo a ênfase no “caráter germâ-nico” ali preservado. O casal viveu vários anos em Blumenau, participando das atividades culturais realizadas nas associações de canto e tiro e nos sa-lões da pequena burguesia local. É apenas um exemplo, pois, de fato, havia uma pequena camada de famílias mais abonadas localizada na Stadtplatz, bastante empenhada na preservação dos ideais da germanidade. Assim, a colônia adquiriu notoriedade dentro e fora do Brasil por duas razões: em primeiro lugar, pelo dístico referido às “características” e vida cotidiana, contido, inclusive, em publicações como as dos Stutzer __ “uma pequena Alemanha no seio do Brasil”; em segundo lugar, por causa do crescimento da economia local que, além da produção agrícola, possuía forte atividade

11. A partir de 1860, mesmo mantendo o Dr. Blumenau na direção, a colônia passou a receber imigrantes alemães católicos, também dirigidos a outro empreendimento colonial fundado pelo governo imperial no mesmo ano, situado no rio Itajaí-mirim. Mais tarde, em meados da década de 1870, começou um fluxo imigratório italiano e polonês para a região, dentro da nova política de favorecer “colônias mistas”.

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comercial, artesanal e industrial cujas estatísticas embasaram a propagan-da oficial do governo brasileiro __ exemplo de uma colônia bem sucedida. Antes de tornar-se uma cidade, Blumenau possuía uma economia conside-rada exemplar, respaldando os defensores do modelo de colonização com imigrantes europeus, e uma vida cultural e recreativa significativa, seja nas associações ou no universo doméstico inspirado no romantismo __ sociabi-lidade também reproduzida nas associações, principalmente de canto e de tiro, que surgiram nas linhas coloniais. Assim como em Joinville, também surgiram jornais em língua alemã, com circulação regional onde, além de notícias, publicavam-se textos ficcionais (contos, romances, poesia), em sua maioria destacando os temas da imigração, colonização e germanidade, esta última um assunto recorrente de artigos e editoriais.A comunidade tem uma definição bem precisa: é “alemã”, uma categoria com características distintivas cujo referencial é a Urheimat (ou pátria original) __ língua, costumes e uma intangível Volksseele (alma nacional). Esses são os principais indicadores das diferenças, acionados interna-mente para marcar a fronteira comunitária e aparecem, na forma escrita, desde o início da colonização do Vale do Itajaí. Nas representações mais comuns da etnicidade, a Volksseele (às vezes a palavra empregada é Volks-geist __ espírito nacional) aparece contida na idéia de germanidade (Deu-tschtum) e tem uma dimensão prática expressa nos próprios resultados da colonização. Aí, Blumenau é apresentada como um resultado tangível do “trabalho alemão”, espécie de crença na supremacia do espírito que, em alguns enunciados apela ao preconceito racial, conforme se verifica em algumas matérias de jornais12, mas os discursos e práticas das primei-ras gerações no Brasil ressaltam a relevância da língua materna e da vida associativa na caracterização da “comunidade alemã”. As pessoas mais próximas de Hermann Blumenau participaram ativamente da criação de diversas associações. Entre elas destacavam-se as Gesangvereine (socieda-des de canto) e as Schützenvereine (sociedades de atiradores), instituições relacionadas aos primórdios do movimento nacionalista alemão, no iní-cio do século XIX. As primeiras eram dedicadas às atividades musicais, teatro e, principalmente, ao Lied (canto) na forma apropriada do roman-

12. A “supremacia do espírito” vinculando o desenvolvimento e o progresso locais à herança étnica ou racial aparece, sob a chancela do Deutschtum, em numerosas matérias e editoriais dos dois principais jornais editados em Blumenau ao longo de várias décadas __ o Blumenauer Zeitung (fundado em 1881); e o Der Urwaldsbote (fundado em 1893) __ que encerraram as atividades durante a campanha de nacionalização do Estado Novo.

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tismo alemão. Eram atividades presentes na maioria das associações. Nas de atiradores sobressaíam os eventos esportivos, porém, em razão do pa-pel que tiveram, historicamente, na defesa das comunidades e na chama-da “guerra de liberação” (a luta contra o domínio napoleônico nos estados alemães) têm, até hoje, um forte componente simbólico na configuração da etnicidade. Exemplos mais carregados de simbolismo identitário, essas e outras associações foram numerosas em todas as regiões onde se esta-beleceram imigrantes alemães, inclusive em cidades como Porto Alegre, Curitiba, ou mesmo São Paulo e Rio de Janeiro. Verein (associação) e Ge-meinde (comuna) são duas instituições vinculadas nos discursos sobre a especificidade germânica daquele espaço colonial: a comunidade precisa-va das associações, pois elas eram, desde o início, o centro da vida social e cultural. Conforme assinalou Kormann (1994), a primeira sociedade de atiradores surgiu em 1859 e concentrava os eventos nascentes da comuni-dade; no ano seguinte foi criada a Sociedade Teatral __ isso num momento em que a colônia tinha aproximadamente mil habitantes.Um relato sobre a Sociedade de Atiradores de Brusque, a segunda colônia alemã fundada no Vale do Itajaí em 1860, escrito por Otto Gruber por oca-sião dos festejos do cinqüentenário da fundação, mostra bem o significado dessas instituições:

Em todas as regiões nas quais os alemães se estabeleceram em maior número, notamos também uma pronunciada vida social. É, muitas vezes, motivo de gracejo o fato de que onde três alemães se reúnem, imediatamente deve ser fundada uma sociedade. [...] Justamente es-sas sociedades alemãs no estrangeiro são os mais importantes fatores para o trato e conservação da língua e dos costumes alemães. Elas são, em certo sentido, documentos culturais vindas em primeira li-nha as Sociedades de Canto, Ginástica e de Caça e Tiro. Cada uma delas muito fez pela disseminação da cultura alemã, pois, por meio da atividade, canto, e pela palavra, conservaram no povo os costu-mes e os ideais, os quais nossos poetas e filósofos nos legaram [...]”13

13. Do folheto comemorativo do 50° Aniversário da Schützenverein, Brusque (1916), traduzido e republicado na revista Brusque, Ontem e Hoje (Gruber, 1985: 284).

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Trata-se da associação de tiro da colônia vizinha a Blumenau, onde estão presentes os mesmos princípios de pertencimento à etnia alemã: uma iden-tidade cultural está ali representada pela língua e habitus (nos termos da comunalização definida por Max Weber). Por outro lado, vários viajantes e historiadores locais assinalaram a intensidade das atividades culturais __ do mesmo tipo que existia nas associações - realizada em ambiente doméstico: os salões dos mais abonados eram abertos à música e ao teatro, uma forma de sociabilidade mais comum na Stadtplatz. Mas as associações estavam espalhadas pelas linhas coloniais e aquelas situadas no centro urbano eram freqüentadas também pelos colonos em geral __ isto é, os que realmente labutavam com suas famílias num lote colonial. As mulheres tiveram papel importante no âmbito das associações e, de um modo geral, nas atividades musicais e teatrais (RENAUX, 1995), um indicador da relevância atribuída à figura feminina na transmissão da língua “materna” e dos costumes. As associações e o lar, portanto, são os espaços, no campo e na cidade, onde os valores germânicos são atualizados: língua e costumes a serem preservados na colônia (ou comunidade) que viceja em solo brasileiro. É a paisagem, o território, que representa o outro lado do pertencimento que vem com a conversão do emigrante para imigrante, ou colono. Um imigrante que en-contra um lar num país estrangeiro, uma nova Heimat, portanto, mas que ali pode “permanecer alemão em língua, costumes e lealdade de espírito”, conforme discurso de Karl von Koseritz transcrito no Blumenau Zeitung (ano 6, n 47, 1886). Essa dualidade presente nos enunciados da identidade teuto-brasileira pode ser observada, igualmente, na literatura que destacou a beleza da floresta (e do país), a civilização e o progresso trazidos pelo imigrante, exaltando a vida cotidiana e o pertencimento à nova pátria e contribuindo para atualizar, em língua alemã, os símbolos da germanidade (SEYFERTH, 2004).Em resumo, no Vale do Itajaí estão presentes as mesmas características cul-turais que deram fundamento à distintividade contida na categoria mais geral de identificação, apelativa do pertencimento à etnia germânica e à nação brasileira em cujo território as “comunidades” ou “colônias” estão localizadas. A maior notoriedade de Blumenau deve-se tanto aos esforços do seu fundador para convencer seus compatriotas a emigrar para o sul do Brasil, quanto à presença marcante da igreja evangélica luterana, de pes-soas que ali passaram ou viveram temporariamente e depois escreveram sobre as “qualidades germânicas” da região, e ao número significativo de teuto-brasileiros que ingressaram na política catarinense e nacional. Além

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disso, havia os jornais locais e suas matérias sobre o Deutschtum que, em razão de interesses políticos conflitantes com as oligarquias catarinenses tradicionais, foram divulgadas por jornais de Itajaí e Florianópolis, crian-do-se uma polêmica de nível nacional sobre o “problema da assimilação”, especialmente no período que antecedeu a I Guerra Mundial. O artigo inti-tulado Das Deutschtum in Blumenau, publicado no jornal Der Urwaldsbote, é um bom exemplo do discurso germanista condenado nos meios políticos brasileiros como provas do “perigo alemão”14, pois elogia o Dr. Blumenau por ter criado no sul do Brasil:

[...] uma nova Alemanha, uma Alemanha onde não existem senti-mentos particularistas, uma Alemanha onde hoje suíços, holandeses, teuto-russos e até mesmo dinamarqueses se intitulam simplesmente alemães (Der Urwaldsbote, ano 8, n° 37, 1901).

A Blumenau alemã, com suas belas construções e magníficas igrejas alemãs, escolas alemãs, farmácias e jornais alemães, com seu comér-cio e indústrias alemãs __ essa obra alemã do Dr. Blumenau deve ser e permanecer alemã (Der Urwaldsbote, ano 8, n° 37, 1901).

O radicalismo étnico do jornal deve-se à influência do pan-germanismo, mas, por outro lado, aponta para as diferenças consideradas relevantes no confronto com a sociedade e cultura brasileiras. Aí está evidenciada, tam-bém, a mesma abrangência identitária presente nas duas epígrafes, aludidas à imigração. Enfrentar a travessia e compartilhar o mesmo processo his-tórico de colonização transforma os imigrantes em colonos no Brasil e, a partir daí, em alemães vivendo numa nova pátria.Esse tipo de conversão não é exclusivo da imigração alemã. A bibliografia sobre a imigração italiana e polonesa também aponta para essa forma de consciência étnica. Thales de Azevedo foi um dos primeiros estudiosos da imigração italiana a chamar a atenção para as dificuldades de aculturação

14. Duas questões foram amplamente discutidas na época __ início do século XX: a legitimidade do direito de voto a uma população vista como alienígena e que, em grande parte, não falava a língua nacional (Blumenau, nessa época, era o maior colégio eleitoral de Santa Catarina); e a noção de “perigo alemão”, associado ao imperialismo do II Reich e à doutrina expansionista da Liga Pan-germânica, expressava o temor da secessão do sul, na condição de colônia da Alemanha ou como país independente sob influência alemã.

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diante do sentimento comum da italianidade surgido no contexto colonial apesar da relevância das identidades regionais na Itália recentemente unifi-cada. Os primeiros imigrantes italianos chegaram ao sul do país na década de 1870, em grande parte identificados com sua região de origem __ eram trentinos, vênetos, etc., que se tornaram italianos no Brasil. Segundo Aze-vedo (1982: 244) a luta pela italianidade é um movimento de defesa e de conservação do complexo sócio-cultural e econômico-político da socieda-de “colonial” e a própria noção de identidade étnica ali construída serviu para preservar o “complexo colonial’ enquanto unidade estrutural. O autor assinala a importância da vida comunitária e associativa nas sedes coloniais e sua expressão mais localizada na “sociedade da Capela” sob liderança do padre __ fato indicativo da influência da igreja católica na formulação da italianidade. As representações da etnicidade, no caso dos italianos, tam-bém estão ancoradas nas diferenças culturais __ a língua, a religião católica, a vida associativa e os costumes preservados na nova pátria. Em suma:

[...] a italianità __ até onde um exame perfunctório da documentação, da história e da tradição permite concluir __ não parece uma ten-dência generalizada nem um movimento político organizado na sua formulação e promoção: tem antes, o caráter de defesa da herança cultural que se procura compatibilizar com a lealdade à pátria adoti-va [...] (AZEVEDO, 1982: 259).

A ênfase num ethos do trabalho que reforça a imagem de imigrantes e descendentes possuidores de um espírito empreendedor, e toda a tradição cultural acomodada nas regiões coloniais __ com ênfase maior nas práticas associativas, nos valores camponeses preservados também em áreas urba-nas, nos hábitos alimentares, na arquitetura, na identidade católica singu-lar, etc. __ estão presentes na numerosa bibliografia regional sobre as “colô-nias italianas” produzida nas três últimas décadas15 e, atualmente, servem como instrumento de atualização da identidade cultural italiana. Aliás, é importante assinalar que os festejos comemorativos do centenário da imi-gração italiana, em 1975, bem como as publicações daí resultantes, deram

15. A quantidade de obras que descrevem essas peculiaridades, no passado e no presente, é realmente muito grande; destacam-se os trabalhos de Battistel (1981), Battistel e Costa (1982) e Lazzarotto (1981).

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um reforço à identidade cultural16 num momento em que os processos de globalização tornaram interessante a obtenção da dupla nacionalidade.As comemorações do centenário da imigração alemã, em 1924 e, para San-ta Catarina, em 1929, também foram importantes na (re)construção da ca-tegoria teuto-brasileiro, principalmente porque os eventos ocorreram após o período crítico da 1ª Guerra Mundial. Antes da guerra, o episódio da saída de Lauro Muller (filho de imigrante e importante político ligado ao Vale do Itajaí) do Ministério das Relações Exteriores veio a reboque das denúncias sobre o “perigo alemão’ e, em 1917, quando o Brasil declarou es-tado de guerra contra a Alemanha, ocorreu, pela primeira vez, intervenção do Estado nos jornais e associações (que voltaram a funcionar na década de 1920) e depredação da propriedade de imigrantes em algumas cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre. Por isso mesmo, o Deutschtum, na sua formulação cultural e civilizatória, está presente nas duas publicações mais significativas: Hundert Jahre Deutschtum in Rio Grande do Sul (1924) e Entres (1929). Ambas ressaltam as duas dimensões do germanismo (ou Deutschtum): a pertinência à etnia alemã e a contribuição cultural e econô-mica dos imigrantes e descendentes à nova pátria. Por um lado, as maté-rias contidas nas duas publicações dão ênfase, em primeiro lugar, à história compartilhada da imigração e colonização, e seus resultados econômicos, sociais, culturais, além do destaque para a participação política, sinalizan-do a cidadania. Aí está embutida a idéia de uma nova pátria construída no território brasileiro. Por outro lado, são destacados os elementos culturais que fazem parte do universo comunitário: as associações, a “escola ale-mã”17, o uso do idioma alemão (apesar do reconhecimento da instrumenta-lidade do bilinguismo porque, para viver no Brasil, era necessário conhecer a língua portuguesa), o pioneirismo da fronteira agrícola, a sociabilidade como parte do “espírito germânico”, e a literatura, principalmente a poesia (SEYFERTH, 2004) à qual é dado um espaço significativo nos dois livros. Nesse período comemorativo, o próprio destaque à poesia, e a publicação

16. As visitas do Papa João Paulo II ao Brasil tiveram efeito semelhante entre os descendentes de poloneses (COSTA, 1995). A religião católica é o valor maior da identidade polonesa, mas também nesse grupo a idéia de comunidade étnica está fundamentada na noção de singularidade cultural (destacando-se a língua, as associações recreativas, tradições e costumes da pátria de origem), conforme Wachowicz (1981).17. Até 1937 funcionou uma ampla rede de escolas particulares, comunitárias ou não, com ensino em alemão. Alvo principal das medidas nacionalizadoras, eram consideradas importantes para a preservação da língua e cultura alemã.

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nos almanaques (Kalender), e nos dois livros citados, de alguns poemas nativistas de autores brasileiros traduzidos para o alemão, sinalizam para intenções integrativas e o duplo pertencimento da categoria de identidade. O pluralismo, agora, é amenizado e se reivindica o direito à diferença cul-tural participando da vida nacional. Objetivamente, é o que Willems (1940, 1980) chamou de “quebra do insulamento”, resultado do maior contato com os brasileiros, principalmente no após-guerra, quando cidades como Blu-menau tiveram um surto de desenvolvimento econômico e com isso atraí-ram mão de obra de outros lugares.A situação de contato, intensificada na década de 1920 e 1930, o proces-so aculturativo (WILLEMS, 1980), com as consequentes transformações sociais, assim como a exacerbação do nacionalismo com as exigências de abrasileiramento, provocaram reações nos meios teuto-brasileiros, que po-dem ser observadas em artigos como o de Widerspahn. Afinal, diante da influência e das atividades do partido nazista no Brasil, o “perigo alemão” voltou a fazer parte do discurso nacionalista. Em 1937, às vésperas do início da campanha de nacionalização, as lideranças teuto-brasileiras insistiram na identidade separada, numa reivindicação à dupla nacionalidade. Para os nacionalizadores, a categoria com hífen remete à etnia, um termo abo-minado pelo ideal assimilacionista que exige “abrasileiramento”. A diver-sidade cultural não é reconhecida a não ser como contribuição diluída na cultura nacional. Por isso, a imprensa teuto-brasileira dedicou tanto espaço à “defesa” do uso do idioma alemão nos espaços comunitários, e do sistema escolar com ensino em alemão ou bilíngue __ características intrínsecas à particularidade da imigração. Para o Estado Novo essa diversidade não era aceitável, como não era qualquer outra relacionada a grupos de imigrantes: em 1937, houve a nacionalização do ensino e, em 1939, foram proibidas as atividades das associações recreativas e culturais, o uso cotidiano das lín-guas estrangeiras, e a imprensa e outras publicações só podiam ser editadas em português e sem quaisquer referências de natureza étnica.A campanha de nacionalização, na sua forma mais repressiva, durou até 1946; nesse período Blumenau, por exemplo, foi ocupada por uma unida-de do exército que requisitou como quartel a sede da principal Sociedade de Atiradores, atuou junto à população através de programas de civismo e reprimiu o uso da língua alemã. A legislação assimilacionista permaneceu em vigor; a língua alemã ficou excluída do ensino formal até a década de 1980. As associações culturais como as Gesangvereine desapareceram; as Schützenvereine e similares, (Turnvereine, etc) passaram por uma reestrutu-

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ração __ as denominações vertidas para o português e as atividades culturais cerceadas. Seus efeitos são visíveis no volume comemorativo do centenário de fundação de Blumenau (ocorrido em 1950): publicação em português, ausência da palavra germanidade (Deutschtum), e inserção de artigos sobre assimilação escritos por pessoas que participaram das ações repressoras durante o Estado Novo, não obstante sua conversão ao discurso laudatório sobre o sucesso da colonização. De fato, o volume mantém-se fiel à idéia de progresso e civilização articulada ao processo imigratório e colonizador; e homenageia seus pioneiros alemães, principalmente, o Dr. Blumenau.Os desdobramentos posteriores relativos à etnicidade mostram que a ori-gem e cultura comuns e a experiência histórica da colonização são apro-priadas e reelaboradas simbolicamente para marcar uma identidade alemã __ fenômeno registrado também para outros grupos que participaram do mesmo processo de povoamento, conforme Battistel e Costa (1982) e Wa-chowicz (1981), apesar da assertiva de que cada caso é um caso.A ideia da comunidade que marcou as primeiras gerações em seu isola-mento relativo __ pois mesmo no passado pioneiro as fronteiras eram per-meáveis __ não existe no presente. Ou melhor, ela existe na norma simbólica para marcar o passado comum que distingue os descendentes de imigran-tes dos brasileiros, lembrando que a participação de nacionais no sistema de colonização foi muito restrita (inclusive na legislação). A língua alemã ainda faz parte do cotidiano de muitos descendentes, sobretudo entre os que professam a religião evangélica luterana; uma forma dialetal bastante influenciada pelo português, como já assinalou Willems (1940). Nem todos falam, mas é uma referência primária da etnicidade, da mesma forma que a cultura da colonização __ isto é, a história compartilhada presumindo um sistema cultural específico que passa pela valorização da categoria colono, tomada como sinônimo de pioneiro civilizador. Há também um movimen-to no sentido do aprendizado da língua alemã, possivelmente motivado pelo interesse de trabalhar na Europa. Mas também está em curso uma atualização da identidade cultural motivada não só pelas recentes comemo-rações do sesquicentenário da imigração em diversos lugares (inclusive em Blumenau), mas igualmente pelo que Weber (1991: 271) chamou de cren-ça numa “honra” específica __ “honra étnica”, representando as afinidades entre os membros de uma comunidade. Certamente é uma comunidade imaginada, da qual os estranhos, os outros, não participam. As grandes festas turísticas (caso da Oktoberfest), em parte, pretendem apresentar essa diferença, mas tem pouca importância interna. De fato, recriam-se as ativi-

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dades outrora realizadas nas associações como as Gesangvereine, multipli-cam-se os grupos ditos “folclóricos”, alguns obcecados com a autenticidade, realizam-se congressos sobre a cultura alemã, revitalizam-se as Schützenve-reine que só deixaram de funcionar durante a campanha de nacionalização. Enfim, são enunciadas as diferenças mais facilmente reconhecidas para fins identitários, num contexto mundial de valorização da pluralidade cultural. E há, ainda o discurso, nunca abandonado, da “origem comum” que, supos-tamente, une todos os “alemães”, e ao qual não faltam as metáforas raciais ou de sangue, e a presunção de superioridade que acarretam. O modelo de inserção dos imigrantes alemães no sul do Brasil, e a lon-ga história do processo imigratório iniciado em 1824, fundamentaram a idéia de uma cultura da colonização, que as lideranças comunitárias das primeiras gerações denominaram teuto-brasileira. Cultura híbrida, por certo, conforme constatação de Willems (1980: 415), diferente, mas inte-grando características das culturas alemã e brasileira. Ela é um reservatório de símbolos que embasam a identidade coletiva de “alemão” no Brasil, ou de teuto-brasileiro __ essa última atualmente mais usada por gente da classe média ou pessoas ligadas aos movimentos culturais. O sistema de repre-sentações, concernente ao cotidiano, ao local, supõe o “cultivo da tradição”. Falando sobre esse assunto, um participante de evento folclórico, realizado na Sociedade de Atiradores de Jaraguá do Sul (Santa Catarina) em 1992, sintetizou uma versão de senso comum sobre a teuto-brasilidade:

[...] quão prazeroso se torna cultivar nossas caras tradições! É nos-sa maneira peculiar de sermos brasileiros, verdadeiros, legítimos fi-lhos desta terra acolhedora! Apesar das mazelas que aconteceram, esta terra ainda é a mãe carinhosa que acolheu nossos avós. [...] Não neguemos à Pátria brasileira a riqueza da nossa diferença18.

Numerosos eventos semelhantes têm sido realizados desde então, mobi-lizando pessoas de diferentes lugares, com o mesmo interesse de atualizar uma identidade fundamentada num pertencimento étnico em permanente

18. Texto contido na palestra de abertura, de Sálvio A. Müller, reproduzida nos Anais do I Seminário Nacional sobre Folclore Alemão (Müller, 1994: 53). A palavra “mazelas” refere-se à conflituosa nacionalização forçada que interferiu na vida comunitária durante o Estado Novo (1937-1945).

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negociação com o pertencimento nacional desde os primórdios da coloni-zação alemã no Brasil.

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CAPÍTULO IIESTADO E POVOS INDÍGENAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: DA TUTELA À AÇÃO DO MOVIMENTO INDÍGENA

Antonio Carlos de Souza Lima1

Nos últimos 40 anos, diversas foram as mudanças nas relações entre o Esta-do Nacional brasileiro e os povos indígenas habitantes do território do país. De uma política desenvolvimentista marcada por um assimilacionismo desenfreado, chegamos até a demarcação na condição de terras indígenas de extensas partes do território brasileiro, a partir dos anos 1990. De «gru-pos» integralmente submetidos ao Estado brasileiro na condição de legal-mente tutelados – isto é, apenas parcialmente responsáveis por seus atos e necessitados, para efeitos da estrutura jurídico-administrativa brasileira, da mediação e da condução de um tutor, equiparados assim, em termos de direito civil, aos brasileiros não indígenas menores de 18 e maiores de 16 anos –, passaram por efeito da Constituição de 1988 a ser reconhecidos como capazes de se representarem juridicamente por meio de suas organi-zações e tiveram seu estatuto de povos reconhecido por força da ratificação pelo governo brasileiro da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Congresso Nacional em junho de 2002. De outro lado, vimos nos últimos tempos o anverso deste processo: da condição de um «problema fundiário indígena» aparentemente equacio-nado – embora essa afirmação só seja válida para a região amazônica – enfrenta-se, no momento atual, a fabricação pela midia impressa e televi-siva de um «debate nacional» (ao modo dos programas em que telespec-tadores votam contra ou a favor de um tema) em torno da tentativa de reversão dos processos de retirada de ocupantes não-indígenas como parte final do processo de regularização da posse de cinco povos indígenas sobre

1. Texto entregue para publicação em 15/09/2010.

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a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, no extremo norte do Brasil em região fronteiriça com a Guiana e a Venezuela2. Tal ten-tativa, largamente produzida pelas elites locais, de reverter a demarcação de uma área na região de fronteira alia segmentos militares (que alegam que áreas indígenas na região fronteiriça são ameaças à soberania do país), atores políticos de esquerda e de direita (imbuídos de perspectivas desen-volvimentistas as mais canhestras e próximas daquelas do regime ditatorial das décadas de 1960-1980), num cenário legislativo pouquíssimo propício ao debate da questão indígena. No cenário legislativo democrático atual são defendidos os mais variados argumentos contra os povos indígenas, somando-se a eles desde representantes do agronegócio e das empresas de mineração até o vice-presidente, ministros de Estado e outros funcionários de alto escalão do presente governo. Nessas quatro décadas cruzam-se, portanto, fios que podem nos conduzir ao entendimento da complexidade da questão indígena no Brasil contem-porâneo. O cenário é desanimador à primeira vista, se consideramos ape-nas o plano governamental, face a períodos como o da década de 1990 e o início dos anos 2000, em aparência tão promissores de mudanças e novas perspectivas. Recuperar um pouco da história das relações entre povos indígenas e Estado nacional brasileiro pode ajudar a perceber, ainda que superficialmente, o regime de preconceitos que torna possível ataques tão frontais, tais como os que têm sido desferidos no cenário presente, e as perguntas e perplexidades do grande público que demonstram a ampla ignorância do brasileiro médio, seja aquele das grandes cidades, seja o do interior, acerca dos modos de vida indígenas no país. De novidade a se destacar, ainda que sendo necessário, para melhor situá-lo, entender alguns de seus principais dilemas, registre-se o associativismo indígena, que não se iniciou com a Constituição de 1988, mas teve desde então um estímulo considerável. O movimento indígena e suas inúmeras formas de expressão institucional, sobretudo no modelo não-autóctone das chamadas organi-zações indígenas (O.I.s), têm feito a diferença essencial desde as décadas de 1970-1980. As O.I.s têm amplitudes de ação muito distintas – desde as

2. Para informações sobre a Terra indígena Raposa Serra do Sol e a disputa pela reversão de sua demarcação, ver as homepages do Conselho Indígena de Roraima: http://www.cir.org.br; do Instituto Socioambiental http://www.socioambiental.org/website/home_html; a da Associação Brasileira de Antropologia www.abant.org.br; bem como LAURIOLA, V.; CARNEIRO FILHO, A.; COSTA, J. e MALHEIROS, G.M. 2007 – “A invasão” Ciência Hoje, nº 244(41): 50-55 – ver em http://cienciahoje.

uol.com.br/107444.

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que representam aldeias ou de corte étnico (rerpesentando um povo) até as de âmbito regional, passando por grandes redes de organizações, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB – http://www.coiab.com.br/) ou a Articulação dos Povos Indígenas do Nor-deste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal e Região Centro-Oeste (ARPIPAN), ou a tentativa de reuni-las na Articula-ção dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Em padrões distintos de tentativas anteriores como a da criação da União das Nações Indígenas (UNI), criada em 1980 e que na prática se desarticularia no imediato pós-Constituinte3. DADOS GERAIS SOBRE A SITUAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Antes de realizar essa breve incursão histórica, é preciso fornecer ao lei-tor alguns elementos gerais que permitam melhor perceber a situação dos povos indígenas no país hoje. Em primeiro lugar, é importante dizer que o perfil da população indígena habitante do Brasil é, em termos demográfi-cos, totalmente diferente daquele das populações indígenas que habitam, por exemplo, a Bolívia, o Peru ou México. Segundo dados oficiais de 2000, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os povos indígenas totalizavam em torno 734.127 indivíduos, o equivalente a algo em torno de 0,4% da população total brasileira4. Essa minoria numérica encompassa, porém, uma riqueza ímpar no plane-ta. São em torno de 230 povos, falando 180 línguas – fora aqueles que falam apenas o português, tendo perdido suas línguas de origem em função da

3. Para uma análise importante produzida dentro do movimento indígena por um de seus principais pensadores e atores, com larga experiência em posições institucionais distintas em organizações indígenas e representando-o em instâncias participativas e postos burocráticos na administração pública brasileira, ver Baniwa (2006), trabalho que se encontra disponível também no portal http://

www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET12_Vias01WEB.pdf). Gersem José dos

Santos Luciano (Baniwa) é mestre e doutor em antropologia (UnB).Ver também Ortolan (1996; 2006) e Oliveira (2010). 4. Há grandes controvérsias quanto ao total de habitantes indígenas no país, o que sem dúvida se deve a diferentes critérios de identificação de quem seja indígena por essas instituições (Fundação Nacional do Índio, Fundação Nacional de Saúde, as ONGs Instituto Socioambiental e Conselho Indigenista Missionário), frente ao IBGE. É importante lembrar que todas as instituições citadas, trabalham com estimativas, e a única instituição oficialmente encarregada (e detentora do saber necessário a isso) de recensear o país é o IBGE, que apresenta assim dados de natureza diferente de todas as outras.

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violência assimilacionista do processo de colonização –, constituindo-se no maior leque da diversidade humana contido num país. Distribuem-se por entre 644 terras indígenas cujo direito lhes é reconhecido constitucional-mente, e que se situam em quase todos os estados da federação brasileira, numa área total de em torno de 110.440.173 hectares (1.104.402  km2)5. Na região da Amazônia Legal, segundo estimativas do Instituto Socioambien-tal em geral coincidentes com outras fontes, habitam 60 % dos indígenas no país e por volta de 15% estão vivendo em cidades. Nessa região do Brasil, também se concentra, em termos numéricos, a grande maioria das O.I.s6. As terras indígenas perfazem, todavia, em torno de 13% de todas as ter-ras brasileiras, sendo das mais ricas em recursos naturais (biodiversidade e recursos minerais), e das raras áreas preservadas num país cada vez mais devastado pelo extrativismo selvagem, pelas queimadas de florestas, pelo agronegócio, pela exploração mineral. Na prática, muitas delas estão inva-didas e os povos indígenas nelas encerrados não têm contado com políticas governamentais de suporte à sua exploração em moldes sustentáveis. As iniciativas indígenas mais inovadoras têm surgido exatamente das ne-cessidades e questões suscitadas, por um lado, pelo acesso ao direito às suas terras tradicionalmente ocupadas (realidade sobretudo amazônica) e, por outro lado, em função das demais soluções buscadas para poderem exer-cer outros direitos (à educação, à saúde, ao “desenvolvimento sustentável e diferenciado”, à propriedade intelectual sobre seus conhecimentos tradicio-nais etc) estabelecidos em lei. Em grande medida, o já mencionado asso-ciativismo que conduziu à proliferação de O.I.s tem essa origem. Tais ini-ciativas marcam-se pela busca de romper com a longa tradição assente em nosso mais antigo passado colonial, que coloca os povos indígenas como inferiores aos “civilizados”, infantis, inconstantes, incompletos, necessita-dos de mediadores não-indígenas que assumam por eles a responsabilidade dos seus atos, expropriando-os da autonomia de conduzirem seus próprios destinos. Resumindo o cenário atual, temos, então, povos territorializados, juridi-camente reconhecidos como detentores de um patrimônio sócio-cultural inestimável, de bens materiais sob a forma de terras e recursos naturais, de

5. Dados elaborados pelo Instituto Socioambiental disponíveis em http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis, consultado em 04/12/2009.6. Dados de 23/01/2011.

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conhecimentos sobre o meio-ambiente. Por seu turno, povos que, por força dos mesmos processos de territorialização que conduziram à essa condi-ção, vivem com freqüência em situação de extrema penúria, sem recursos para geração de renda suficiente que lhes dê condições de suportar o cres-cimento vegetativo que enfrentam. Em especial, os povos territorializados são apresentados como ameaça à soberania do Brasil, sobretudo na região amazônica, configurados como obstáculos ao “desenvolvimento” e à “na-cionalização” dessas partes do território juridicamente definido como do país e, embora buscando manter-se diferenciados, desejam melhoria de seu padrão de via e alcançar muitas das vantagens que o “mundo ocidental” te-ria a lhes oferecer . Para o senso comum, mesmo de intelectuais e políticos, ser indígena e buscar os instrumentos tecnológicos da contemporaneidade são incompatíveis: ou os indígenas permanecem como imagens de remo-tos momentos da colonização, modos de vida “intocados” pelo europeu, ou deixam de sê-lo, sendo reduzidos a um simples capítulo já passado da “mistura” singular brasileira. Apresentadas desta maneira, essas imagens são excludentes.Na visão do senso comum, pergunta-se para que então reconhecer-lhes, além da letra da lei, direitos a bens que deveriam ser brasileiros para miti-gar problemas brasileiros, para promover o desenvolvimento que minore a desigualdade brasileira e redima o Brasil de qualquer traço periférico no cenário mundial. Desse nós-brasileiros os indígenas estariam excluídos, quer por corresponderem à imagem dos índios dos “primórdios”, veicu-lada pelos cronistas e viajantes – os que vivem nus, com penas, crianças, ingênuos e brincalhões, eternamente dançando, canibais, sem fé, nem lei, nem rei, etc. –, quer por serem tão “misturados” (o que pode significar terem acesso a direitos e serem seus usuários como “cidadãos”) que não mais possam, na visão dominante, ser considerados “verdadeiramente” indígenas. Afinal, índio de acordo com essa estereotipia deve ser sempre “primitivo”, no sentido de “simples”, “precário”, “grosseiro”, especialmente em matéria tecnológica. Mas tudo que a investigação científica contem-porânea tem mostrado é a alta sofisticação e adequação desses povos e de seus modos de vida aos ambientes da frágil floresta equatorial e tropical, ou do cerrado e da caatinga, e o quanto antes do chegada do colonizador esses modos de vida eram mais ricos e complexos. Será necessário uma mudança bastante profunda nas bases da educação nacional para que se possa ver os povos indígenas como vigorosos, capazes de se reelaborarem e se manterem diferenciados, interagindo com as invenções tecnológicas

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do mundo contemporâneo, mas lutando contra a sempre crescente maré da homogeneização em escala planetária. Dentre outras frentes de luta, os povos indígenas no Brasil contempo-râneo buscam instrumentos próprios, rompendo com essa estereotipia, para poderem trafegar em meio ao emaranhado político-administrativo brasileiro, sem pretensos guias. Se aparentemente enfrentamos um retro-cesso no tocante aos direitos territoriais, o outro lado da situação presente é que os indígenas lutam por obter capacidades de outra natureza, a que possam recorrer para além de seus conhecimentos próprios no enfren-tamento de realidades geradas por um outro patamar de interdependên-cia. A busca por outros conhecimentos, que lhes facultem ultrapassar a situação de subordinação face a outra leva de “tutores” (mediadores que se colocam em situação de superioridade em função do domínio de có-digos próprios da administração pública brasileira, sejam eles agentes governamentais ou não-governamentais), está entre as principais metas das O.I.s., e nesse sentido, a formação de quadros, quer ao nível de cursos de capacitação, quer no plano da formação universitária assume uma di-mensão de grande importância. É interessante, porém, ver como se chegou à necessidade mais claramente sentida por alguns povos do que outros, de superação relativa do padrão tutelar de mediação delineado acima, em linhas muito gerais. É importan-te, porém, voltar ao início do século XX para melhor entendermos como se configuraram as relações entre o Estado e os povos indígenas e, assim, perceber, ainda que superficialmente, sua profundidade histórica.

A PROTEÇÃO FRATERNAL RONDONIANA E A TUTELA DO ESTADO AOS INDÍGENAS

Em 1889, o Brasil republicano emergiu de um recente passado colonial, trazendo consigo os legados institucionais e simbólicos da monarquia, da escravidão, e da fusão entre a Igreja e o Estado. Em que pese o afã moder-nizador do Segundo Império brasileiro, as elites mestiças governantes da República tinham grandes desafios a enfrentar: um enorme e heteróclito território, mitificado desde a chegada dos colonizadores portugueses como a sede de inúmeros eldorados e quimeras, dotado de um vasto litoral; um contingente humano composto por populações múltiplas - imigrantes vin-dos da Europa do Norte, negros de origem africana, negros crioulos, as

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populações indígenas dessa porção das Américas e uma massa de mestiços que consistiria nos quadros da burocracia de um Estado nacional em ex-pansão. Em suma, o mapa de um país, entidade jurídica, em que a palavra “desconhecido”, tarjada sobre grandes extensões, era dos mais freqüentes termos. Como, de tal caleidoscópio, forjar um povo, que se sentisse per-tencente à uma pátria brasileira? Como fazer este povo brasileiro ocupar, em nome de uma soberania nacional, e tornar-se guardião de tão vastos espaços, seguindo o dístico da bandeira republicana, ordem e progresso? Seria possível conceber que de tal emaranhado saísse uma civilização? Seria possível conservar íntegro um território apenas juridicamente brasileiro, mas em realidade incógnito, agora que o emblema imperial esvanecera-se enquanto signo de uma forma de totalização, evitando-se o fantasma da fragmentação das colônias espanholas na América, fantasma permanente dos militares brasileiros curiosamente ainda hoje? Como defender esta vas-tidão da entrada de estrangeiros? Que métodos utilizar para tanto? Como fixar as “fronteiras da nação”? Foi sob tal quadro de representações que se constituiu o primeiro serviço de Estado sob o regime republicano voltado aos povos indígenas, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, criado em 1910, e que passaria a apenas Serviço de Proteção aos Índios já em 19187. O SPI surgiu como resposta aos inúmeros conflitos resultantes de mais uma vaga de ocupação e exploração territorial em diversos pontos do país, den-tro dos quadros de um Estado em expansão e de atividades econômicas que penetravam em regiões ocupadas por povos indígenas em estado de guerra contra seus invasores. Resultou, em larga medida, do acúmulo simbólico e político estabelecido com a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915), comandada pelo, então, Tenente Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, que se tornou o emblema das políticas de Estado pró-índio no Brasil. Saudada como iniciativa estatal que pela primeira vez penetrava as regiões desconhecidas do país ocupadas por povos indígenas sem o uso da violência aberta, era composta por enge-nheiros-militares, inspirados pelos preceitos da Religião da Humanidade desenvolvida pelo filósofo francês Auguste Comte, e por praças muitas ve-zes enviados para os sertões à guisa de punição, a assim chamada Comissão

7. A tarefa de colonização dirigida com base em trabalhadores nacionais foi deslocada para o chamado Serviço de Povoamento do Solo no ano de 1918. Para uma visão do Serviço de Proteção aos Índios e do que chamei de poder tutelar, ver SOUZA LIMA (1995).

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Rondon foi a viabilizadora não apenas das linhas telegráficas, mas também de inúmeras expedições de cientistas naturais. As técnicas jesuíticas de pe-netrar os sertões distribuindo presentes (brindes), vestindo os indígenas, tocando música (na ação rondoniana era o hino nacional e não cânticos religiosos), Rondon as aprendera com seu primeiro comandante Major Antonio Ernesto Gomes Carneiro, em outra comissão telegráfica, na qual era um oficial subordinado. Sob a ação dos governos republicanos, não se esperava conquistar mais catecúmenos ou súditos através da conquista das “almas indígenas”: o que se queria formar era cidadãos brasileiros, de se-gunda categoria até estarem prontos para serem emancipados, parte de um povo que se pudesse exibir ao mundo ocidental como civilizado e ocupante da vastidão territorial encompassada na cartografia do Brasil. A Comissão Rondon seria, desde então, sempre representada como uma espécie de “la-boratório” de nossa política indigenista, onde os “leigos” militares demons-trariam não apenas sua capacidade de suportar as agruras dos sertões, mas também a abnegação, a brandura e a bondade do missionário. Pretendendo primar por métodos científicos e contribuir para a expansão de uma ciência nacional sobre o Brasil, a Comissão Rondon acabou por se constituir numa das principais fontes de peças etnográficas e espécimes naturais para os museus brasileiros. Estava aí entrelaçada a nascente an-tropologia feita no Brasil. Muitos desses objetos serviriam às permutas com numerosas instituições congêneres pelo mundo, integrando um cir-cuito de trocas singular: um dos modos privilegiados de fazer circular as imagens do exótico, do diferente e do inferior, tão caras à grande tradição filosófica ocidental. Simultaneamente agindo também como um dispositivo midiático, a Co-missão Rondon deu ensejo à produção de abundante material fotográfico, posteriormente filmográfico, exibido muitas vezes nas inúmeras conferên-cias realizadas nas grandes cidades brasileiras. Desses registros assomavam as imagens do futuro da nação: do índio feroz, inimigo, canibal e assassino assomava o aliado, protótipo do brasileiro sertanejo, do mestiço caboclo. Era também índice reportável a um estoque de representações de matiz colonial, imagem retomada pela literatura do Brasil da primeira metade do XIX pós-independência na figura do índio herói romântico, princípio nati-vista dessa nova pátria que se pretendia criar, a passagem do hostil, arredio e errante, preguiçoso e inútil para o manso, agremiado e sedentarizado, tra-balhador e guarda dos sertões seria possível através dos métodos que esses missionários do Estado nacional puseram em ação. Era necessário atrair

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com presentes em abundância, gerando dívidas e uma suposta imagem de esplendor e riqueza; pacificar, demonstrando capacidade técnica de resistir aos embates guerreiros, mostrando-se tecnologicamente superior, dando tiros para o alto, como a dizer “mata-lo-emos se o quisermos, mas deseja-mo-los vivos, porque somos benévolos, porque nos propomos irmãos”. Isso acontecia desde os primeiros contatos, pois, lançavam-se as bases de uma dependência, clientelística e inferiorizante, dos povos indígenas para com os agentes do Estado.Tendo os “selvícolas” sido incluídos entre os “relativamente incapazes”, jun-to a maiores de dezesseis/menores de vinte um anos, mulheres casadas e pródigos, através do artigo 6º do Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917, os correligionáios de Rondon formularam e encaminharam o tex-to aprovado como lei nº 5.484, em 27 de junho de 1928, que atribuiu ao SPI a tarefa de executar a tutela de Estado sobre o status jurídico genérico de índio, sem deixar claros os critérios que os norteavam na atribuição da categoria “índio” sobre a qual pretendiam incidir. Assim, foi que o SPI pen-sava que era desnecessário instalar-se no Nordeste do Brasil, ou mesmo no Sul, já que na primeira região avassalada pela presença portuguesa na invasão do território americano, já só havia “caboclos”; e no Sul, em breve, os índios deixariam de sê-lo, tornando-se trabalhadores nacionais. Inau-gurou-se então o regime tutelar sobre os povos indígenas, marcado pelas mesmas ideias assimilacionistas de nosso arquivo colonial, em que os indí-genas são categoria transitória, pois, uma vez expostos à “civilização”, a ela adeririam por puro efeito mimético e pelas vantagens evidentes que havia em ser “civilizado”. Por isso, a idéia era reconhecer-lhes pequenas faixas como reservas de terras – as áreas do Mato Grosso do Sul demarcadas pelo SPI são exclente exemplo disso –, o básico para se sustentassem, não de acordo com seus reais modos de vida, mas sim com aquilo que se pretendia que fossem no futuro – pequenos produtores rurais ocupando o território brasileiro, isto é trabalhadores nacionais. O exercício infantilizante e cerceador da tutela destituindo, no plano da lei e muitas vezes da prática, os indígenas de uma cidadania completa, pensan-do-os como um coletivo transitório (os índios, e não os Xavante, os Ticuna etc), ignorante dos modos de vida do Brasil, monopolizando as relações entre povos indígenas e quaisquer outros setores dos poderes públicos e da sociedade, impôs aos seus executores, todavia, o conhecimento da diversi-dade de situações históricas vividas pelos indígenas no país, reconhecen-do-as como parte de um mosaico social que não caminha inexoravelmente

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para a assimilação plena na sociedade brasileira. Ainda que deixem de ser os indígenas do nosso arquivo colonial, continuam a sê-lo de outros mo-dos: os seus próprios. Esse foi o ponto de partida para uma visão nova, mais generosa, e menos colonialista da questão indígena no Brasil.

DA TUTELA DE ESTADO À SUA SUPERAÇÃO NOS TEXTOS LEGAIS

Ao longo da década de 1950, a experiência pretérita da ação indigenista do SPI rondoniano somou-se à visão de jovens profissionais envolvidos com as questões de sua disciplina, a antropologia social e cultural. Há ainda de considerar que o mundo do pós-guerra, com a consciência das doutrinas racialistas sob a forma do Holocausto, a crítica dos nacionalismos e dos colonialismos que transpassados do século XIX, marcaram o século XX, re-velando-se nas descolonizações, nas ex-capitais de impérios europeus que tornariam-se, pouco a pouco, as grandes cidades multiculturais européias e norte-americanas. Os jovens antropólogos Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de Oliveira, etnólogos do SPI, viram surgir a Declaração Universal de Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, dos quais também redundaria a Convenção nº 107, de 26 de junho de 1957, da Orga-nização Internacional para o Trabalho (OIT), sobre a “Proteção de Popula-ções Indígenas e Tribais”, de cujo processo de discussão participou o SPI8. O Brasil a ratificaria só nove anos após, pelo Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966. Igual demora aconteceria, veremos, com a Convenção 169, que substituiu a de número 107. Durante os anos do governo “democrático” do (ex)ditador brasileiro Getúlio Vargas (1950-1954), Ribeiro, sobretudo, além de Galvão e Cardoso, junto com outros antropólogos, técnicos do SPI, como José Maria da Gama Malcher, ou médicos, como Noel Nutels, elabo-raram uma nova visão, uma utopia, em que os povos indígenas poderiam ser o signo de sua própria diferença, num país que historicamente primou por construir sua imagem de unidade homogênea9.

8. Sobre a OIT e as regulações internacionais para os povos indígenas ver Rodríguez-Piñero (2005). 9. Getúlio Vargas governou o Brasil após a chamada Revolução de 1930 num período de Governo Provisório, de 1930 a 1934, depois constitucionalmente de 1934 a 1937 e, após um golpe de Estado em 1937, deste ano até 1945, no período que ficou conhecido na história brasileira como o Estado Novo. Em 1950 Vargas foi eleito para um período de mandato constitucional, que se encerrou em 1954 com seu suicídio. Ver Fausto & Brakel (1999). Em 1950, foi eleito para um período de mandato constitucional, que se encerrou com seu suicídio em 1954.

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Nesse momento, surgiu a idéia de que as terras ocupadas pelos indígenas deveriam lhes assegurar uma transformação social auto-gerida e paulatina, em harmonia com o seu modo de relacionamento com a natureza e na dire-ção que julgassem oportuna. Disso surgiu a proposição e posterior criação de três parques indígenas, dos quais o mais conhecido nacional e interna-cionalmente é o do Xingu (hoje chamado Terra Indígena), criado adminis-trativamente em 196110. Extensões de terras das proporções das do Parque do Xingu suscitaram inúmeras oposições, sobretudo dos que se articula-vam com a “indústria” de grilagem de terras na região do Centro-Oeste brasileiro. Por um lado, com a criação do Parque do Xingu montava-se o que durante muito tempo foi conhecido como a “vitrine” do indigenismo brasileiro, esse “mundo prístino” e “intocado pelo branco”, como foi sempre apresentado, onde os índios poderiam existir segundo um modo de vida que já não lhes era mais possível nas regiões de colonização mais antiga, correspondendo à imagem do índio primitivo, o verdadeiro índio, calcada na imaginação romântica. Por outro lado, nesse mesmo período os povos indígenas do Nordeste luta-vam arduamente para se verem reconhecidos enquanto indígenas, já que, no pêndulo das imagens dominantes no Brasil e no exterior do que sejam as populações indígenas das chamadas “Lowlands South America”, eles só poderiam ser os remanescentes dos verdadeiros índios, sem domínio de seus idiomas próprios, com a exceção dos Fulniô. Acantonados em porções reduzidas de terras, em geral em regiões que ao longo dos séculos nunca deixaram de ocupar, com sua cultura material bastante reduzida naquele momento, os índigenas do Nordeste eram, todavia, objeto de grande discri-minação e submetidos à intensa exploração de sua mão de obra. Suas lide-ranças reivindicavam já desde a década de 1920 à administração tutelar do SPI o reconhecimento de sua condição de indígenas e de seu direito às suas terras, em movimento próprio e independente do Estado ou de qualquer mediador não-indígena11. Esses líderes de comunidades empreenderam verdadeiras peregrinações na busca de reconhecimento de sua condição de indígenas, realizando viagens aos centros administrativos de suas regiões ou mesmo ao Rio de Janeiro, à época a capital federal do Brasil. Reivindicar a tutela foi, desta maneira, uma das vias pelas quais os povos indígenas, no médio prazo, acabram por ultrapassá-la, garantindo-se o status jurídico que

10. Para a constituição do Parque Indígena do Xingu, ver Menezes (1999).11. Ver Pacheco de Oliveira (2004), op. cit.

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lhes era negado. Marcaram, assim, uma posição essencial nas lutas futuras pelo direito à terra, à assistência diferenciada em saúde e em educação. As ideias que embasaram a demarcação xinguana, assim, não organizaram o conjunto da prática administrativa indigenista naquele momento: o SPI do final da década de 1950 tornou-se espaço de barganhas políticas, sua presidência sendo alocada de acordo com a troca de apoio político por no-meação de cargos tão comum na vida republicana brasileira, numa forma de clientelismo muito própria ao país. O resultado foi uma escalada de cor-rupção e desmandos, com a participação de indigenistas até mesmo em massacres de indígenas. Em especial, a demarcação do Parque do Xingu não contou com a agência dos povos indígenas, tendo sido fruto de um movimento tipicamente tutelar, ainda que embasado nas discussões que ressoavam deste os trâmites para a elaboração da Convenção 107.O SPI foi extinto em 1967, após os trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, sendo sucedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo o artigo 1º. da Lei nº. 5.371, de 5 de dezembro de 1967, a Funai foi instituída com o objetivo de exercer o monopólio tutelar, provendo os indí-genas de todas a ação de Estado necessárias, consoante as ideias de proteção tutelar às comunidades indígenas, inclusive às suas terras e ao seus ritmos culturais específicos, representando-as juridicamente. Mas em pouco tem-po a Funai viu-se engajada, sob a ditadura militar pós AI-5, na cruenta expansão sobre a Amazônia e nos planos desenvolvimentistas de integra-ção nacional, cujos impactos sobre os povos indígenas foram internacio-nalmente denunciados ao longo das décadas de 1970 e 1980, somando-se a tantas outras iniquidades perpetradas em nome do futuro do Brasil12. Todavia, no meio dessa conjuntura altamente adversa, um pouco para dar satisfação aos credores internacionais do “desenvolvimento brasilei-ro”, eles próprios constrangidos pelas organizações que lutavam pelos di-reitos indígenas, o regime militar brasileiro aprovou o Estatuto do Índio, Lei 6001/1973, de teor assimilacionista e tutelar, mas que, mesmo assim, lançou as bases que permitiram a luta pelo direito às terras que ocupavam os povos indígenas, em meio à desenfreada corrida às terras amazônicas.

12. A ditadura militar no Brasil dos anos 1960 se estabeleceu com o golpe de 1964 durando, formalmente até a eleição, por um Colégio Eleitoral, do político civil Tancredo Neves para Presidente em 15 de janeiro de 1985 A ditadura militar acirrou-se com o Ato Institucional de 13 de dezembro de 1968. Ver Fausto & Brakel (1999).

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Note-se, mais uma vez, o foco exacerbado nos povos vivendo na Amazônia e o crescente abandono de outros povos em outras regiões do país13.As pressões internacionais à época estavam balizadas pelas idéias de anistia e direitos humanos. A ação de movimentos internacionais de defesa dos direitos humanos e do meio-ambiente sobre o establishment desenvolvi-mentista, notadamente sobre o Banco Mundial, repercutiu nos dispositivos financiadores da expansão governamental rumo à Amazônia, ameaçando cortar os recursos financeiros ao regime militar. Moldou-se aí um padrão de interação conflitiva entre Estado brasileiro, movimentos internacionais e agências multilaterais de financiamento, que marcaria a década posterior. A FUNAI, controlada pelas agências de segurança nacional, e tendo à sua frente presidentes militares, abriria, em certos momentos, campo à partici-pação de outro conjunto de atores presentes ainda hoje à cena indigenista: os antropólogos formados em um novo modelo de formação acadêmica, criada na década de 1960. Muitos desses novos antropólogos vieram a criar e se instalar em ONGs destinadas ao exercício de formas de ação embasadas por supostos da an-tropologia social, muitos mantendo seu vínculo com as universidades, tan-to por receberem salários quanto por recrutarem pessoal formado pelas mesmas para os projetos de pesquisa e intervenção social que mantiveram no que hoje se chama de “Terceiro Setor”. As associações civis de defesa aos índios e outras ONGs surgidas em torno de 1978/1980 tinham perfis e to-maram rumos muito distintos. Na década de 1990, muitas dessas organiza-ções tornaram-se executoras de políticas fundamentais no âmbito regional e local, consoante as simultâneas pautas de democratização da sociedade e de implantação de políticas neoliberais.No âmbito latino-americano, a anteceder este momento, as críticas dos efeitos etnocidas das políticas desenvolvimentistas tiveram dois momentos de grande destaque e visibilidade mundial, com a autocrítica de Igrejas e de intelectuais. O primeiro se deu na Reunião de Barbados, organizada em 1971. O segundo momento foi aquele da “Reunião de Peritos sobre Etno-desenvolvimento e Etnocídio na América Latina”, promovida pela articula-ção entre United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) e pela Faculdad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLAC-

13. Para uma análise importante das razões do surgimento do Estatuto do Índio no Brasil, ver Pacheco de Oliveira (1985).

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SO) em dezembro de 1981, em San José de Costa Rica. Tais reuniões foram eventos especiais na formulação de críticas ao establishment desenvolvi-mentista em escala global e nacional e de propostas para um “desenvolvi-mento alternativo”, marcado pelos projetos de futuro próprios aos povos in-dígenas – o etnodesenvolvimento, proposta da qual o antropólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen foi um dos principais formuladores14. Por outro lado, constituiu-se um aparelho eclesiástico – o Conselho Indige-nista Missionário (CIMI) – em 1972. O CIMI dedicou-se a atuar em áreas indígenas consoante as propostas do Concílio Vaticano II e seus corolários latino-americanos (com desenvolvimentos missiológicos stricto sensu bra-sileiros), promovendo assembléias indígenas, dando campo a um tipo de associativismo pan-indígena que seria enfatizado, no plano retórico, como via privilegiada para a autodeterminação indígena. Esboça-se, assim, aquele que é o elemento a questionar mais fortemente as tradições de conheci-mento de nosso arquivo colonial: se povos indígenas isolados reivindica-ram sempre medidas do Estado e denunciaram iniqüidades, a partir desse momento delineia-se no Brasil uma articulação entre povos distintos, e configura-se um movimento indígena, onde o porta-voz branco, tutor seja oficial ou não, deve ser ultrapassado, e dê curso à polifonia indígena em nosso país. Num primeiro momento, em especial na década de 1970, foram sem dúvida indivíduos indígenas específicos que, tendo obtido suporte seja de organizações não-governamentais de apoio às lutas indígenas, seja de segmentos anti-hegemônicos da própria FUNAI, seja da Igreja através do CIMI, se projetaram no cenário nacional e internacional, articulando-se na primeira tentativa de um projeto pan-indígena com a criação da já men-cionada UNI, cuja importância na movimentação pró-índio no processo constituinte ainda precisa ser melhor sopesada.Estavam aí lançadas as bases da coalização de forças reunidas, na Assem-bléia Nacional Constituinte, num lobby “pró-índio”, com intensa participa-ção indígena, vencedor de batalhas expressivas sob a forma final do texto constitucional de 198815. Em seu Capítulo VIII, intitulado “Dos Índios”, a Constituição Brasileira de 1988, estabelece que:

14. Sobre alguns aspectos importantes das movimentações no plano mundial em defesa dos direitos indígenas, ver Barroso-Hoffmann (2008).15. Para o texto da Constituição da República Federativa do Brasil, ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm.

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Artigo 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, cos-tumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá--las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.(...)Artigo 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e inte-resses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (Constituição Brasileira, 1988).

O texto constitucional reconhece-lhes, ainda, pelo artigo 210 o direito a uma educação diferenciada. A Constituição de 1988, todavia, não dá bali-zas a uma definição clara daqueles que devem ser considerados indígenas pela administração governamental para fins de reconhecimento de direitos, este sendo um dos grandes problemas das relações entre povos indígenas e Estados Nacionais. O novo Código Civil brasileiro (Lei 10.406, de 2001, sancionado em 10/01/2002 e em vigor desde 2003) extirpou a questão da capacidade civil relativa e, após anos de tramitação, o Congresso Nacional brasileiro ratificou, pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20/06/2002, a “Con-venção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”, também chamada Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em vi-gor no plano jurídico internacional desde 1991. Apesar das inúmeras críti-cas sofridas em diversas instâncias, a Convenção 169 aporta vários avanços às lutas indígenas no caso brasileiro, sobretudo o direito das coletividades indígenas a se autodefinirem enquanto tais. No caso brasileiro ainda há muito por ser feito, mas a possibilidade de definir-se como indígena, me-diada pelo pertencimento à uma coletividade e a possibilidade de acionar o judiciário é em si algo quase revolucionário em matéria de auto-determi-nação, com repercussões importantes no que tange à educação indígena. É importante destacar, o quanto a aprovação do texto constitucional deve também à alta visibilidade conferida à sua luta pelo movimento indígena no momento do processo constituinte. Porém, como se viu ao longo do ano de 2008, tais vitórias foram precárias, pois muitos dos direitos indígenas ainda estão por serem regulamentados, afinal o novo “Estatuto do Índio” encontra-se paralisado no Congresso Na-cional. O Legislativo brasileiro tem se mostrado nas últimas legislaturas em tudo adverso aos indígenas, seja por extrema ignorância da maioria dos parlamentares, seja pela ação intensa de representantes anti-indígenas de

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estados das regiões Norte, Centro-oeste e Sul do país, onde os interesses do agronegócio desejam avidamente as terras indígenas, buscando intro-duzir alterações para descaracterizar diversos dispositivos constitucionais. Essa precariedade é sempre mais presente quando lidamos com a dimensão dos recursos minerais, energéticos ou florestais, genéticos ou culturais dos povos indígenas. Os interesses de exploração mineral são particularmente ativos e articulados, fazendo-se presentes em fóruns variados, muitas vezes sob a roupagem das boas intenções de que todo o discurso desenvolvimen-tista vem revestido. No início de 2008, apresentaram-se sinais evidentes de se fazer tramitar o projeto de Lei nº 1610/96, que pretende regulamentar a exploração mineral em áreas indígenas: reduzir as terras indígenas, re-vertendo demarcações, tal como a da Terra indígena Raposa Serra do Sol, tem agora implicações muito mais amplas. Significa, dentre outras coisas, a tentativa de liberar terras à prospecção de minérios sem que os indígenas tenham qualquer interveniência sobre as mesmas. Áreas como a Terra indí-gena Yanomami estão diretamente na área de interesse dos grupos ligados à extração mineral.

O ASSOCIATIVISMO INDÍGENA E SUAS FORMAS NO CENÁRIO PÓS-CONSTITUINTE

O mais importante, porém, está no que o texto constitucional vem signi-ficar para o reconhecimento dos direitos dos indígenas e como horizonte de construção de outras práticas administrativas, e conseqüentemente, no respeito a esses povos, na construção de espaços políticos à sua necessária participação. Esses elementos foram essenciais à quebra da visão unitarista que defendia a necessidade da tutela, supondo-a como essencialmente pro-tetora, propondo novos horizontes a pedaços ponderáveis do que chamei de arquivo colonial. Como a Constituição estabeleceu o Ministério Público Federal como instância de defesa dos povos indígenas contra o Estado, a efetiva atribuição de capacidade processual civil pelo texto constitucional de 1988 às comunidades indígenas e suas “organizações” (no que para mui-tos foi o “fim” da tutela) significou a proliferação, desde então, sobretudo na Amazônia, de organizações locais - associações, federações etc. -, e supra--locais, congregando um grupo indígena específico ou articulando diversos grupos de uma mesma região com funções de representação política e ju-rídica. Muitas dessas associações têm hoje vínculos e projeção internacio-nais, integrando um panorama heterogêneo e mal-conhecido.

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A já mencionada COIAB, o Conselho Indígena de Roraima (CIR – http://www.cir.org.br/), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e a APOINME (http://www.apoinme.org.br/) são quatro redes de organizações de âmbitos regionais muito distinto. Todas são frutos de mo-delos e parâmetros não-indígenas de organização e associação e, na prática, diferem profundamente das formas políticas localmente implementadas próprias a cada povo. No entanto, essas organizações têm funções e for-mas de ação muito diferentes dos modelos verticalizados e “sindicalistas” de associativismo que o senso comum brasileiro tem em mente, e que têm percorrido o árduo caminho de construir novas possibilidades de interlo-cução. A elas junta-se a participação indígena em legislativos (municipais, sobretudo) ao longo do país, e também nos executivos municipais: os pre-feitos indígenas já são hoje uma realidade bem mais freqüente que no final dos anos 1990.Assim, a quebra do monopólio da ação tutelar do Estado sobre os povos indígenas, até o início dos anos 1990 exercido pela FUNAI, se deu em grande medida pela organização dos povos indígenas, o principal motor das transformações que vêm efetivamente ganhando solidez e esperança de mudanças substanciais. Mas houve também um conjunto de alterações na administração pública que devem ser consideradas. Com os Decretos presidenciais de nº 23, 24, 25 e 26, de 4/02/91 (portanto, da presidência de Fernando Collor de Mello), as tarefas relativas à saúde, educação, desen-volvimento rural e meio ambiente, exercidas com enorme precariedade - salvo exceções pontuais – pela FUNAI, foram atribuídas aos Ministérios da Saúde (MS), da Educação (MEC), do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Meio Ambiente (MMA). Em especial as consequências da Conferência das Nações Unidas para o Meio-Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD-92), realizada no Rio de Janeiro, conjuntura na qual o movimento indígena teve intensa atuação e, então, foram negociados grandes projetos, tal como o Projeto Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7 – http://www.mma.gov.br/ppg7/), ou foram lançadas as bases de discussão de seu sub-componente indígena, o Projeto Integrado de Proteção às Popu-lações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL)16.

16. Sobre o surgimento do PPTAL, ver Valente (2007) (disponível em http://www.ppgasmuseu.etc.br/museu/pages/doutorado_teses.html).

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É verdade que tais políticas, alicerçadas na presença da cooperação técnica internacional para o desenvolvimento (em especial a alemã) no aparelho de Estado brasileiro e entre as próprias organizações indígenas, restringiram-se, sobretudo, à Amazônia e atenderam à ambientalização dos conflitos e políticas sociais. Isso significou um abandono relativo de áreas de grandes conflitos e enorme pressão fundiária, tal como o estado do Mato Grosso do Sul e a região Nordeste. Mas as alterações trazidas pela implementação dessas novas políticas acabaram por gerar, juntamente com as demandas das organizações indígenas, o imperativo da participação indígena em di-ferentes instâncias e em outras políticas17. É importante não esquecer que a maioria das revisões constitucionais realizadas em países da América La-tina foram seguidas por pesados programas de reajuste estrutural, ideali-zados a partir de instituições financeiras multilaterais presididas pela visão neoliberal do funcionamento do aparelho de Estado e suas formas de in-tervenção. Na verdade, uma coisa e outra não correram jamais separadas. Assim, foi durante as gestões de Fernando Henrique Cardoso na presidên-cia do país (1994-1998) que estas ações extra-FUNAI adquiriram contor-nos próximos à organicidade de políticas. Cada uma delas tem, no entanto, trajetórias muito distintas e impactaram de modo muito diferenciado os povos indígenas ao longo do país. Em geral, tais políticas atingiram um mesmo povo de maneira dissonante e conflituosa entre si, gerando aqui-lo que muitos defensores da FUNAI chamam de “divisão” dos índios, um “acirramento de faccionalismos”, confundindo os efeitos de sua má imple-mentação com os contornos de um novo modelo. Para outros ainda, em geral defensores de ações indigenistas de matiz tutelar, a diversidade de culturas, histórias e padrões sociais (muitas vezes, em casos de proximi-dade física as rivalidades e os preconceitos sedimentados no tempo) in-viabilizariam a construção de organizações pan-indígenas ou mesmo de âmbito regional mais amplo, o que colocaria como inevitável a mediação não-indígena. Os governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) deram mostras de pro-curar seguir as coordenadas constitucionais, e de um ensaio de reconheci-mento dos direitos culturais coletivos dos povos indígenas quanto a dife-rentes aspectos de sua vida social, bem como de sua capacidade civil plena. O que poderia ter se transformado nas bases de um planejamento de Es-

17. Para a idéia de ambientalização dos conflitos, ver Leite Lopes (2004).

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tado etnicamente informado e de uma execução regionalizada sob o duplo controle dos povos indígenas e de dispositivos federais ficou muito aquém do possível, sem ganhar institucionalidade e, como lamentavelmente te-mos visto, sendo de fácil reversão. Aqui é importante lembrar que em seu governo foi tornada compatível a defesa da “diversidade” e da “participa-ção popular” com a pauta de redução de Estado das políticas neoliberais, algo muito distanciado das idéias de democracia participativa que inspiram uma revisão das políticas governamentais de Estados Nacionais de viés au-toritário. Em suma, foi mais o custo econômico que as razões propriamente de redefinição do jogo político que pautaram essas transformações, regadas à intervenção (importante, porém impensada) da cooperação técnica inter-nacional para o desenvolvimento. Mesmo o fato altamente positivo de que, ao longo do período FHC, algu-mas organizações indígenas e as muitas ONGs indigenistas de mediado-res, adquiriram progressivamente maior participação em ações de imple-mentação de políticas foi uma via de mão dupla: passaram a ser executoras de políticas de governo, muito mais do que exercendo o papel de crítica e proposição, e de correções ao seu exercício. Antes que participar politica-mente, transformaram-se em responsáveis técnicas por processos burocrá-ticos de ações de Estado. Mais importante ainda, houve pouca ou nenhuma preparação dos quadros indígenas que assumiram posições de participação em tais atividades, deixando-os mais uma vez à mercê de uma cadeia de mediadores governamentais e não-governamentais. Esta progressiva mu-dança foi perpassada, porém, por numerosos conflitos. Na quase década de governos FHC, o mundo do indigenismo viu-se, pois, em aparência e momentaneamente modificado. Novos atores, novas linhas de força e novas configurações de poder, “novos cenários” regionais viram-se reforçados (sobretudo os amazônicos) ou enfatizados. As antigas redes de poder emanadas do órgão indigenista foram confrontadas com as difi-culdades de reprodução colocadas pela parcial reforma da administração pública (ou do “Estado”, como foi chamada inadequadamente) que impe-diu concursos, propôs novas morfologias organizacionais, fez entrar em cena outras redes regionais e internacionais. João Pacheco de Oliveira (2001; 2002) já apontou que a explosão em núme-ro das organizações indígenas durante a década de 1990 marcou uma vira-da significativa nos caminhos trilhados, a partir daí, com relação às décadas anteriores. Da marca própria ao debate em torno da construção de uma

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pauta sobre direitos humanos e de construção de um movimento indígena no plano internacional, passou-se, como vimos, à progressiva ambientali-zação desse debate como vetor prioritário de globalização de ativismos, a postura crítica cedendo lugar progressivamente a debates “técnicos”. Re-fletindo sobre o fenômeno e a atuação das organizações indígenas, Bruce Albert (2000) menciona o que seria a mudança do que chama de etnicidade política para uma etnicidade de resultados como característica desta fase de proliferação de organizações. As O.I.s teriam seguido a mudança mais geral de ênfase da interpelação crítica do Estado na luta por direitos territoriais, passando para um diálogo pulverizado com uma pletora de atores nacio-nais e globais pertencentes às agências de fomento e cooperação governa-mentais ou não, que passaram a doar recursos para os povos indígenas me-diante a forma contratual dos projetos, no que ele chamou de “mercado dos projetos” de “novas políticas” descentralizadas de desenvolvimento”. Assim, se o advento das organizações indígenas tem sido aprioristicamente tratado como um avanço, é fundamental não esquecermos que, sem um quadro institucional compatível, esse avanço pode significar a subsunção a relações clientelísticas agora não mais com a FUNAI ou mediadas por aqueles que Gersem Baniwa (2006) chama de líderes carismáticos, mas sim por novos segmentos profissionalizados em direta relação com instâncias executoras de políticas setorizadas (educação, saúde, meio-ambiente, etc.) e suas orga-nizações, por vezes muito voltadas para demandas mais de seus setores pro-fissionais que para um movimento político onde os direitos diferenciados e a cidadania indígena estejam em jogo. A conjuntura de minimização do Estado que marcou os governos Fernando Henrique Cardoso contribuiu enormemente para reforçar estes problemas, pela instabilidade e carência de recursos públicos voltados para a capacitação de quadros para a sua gestão, fazendo com que as organizações localizadas fora da região amazônica, e não contempladas pelos acordos firmados com a cooperação internacional, tivessem oportunidades bem menores de expansão e desenvolvimento. A importante meta da participação indígena mostrou-se apenas relativa-mente atingida. Viu-se confrontada com a ignorância mais geral por parte dos tomadores de decisão, acerca da situação indígena no país. Tal igno-rância é fato arraigado pela sistemática ausência de informação sobre os povos indígenas desde nossos livros escolares até mesmo aos cursos de gra-duação em história e ciências sociais, e pela inexistência de processos de formação de gestores capacitados a conhecê-los e com eles interagir. Rever as variadas tendências que afetaram as novas políticas ensaiadas face à esta

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dimensão estagnada do órgão indigenista, tendo como pano de fundo as alterações mais amplas do aparelho administrativo brasileiro, é condição necessária para que surjam propostas lúcidas, consistentes e organicamente articuladas, referidas aos horizontes de crescente participação dos povos indígenas na formulação de políticas. Tal reflexão é essencial como no exer-cício pleno do controle social pelos povos indígenas sobre a implementação das políticas indigenistas, conseqüentemente com maior poder de negocia-ção, conhecimento e redução da assimetria social entre índios e não-índios na esfera pública.

A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NO CONTEXTO DOS GOVERNOS LULA

A entrada do governo atual trouxe inúmeras expectativas, expressas na ma-ciça adesão eleitoral dos indígenas a Luis Inácio Lula da Silva. Mas já no primeiro ano do governo as frustrações eram grandes. O primeiro governo Lula (2003-2006), no entanto, estabeleceu pouca ou nenhuma interlocução efetiva com os povos indígenas e suas organizações, com as suas demandas, expectativas e proposições no tocante a temas como terra, saúde e educa-ção, dentre outros. Um dos principais temas da pauta do movimento indí-gena foi longamente evitado: a criação de um conselho propositor e delibe-rativo para as políticas indigenistas, paritário entre Estado e organizações indígenas, com participação da sociedade civil organizada e do Ministério Público Federal. Tal conselho foi concebido e pactuado a partir do seminá-rio Bases para uma Nova Política Indigenista II, realizado pela COIAB e pela APOINME em dezembro de 2002, nas dependências do Museu Nacional, com a presença de representantes indígenas de todo o país. Nele estiveram presentes os integrantes da Equipe de Transição do Governo Lula, respon-sáveis por política indigenista – Márcio Meira (em 2010, presidente da FU-NAI), Gilney Vianna e Adriana Mariz18. A ideia de um conselho dessa natureza, sedimentada durante a reunião do Fórum Social Mundial de 2003, foi apresentada aos diversos setores de governo (à própria Fundação Nacional do Índio, ao Ministério da Justiça, à Casa Civil etc.) e insistentemente apresentada por uma ampla articula-

18. Ver em http://www.laced.etc.br/seminarios_02.htm os diagnósticos e resultados propositivos do seminário.

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ção de atores indígenas e pró-indígenas, que resultaria na organização do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, tendo sido barrada por setores específicos em momentos de tramitação bastante avançada. A dispersão das políticas indigenistas, saudável pela quebra da tutela, gerou grande esti-lhaçamento de ações, por total falta de coordenação, quando não por con-corrência entre elas. A escolha do antropólogo Mércio Gomes, que ocupou a presidência da FUNAI de setembro de 2003 a março de 2007, em segui-da à demissão de Eduardo Almeida (fevereiro a agosto de 2003), primeiro presidente da FUNAI no governo Lula, representou a vitória das alianças interpartidárias contra os compromissos assumidos pelo PT e por Lula ao longo da campanha. Acarretou no retorno de perspectivas pró-tutelares, com direito, inclusive, a comemorações efusivas de trinta anos do caduco e inconstitucional Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e na total quebra de diálogo com o movimento indígena. Do mesmo modo que o compromisso de homologação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol só se efetivaria em 2005, a demanda pelo conselho só se viu satisfeita em abril de 2010. Sua criação foi noticiada em meio às manifestações do chamado Abril Indígena, mês de intensa mo-bilização anual dos povos indígenas em torno da data de celebração do Dia do Índio, em 19 de abril de 2010, mas continua até o momento sem aconte-cer de fato. Além da mobilização indígena, uma das grandes alterações que permitiu uma guinada no sentido de outro padrão de relacionamento no segundo governo Lula, com a escolha para a presidência do órgão, do já aci-ma mencionado antropólogo Márcio Meira. Meira tem procurado retomar a busca de resolução dos problemas fundiários indígenas, sobretudo os fora da Amazônia, bem como esboçar uma articulação com os órgãos de outros ministérios encarregados de políticas indigenistas. Tem assim procurado redefinir o papel da FUNAI, consoante a diretriz mais geral dos governos de Lula de fortalecimento de áreas específicas da administração pública, suportada pela estabilização financeira que colocou, com grande alarde da imprensa, o Brasil dentre as potências econômicas emergentes. Não à toa sua administração vem sofrendo ataques na imprensa, como se décadas de desmandos e de funcionamento tutelar pudessem ser rapidamente reverti-das, como se um concerto entre diferentes políticas pudesse emergir sem instrumentos de intermediação. Mas estamos longe ainda da aquisição de capacidades e meios operacionais a políticas indigenistas consequentes.Tais perspectivas correm em paralelo aos grandes planos de crescimento econômico do país, com todo o aparato do desenvolvimento (sem o quali-

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ficativo sustentável) em ação. As metas e projetos que organizam esse raid desenvolvimentista de cunho neo-nacionalista em sua retórica estão enfei-xados em torno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)19. Obras como hidrelétricas, estradas e outras intervenções de grande porte, muitas incidindo em terras indígenas, estão sendo justificadas sem qualquer deba-te ou negociação, sob o signo da oferta de empregos às classes populares e das possibilidades de crescimento que venham a mitigar as grandes desi-gualdades sociais existentes no país. A resistência indígena tem sido gran-de, e aqui a chance de uma retomada de rumos mais políticos que técnicos singularmente tem-se feito mais expressiva. Com mais de sete anos de realização, as movimentações conhecidas como Abril indígena, agora coordenada pela APIB, têm sido os meios mais efi-cazes de reunião de forças no sentido de dialogar com os segmentos supe-riores do governo de Lula20. Mas é também aqui que, mais uma vez, neo-liberais, neonacionalistas, empresários de diversos matizes se unem e com facilidade parecem formar opinião com o suporte da grande mídia: afinal porque 0,4 % dos habitantes do país, esses indígenas “privilegiados” diante de tanta pobreza, podem ter o direito de impedir o progresso que levará à redenção de grandes maiorias numéricas (e ao aumento dos lucros dos que sempre lucraram e continuarão lucrando)? Contudo, essa formulação, fa-cilmente contestável para os especialistas e (raros) conhecedores dos vários aspectos da questão indígena, tem ampla aceitação popular no momento.

PERSPECTIVAS E DESAFIOS

O que os últimos 40 anos nos mostram é que se podemos reconhecer sem dificuldades que o modelo tutelar instituinte do SPI e da Funai, e um dos grandes escaninhos do nosso arquivo colonial na entrada do século XX e num regime republicano, encontrou seu fim legalmente com a Consti-tuição de 1988 e seus desdobramentos, não podemos nos orgulhar de ter gerado, desde então, alternativas consistentes. Reconhecer o “fim jurídico”

19. Ver http://www.brasil.gov.br/pac/. 20. Como fruto do fato de que o governo brasileiro assumiu em 1945 o dia 19 de abril, data proposta pelo indigenismo interamericano, para comemoração do “Dia do índio”, mantendo-se a mesma data desde então no calendário cívico brasileiro, o movimento indígena assenhoreou-se da efeméride (tradicionalmente folclorizada) como momento importante de protesto político. Sobre o último Abril indígena, ver http://www.inesc.org.br/biblioteca/inesc-noticia/edicao-no-2-junho-2008/abril-indigena/

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da tutela da União não basta: não acabaram de fato as formas tutelares de poder, de moralidades e de interação; os povos indígenas continuam sendo a parte menor na consciência dos políticos e no senso comum brasileiro. Porém, como todo Estado (e aí incluídos tanto os aspectos da administra-ção pública estatal, quanto o dos legisladores e gestores da administração governamental que “pensam” a coletividade de uma comunidade política nacional), também os avanços do movimento indígena são contraditórios, segmentados e incoerentes, sobretudo no tocante à aquisição de capacida-des, de experiências de elaboração e gestão de projetos seja para superação de impasses tópicos, seja aqueles que apontam para um futuro de médio longo prazo, como a formação de intelectuais e profissionais indígenas, que pensem e atuem no movimento, foram muitos e contaram com aliados e iniciativas importantes.Dois exemplos disso são os Projetos Demonstrativos para os Povos Indí-genas (PDPI), desenvolvidos no MMA, a ação da Carteira Indígena, pro-grama do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) em parceria com o MMA, cujas atuações e repercussões merecem ser melhor documentadas e refletidas. Podemos, ainda, arrolar a entrada de uma outra agência, o Mi-nistério da Cultura (Minc) que trouxe a presença da “cultura” para a esfe-ra da administração pública de uma maneira até então intocada. Haveria muito a ser dito de positivo e negativo também sobre as ações em educação e saúde. Em todos eles o administrar por projetos a que se concorre por editais estiveram presentes, desautomatizando redes e recolocando proble-mas. Deveríamos indagar, em todos esses e outros casos sobre as práticas da gestão governamental por projetos juntos aos povos indígenas, as lições aprendidas e propostas para o futuro, dentro de quadros mais abrangentes de reflexão onde um saudável vento utópico deve vir se somar ao que se apresenta como as figuras dominantes do presente. Se comparamos o momento atual com as metas que o Brasil se comprome-teu a honrar, ratificando a Convenção 169 OIT, há muito por ser concebido, discutido e exercitado no plano do diálogo inter(sócio)cultural. Há muito por ser avaliado de maneira mais distanciada sobre estas experiências es-boçadas na área da saúde e da educação, da regularização fundiária, do di-reito, da antropologia e do “desenvolvimentismo”, termo que uso aqui para designar, provocativamente, as intervenções voltadas à melhoria do nível de vida das populações indígenas, entendido sobretudo como crescimento econômico. Mas o cenário atual, esboçado ao longo do texto, é desanima-dor se acreditarmos demasiado nos supostos avanços anteriores, que não

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geraram, porém, bases institucionais sólidas para que os povos indígenas fossem interlocutores legítimos do Estado Brasileiro. Estará o Brasil, por meio de seu governo, mas com larga aceitação popular, entrando em mais uma era de obscurantismo unitarista, preocupado em ver, à luz de “nossas tradições”, que o seja plenamente civilizado e desenvolvido, de modo a que no plano de uma imaginação social paranóica, se veja livre da fantasia de se fragmentar em unidades soberanas? Soberania é algo que os povos indíge-nas nunca reivindicaram para suas terras, mas que nossos militares insis-tem em afirmar ser um perigo. O essencial me parece é perceber o que as mudanças ensejadas desde o movimento indígena, ainda que estejam longe do alardeado, signifcam em conquistas que paulatinamente vão mudando as feições da relação dos povos indígenas com o espaço público brasileiro. Como afirma Baniwa:

A crescente participação política dos povos indígenas nos últimos anos, embora não tenha sido suficiente para eliminar a prática tutelar e paternalista do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas – ainda presente em alguns órgãos do governo - tem se diversificado e dinamizado essa relação, propiciando o surgimento de programas e projetos governamentais inovadores (BANIWA, 2006: 79).

Aos poucos, e pelo esforço dos próprios indígenas, ainda que de forma tensa e sempre sujeita a retrocessos ou ao cinismo da negociação política de largo espectro, mudam as imagens que norteiam as práticas públicas no Brasil. Tais imagens, que chamo de unitaristas, vivem em paralelo com imagens dos indígenas altamente excludentes da vida atual da maioria desses povos, que hoje lutam, dentre inúmeras outras coisas, por acessar o ensino su-perior, obter conhecimentos que lhes permitam navegar em suas próprias águas com autonomia, mantendo o que de suas tradições culturais parece-lhes adequado e substancial. Sem esse aporte de novos conhecimentos o quadro atual de organizações indígenas, muitas vezes frágeis e dependentes de mediadores não-indígenas, poderá se perpetuar. É, pois, preciso afastar de vez a imagem do “índio dos cronistas e viajantes”, um ser eternamente fora da história, signo por excelência do exotismo dos trópicos americanos, puro, parado num tempo estagnado, intocado pela colonização, frequentador das imagens divulgadas do Brasil no exterior na sua versão ambientalista. Mantendo-se esta imagem, e vendo-se sempre em algum lugar um “índio profundo” inconquistado, o verdadeiro índio, que

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precisa ser protegido, salvo, que necessita de mediadores não-indígenas para se fazer representar é sempre possível acionar a “retórica do resgate”, pondo em ação formas reelaboradas do passado colonial brasileiro, solu-cionando dúvidas e angústias quanto a futuros que não estão esboçados. O que precisamos é de condições político-morais para um diálogo inter-cultural, construído desde o local e o regional, baseado num conjunto de princípios e direitos partícipes de um projeto nacional rumo à inclusão e à justiça social, tendo como ponto de partida o respeito à diferença de pro-jetos de futuro. Sem isso não há o que planejar: arriscamo-nos sob as no-vas vestes da década (sustentabilidade, parceria, participação, capacitação etc.) a repetirmos o pior da tutela e do clientelismo de Estado, reeditando prateleiras inteiras de nosso arquivo fantasmagórico. Assim, segundo le-vantamento do próprio movimento indígena, são mais de 30 postos em conselhos ou instâncias vairadas nos quadros do governo federal que hoje são efetivamente ocupados por representantes indígenas indicados por or-ganizações. Isso sem consideramos as posições em contextos estaduais e municipais, bem como a presença nos legislativos municipais. Falta-lhes, aos representantes e suas organizações, condições de sinergia e articulação, espaços para a construção de idéias comuns fruto daquilo que os aproxima em detrimento daquilo que os separa. É preciso pois ultrapassar os impe-dimentos à uma articulaçao indígena forte que são colocados, a começar, pelas dimensões continentais do Brasil.Assim, segundo levantamento do próprio movimento indígena, são mais de 30 postos em conselhos ou instâncias do governo federal que hoje são efetivamente ocupados por representantes indígenas indicados por organi-zações. Isso sem consideramos as posições em contextos estaduais e mu-nicipais, bem como a presença nos legislativos municipais. Falta-lhes, aos representantes e às suas organizações, condições de sinergia e articulação, espaços para a construção de ideias comuns fruto daquilo que os aproxima em detrimento daquilo que os separa. É preciso pois ultrapassar os impe-dimentos a uma articulação indígena forte que são colocados, a começar, pelas dimensões continentais do Brasil.Estamos longe ainda de termos as bases desse diálogo, entre indígenas e entre indígenas e não indígenas, plenamente delineadas, em que pese a existência de sinais de transformação, e por mais que o momento presente seja desanimador, embora se esqueça quão piores outros foram. Mas ima-ginar que se pode ainda classificar os povos indígenas na atualidade com os

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mesmos estereótipos que conservaram seu papel subalterno na sociedade brasileira, é no mínimo ignorância. Como destaca Baniwa:

...não são somente as lideranças indígenas que precisam estar capaci-tadas para trabalhar com o mundo dos brancos, os brancos também devem estar aptos a trabalhar com os povos indígenas. Só assim a idéia de interculturalidade será praticada e vivida, o que é essencial para que o Brasil seja verdadeiramente democrático e pluriétnico (BANIWA, 2006: 70).

Uma nova utopia para uma política indigenista adequada ao Brasil con-temporâneo deveria ter como ponto de partida, por um lado, que ela seja co-construída, sem porta-vozes, sem “reservas indígenas” ou ghettos. Por outro, o movimento indígena precisa enfrentar o que é hoje um de seus principais desafios:

...garantir a capacitação dos membros do movimento, das organi-zações e das comunidades indígenas para superar as deficiências técnicas e políticas na condução das lutas em defesa dos direitos in-dígenas, diante de uma sociedade cada vez mais complexa, tecno-crática e cientificista. Para além disso, como garantir uma educação ou formação política e técnica para os índios de uma maneira geral, necessária para que eles ampliem suas capacidades de compreensão e de interação com o complexo mundo branco? Uma das iniciativas propostas pelos povos indígenas é a construção e implementação de uma escola de formação política do movimento indígena, vinculada às suas necessidades e demandas atuais e aos seus históricos pro-jetos sociais e étnicos. O sistema escolar, em todos os seus níveis, presentes ou não nas comunidades indígenas, precisa ser apropria-do e direcionado para servir aos projetos coletivos de vida de cada povo indígena. [...] Por fim, o grande desafio dos povos indígenas é como garantir definitivamente e em determinadas condições socio-jurídicas ou de cidadania o seu espaço na sociedade brasileira con-temporânea, sem necessidade de abrir mão do que lhes é próprio: as culturas, as tradições, os conhecimentos e os valores (BANIWA, 2006: 85).

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CAPÍTULO IIIEDUARDO GALVÃO E OS ESTUDOS DE ACULTURAÇÃO NO BRASIL: OU ‘SANTO DE CASA TAMBÉM PODE FAZER MILAGRES’.

João Pacheco de Oliveira

Toda leitura se situa, quer assim se assuma ou não, sobre o eixo da parcia-lidade, do arbitrário, das opções múltiplas e que dificilmente conseguem justificar-se em sua totalidade. Existem enquadramentos biográficos, epis-temológicos, históricos e até mesmo leituras que se pretendem imanentes e avessas à diversidade de conjunturas. A minha intenção aqui é bastante limitada: de realizar uma aproximação a alguns trabalhos de Eduardo Gal-vão, revisitando argumentos, fatos e conclusões selecionadas, dialogando com eles a partir de indagações que reputo como relevantes e atuais na pesquisa etnológica.Irei assim retomar alguns de seus trabalhos, numa tentativa de diálogo respeitoso com os seus pontos de vista, algo similar ao que os etnólogos fazem com os seus objetos de estudos, e como os nossos interlocutores na-tivos fazem com as tradições do passado. Citar e reproduzir extensamen-te fragmentos de trabalhos publicados é uma forma natural e necessária para reintroduzir a complexidade do pensamento e a riqueza de expressão de Galvão nos debates de gerações posteriores de antropólogos brasileiros (que já não compõem mais uma pequena família, mas sim uma comuni-dade científica extensa e altamente diversificada em termos profissionais). Acho que os antropólogos ultimamente andam lendo pouco da obra de Eduardo Galvão e, acredito, recuperar os seus trabalhos e o seu exemplo pode ajudar-nos a pensar os dilemas atuais da pesquisa etnológica.Menos que um instrumento de prova de minhas próprias interpretações, citá-lo reiteradamente é uma tentativa (simples e até coloquial) de supe-rar a distância e trazê-lo de volta para o nosso convívio. Como se assim a narratividade o pudesse resgatar e tê-lo assistindo um dos habituais semi-

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nários de pesquisa no Museu Nacional, ouvindo exposições de trabalhos em andamento e exercendo uma crítica leal baseada em sua própria expe-riência como etnógrafo e etnólogo. É o que - estando eu em Belém ou no Rio de Janeiro - mais conviria como aproximação ao personagem histórico “Galvão”. Pois, conta-nos o antropólogo norte-americano Charles Wagley, ele “gostava da informalidade e era um excelente professor em pequenos seminários” (WAGLEY apud GONÇALVES, 1996: 21).Antes de iniciar a minha narrativa, duas explicitações são necessárias: como manejo a tesoura e onde procurei instalar o fio de prumo. A produ-ção de Galvão abrange domínios bem diferentes da antropologia - como o parentesco, a cultura material e a religião (para dar títulos genéricos e de valor meramente indicativo para partes de sua obra) e, portanto, pode ser objeto de reflexão por especialistas de diferentes campos1. A temática a que me circunscrevi foi a dos estudos e reflexões sobre mu-dança cultural, privilegiando assim a monografia (escrita em conjunto com Wagley) sobre os índios Tenetehara (1949) e diversos artigos e comunica-ções reunidas e tornados mais amplamente acessíveis no livro Encontro de Sociedades (GALVÃO, 1979)2 Como parâmetro narrativo, procurei na minha seleção e interpretação dos textos de Galvão destacar algumas das questões que surgem nas pesquisas e no debate sobre as chamadas “antropologias periféricas” (CARDOSO DE OLIVEIRA & RUBEN, 1995). Ou seja, como se articulam as teorias e pes-quisas realizadas no país com os principais centros de produção e legitima-

1. Em uma versão inicial, este trabalho foi apresentado no Seminário Eduardo Galvão, realizado no Museu Paraense Emílio Goeldi, em setembro de 1997. Posteriormente foi publicado no livro Conhecimento e fronteira: História da ciência no Amazonas, organizado por Peter Mann de Toledo e Priscila Faulhaber Barbosa, Belém, MPEG, 2001, pgs. 205-221. 2. O que abrange especificamente os seguintes textos: “Estudos sobre a aculturação dos grupos indígenas do Brasil”, individualizada de sua bibliografia como [GALVÃO, 1953] embora citada a partir da coletânea (GALVÃO, 1979), que foi uma comunicação apresentada na 1a. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Museu Nacional, em 1953, e depois publicada na Revista de Antropologia 5 (1):67-74, 1957; “Mudança cultural na região do rio Negro” [1954], comunicação apresentada no 31° Congresso Internacional dos Americanistas, realizado em São Paulo, em 1954, publicada nos Anais (1955); “Aculturação indígena no rio Negro” [1959], artigo publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (n.s.), Antropologia no. 7, 1959; “Áreas culturais indígenas do Brasil; 1900-1959” [1960], comunicação apresentada a IV Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Curitiba, 1959, e publicada no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (n.s.), Antropologia no. 8, 1960; “Encontros de sociedades tribal e nacional no rio Negro, Amazonas” [1962], comunicação apresentada no 35° Congresso Internacional de Americanistas, realizado no México, em 1962, e publicado posteriormente em Actas y Mémorias, 1964.

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ção do saber antropológico? Quais as especificidades em termos de objetos, posturas e temáticas que configuram essas antropologias nacionais? E, para ser mais direto, qual é a contribuição de Galvão para os debates e o avanço da etnologia? Por traz disso há uma discussão ampla e complexa (FARDON, 1990; STO-CKING Jr, 1991), que não pretendo nem posso realizar nesta ocasião. Uma parcela significativa dos esforços dos etnólogos brasileiros tem sido dirigida para o estudo do contato interétnico (as relações entre índios e brancos) e são freqüentes as indagações sobre o destino das populações indígenas. Em que medida isto - no qual Eduardo Galvão, juntamente com Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira, têm um importante papel - configura algo original e inovador face à antropologia que se pratica em outros países? Ou seja, a chamada “teoria do contato interétnico” amplia os horizontes da disciplina antropologia (enquanto um saber universalista e transcultural), ou se trata apenas de uma peculiaridade local (um dialeto) que o tempo e o exercício do diálogo além fronteiras se encarregará de converter aos câno-nes da gramaticalidade vigente?

***Alguns antecedentes ajudam a mapear sua carreira. Em 1936, Eduardo Gal-vão ingressou no curso de geografia e história. Com apenas 18 anos, entrou como estagiário no Museu Nacional, onde em 1941 seguiu um curso de etnologia geral ministrado por Charles Wagley e que tinha ainda a cola-boração de Curt Nimuendaju. Neste ínterim, fez sua primeira pesquisa de campo, acompanhando Wagley em uma de suas fases do trabalho com os Tapirapé. Em 1941-42, juntamente com Wagley, esteve por quase seis me-ses entre os Tenetehara. No ano seguinte (1943), esteve por mais de 6 meses entre os Kayowá, sob a orientação de James e Virginia Watson. Em 1945, acompanhou um curso de antropologia ministrado por Arthur Ramos e, no ano seguinte, concluiu afinal o seu bacharelado (interrompido por tan-tas viagens) na Faculdade de Filosofia.Apoiando-se nos contatos entre a Columbia University e o Museu Nacio-nal, Galvão foi o primeiro dos pesquisadores brasileiros interessados em culturas indígenas a ter seu doutoramento em uma grande universidade americana (1952). Durante o período em que lá esteve, de 1947 a 1949, teve oportunidade de conviver com figuras exponenciais da antropologia, como o próprio Charles Wagley (seu orientador), Julian Steward, Eric Wolf, Marvin Harris, Sidney Mintz, Robert Murphy, Morton Fried, entre outros.

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Quanto às influencias teóricas dominantes, Charles Wagley em seu de-poimento é incisivo: “Galvão foi muito influenciado por Julian Steward, com quem estudou na Universidade de Columbia. Estava interessado em ecologia cultural e em evolução multi-linear” (WAGLEY apud GONÇAL-VES, 1996:21). A expressão mais direta desta orientação se verifica na sua classificação das áreas culturais indígenas existentes no Brasil (GALVÃO, 1960), obra que alguns autores, tal como Darcy Ribeiro (1979:16), qualifi-cam como talvez sua maior contribuição à etnologia.Tais referências intelectuais manifestam-se com nitidez na bibliografia uti-lizada por Galvão nos textos acima relacionados. Os trabalhos de Julian H. Steward no Handbook of South American Indians (1946) e o seu li-vro Native Peoples of South American, escrito em parceria com Louis Fa-ron (STEWARD & FARON, 1959) são sempre citados nos trabalhos mais amadurecidos de Galvão sobre mudança cultural (GALVÃO, 1959, 1960, 1970). O estudo sobre áreas culturais é o único a incluir nessas referên-cias também o importante livro de Steward, Theories of Cultural Change (1955). Cabe notar que nos dois primeiros textos não há indicação de bi-bliografia. Robert Redfield, um dos co-autores (junto com Ralph Linton e Melville Herskovitz) do famoso Memorandum on the study of accultura-tion (1936), é também uma de suas interlocuções básicas, principalmente através da análise da mudança cultural na península do Yucatan (The Folk Culture of Yucatan, 1941) e de um texto posterior (The Primitive World and Its Transformations, 1953), citados por Galvão respectivamente em dois de seus trabalhos (GALVÃO, 1970; 1962). Também uma referência constante é o livro de Charles Wagley & Marvin Harris, intitulado Minori-ties in the New World (1958). As referências teóricas apontadas por Galvão são constantes e marcadas pela sobriedade, mas balizadoras e fundamen-tais para o assunto ao qual se dedica.

***Como Eduardo Galvão é freqüentemente associado aos estudos de acultu-ração, que constituíam uma das principais linhas de interesse da antropo-logia norte americana nas décadas de 1940 e 1950, caberia começar por aí. Entre as importantes iniciativas levadas a cabo por Galvão, Darcy Ribei-ro diz-nos que ele “fundou os estudos de aculturação indígena entre nós” (1979:12). Este foi também o tema de sua primeira comunicação (GAL-VÃO, 1953), após retornar dos Estados Unidos como Ph.D. pela Columbia University, e indicava sua inserção na comunidade de antropólogos brasi-

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leiros no ato mesmo de sua formação, ocorrido na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) realizada no Museu Nacional. Em seu “paper”, ele discute o estado das pesquisas sobre mudança cultural no país, apresenta uma conceituação que reputa mais adequada e delineia algumas perspec-tivas de futuro.O que se torna logo explícita é a sua recusa - ao inverso do que ocorre no cenário norte-americano - face ao conceito de aculturação. Referindo-se às formulações do Memorandum, ele chama atenção para o fato de que tais estudos colocam-se sobre uma ótica que “exige como condição essencial o contato direto e contínuo entre grupos portadores de culturas diversas” (GALVÃO, 1979:128 [1953]). Com finura ele argumenta: “a simples presen-ça de civilizados em torno de um território indígena, mesmo quando não se estabelecem relações diretas, é um fator condicionante de mudanças nas culturas indígenas” (GALVÃO, 1979:130 [1953]).A sua recomendação é de que não basta estudar a difusão isolada de traços culturais, é necessário focalizar sua atenção nas “mudanças totais promovi-das” e decorrentes do “envolvimento da sociedade indígena pelas popula-ções rurais” (GALVÃO, 1959:127 [1953]). E aponta um conjunto de fatores - a redução dos territórios, a diminuição da população, a desorganização das instituições, o regime de propriedade e o status conferido pelo controle das mercadorias - que não poderiam ser descritos sob o título de aculturação, e que, no entanto, seriam decisivos à compreensão da mudança cultural.Como um exemplo de utilização e de diálogo recente com a análise de Gal-vão eu poderia citar o meu próprio trabalho. Seguindo na direção de tentar caracterizar melhor tais fenômenos de “mudanças totais promovidas”, eu procurei reunir aqueles fatores isolados debaixo da idéia de processo de territorialização (OLIVEIRA, 1994), que pode ser analisado com mais in-tensidade em suas diferentes dimensões (identitária, política, ecológica e cultural).A reflexão de Galvão se dirige, no entanto, para fatores econômicos e de na-tureza extra-local, que possuem um alto poder de determinação dos fenô-menos observados na escala local e regional. A articulação entre o local e o global, que marca os debates atuais sobre globalização, já constituía objeto de sua preocupação. Assim ele fala que o fulcro da mudança cultural entre os Tenetehara reside na transformação da agricultura de subsistência em produção mercantil, o que irá depender da oscilação de preços para o baba-çu no mercado nacional e internacional (GALVÃO, 1959; GALVÃO, 1979

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[1953]). A mesma observação faz para o processo de mudança cultural no rio Negro, onde o preço da borracha, da castanha e da piaçava tem um peso determinante (GALVÃO, 1979:124 [1954]).Eduardo Galvão observa que na literatura antropológica frequentemente o termo aculturação é utilizado sem uma referência técnica precisa, mas sim de modo muito amplo, quase como um sinônimo para qualquer estu-do de mudança cultural. Ponderando que uma análise limitada a aspectos claramente considerados como aculturativos poderia ser de pouco valor, ele sugere que devemos esquecer um pouco aculturação e pensar mais em termos de assimilação (GALVÃO, 1979:131 [1953]). Esse ponto será discutido e desenvolvido por Roberto Cardoso de Oliveira (1960) e Egon Schaden (1969).Mas é importante perceber que se trata de uma retificação conceitual e uma correção de rumos, o que faz sentido para a investigação empírica e a reflexão analítica, o que não implica, contudo, em tentar transportar-se a outro marco teórico. Tanto assim que nas definições mais gerais quanto aos objetivos da antropologia, Galvão prefere falar de mudança cultural ao invés de aculturação. Note-se, ainda, que nas suas referências bibliográficas estão inteiramente ausentes os clássicos estudos norte-americanos sobre as minorias e a assimilação de imigrantes (Thomas & Znaniecki, Louis Wirth, entre outros). A preferência pelo uso da noção de assimilação se deve, a meu ver, porque Galvão a considerava como a mais adequada para veicular fenômenos de natureza histórica, aos quais atribuía uma forte capacidade explicativa (e não só dos processos ocorridos no passado, mas também das compulsões quanto ao presente). Os fatos da aculturação se perderiam em uma mul-tiplicidade de histórias locais e de ajustes recíprocos, omitindo processos mais amplos (como o de formação nacional, de criação de mercados ou, do que hoje se diria, de globalização) e a referência aos personagens efetivos de um cenário histórico maior (Estados-nacionais, classes sociais, grupos de interesse), cuja lógica de atuação e poder disciplinador não se poderia apreender somente através de um estudo local (ou de uma micro-história). Quando opera com a idéia de assimilação, Galvão jamais a concebe segun-do o parâmetro das variáveis anônimas, atemporais e universais, com as quais o funcionalismo pretendia descrever todas as sociedades em termos de especialização ou generalidade de domínios e funções (ou ainda do grau de escolha ou imposição sobre papéis sociais). Vincular de um modo muito

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direto as suas formulações àquelas de Robert Redfield em sua análise das mudanças culturais no Yucatan é uma leitura apressada e simplificadora.Em seu primeiro trabalho sobre a região cultural do rio Negro, Galvão de-fine claramente o seu objetivo: estudar “os processos gerais de formação e desenvolvimento da cultura e sociedade cabocla” (GALVÃO, 1979:121 [1954]). O seu objeto é, portanto, a “sociedade cabocla”, isto é, “mestiça de índios e brancos”, que vem a conformar algo particular e específico face à “cultura regional amazônica” (idem, 125). Estabelecendo que os fluxos culturais provem da cidade de Manaus e das “malocas”, Galvão em seu pri-meiro texto parece aproximar-se de Robert Redfield ao colocar que a maior ou menor proximidade a cada um desses polos definiria a natureza dos arranjos culturais aí encontrados - que ele aí chama de “cambiantes diver-sos de amalgamação cultural” e “faixas de aculturação” (GALVÃO, idem, 120-121). Mas em seus trabalhos consecutivos Galvão irá distanciar-se progressivamente de Redfield, criticando a limitação do estudo aos fatos do empréstimo cultural, transformando a explicação da mudança em uma simples descrição dos processos de difusão no espaço e no tempo. No seu artigo mais extenso e detalhado, Galvão (1959) já irá tratar as comunidades intermediárias como verdadeiras unidades sociais, que se diferenciariam (bem de acordo com a perspectiva de Julian Steward) pelos “níveis de in-tegração sociocultural”. Posteriormente [1964], ele voltará a sublinhar sua distancia de Redfield, observando que seria muito limitado falar apenas de um continuum folk urbano, com certo gradiente onde se expressariam as influências polares (GALVÃO, 1979:268), preferindo conceber as unidades intermediárias como “constelações sociais de caráter diferenciado” causa-das por fatores históricos, culturais e ecológicos que “dão-lhe uma caracte-rística diversa daquela descrita por Redfield” (GALVÃO, idem, 269-270).Aliás, já havia uma distância face aos estudos de aculturação e assimilação em seu primeiro trabalho sobre o rio Negro (GALVÃO, 1954), que já si-tua as relações entre índios e brancos dentro de uma sociedade de clas-ses. As “comunidades caboclas” seriam assim compostas “por uma classe de trabalhadores rurais dependentes do centro urbano maior” (GALVÃO, 1979:120). No artigo de 1970, tal caracterização tem uma grande impor-tância para pensar o processo de assimilação dos índios dentro da socieda-de nacional. Ele pondera que “a sociedade regional, seja elas de vaqueiros, agricultores ou coletores de produtos naturais, é sempre uma sociedade de classe”, onde a incorporação do índio sempre se dá em seu estrato mais bai-xo, como “trabalhador não qualificado” (GALVÃO, 1979:278). O que torna

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legítimo - segundo a perspectiva dos regionais brancos - o uso de variadas ordens de mecanismos compulsórios, inclusive por indivíduos colocados em situação econômica análoga: “Civilizá-lo ou domesticá-lo é colocá-lo a serviço de qualquer das citadas formas de exploração do homem branco. Nesses termos, qualquer tipo de compulsão é considerada moralmente jus-tificável” (GALVÃO, idem: 278-279; grifos do original).

***Anteriormente Galvão já tentara lançar mão de alguns elementos do imagi-nário da fronteira para analisar o processo de mudança cultural. No entan-to contrariando as formulações dos estudos de fronteira no Brasil (CAR-DOSO DE OLIVEIRA, 1972; VELHO, 1972; MARTINS, 1975; WAIBEL, 1979), ele não distingue frente pioneira e frente de expansão, qualificando a seringueiros, garimpeiros e até agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) como “pioneiros” (GALVÃO, 1979:127 [1953]). Em um trabalho pos-terior (GALVÃO, 1959) irá dizer que focaliza uma “região de fronteira”, ca-racterizando-a não por seu sentido geopolítico, mas sim por ser “uma área onde ainda se processa um encontro de culturas, a indígena e a nacional, e a emergência de uma nova sociedade mestiça e campesina” (GALVÃO, 1979:139).Nesse mesmo trabalho, irá falar dos “índios” como constituindo atualmen-te em “extensão das comunidades rurais” (GALVÃO, idem, 144). Assim fazendo, contudo, não está atribuindo um rumo único para o processo histórico (como voltaremos a discutir logo adiante), mas estabelecendo uma pressuposição, de natureza heurística, para o estudo das culturas e sociedades indígenas. Já em seu primeiro trabalho, propugnando redire-cionar os esforços dos etnólogos: “Nossa preocupação maior tem sido a de reconstituir a cultura tradicional. O que não está errado (...) mas que de certo modo nos tem tolhido, ou pelo menos não facilitado, a visão de problemas mais dinâmicos” (GALVÃO, 1979:131). No seu artigo mais et-nográfico sobre o rio Negro, ele explicita o ponto de vista que adotou: “Não nos interessou tanto a reconstituição etnológica de culturas tribais, como o processo de modificação dessas culturas e de sua integração na sociedade regional” (GALVÃO, 1979:135).Mas qual é a noção de “assimilação” da qual Galvão efetivamente faz uso? Diferentemente da perspectiva funcionalista acima criticada, em sua análi-se o termo assimilação vem diretamente associado a conteúdos históricos específicos, nos quais se evidencia a existência de um poder assimétrico de

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determinação da qualidade e do ritmo da mudança cultural, algo que - sob modalidades e conjunturas diversas - se sobrepõe aos valores das socieda-des indígenas e independe de sua vontade. A assimilação não é um pro-cesso genérico ou universal, nem os seus efeitos são neutros ou bilaterais e balanceados, mas se trata de um produto histórico dirigido (GALVÃO, 1979:262) - que algumas vezes é referido como uma “constante” - isto é, de uma “assimilação forçada”, de um processo de imposição política (que não deixa de ter alguma similaridade com a noção de “situação colonial”, de Georges Balandier [1971] ou a idéia de um “encontro colonial”, utilizada por Talal Asad [1993]).Em seu trabalho apresentado no México, Galvão (1962) analisa o processo histórico de relacionamento entre a sociedade luso-brasileira e os índios, e nos propõe uma periodização para a história da Amazônia (GALVÃO, 1979:260-261). Ainda que as descontinuidades sejam manifestadas através da cronologia e inexista um esforço de explicitar os paradigmas da análise, pode-se perceber que não se trata dos recortes habituais na historiografia (Colônia, Império, República), mas de uma conjugação (ainda que não ela-borada) de fatores econômicos e políticos. No primeiro período, colocado entre 1600 (primeiras explorações no rio Amazonas) e 1759 (expulsão dos jesuítas), inicia-se o processo de aculturação do índio (pois aí ainda existem trocas culturais possíveis e aculturação entre índios e colonos (que são em pequeno número e dispõem ainda de tecnologia bastante simples e desa-daptada ao meio ambiente amazônico: “a economia e a estrutura sociocul-tural dos grupos nativos são reajustadas ao padrão de exploração mercantil dos portugueses”. No segundo período, de 1759 a 1840, reafirmam-se as relações mercantis e o poder dos colonos, embora os meios de produção permaneçam os mesmos. No terceiro, de 1840 a 1920, instala-se a indus-tria extrativa da borracha e a economia regional atinge seu cume, inclusive atraindo outros “caboclos” (estes, os seringueiros nordestinos, população igualmente de origem mestiça, embora distinta). Aí ocorre o “ponto crítico da assimilação compulsória do indígena”, pois este deixa de ser a mão de obra essencial da economia regional. Diminuída sensivelmente a sua incor-poração econômica, abranda-se o processo de assimilação e acomodação, “podendo o índio retrair-se para as aldeias e territórios isolados”. Galvão nos alerta que o aprofundamento da investigação exigiria “o estu-do detalhado de períodos históricos ou de áreas geográficas e culturais es-pecíficas”, onde os fatores que acarretam as mudanças pudessem ser mais adequadamente focalizados. Mas o que lhe é possível formular por ora é

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um amplo quadro (não histórico, mas filogenético) do “processo de assi-milação forçada” das sociedades indígenas, que remete a duas condições diferenciadas: de um lado os “remanescentes tribais”, que se afirmam como entidades autônomas (enquanto etnias, línguas e tradições diferenciadas); de outro os índios que dependem fortemente do comércio e do trabalho assalariado, e que constituem “mais propriamente extensões da frente pio-neira nacional do que entidades distintas” (GALVÃO, 1979:260).Isolamento ou acomodação constituem dois desdobramentos lógicos - e hoje diríamos alternativas históricas e organizacionais - que poderiam me-lhor ser analisadas através da comparação entre diferentes situações histó-ricas (OLIVEIRA, 1988: 57-59) - do processo de assimilação compulsória dos indígenas. Ao usar o termo “remanescente” inclusive para designar “os índios tribais” (isto é, aqueles que não constituem simples extensões das comunidades rurais), Galvão procura vacinar-nos contra uma visão “naive” quanto ao “tradicionalismo” das populações indígenas. A seu ver, portanto, seria ingênuo e equivocado privilegiar do ponto de vista heurístico a recons-tituição das culturas indígenas, pois seu “tradicionalismo” não autorizaria tratá-las como “originais”, nem a sua condição de autonomia poderia ser en-tendida fora do processo histórico3.Focalizando especificamente a situação do rio Negro, Galvão mostra como estas duas alternativas estão presentes como virtualidade contida em um contexto histórico. Assim nos adverte que os “remanescentes tribais” per-deram sua auto-suficiência econômica e dependem para sua sobrevivência de relações assimétricas face à economia de mercado. Dessa forma:

[...] a preservação de uma ‘nacionalidade’ indígena está se tornando mais uma ficção do que propriamente uma realidade social [...] Mas é ainda prematuro e errôneo falar desses índios como assimilados pela sociedade nacional, dado que eles ainda se identificam como índios e conservam um mínimo de tradições e traços culturais que os distinguem do caboclo rural” (GALVÃO, 1979:280 [1970]).

3. O que nos lembra imediatamente a proposta de Eric Wolf (1982) de entender, através de uma relação com o Ocidente, como se dá a conformação das etnias indígenas, explicando por causas históricas a presunção de as [populações colonizadas constituissem “povos sem história”.

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Relacionar Galvão com uma sociologia da integração (DaMatta, 1979) - que veria no índio apenas o não índio, e entenderia a assimilação como um pro-cesso único e inexorável aos quais as sociedades indígenas estariam sub-metidas - corresponderia a um grande equívoco. As referências à assimila-ção dos Tenetehara (GALVÃO, 1949; 1953) são apenas uma possibilidade, sujeita a variações em processos maiores e nas conjunturas externa e interna. “É bem possível que os Tenetehara em certo ponto de sua transição tomem outra alternativa que a de aderir à cultura cabocla” (GALVÃO, 1979:131 [1953]). Ou seja, que tais como os indígenas do nordeste e do sul do país, “que algumas vezes são definidos como índios aculturados” (idem, 128), resolvam permanecer como “índio, categoria sociocultural que lhe garante condições de sobrevivência e de status social nas comunidades regionais” (idem, 131).Em momento algum, Galvão pratica uma redução evolucionista da his-tória, mas sempre recupera a existência de alternativas e procura iden-tificar os fatores que as condicionam e atualizam. Quando realiza sua primeira análise do rio Negro já pondera que o processo de assimilação poderá sofrer um retardamento, ou mesmo uma interrupção, caso venham a modificarem-se os fatores da atual conjuntura. Se houver uma mudança de feição na sociedade cabocla, seja com o surgimento de novas práticas e agencias econômicas, isto poderá resultar “na retração da população tribal remanescente para as malocas, num sistema tipo reserva indígena” (GAL-VÃO, 1979:187). A sua análise contempla e abre espaço igualmente para a descrição dos fenômenos de emergência e reconstrução étnica, tal como verificado no baixo e no médio rio Negro, com população descendente dos antigos Barés e de outras etnias (MEIRA, 1993). No texto de 1970, ele recupera as discussões da VIIª Reunião Brasileira de Antropologia e baseando-se nos estudos etnológicos então em curso, procede a diversas comparações (Tenetehara x Canela, Trumai x Juruna, Baniwa x Tukuna) mostrando vários desdobramentos possíveis para o pro-cesso de assimilação e apontando diferentes causas internas e externas. Ao final, explicita que “o objetivo não é chegar a generalizações conclusivas, mas o de apresentar a dinâmica do processo e a variedade de fatores envol-vidos num ou noutro sentido” (GALVÃO, 1979:287 [1970]). É dentro deste quadro teórico que Galvão reflete e interpreta a política indi-genista. Trata-se de uma intervenção dirigida que possa garantir aos índios “um espaço de tempo necessário a uma acomodação”, pois sem lugar na

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vida econômica e com sua população reduzida (e acrescentaríamos com os seus recursos ambientais aviltados) tenderiam a desaparecer. “Os índios do Xingu, diz-nos, a despeito do grande numero de tribos estão em vias de extinção” a não ser que seja desenvolvida uma política indigenista que lhes forneça “os meios de acomodação e assimilação” de que necessitam (GAL-VÃO, 1979:132 [1953]).A autonomia dos “índios tribais” não precisa resultar de circunstâncias geográficas de isolamento, mas pode ser criada por políticas de Estado - o que nos remete a perceber a complexidade do esquema delineado para o processo de assimilação forçada. Como já observara Cardoso de Oliveira (1965), com a função concreta dos Postos Indígenas, a política indigenista coloca em ação fortes mecanismos contra-assimilativos. Ou seja, isto lhes confere consciência de seu status como “índios” - o que lhes resguarda-ria, “pelo menos teoricamente, assistência social, econômica e educacional, bem como a garantia da posse da terra, habitualmente negada ao trabalha-dor rural” (GALVÃO, 1979:279 [1970]).

***Gostaria de trazer ainda um último ponto para reflexão. Será que ao des-vendar os mecanismos de intervenção de sua própria sociedade sobre os seus objetos concretos de estudo (as sociedades indígenas) - e principal-mente ao anotar a possibilidade de criação de espaços políticos e iniciati-vas administrativas que evitariam o seu extermínio - o etnólogo estaria se tornando prisioneiro de seu próprio “parti pris” e estaria intervindo mais como agente político do que como cientista? Ou seja, no instável equilíbrio entre cientista e cidadão, um vinculado a uma comunidade internacional de especialistas, o outro referido aos processos políticos de construção na-cional, qual seria o fator preponderante para explicar as suas práticas con-cretas?Cabe lembrar aqui uma famosa formulação de Galvão em seus últimos trabalhos: “além de seu interesse pelo estudo das culturas indígenas, os etnólogos se preocupam com o destino dos grupos tribais - se permane-cerão isolados ou serão paulatinamente integrados e assimilados à socie-dade nacional” (GALVÃO, 1979:281 [1970]; grifos meus). Estaria Galvão aí cedendo lugar a uma postura meramente ética, de defesa das populações indígenas e conclamando a solidariedade dos seus colegas? Seria está uma manifestação típica de uma postura de comprometimento dos etnólogos brasileiros com as sociedades por eles estudadas, o que daria um estilo pe-

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culiar a nossa etnologia (RAMOS, 1990)? Ou ainda Eduardo Galvão estaria cedendo à tentação de colocar-se como um reformador social (aliás, preo-cupação comum a alguns dos pais-fundadores da disciplina) e atribuindo ao antropólogo também um objetivo caracterizadamente político?Um longo debate poderia ser aqui desenvolvido sobre as interconexões en-tre ética e ciência ou entre pesquisa de campo e ação política. Mas para ser mais conciso e direto, eu diria que a resposta é não. Ao falar em destino, Galvão tem em mira a análise do processo de assimilação forçada das po-pulações indígenas, com seus múltiplos condicionantes e as diversas alter-nativas que apresenta.O quadro teórico que delineia e o discurso explicativo que desenvolve re-mete à uma visão muito nítida da antropologia como a ciência que estuda o processo de reprodução e de mudança cultural. “O objetivo da antropo-logia afinal de contas (...) é o de tentar alcançar a dinâmica de transmissão e o funcionamento da mudança cultural” (GALVÃO, 1979:131 [1953]). E tal tarefa é colocada acima da própria etnografia: “buscamos generalizações sobre o fenômeno cultural, não apenas a etnografia dos índios do Brasil” (GALVÃO, idem).Longe de ser a expressão de uma ética abstrata e exterior àá pratica científica, a preocupação de Galvão com o destino dos índios do Brasil está plenamente integrada com as suas concepções teóricas e a sua experiência etnográfica. O espaço para o exercício da ética está contido e definido pôr sua condição de cientista, expressando-se em eventuais colaborações com o órgão indigenista na construção de alternativas históricas viáveis e mais positivas para os índios. Galvão, em certo momento de sua vida, como funcionário do SPI, convidou os seus colegas etnólogos a participarem de um futuro programa de estudos aplicados (que inclusive delineia meticulosamente). Mas não sem antes proceder a uma advertência significativa: “Não se trata de dirigir pesquisas etnológicas de modo praticista, mas de coordenar esforços e recursos para análise de problemas de interesse teórico generali-zado que realmente beneficiem nossa ciência” (GALVÃO, 1979:134 [1953]; grifos do autor).Voltando ao debate propriamente teórico, cabe notar que em diversas oca-siões Galvão manifestou com clareza o seu desconforto face aos estudos de aculturação (então dominantes no cenário norte-americano), colocando problemas teóricos bastante originais para a antropologia da época. Como seja, a relação entre processos sociais (observados a nível local pelo antro-

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pólogo) e políticas estatais (definidas em um plano mais amplo e estudadas igualmente por outras disciplinas), entre processos aculturativos e fatores em escala nacional e mundial (como os processos de incorporação nacio-nal e transnacional).Se os estudos de aculturação estão hoje superados - e Galvão não discorda-ria jamais desse movimento, que inclusive ajudou a ganhar forma - as ques-tões que ele propõe continuam a ser debatidas e engendram novas tenta-tivas de sistematização teórica. Nessa direção caberia observar com justiça que - à diferença do provérbio “santo de casa não faz milagres” - as reflexões de Galvão devem continuar como fonte de inspiração para a intervenção dos antropólogos brasileiros em muitos dos debates atuais da disciplina.

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CAPÍTULO IVASSIM ESTOU NARRANDO, E NÃO ME VÁ EMBOLAR TUDO DEPOIS: DIALOGIA, POLÍTICAS DE REPRESENTAÇÃO E PROCESSO ETNOGRÁFICO ENTRE OS UITOTO-MURUI (COLÔMBIA)1

Edmundo Pereira

Raymond Firth sobre Pa Fenuatata, Robert Lowie sobre Jim Carpenter - uma longa lista de reconhecidos antropólogos descreveram os “etnó-grafos” indígenas com quem eles dividiram, em algum grau, uma vi-são distanciada, analítica e mesmo irônica dos costumes (CLIFFORD, 1998:53).

Assim estou narrando. Daí veja você como o vai ordenar depois. Sim. E não me faça dizer: Edmundo, por que você embolou isso? (Don Ángel Ortiz, mambeadero, San Rafael, 02.03.2000).

Neste trabalho, procuro refletir sobre dois dos eixos dialógicos a partir dos quais o processo etnográfico experenciado dentre os Uitoto-murui do rio Caraparaná (2000-2001)2 foi possível em termos de ênfases etnográficas e

1. Este trabalho tem como base o primeiro capítulo de minha tese de doutoramento (Pereira, 2005). Uma primeira versão deste capítulo saiu publicada em Franky & Zárate (2001). Retomo e aprofundo agora algumas das discussões sobre a prática etnográfica, e esmiuço alguns eixos dialógicos do proceso etnográfico apresentados nesse pequeno artigo. Agradeço a Juan Echeverri pelo convite a publicar o que então eram os primeiros resultados etnográficos a que chegava do processo investigativo vivido dentre os Murui (2000-2001). Recentemente, retomei este trabalho, então apenas esboçado. Apresentei-o no último encontro do Leme (Laboratórios de Estudos em Movimentos étnicos), Maceió, 2009. E na no GT64 da RAM, Buenos Aires, Argentina, 2009. Agradeço aos colegas pelos comentarios em ambas ocasiões. Como sempre, sou especialmente grato a Don Ángel Ortiz pelo período que passamos juntos, bem como a sua família e aos demais membros e autoridades locais que possibilitaram meus períodos em área e a retomada, recente, de novos investimentos. E aos comentários, críticas, sugestões e disponibilidade dos pareceristas dos Cadernos do Leme.2. Especificamente, dentre 01-03/2000 e 06-10/2001. Além disso, somem-se a esse períos mais

intenso, duas pequenas idas à cidade de Letícia para períodos de um mês (2002 e 2004).

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recursos analíticos operacionalizados. Centro-me especialmente na rela-ção com Don Ángel Ortiz, cacique e tradicionalista do aldeamento de San Rafael e na instituição do mambeadero (ou cocadero), lugar de produção e transmissão de conhecimentos “tradicionais” das mais diversas ordens (material e simbólica), capital negociado entre anciãos e aprendizes. Esbo-ço parte dos caminhos de constituição da pesquisa de campo realizada, es-pecialmente os períodos passados em San Rafael, focando no modo como o tema de pesquisa e a metodologia de análise foram se definindo: de como optei pela região como lugar de estudo; de como conheci Ángel Ortiz e ne-gociamos a pesquisa; e de como mudaria meu tema de investigação ao lon-go de nossa relação. Objetivo, ao final, apresentar uma primeira etnografia do processo etnográfico, pensando-o em termos de um conjunto de relações que foram sendo construídas, focando em alguns dos atores e contextos envolvidos e enfatizando, tal como o resume Stocking, “o modo como estas interações situacionais condicionaram o conhecimento etnográfico especí-fico que emergiu” (1991:5).

TRABALHO DE CAMPO COMO PRÁTICA DIALÓGICA

Apesar de sua profusão contemporânea (ao menos para certos segmentos), a atenção ao processo etnográfico, com foco na “prática etnográfica” (PELS & SALEMINK, 2000:1), nos acompanha há algum tempo. De fato, parece estar presente desde a definição da metodologia de investigação que cha-mamos de “trabalho de campo”, com ênfase na “observação participante”. Já em Malinowski, encontramos a preocupação em definir o trabalho do antropólogo e explicitar parte das “tribulações” por que este passa para “atingir o significado intrínseco da vida tribal”:

A meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da obser-vação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica (MALINOWSKI, 1978a: 18)3

3. O que não quer dizer que seu trabalho não fosse revisitado, não só pela publicação de seus “diários íntimos”, mas pelas condições concretas em que seu trabalho efetivamente se deu e seus projetos pessoais e políticos (STOCKING, 1991b), ou o feito de autoridade-verdade de sua narratividade (CLIFFORD, 1998).

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Em 1935, na análise de novo material de Trobriand, desta vez com ênfase no modo de tratar as situações lingüísticas (como os encantamentos mágicos), o antropólogo desenvolve ainda mais algumas das idéias da introdução de 1922, chamando a atenção para a construção de “contextos de situação” (MALINOWSKI, 1978b)4 para o entendimento da produção do significa-do. Tanto em Mauss, em seu manual etnográfico (1926), quanto no conhe-cido apêndice do trabalho sobre os Azande, de Evans-Pritchard (2005:244), encontramos, ainda que sem maiores conseqüências, a recomendação de atentar-se para o fato de que “o que se traz de um estudo de campo depen-de muito daquilo que se levou para ele”. Neste ponto, pode ser interessante recuperarmos outro texto do inglês, editado em 1973, um mês após sua morte, texto encomendado por Meyer Fortes para ensinar a seus alunos o que era, afinal, “trabalho de campo” e em que condições este se dava. Des-ta vez, em exercício memorialista, Evans-Pritchatd ressalta, especialmente, suas “condições materiais”:

é igualmente importante que nós registremos quais eram as condições materiais e físicas nas quais o trabalho de campo era conduzido, por que estas condições, com certeza, têm de ser levadas em consideração na avaliação dos resultados e do acesso a sua signi-ficação (EVANS PRITCHARD, 1973:235)5

Como nos lembra Bourdieu (1968:136): “o intelectual é situado histórica e socialmente”. Seu trabalho “se realiza através de uma infinidade de relações sociais particulares, relações entre o editor e o crítico, entre o autor e o crítico, entre autores, etc.” (ibid:124). Nas últimas décadas, no crescente das revisões historiográficas e analítico-teóricas por que tem passado a antro-pologia (e as ciências sociais em geral), algumas chaves de entrada têm sido acionadas (apesar de suas respectivas agendas) para salientar a necessidade de maior reflexividade na prática científica: sociologia do conhecimento, so-ciologia reflexiva, antropologia reflexiva, história da antropologia, antropo-logia da antropologia, antropologia crítica, estão dentre as mais utilizadas6.

4. Ou especificação contextual do significado” (1978b[1935]). Mais tarde, Hymes, dentro da socio-lingüística, inspirado nessa metodologia, a desenvolverá sobre o nome de “etnografia da fala” (1970).5. O texto é dividido nas seguintes partes: Financiamento, Língua, Transporte, Problemas com o Isolamento, Acodomações, Comida, Tabaco, Saúde, Equipamento, Livros e Câmeras e gravadores.6. Bourdieu (1968, 1998a, 1998b, 2005); Kuper (1978, 1992, 2002 e 2005); Turner (1986); Bruner (1986); Clifford (1998a e 1998b); Asad (1973); Dirks (1992); Fabian (1983); Atkinson (1990); Stocking

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No fundo, temos assistido a uma maior consciência e atenção ao fato de que: (a) as condições de produção do trabalho investigativo condicionam os resultados a que chegamos na prática etnográfica e em sua posterior tradução em texto; e (b) as relações pesquisador/pesquisado são também, ou se inscrevem em, relações de poder. Creio que em meio às demandas e caminhos de investigação surgidos, um dos ganhos concretos e notáveis em todo esse investimento é o da constituição de etnografias do processo etnográfico. Apesar de alguns autores entenderem em termos de “crise” e suspeição7, o ponto em que estamos na trajetória de nossa disciplina, se lembramos que fazíamos, muitas vezes, sociologia de notas de pé de pági-na, orelhas e agradecimentos de forma a constituir em suas feições básicas algumas “histórias do trabalho de campo” (CLIFFORD, 1998b:184), vimos o crescimento da produção de boas etnografias de processos etnográficos materializadas em boas introduções de dissertações e teses, bons primeiros capítulos e artigos. Neste ponto, o que antes era fabulário8, parte dos “im-ponderáveis da vida real” (MALINOWSKI, 1978a), os vividos do trabalho de campo, passou a ser foco de maior atenção e escrutínio sociológico.Diante deste quadro, Pels & Salemink (1994:1) propõem, para o desen-volvimento de uma história da antropologia, a constituição de “histórias contextuais da prática etnográfica” como forma de explicitação dos pro-cessos de construção da pesquisa, de suas implicações metodológicas e ético-políticas. Dar ênfase analítico-descritiva nas “relações práticas entre observador e observado, e a sua subseqüente transformação pela represen-tação etnográfica” (PELS & SALEMINK, 2000:4). Para tanto, é necessário “localizar as estratégias discursivas em seus contextos de uso, nas táticas das relações específicas entre poder e troca que atualizam e determinam o valor dessas estratégias discursivas”. Mas se “situar seu próprio modo de produção no contexto da invenção cultural e da mudança histórica” (CLI-FFORD, 1998:94) tem sido um dos movimentos crescentes à disciplina, de que contextos, de que situações, estamos falando? Afinal, como enfatizam os Comaroff (1992:11), os contextos não estão simplesmente lá: “eles, tam-

Jr. (1983; 1991); Faria (2002); Lima (1994); Pels & Salemink (1994; 2000), Commaroff & Comaroff (1992); Almeida, (1978); Oliveira (1999, 2004) apenas para citar alguns.7. Clifford (1998a:18) apresenta esse contexto sócio-histórico como o “dilema atual” da disciplina8. Nos termos de Clifford (1998a:42) , “fábulas do contato”.

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bém, tem que ser analiticamente construídos à luz de nossas concepções sobre o mundo social” 9.

ETNOGRAFIA DO PROCESSO ETNOGRÁFICO

Recupero, então, um dos eixos analíticos propostos no título deste traba-lho para começar a montar alguns contextos: dialogia. Termo consagrado e amplamente difundido nas últimas duas décadas, mas que parece ser ainda pouco explorado em suas conseqüências práticas. Em geral, se refere mais ao elemento narrativo de nosso trabalho (narração enquanto construção/negociação diante da heteroglosia do mundo social) do que prática etno-gráfica10, ao menos para parte da antropologia norte-americana pós-1980 (CLIFFORD, 1998). Bem, mas afinal (se a questão vale à pena), o que é dialogia na prática cotidiana da pesquisa? Em que momentos ela se con-cretiza, se se concretiza, ao longo do processo etnográfico? Questões que, no caso, podem estar atreladas a outras questões para um entendimento do que afinal é o “trabalho de campo”: quais são seus limites? Quando começa? Quando chegamos à aldeia, ou já antes, quando ainda estamos na biblioteca lendo sobre nossos futuros “objetos de pesquisa”, nossos futuros “pontos no mapa”11, ou mesmo quando estamos na fronteira, atravessando os trâmites administrativos que separam Brasil de Colômbia?Ao estilo mancuniano, construo12 uma situação social (GLUCKMAN, 1987; MITCHELL, 1959) que, se não é reveladora, ao menos é boa entrada às reflexões deste trabalho e ao processo etnográfico experienciado. Relato da minha chegada no aldeamento de San Rafael, aldeamento Uitoto-Murui do rio Caraparaná, ressaltando, já de início, que faço parte da quarta ge-ração de investigadores que passa pelo rio13. Apresento, então, dois eixos

9. Constituindo o que alguns autores chamam de “imaginação etnográfica” (Comaroff & Comaroff, 1992; Atkinson, 1990).10. Na ênfase dada por Clifford (1998a:21), dialogia é aplicada para pensar as “práticas textuais”. Cardoso de Oliveira (2006:24) operacionaliza a noção com maior abrangência pensando em termos de “relação dialógica”, mais relacional voltada para pensar o fazer etnográfica (ouvir), o “encontro

etnográfico”. Assim como Oliveira (2004), que a operacionaliza para pensar a “prática etnográfica” em seu caráter situacional e relacional.

11. Nos termos de Clifford (1998a:42) , “fábulas do contato”.12. Afinal, como bem nos lembra Barnes (1987), por mais empiristas que queiramos ser, ao final, nossos “indivíduos”, os que acompanhamos em rede, são também modelos.13. Dentre os antrólogos que pelo Caraparaná passaram, temos: Horacio Calle, colombiano, entre 1960-1970; Roberto Pineda e Fernando Urbina, entre 1970-1980; e Juan Echeverri, entre 1980-1990.

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dialógicos centrais em meu percurso investigatico, tentando pensá-los a partir da prática etnográfica: meu encontro com Don Ángel Ortiz, cacique Uitoto-Murui, através do antropólogo colombiano Juan Alvaro Echeverri. Construo, então, em suas feições básicas, meu encontro etnográfico:

Cheguei a San Rafael, um dos cinco aldeamentos do rio Carapara-ná14, em uma noite chuvosa de março de 2000. Não havia sido possí-vel avisar de minha chegada. Levava comigo alguns presentes e uma carta de apresentação escrita por Juan Echeverri. Após mais algumas revistas e interrogatórios na base do exército, e após ter autorização para entrar na área pelo corregidor indígena local, por fim deixei El Encanto com um genro de Don Ángel, Eliodoro, que se encontrava no aldeamento resolvendo problemas pessoais15. Quando cheguei, Don Ángel e alguns de seus aprendizes já se encontravam reunidos no mambeadero. Alguns jovens tostavam as folhas de coca16, um jo-vem, mais experiente (o que soube depois), próximo à roda de ho-mens sentados na pouca luz, pilava a coca já tostada. Hermes, filho do cacique, peneirava a coca pilada acrescida de cinza de embaúba17. Fui convidado a sentar na roda e me apresentei dentro da seguinte cadência de assuntos: 1) era antropólogo brasileiro; 2) estava come-çando as pesquisas para meu doutorado; 3) Juan Echeverri me havia falado muito bem de Don Ángel, que era um “grande conhecedor”, pelo que resolvera então fazer uma “visita” para conhecê-lo, conhecer a região, quem sabe realizar minha pesquisa de campo no aldeamen-to ou em algum outro do rio; 4) era interessado no período cauchei-ro (1900-1930), em entender como se formaram as ocupações do rio Caraparaná (no século XIX pouco povoado, com alguns aldeamen-tos murui apenas à montante). Entreguei-lhe os presentes que trazia:

14. São eles: El Encanto, na foz do Caraparaná, afluente esquerdo do rio Putumayo, seguido por Tercera Índia, San Rafael, Puerto Tejada e San José. 15. Em El Encanto, na foz do Caraparaná, fronteira internacional entre Colômbia e Peru, além do aldemaneto indígena, é formado também por uma grande base do Exército e da Marinha. Diariamente, indígenas dos demais aldeamentos uitoto-murui o visitam para resolver problemas de diversas ordens, de venda de excedentes de produção (agricultura, caça e pesca), até busca de documentações e mesmo usar o telefone. Dentre os membros dos demais aldeamentos do rio, El Encanto é por vezes classificada como uma “aldeia internacional”. 16. Erythroxylon coca var. Ipadu.17. Para uma explicação detalhada material e simbólica do uso ritual da coca e da instituição do mambeadero na Amazônia, e nos Uitoto em particular, vide Echeverri & Pereira (2005).

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uma rede, anzóis, linha de nylon, alguns cadernos, canetas, fósforos e tabaco, e uma carta de apresentação (escrita por Juan Echeverri, em bue e espanhol)18. Don Ángel os recebeu expressando alegria e gra-tidão e dizendo que eram “bons presentes” por que eram “úteis para quem vive na floresta”. Em seguida, leu a carta de apresentação, que o fez rir dado o tom em que fora escrita por Echeverri, dialogando com o que eu descobri depois ser um certo senso de humor, marca do modo de Don Ángel mediar relações, bem como marca daquele es-paço de diálogo ritual e transmissão de conhecimento. Apresentou-me então aos demais presentes, explicou-me que lugar era aquele em que estávamos, lugar “sagrado”, de “vida”, e que eu ficasse tranquilo19, que podia ficar o tempo que quisesse e que mais tarde cuidaria de arrumar um lugar para eu dormir. Passado isso, sem que eu tivesse pedido nada, virou-se para mim e disse: “Antropólogo... Muito bem, pegue seu caderno de campo”. Peguei-o, um pouco surpreso. Disse-me: “Muito bem, comecemos: mito de origem”. E começou então um relato que se extenderia ao longo dos próximos três dias, apresen-tando-me uma versão resumida da narrativa de komemafo, o buraco pelo qual haviam saído (localizado no médio rio Igaraparaná, área também uitoto)20. Apesar de meu pedido, não me deixou gravar, ape-nas apontar em meu caderno. Este fato se seguiria ao longo de todo o processo etnográfico: por vezes, me deixava gravar, mas em geral pedia para que eu escrevesse. Quando gravávamos, pedia para es-cutar, para ver se havia sido bem gravado. Por vezes, gravávamos de novo. Nos dias seguintes do relato, me pediu para ler o escrito no dia anterior, fazendo correções ou aprovando (que estava “aprendendo bem”), para retomar a narrativa do ponto onde havia parado (San Rafael, feveiro de 2000. A partir de notas de campo).

18. Dentre os dialetos encontrados dentre os Uitoto, os Murui são falantes de bue, apesar de ser muito comum encontrarmos falantes de mais de um desses dialetos.19. Os anos de 2001-2001 foram os anos de acirramentos do conflito interno colombiano na região, com a chegada de algumas vanguardas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), em especial ao norte de onde estávamos, no rio Caquetá.

20. Narrativa mítica bastante conhecida e registrada, tanto dentre indígenas, quanto dentre estudiosos

da região do interflúvio dos rios Caquetá e Putumayo.

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Esta situação social me parece exemplar para apresentar parte das condi-ções de produção do processo etnográfico experenciado e do consequente conhecimento antropológico gerado: Como cheguei em San Rafael, a partir de que conjunto de relações e sob que condições? Como fui interpretado por Don Ángel, sob que supostos de representação e modelo de relaciona-mento? A que representação chegamos de sua gente? São alguns dos itens investigativos que tento percorrer a seguir. LETÍCIA, DEPARTAMENTO DO AMAZONAS, COLÔMBIA

Na década atual, trabalhar na Colômbia não significa apenas encontrar-se com um grupamento indígena, mas também relacionar-se com uma série de mediações de diversas ordens para poder chegar, por fim, até o esperado aldeamento: desde os orgãos de migração, o exército e a Oficina de Assun-tos Indígenas, até outros pesquisadores, ONGs, missionários e organiza-ções indígenas (locais e supra-locais). Além disso, a região do interflúvio Caquetá-Putumayo é conhecida na linguagem militar como “zona verme-lha” por conta da presença de vanguardas guerilheiras na região, no caso em especial das FARC. Até o ano de 2003, o médio Caquetá era controlado pela guerrilha, em especial a partir de Araracuara; enquanto que o médio Putumayo era controlado por contingentes do exécito e da marinha co-lombianas, em especial a partir da base de El Encanto, foz do Caraparaná21. Estes fatos marcam em algum nível e intensidade as relações sociais engen-dradas na região, em especial no período entre os anos de 2000-2001. Mas preciso escolher eixos dialógicos, pontos de inflexão ao longo do processo etnográfico. Concentro-me, então, no modo como “escolhi” o rio Carapa-raná como região de estudo e de como cheguei a San Rafael e a Don Ángel Ortiz. Cheguei a Letícia em meados de janeiro de 2000, com uma carta de apre-sentação (a primeira de algumas) de meu orientador22, uma dissertação de mestrado concluída de cunho bibliográfico sobre a região23, e um ende-reço: a sede do Instituto Imani de Investigações Amazônicas, extensão da Universidade Nacional da Colômbia, com sede em Bogotá. Havia gostado especialmente do material etnográfico Uitoto, mas estava aberto a trabalhar

21. Na atualidade, essa presença é mais difusa e circunstancial para o médio Caquetá-Putumayo22. João Pacheco de Oliveira. 23. Pereira (1999).

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com alguns dos demais grupos indígenas da região usualmente conhecida na literatura etnológica dedicada à tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia como “noroeste do Amazonas”. Após conversa com o diretor da sede, tive autorização para trabalhar na bilbioteca da Instituição, bem como recebi uma carta de apresentação (a segunda) para formalizar meu trabalho e re-solver minha situação legal junto às autoridades policiais colombianas24. Nesse período, dediquei-me a estreitar relações com alguns dos pesquisa-dores do Instituto; a continuar a pesquisa na biblioteca da instituição e em acervos pessoais de alguns de seus membros; a mapear as instituições esta-tais, religiosas e não-governamentais que travavam relações com as popu-lações indígenas; e a algumas visitas a alguns dos assentamentos indígenas próximos (Tikuna e Uitoto). Foi nesse período que conheci Juan Alvaro Echeverri, antropólogo, investigador e professor do Instituto, especialista nos grupos do médio Caquetá-Putumayo, em especial os Uitoto-Muina do rio Igaraparaná. Após algumas conversas, entusiasmado, Echeverri suge-riu como um possível locus de pesquisa o rio Caraparaná, cuja ocupação atual havia começado apenas na década de 1930, com o fim da escravidão caucheira. Este rio, enfatizou, era “pouco conhecido etnograficamente” se comparado ao Igaraparaná, tendo ali sido realizadas pesquisas antropo-lógicas apenas no final da década de 1960 e parte da década seguinte25. Sugeriu também que procurasse por Don Ángel Ortiz, cacique de San Ra-fael, conhecedor das tradiciones do grupo indígena e acostumado à prática antropológica. Como enfatiza Barth (2000b), o “problema da representa-tividade” coloca-se constantemente para o pesquisador em campo ao lon-go da constituição e organização de seus dados, da relevância de cada um destes para um suposto sistema geral que os abarca: como assegurar, p.e., “a não ocorrência de uma generalização ou projeção imprudente sobre outras comunidades da região a partir de algo que talvez fosse uma característi-ca idiossincrática ou singular de uma determinada aldeia”? Afinal, quem são esses “etnógrafos indígenas”, como o coloca Clifford (1998:53), com os quais se constrói o esboço a que chegamos da sociedade e da cultura de um dado grupo humano? Depois de algumas conversas com Juan Echeverri, reconhecido como um dos “nomes” (BOURDIEU, 1996:186) no campo etnológico colombiano, e

24. Carlos Zárate (diretor), Carlos Franky, Dany Mahecha e Jose Vieco.25. Sobre o rio Igaraparaná, também habitado por parte dos Uitoto, já havia ampla literatura, não só antropológica, mas relatos de diversas ordens, de militares e comerciantes a missionários.

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da leitura de seu trabalho, organizei a pesquisa no rio Caraparaná, ao me-nos, a ida até lá, aprendendo, entre outras coisas, as primeiras noções sobre as dinâmicas das conversas noturnas no mambeadero e os usos materiais e simbólicos da coca e do tabaco26, instrumentos de comunicação centrais para dialogar com os Donos de mambeadero e seus seguidores. Uma vez definida a região, sugeriu, a partir de seu capital de relações na região, que procurasse Don Ángel Ortiz em San Rafael por ser ele também, ainda nos termos de Bourdieu (ibid), um “nome” no que poderíamos classificar como o “campo intelectual murui” envolvendo aqueles que no rio eram reconhe-cidos em espanhol como tradicionalistas e em Uitoto como nimairama (traduzido como “conhecedor”, “Dono da história” ou “filósofo”), campo intelectual que articula, em redes e contra-redes, na relação entre mestres e aprendizes, mambeaderos e outros mambeadores27, e que se organiza em linhas de transmissão e aquisição de conhecimento ligando famílias, aldea-mentos e regiões. Desse encontro, saí com minha terceira carta de apresen-tação (bilíngue), desta vez, destinada ao cacique de San Rafael.

SAN RAFAEL, EL ENCANTO, RIO CARAPANÁ

Após a autorização para entrada no rio Caraparaná por parte do coman-dante da base do exército em El Encanto, povoado localizado na foz do rio, era preciso buscar autorização das autoridades indígenas. Para desenvolver o trabalho de campo em San Rafael, foram necessárias duas reuniões for-mais de apresentação e pedido de autorização para permanência em área: com o gobernador da “comunidade”, Abelardo Palomares28, em San Rafael; e com o corregidor de El Encanto, Luis Alberto Menitofe29, Murui nascido em San Rafael (sobrinho de Don Ángel). Foram emitidos dois documentos em que ambas as partes reconheciam comum acordo com relação à minha permanência, além do próprio Don Ángel que com esta já consentira (logo em nosso primeiro encontro). Desde a Constituição de 1991, os grupos indígenas colombianos têm controle administrativo sobre seus territórios desde que estejam de acordo com os «usos y costumbres» de cada grupo,

26. Nicotiana tabacum.

27. Termo geral empregado em espanhol para chamar a todos aqueles que participam com alguma freqüência das conversas noturnas e que produzem e processam coca e tabacos como instrumento ético-morais e de disciplina do corpo e do espírito (ECHEVERRI & PEREIRA, 2005).28. Aprendiz de Don Ángel.29. Sobrinho de Don Ángel.

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conforme expresso na Carta Magna (RAPPAPORT & DOVER, 1996). O contexto de negociação entre antropólogos e autoridades indígenas sobre as condições de desenvolvimento de pesquisa em campo, passadas já pouco mais de três décadas desde os primeiros trabalhos realizados nesse rio (e no médio Caquetá-Putumayo), mudou bastante, sendo esse personagem – o antropólogo - já integrado às agências com as quais o grupo tem contato. Não é incomum, no contexto contemporâneo da pesquisa na região dos médios Caquetá e Putumayo, ainda que por vezes apenas ao nível do dis-curso (discurso corrente, enfatize-se), ser figura não desejada, no mínimo recebida com desconfiança sob acusações como a «levar para longe conhe-cimento do grupo sem deixar nada em troca». Como analisa comparativa-mente Oliveira (2004:19) diante de outras situações etnográficas relatadas na atualidade da pesquisa etnológica, apesar de continuarmos oferecendo tabaco e comprando artesanato: “a decisão de aceitar ou não a presença de antropólogos em suas aldeias, porém, já passa por outros fatores e um sis-tema de cálculo mais elaborado”. Voltarei a esse ponto ao final desta seção.Mas quem é Ángel Ortiz? Como se apresenta e como é reconhecido pela gente de San Rafael? Don Ángel Ortiz nasceu na década de 1940, sendo um dos filhos, o mais novo, de Benedito Ortiz, cabeça do grupo que fundaria, na década de 1940, o aldeamento que viria a se chamar, após a chegada de missionários capuchinhos uma década depois, San Rafael (“Medicina de Deus”)30. O período de atuação da empresa extrativista do caucho, especi-ficamente a conhecida Casa Arana, tem seu auge com o translado forçado das populações nativas do interflúvio dos médios rios Caquetá e Putumayo para a margem direita deste rio pouco antes do conflito colombo-peruano de 1932 pela delimitação da fronteira entre os dois países. O Caraparaná e o Igaraparaná ficariam “vazios”, conta Don Ángel. Após o conflito, progres-sivamente iniciar-se-ia a re-ocupação do rio, antes habitado apenas em sua parte alta. A família de Benedito Ortiz, do clã naimeni (“doce”), é uma das primeiras a nele chegar. Don Ángel conta que seu canasto (cesto) – imagem corrente utilizada para referir-se ao conhecimento que se vai acumulando ao longo da vida, e em particular no mambeadero - lhe foi sendo transmi-tido desde muito cedo (por volta dos 12-13 anos), que foi herdado princi-

30. Em Pereira (2005), apresento a chegada dos Ortiz na década de 1940 na quebrada onde erigiriam pequena maloca para cujas cercanías ao longo das décadas novas famílias chegariam conformando o que é hoje o aldeamento de San Rafael, o mais importante do Caraparaná, por concentrarem-se nele o hospital regional e o internato capuchino que reúne crianças do Igaraparaná, Caraparaná e Putumayo.

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palmente de seu pai, Benedito Ortiz, mas também de sua avó paterna, Ne-mência. Com a morte de seu pai, passa a se sentar com Kuegajima, ancião que vivera em San Rafael e fora afamado pelos bailes que promovia. Sua avó Nemência era filha de Uruani, afamada liderança, que detinha o “cesto da guerra”, sua especialidade dentro dos conhecimentos do mambeadero, e que vivera rio acima, um “sobrevivente” do tempo do caucho. Fora com Uruani que Kuegajima se sentara. Além disso, por sua posição política den-tro do movimento indígena, representante do cacicado amazônico, viajou muito, especialmente entre o rio Igaraparaná e Letícia, quando “investi-gou” - termo correntemente usado por Don Ángel - mais sobre o “mundo da coca e do tabaco” visitando outros mambeaderos, tanto Uitoto, quanto dos demais grupos do Caquetá-Puumayo que também tem esta instituição. Reflexões, como as de Tonkin (1992), alertam para a necessidade de se pen-sar criticamente, dentro do trabalho com fontes orais, a idéia de “biogra-fia”, de “história de vida”, não apenas como retratos de experiências estrita-mente individuais. “Tenho argumentado”, salienta Tonkin (1992:131), “que historiadores estão errados em argumentar que testemunhos vêm de um indivíduo como um universo singular”. A este ponto acrescenta (ibid): “sua consciência individual deve ser formada socialmente. É por esta razão que eles podem mentir, esquecer, enquanto indivíduos singulares e também so-cialmente, como parte de um padrão”. Os Comaroff (1992:26), na mesma li-nha crítica ao exercício biográfico pouco rigoroso, colocam-no como “uma fantasia moderna sobre a sociedade e o indivíduo para a qual todos es-tão, potencialmente, em controle de seus destinos em um mundo feito por ações de “agentes” autônomos”. Perguntado pelo pesquisador sobre a fonte de seu conhecimento, traçando parte de sua genealogia de conhecimento, Don Ángel expõe: por um lado, as bases que fundamentam sua autoridade enquanto conhecedor de sua “tradição” (autoridade e linhagem reconhe-cidas pelos demais “tradicionalistas” do rio)31; por outro, expõe parte do processo de transmissão de conhecimento entre os Uitoto, conhecimento ligado à origem clânica e às dinâmicas que ordenam as conversas notur-nas do mambeadero, espaço público, lugar por excelência de transmissão de saberes (da cosmologia, ao canto, chefia e processos terapêuticos), mas também lugar de condução de decisões políticas e mediações de relações

31. No Caraparaná, eram reconhecidos como “tradicionalistas”: Don Luccas Agga, de Tercera India; Don Gregorio Gaike e Don Ángel Ortiz, de San Rafael; e Don Jacinto de San Jose.

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com as agências indígenas e não-indígenas, governamentais e não-gover-namentais32:

Gráfico de linha de transmissão de conhecimento de Don Ángel Ortiz.

Diante desta trajetória de formação, podemos reunir, neste ponto, ao me-nos duas condições de possibilidade com as quais todo o conhecimento produzido no processo etnográfico esteve articulado, e que “posiciona” (BARTH, 2000b) a representação da sociedade e da cultura reunidos ao final no formato tese:

32. Uma maneira possível de ler o mambeadero, como o coloca Barth (2000a:75) para as reuniões do conselho pathan seria a de um espaço privilegiado para “disseminar de maneira adequada informações que permitam a manutenção, ao longo do tempo, de um conjunto compartilhado de valores e percepções”. Ao mesmo tempo, este pode ser pensado, dentro dos termos de Tambiah (1985:131), como ocupando um “papel de tradicionalização” dentro do desenvolvimento da organização social do grupo e do conhecimento por este manejado. Nesse sentido, enfatiza (ibid:133) que para os envolvidos em um dado ritual é preciso “aprender a aprender”. Mambear, tomado em seu sentido amplo, pode envolver um iniciante em uma gama cada vez mais complexa de conhecimentos, condutas e valores, que se iniciam com saberes bem básicos, tais como tostar e saber oferecer e receber a coca dentro de certa etiqueta, de certos preceitos a esta associados.

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(1) Estamos diante de uma versão do clã naimeni (“inhame doce”). Por ser naimeni, “tribo que nunca se sentou em dentes”, sua palavra é “doce”, não é palavra “quente”, palavra de guerra. É palavra “tem força para fazer amanhacer, para frutificar, para ensinar”. Por isso, no manejo cotidiano das relações, o exercício político Ángel Ortiz pauta-se ou na conciliação, na busca de consenso diante das tensões por que passa sua gente33

(2) Como líder local e, ao mesmo tempo, tendo feito parte do mo-vimento indígena regional, ele transita por dois modelos políticos com os quais dialoga e através dos quais interpreta e age: um “tradi-cional”, baseado em seu aprendizado das práticas e saberes ligados ao processamento da coca e do tabaco associados com a formação e os processos decisórios de um iyaima (chefe); outro desenvolvido ao longo do contato com não-índios, que atualmente se configura em um modelo de cabildos e associações locais e supra-locais inter-ligadas por federações de representação regional e nacional. Neste último modelo, o ancião trabalhou, entre as décadas de 1980 e 2000. Ao longo desse período, acompanhou e foi protagonista da formação de um movimento indígena amazônico e do campo indigenista con-temporâneo na região. Neste período, conviveu com missionários, agentes do estado, representantes de ONGs ambientalistas e de ação social, pesquisadores universitários (antropólogos, lingüistas, geó-grafos, biólogos, economistas, historiadores), jornalistas e o público mais amplo. Em suas estratégias e recursos narrativos, o ancião dia-loga com este quadro de agências, discursos e saberes, deles fazendo uso para organizar sua fala, de forma a apresentá-la da forma o mais abrangente possível em termos intra e extra-comunidade.

Por fim, antes de concluir esta seção do exercício, devo ainda apresentar, além das relações estabelecidas com Juan Echeverri e Don Ángel e o modo como estas foram condicionando os perfis e recortes da pesquisa realizada, as ne-gociações sobre como “pagaria” pela pesquisa: (a) por ficar na casa de Don Ángel, com ele aprendendo, e (b) por ficar em San Rafel. Este foi um dos

33. Se comparamos sua forma de governaça com a de seu padrinho, Don Gregorio Gaike, de clã de “coração quente”, conhecido como “violento”, portador de “palavra quente”, que decide na tensão e na força os procesos decisórios do grupo.

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primeiros assuntos de que tratamos logo que cheguei à sua casa. Com Don Ángel, acordamos que, uma vez eu não tendo maiores recursos, pagaria como um jovem paga a um avô, a um mambeador: trabalhando em seu roçado e tostando sua coca. Mais tarde, eu me daria conta de que para aqueles que se colocam como “aprendizes” de um conhecedor, dentro das dinâmicas de transmissão de conhecimento do mambeadero, há o “pagamento” pelo que se está aprendendo: pagamento em coca – “ainda que seja uma só colherzinha” -, em tabaco e em trabalho (do plantio e colheita do roçado à tostada e a pilada no mambeadero)34. Além disso, tive também de negociar contrapartidas com o cabildo local, o que se materializaria, principalmente, no trabalho de produ-ção de um documento bilíngue contendo dois conjuntos narrativos cosmoló-gico-históricos (espécie de cartilha resumindo a cosmologia do grupo), bem como em minha participação na elaboração do “estatuto” do cabildo de San Rafael e na feitura de um censo e de um mapa. Nossa rotina de trabalho seria, basicamente, a seguinte: de segunda a sábado, pelas manhãs, seguíamos para seus roçados, que ficavam em uma pequena quebrada, rio abaixo, na margem esquerda do Caraparaná. Estes seriam os únicos momentos em que teríamos alguma privacidade, nos quais pude especificar e desenvolver alguns dos conhecimentos que ele me passava. Em termos simbólicos, as atividades do roçado eram correlatas às do mambeade-ro, uma vez que muitos dos nossos trabalhos – por exemplo, limpar, semear, queimar – serviam como imagens35 para “aconselhar” aos jovens difundin-do os princípios da Palavra de Coca e de Tabaco (jiibina uai diona uai)36, modo como podia ser chamado o conjunto de conhecimentos reunidos no mambeadero. Além disso, segundo o ancião, o modo como trabalhávamos no roçado era relacionado com as práticas do mambeadero, uma vez que mu-davamos constantemente de atividade (limpando tabaco, colhendo mudas, deservando, limpando, plantando, colhendo coca, tabaco e mandioca) para que fossemos “dinâmicos”, da mesma forma que quando se falava no mam-beadero, sempre se mudava de “campo”, nunca, ao longo de uma mesma fala, ficando-se em apenas um só tema.

34. Para um aprofundamento nas lógicas de relacionamento entre mestres e aprendizes, vide Pereira (2005) e Echeverri & Pereira (2005). 35. Nos termos de Turner (2008:21), “metáforas-radicais”.36. “i”: “vocal alta central, se pronuncia colocando la lengua en la posición de u y los labios en posición de i” (CANDRE & ECHEVERRI, 1993). No restante, os demais fonemas podem ser pronunicados tal qual o espanhol.

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Depois do trabalho no roçado, de volta a San Rafael, chegando sempre no início da noite, já começávamos os trabalhos com a coca. Esse trabalho seria realizado, principalmente, por Hermes, filho de Don Ángel, José, seu neto, José, e o “antropólogo brasileiro”. No mambeadero, ao longo dos encontros noturnos, se recebia, além dos aprendizes habituais, representantes do cabildo local, de OIMA (Organização Indígena Murui do Amazonas), lideranças do Igaraparaná, representantes de instituições do estado e não-governamentais. Rapidamente, me dei conta de que, dada a dinâmica em que me encontrava, dificilmente teria o tempo e a situação favoráveis para dar conta do primeiro tema que havia pensado ao aportar em San Rafael: constituir uma etnohistó-ria da ocupação pós-1930 do Caraparaná. Além da rotina de contrapatidas, que praticamente consumia todo o tempo de minha estadia, assim como nos relata Evans-Pritchard (2005) que o gado era um tema central para os Nuer, a bruxaria para os Azande, não era sobre sua história que naquele momento a gente do Caraparaná estava preocupada, não era sobre isso que conversavam, mas sim sobre um tema que chegava de fora e sobre o qual teriam de se po-sicionar: o desenvolvimento. Diante desse quadro, ao final do processo etno-gráfico em San Rafael, além de uma etnografia da coca e do tabaco (do roçado ao mambeadero) e dos processos de transmissão do conhecimento reunidos pela Palavra de Coca e de Tabaco, a perspectiva que passei a perseguir foi a de relacionar as instâncias rituais com as políticas. Ou, dito de outra forma: como a Palavra de Coca e de Tabaco era articulada para interpretar a arena do desenvolvimento que chegava por diversas vias ao Caraparaná? Como a gente de San Rafael, liderada por seu cacique e seu cabildo, tomando a lógica do mambeadero como referencial, propunha um modelo local de gestão baseado em certos pressupostos éticos e certas práticas de construção de consensos?37

PALAVRA DE COCA E DE TABACO COMO “DESENVOLVIMENTO”

Um elemento chave de distinção do grupo usualmente conhecido como Ui-toto38 e dos demais “Povos do Centro”39 para com os grupos indígenas vizi-

37. Vide Pereira (2005).38. Usualmente conhecido como Uitoto (que em língua carib significa “inimigo”), entre as formas de auto-designação dos membros do grupo, estão as de Murui ou Muina-murui, de acordo com suas regiões de origem, respectivamente os rios Caraparaná e Igaraparaná. Este tema aparecerá explicitado no capítulo 5. 39. Pueblos del Centro é a auto-denominação utilizada pelos grupos indígenas que habitam a região entre os médios rios Caquetá e Putumayo (Uitoto, Ocaina, Nonuya, Bora, Miranha, Muinane e

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nhos é o consumo ritual de coca (mambe) e de tabaco (ambil). Em torno da ingestão do ambil (yeraki) e do preparado das folhas de coca secas, piladas e peneiradas (jiibie), articulam-se e desenvolvem-se modos específicos de preparo das substâncias e de práticas e conceitualizações a estes associa-das. Ao fim de cada dia, em lugar específico usualmente conhecido como mambeadero - nos dialetos Uitoto denominado como jiibibiri (GASCHÉ, 1972:187) -, reunem-se, diariamente, alguns dos homens do grupo para preparar, dividir e consumir coca. Dentro da bibliografia antropológica de-dicada aos Uitoto, o consumo da coca é apresentado por Steward (1948:579) em seção intitulada “narcotics and beverages”, da seguinte forma: “A coca, cultivada localmente por essas tribos [tribos witoto], é tostada, pulverizada e misturada com cinza de folhas. Comida no lugar da alimentação, produz um efeito de sustentação». De fato, no período em que o Handbook of South American Indians é organizado, muito poucos eram os dados advindos de trabalhos de pesquisa de campo intensiva. A coca não substitui a comida, nem tão pouco é “comida” ela mesma. Mambear é o termo de uso genérico utilizado para designar tanto o ato de consumo em si (de levar à boca o mambe, a coca já preparada, colocando-o em suas laterais, na altura das glândulas salivares, deixando-a dissolver lentamente), quanto todo o co-nhecimento e regras de conduta à coca associados. Após suas jornadas diárias de trabalho, após já estarem devidamente alimentados, alguns dos homens reunem-se, no início da noite, para preparar e dividir a coca e para aprender o conjunto de conhecimentos ao qual Don Ángel Ortiz chamava de jiibina uai diona uai, “Palavra de Coca e de Tabaco”. Uai é traduzível por “palavra verdadeira, palavra certa” (PREUSS, 1994). Em espanhol, o ancião também denominava a esse conjunto de conhecimentos como “Doutrina Verdadeira”: “é como um estatuto, por que é parte da lei. É um critério, uma disciplina”. De fato, do ponto de vista de um tradicionalista como Don Ángel, trata-se de uma palavra enunciada com fins de formação de forte cunho ético-moral.

Andoque), área oficializada pelo governo colombiano desde 1988 como sendo de propriedade indígena constituindo o resguardo Predio Putumayo. Ainda que sejam lingüísticamente diferentes, partilham elementos culturais que os tornam distintos de grupos indígenas vizinhos. Outra denominação assumida pelos grupos é a de Gente de Ambil (ECHEVERRI, 1997).

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Mambeadero da casa de Don Ángel Ortiz, ali presente desde a fundação de San Rafael, no final da década de 1930. Sentados, Hermes Ortiz, filho de Don Ángel, com seus dois filhos (02/2000).

Apesar da relevância dos saberes e das práticas ligadas à coca e ao tabaco no dia a dia dos grupos indígenas habitantes do interflúvio Caquetá-Putumayo, quando iniciei minha pesquisa, poucos eram os investimentos de fôlego no seu estudo e na sistematização e apresentação de dados. Em termos concre-tos, mambear significa ficar sentado longas horas no mambeadero, todas as noites, imóvel, escutando as palavras de um ancião, ritualmente conhecido como um nimairama, mas corriqueiramente denominado, simplesmen-te, “Dono de mambeadero”, conhecedor da Palavra deixada pelo Criador, Moo Buinaima. Significa também participar em alguns dos momentos de processamento da coca e do tabaco, seja plantando-as, seja colhendo-as e transformando-as para seu consumo. Mas como já salientei, o mambeadero é também instituição política que divide com o cabildo a responsabilbidade diante dos processos decisórios que envolvem aldeamentos e associações de representação. É o lugar de onde um cacique legisla fazendo uso da “Pa-lavra de Coca e de Tabaco” como canal e idioma de comunicação no mane-jo político das relações sociais. Ao longo dos anos de 2000-2001, não raro asssiti às reuniões decisórias (dos trabalhos coletivos nos roçados, às festas e questões mais amplas ultrapassando o aldeamento) envolvendo índios e não-índios nesse espaço de formalismo e etiqueta. Se já estava claro, dadas as condições de possibilidade em que me encontrava, com trabalhos de se-gunda a sábado nos roçados de Ángel Ortiz e depois em seu mambeadero, que parte de minha etnografia daria conta dos processos materiais e simbó-

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licos envolvendo a coca e o tabaco, ao longo dessas reuniões foi ficando cla-ro outro eixo etnográfico: as discussões sobre o modelo de desenvolvimen-to. Considerando as demandas locais e mesmo supra-locais (já que a Cons-tituição de 1991 rezava sobre a articulação dos “usos e costumes” indígenas para fins de gestão territorial e política), como perfilar uma proposta de desenvolvimento que estivesse de acordo, em especial, com os pressupostos da “Palavra de Coca e de Tabaco”? Neste ponto, começava a se configurar o que seria o tema central da tese: qual modelo de desenvolvimento foi gera-do, tomado o jogo relacional que envolveu índios e não-índios? Este não é o momento para retomar essa discussão, mas aponto apenas que diante da demanda de agências externas (que em três meses, baseado no modelo de planejamento trifásico diagnóstico-projeto-resolução, esperava abarcar to-das as 5 “comunidades” do rio em um só projeto geral), Don Ángel e os seus resolvem começar por onde sempre se começa no mambeadero: narrando. No caso, narrando a trajetória de sua gente, desde a saída de komemafo até o período dos primeiros homens, passando pelo dilúvio, a chegada da se-gunda geração, a aquisição da “Palavra de Coca e de Tabaco”, até os massa-cres do caucho e o período de reorganização ao longo do século XX. Tudo isso, dizia o ancião: “para que se possa organizar todos os trabalhos que se queira fazer, para que se saiba como estamos e porque estamos assim”. No fundo, sua preocupação central, preocupação de mambeador, de Dono de mambeadero, era com o que chamava de “conformação do homem ín-dio”, para que seja ético, não importando em qual tarefa esteja envolvido. Deste modo, portanto, enquanto a equipe que visitava o Caraparaná (for-mada por representantes da Organização Indígena Murui do Amazonas e da Organização Nacional Indígena da Colômbia e de um técnico não ín-dio) circulava pelos aldeamentos do rio com um conjunto de questioná-rios tendo ao modelo reunião participativa como situação de comunicação; no mambeadero, Don Ángel, seus aprendizes, membros do cabildo local e outros anciões recordavam e começavam a narrar um conjunto extenso e complexo de narrativas a que denominavam de sua “história”, desde seu “nascimento” até a contemporaneidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando cheguei em San Rafael, pensava em concentrar-me especificamen-te na constituição de uma história (uma etno-história) do povoamento do

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rio Caraparaná a partir dos anos 1930, fim da atuação das empresas do cau-cho, pouca atenção inicial sendo dada ao caráter ritual dos Uitoto-Murui e ao mambeadero enquanto instituição. Dadas as condições de possibilidade experienciadas, novos rumos foram tomados. Uma das tendências de apro-ximação à realidade sócio-histórica amazônica desenvolvida nas últimas três décadas tem sido a que Pineda (1989), para o caso colombiano, e Oli-veira (1999), para o brasileiro, classificam como uma “antropologia históri-ca”. Neste contexto, maior atenção vem sendo dada ao caráter construtivista e posicionado da cultura e das formas de organização social, bem como às conseqüências da prática investigativa para os resultados a que temos che-gado. No dia a dia do exercício etnográfico, como vimos, em seus diversos planos dialógicos (mais centralmente nas relações entre um antropólogo e um intelectual indígena), os caminhos da pesquisa foram sendo reformu-lados dentro das relações que foram sendo construídas, dentro dos dados que foram sendo produzidos e organizados. Modelos de relação e repre-sentação foram sendo negociados, e uma imagem, mais ou menos nítida (que ganha maior nididez quando narrada), foi sendo decantada de qual trabalho estávamos fazendo e de quem eram os Uitoto, morfológica e sim-bolicamente, de onde vinham, para onde apontavam. Certa vez, quando já havíamos construído alguma confiança, Don Ángel me diria jocosamente: “vocês antropólogos só pensam em coisas velhas. Só querem saber como éramos, como estávamos. Raramente nos perguntam: como estamos? O que queremos?” Neste ponto do processo de trabalho, tanto vislumbramos qual representação o ancião tinha da nossa disciplina, quanto o seu projeto de representação fica bem claro. Como tentei demonstrar, ainda que muito resumida e esquematicamen-te, cálculos de diversas ordens foram feitos pelo ancião e pelo aprendiz de antropólogo, cálculos baseados em suas respectivas trajetórias e experiên-cias e, especialmente, nos respectivos campos e dinâmicas intelectuais a que cada um pertencia: a antropologia e a “Palavra de Coca e de Tabaco”. No jogo de reconhecimentos, tensões, mas de busca de consensos, cada ator alcançou parte do que buscava: conhecimento e reconhecimento. Dado o caráter situacional e dialógico do trabalho etnográfico, como nos lembra Oliveira (2004:22), se contituiu “um processo de comunicação”, do qual uma imagem do que seja a antropologia e uma imagem do que seja o mambeadero são resultantes. Mas para além dos contextos locais de inves-tigação representados, retomo agora o início deste trabalho, relacionando os adventos experenciados pelo antropólogo em formação e a gente de San

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Rafael com as mudanças políticas e metodológicas que vem ocorrendo na disciplina (e alhures), com a busca de alternativas, tanto por antropólogos, quanto por indígenas, para a continuidade dos trabalhos de investigação. Diante dessa busca, poderíamos tomar das palavras de Bachelard (1996:19) - intentando sair um pouco do âmbito de como a disciplina antropológica vê a si mesma - quando este enfatiza que «um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado». Ao final, pensar que, assim como as culturas, as sociedades, as formas de organização social, também o conhecimento antropológico é susceptível ao tempo, é reelaborado diante das relações sociais, é disputado e polido diante da imprevisibilidade do encontro etnográfico.

San Rafael, mambeadero, 21/02/2000. Sobre um dos bancos estão dois gravadores, o do pesquisa-dor e o de Don Ángel. Os dois potes, da esquerda para a direita, são de coca e de tabaco. Don Ángel, na rede que lhe dei de presente logo que cheguei, procura em livro sobre a reconquista indígena do Resguardo Predio Putumayo detalhes cronológicos a partir de pergunta que lhe coloquei.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAPITULO VPROCESSOS SOCIAIS E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE OS APÃNIEKRA JÊ TIMBIRA: UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA DE UMA SITUAÇÃO SOCIAL

Luis Augusto Sousa do Nascimento

Esse artigo é um recorte da minha dissertação de mestrado, defendida em julho de 20091. Trata-se de situação etnográfica vivida durante a última eta-pa de minha pesquisa de campo – abril a junho de 2008 – quando veio à tona um “drama social” em razão da morte de uma garota do grupo Apã-niekra, que foi acidentalmente atingida no rosto por tiros de espingarda disparados por seu primo cruzado. Essa situação disseminou um estado de tensão e de crise, culminando em conflitos envolvendo vários segmentos residenciais, grupos de parentesco, lideranças locais, extra-locais e media-dores portadores de distinta esfera de poder e conhecimento (chefes de al-deia, chefes cerimoniais, chefe de posto, professores, missionários, funcio-nários da Funai, antropólogos etc.), cada um desses agentes apresentando argumentos de natureza distinta, quando todos passaram a trabalhar numa perspectiva de se chegar a um “equilíbrio” consensual para a resolução do conflito deflagrado. Dessa maneira, apresento nesse artigo, os arranjos polí-ticos e cerimoniais constituídos durante o processo de resolução do confli-to, quando o grupo arquitetou um “tribunal” que passou a trabalhar idéias e conceitos multifocais de regras morais e legais na perspectiva de produzir resultados uniformes e consistentes para resolução dos conflitos emersos.

QUEM SÃO OS APÃNIEKRA JÊ TIMBIRA?

Os Apãniekra são classificados linguística e etnologicamente como perten-centes ao tronco linguístico Macro-Jê, falante da língua Jê-Timbira, liga-

1. Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRN, pesquisador associado ao Centro de Trabalho Indigenista – CTI.

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dos ao “complexo cultural Timbira”. Nas etnografias dos grupos Timbira, assim como na maioria das etnografias dos grupos Jê, esses são caracteri-zados como de organização dual2, eixos através dos quais se articulam os processos de organização social do grupo. As polarizações noite/dia, seco/molhado, mehẽ/kopë (índio/não-índio), hõnpin/pintyjre (comadre/compa-dre), put/putdler (sol/lua), pátio/periferia são presentes no complexo re-lacional do grupo. Essa organização se reflete na distribuição espacial de suas aldeias, que se constituem em um formato circular, onde as casas são ordenadas na esfera do círculo, tendo no centro desse círculo o pátio – kà – lugar onde os homens se reúnem para tratar de assuntos do grupo, embora ultimamente as mulheres estejam ocupando gradativamente esse espaço, fazendo reuniões paralelas esporadicamente. É no kà que são realizados os principais rituais do grupo. No início do século XIX, os Apãniekra foram contatados pelas frentes de expansão agro-pastoril. Com o processo posterior de “territorialização” (OLIVEIRA, 2006), o grupo passou a ocupar 79.520 mil hectares de terras, que foram demarcadas e homologadas no final da década de 1970. Estão situadas no entorno dos municípios de Barra do Corda, Grajaú e Fernan-do Falcão, localizados na região centro-oeste do Estado do Maranhão. Em termos populacionais, 615 indivíduos habitavam única aldeia, chamada Porquinhos3. O grupo sofreu várias investidas do empreendimento colonial e de ataques intertribais, fatores responsáveis pela grande redução populacional. Assim como aconteceu com a maioria dos grupos indígenas, que conviveram com essas investidas, os Apãniekra enfrentaram guerras e utilizaram as estratégias mais díspares para manter-se em parcas porções de terras, garantindo dessa forma a possibilidade de manter sua autonomia como grupos etnicamente distintos da sociedade do colonizador e de outros grupos indígenas.Desde o início do processo de contato com os colonizadores no século XIX, os Apãniekra abriram frentes intersocietárias que evolveram os agentes mais

2. A natureza da organização social dualista e o papel da reciprocidade foram foco de análise de várias pesquisas de antropólogos desde 1920: Nimuendajú (1976 [1946]), Melatti (1970), etc. 3. Há um processo de ampliação da Terra Indígena Porquinhos que tramita no Departamento de Assuntos Fundiários da Funai desde 2004. O relatório antropológico foi aprovado e aguarda as imprecações do dispositivo denominado de contraditório (Decreto 1775). O território reivindicado corresponde a 38 mil hectares, considerado de ocupação recente e que ficou fora da demarcação de 1977.

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díspares (sertanejos, missionários, antropólogos e pesquisadores, agentes es-tatais e de ONGs, etc.) e suas ações no curso desse processo temporal têm sido marcadas por fluxos culturais através dos quais os “indivíduos” Apã-niekra de múltiplos segmentos residenciais desempenham variados papéis sociais. Dessa maneira, os fluxos culturais vêm sendo conectados, várias ideologias difundidas, os sujeitos políticos sendo incorporados e modelados conforme as demandas políticas e institucionais. Como resultado, pode-se perceber uma multiplicidade de discursos (ecológicos, religiosos, morais, tradicionais etc.) e uma multiplicidade de ações e de sujeitos políticos que compõem o cenário político Apãniekra, que se tornou cada vez mais comple-xo, pois as redes em que estão articulados esses múltiplos agentes não podem ser pensadas isoladamente.

SEGMENTOS RESIDENCIAIS, LAÇOS DE PARENTESCO, PODER E REDES SOCIAIS

Possuir uma casa forte, cheia, ou seja, um segmento residencial grande e consistente significa entre os Apãniekra possuir força política, poder de de-cisão na aldeia, manter um equilíbrio economicamente estável e consequen-temente propício para manter e ampliar redes de relação intra e extra-aldeia, como bem enfatiza Ladeira (1982):

Quanto mais casa e mulher tiverem um segmento residencial mais força terá para impor seus interesses frente a outros segmentos, pois são as alianças estabelecidas entre eles que garante a estabilidade po-lítica da aldeia. [...] Sem segmento residencial, os grupos domésticos adquirem uma autonomia muito grande, possibilitando que, nos mo-mentos em que seus interesses particulares são contrariados, abando-na a aldeia, o que impede, por sua vez, a formação de núcleos estáveis de parentes matrilineares (LADEIRA, 1982: 26-28).

O número de membros do segmento residencial da garota Patrícia Prwncwyj é composto de trinta e cinco indivíduos (ver a genealogia no quadro a se-guir). Considerando os cinquenta e oito segmentos residenciais classificados por mim durante a pesquisa de campo, destes cerca de seis apresentam a equivalência entre trinta a trinta e cinco indivíduos. A maioria dos segmen-tos residenciais é composta por uma média entre quinze a vinte indivíduos. Apenas um segmento residencial apresenta o número de indivíduos superior a cinquenta. O menor segmento residencial é composto por nove indivíduos.

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O segmento residencial dos entes da garota Patrícia Prwncwyj fica loca-lizado no lado putkejtxà, ou seja, o lado ocidental da aldeia, onde o sol desaparece. Apesar dos segmentos residenciais permanecerem na mesma posição geográfica desde o tempo das aldeias antigas, não existe no gru-po um lado privilegiado para morar, tampouco os lados são rigidamente marcados por um conjunto de segmentos residenciais ligados por laços de parentesco de ancestralidade comum, pois entre os Apãniekra o orde-namento do sistema social está estabelecido em uma única aldeia hoje e conta com vários, pequenos e dispersos grupos de variados segmentos so-cioculturais que no passado próximo se juntaram, compondo o que hoje se autodenominam de Apãniekra. Com o processo de re-ordenamento do sistema social, passaram da condição de grupos de estrangeiros para “agregados residenciais” internos à aldeia, hoje portadores de estatuto cul-tural e valores sociológicos idênticos ao do grupo que lhe acolheu. Como argumentou Zico Pinhöc para se pronunciar sobre os “estrangeiros” hoje casados com mulheres Apãniekra:

Essa rapaziada [os de fora] que tá casando com a cunhanzada [mu-lher] de Porquinhos logo, logo vai fazer tudo que Apãniekra gosta de fazer, vai correr de tora, vai cantar no pátio, vai deixar o cabe-lo crescer do jeito do índio Apãniekra, vai falar a língua do mehẽ, olha Pataxó [um Pataxó casado com a filha de Avalino] como já fala nossa língua. Depois já fica dizendo que é Apãniekra mesmo. E todo mundo sabe. Assim aconteceu comigo. Eu nasci lá no grupo dos Krahô da Pedra Branca do Goiás, mas agora eu mesmo sou um Apãniekra, porque eu tô morando aqui em Porquinhos, mi-nha mulher é daqui, meus filhos moram aqui, então sou Apãniekra mesmo. Quando eu vou resolver minhas coisinhas [benefícios do Governo Federal], eu resolvo na FUNAI de Barra do Corda, resol-vo com meu patrão que cuida da nossa coisinha por aqui mesmo, eu não preciso ir lá para o Goiás para resolver essas coisas. Aqui no krin [aldeia] tem muita rapaziada que não nasceu aqui, mas é Apãniekra. Aqui quase todas as casas têm meus parentes, porque os antigos se juntavam [casamento] como os próprios parentes, só não com irmã e mãe [...]. Apãniekra não é bicho bruto, não é igual cachorro que faz relação com mãe, nós respeitamos mãe. Mas índio é assim, os kopë [não índio] pensam que são tudo igual (Depoi-mento de Zico Pinhöc, em sua casa, aldeia Porquinhos, 29 de maio de 2008).

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Genealogia do segmento residencial da garota Patrícia Prwncwyj.

Pensando os processos sociais que foram sendo construídos no percurso etnográfico, foi necessário mapear alguns atores sociais, contextualizando os papéis desempenhados pelos mesmos, pois como sugere Van Velsen (1987), o antropólogo deve:

Ao invés de fundamentar-se em casos para ilustrar suas generaliza-ções, ele [o antropólogo] deve utilizar-se dos registros de situações concretas e do comportamento de indivíduos específicos como parte constituinte da análise de processos sociais [...] neste sentido, privile-gia a observação sistemática de casos que incluam disputas, por estes constituírem-se nos instrumentos mais profícuo para desvendar o desenvolvimento e mudanças das relações entre indivíduos que in-teragem num dado contexto social e cultural. (VAN VELSEN, 1987: 365-366).

Mapeando a posição desses atores sociais, foi perceptível a inserção dos mesmos em um conjunto amplo de redes sociais que se articulam politica-mente em contextos sociais amplos. O emprego do termo “rede” aqui apre-sentado é merecedor de esclarecimento para a conjuntura Apãniekra. Os índios estão inseridos no que podemos descrever como um amplo arranjo de redes, muitas vezes articuladas em função da aquisição do “poder” (bens e relações) por indivíduos, grupos e instituições. Foucault (1983) considera que o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia, no pre-sente caso o poder funciona e exerce na articulação de rede.

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Em antropologia, o termo “rede” foi empregado primeiramente por Rad-cliffe-Brown (1973), que caracterizou a estrutura social como uma rede de relações sociais efetivamente existentes. Para esse autor, a estrutura deveria constituir, sobretudo, o objeto prioritário da investigação antropológica. Mas, segundo Mitchell (1974), o estudo pioneiro do emprego da noção de rede social – social network – está conectado aos trabalhos de Aronson e Boissevan, que introduziram essa categoria em suas pesquisas. Para Mit-chell (1974), a noção de “rede social” foi bastante empregada em pesquisas de análise situacional.

The notion of social network was raised from a metaphorical to a conceptual statement about social relationships in social situations. […] The metaphorical use of idea of social network emphasizes that the social links of individuals in any given society ramify through that society. The analytical uses of the idea of social network has been in setting up propositions about the way in which what occurs in pairs of “knots” influences what happens in adjacent “knot” (MI-TCHELL, 1974: 279-280).

Antropólogos ligados à Escola de Manchester, especialmente John Barnes, Adrian Meyer, Elizabeth Bott, Frederick Bailey, Jeremy Boissevan e Clyde Mitchell desenvolveram uma excelente discussão referente ao uso e ao em-prego do termo rede, propondo contribuições significativamente relevantes para as análises e estudos de situação social. Barnes (1987: 129) vislumbrou a rede como um campo social formado por relações entre pessoas. Bott (1982) trata as redes como entidades unitárias, possíveis de análises e comparação. Mayer (1987) se refere à rede como entidades ilimitadas, quando definidas em um período de tempo particular. De acordo com Mitchell (1974: 282), Bailey, Boissevan e Barnes consideram que os indivíduos manipulam suas redes e suas relações para obter certos fins econômicos e particulares. Essa dinâmica era muito frequente entre os Apãniekra.Das concepções referentes à rede social expostas acima, a que mais se apro-xima da dinâmica Apãniekra é a desenvolvida por Barnes (1987). Para esse autor, a formação de “redes” está ligada à política não formal, com os pro-cessos políticos. Barnes (1987) recupera a idéia de Radcliffe-Brown de redes sociais, acrescentando que as redes sociais ultrapassam os limites do grupo. Ele enfatiza que o conceito de rede social pode ser aplicado para descrever e analisar processos políticos. Por seu lado, os processos políticos Apãniekra

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e, mais especificamente, a dinâmica política do segmento residencial aqui analisado constituiu-se como uma política não formal4, formada por rela-ções entre pessoas que trocavam favores e procuravam beneficiar indivíduos de seus respectivos segmentos residenciais, tal como no segmento residen-cial exposto acima. Dessa maneira, empregarei o termo “rede” para um con-junto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos, grupos e instituições. Mitchell (1974) enfoca o argumento central da idéia de rede desenvolvida por Barnes:

Barnes argues that the basic idea behind network analysis is that the configuration of cross-cutting interpersonal bonds and in same uns-pecified way causally connected with the action of these persons and with the social institutions of their society (MITCHELL, 1974: 282).

Para Mitchell (1974), que comparou vários estudos que operam com a “rede social” como instrumental de análise, constata-se que um dos usos correntes das redes é o que envolve fins econômicos. Isso se aplica à política de cons-tituição de redes, que se constata nas relações políticas entre os Apãniekra. Desse modo, o segmento residencial da garota Prwncwyj estava presente e operava nas principais instituições da estrutura social dos Apãniekra (esco-la, administração estatal, administração local, conselho dos Proklam, presi-dente de associação etc.), bem como eram considerados pelo grupo como o segmento residencial que possuía as maiores roças nos últimos cinco anos. A situação de aparente estabilidade econômica fortaleceu politicamente o segmento residencial de Prwncwyj intra e extra-aldeia. Na aldeia, durante três meses, esse segmento residencial manteve estabilidade de alimentos e muitos outros segmentos aliados, na falta do arroz e outros alimentos, re-corriam a eles, tornando-se assim devedores de favor (BARNES, 1987). To-davia, entre os outros segmentos residenciais não havia grande riqueza nem pobreza esmagadoras. As pessoas sabiam que seus recursos eram parcos. Uma seca podia provocar o que eles denominavam de “fome seca”. Normal-mente, entretanto, o padrão das relações locais era tal que nenhum segmen-to residencial passava fome enquanto qualquer outro possuía alimento. Na cidade e no sertão do entorno à terra indígena, a notícia que o grupo tinha prosperado, apesar de apenas poucos terem prosperado em suas ati-

4. Ou antes, formalizadas em outras instituições sociais, como o parentesco e os rituais.

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vidades agrícolas, era recebida muito bem, porque a idéia do “índio gené-rico preguiçoso”, muito comum na região, era repensada, quando o índio passava a ser visto como “trabalhador”, que estava abandonando o estágio de “índio selvagem”, “bruto”. Isso implicava também crédito para alguns segmentos residenciais do grupo, tanto no sertão como na cidade, pois existia a garantia que os segmentos iriam gastar bem menos com gêneros alimentícios, sobrando o dinheiro recebido dos benefícios do governo para a compra de outros objetos (roupas, televisão, antenas parabólicas, apare-lho de som, bicicleta, gado, porco etc.), cujo poder simbólico e de status pela posse de tais bens e objetos na aldeia era significativamente relevante para a prática de uma “política de relações de favores” (BARNES, 1987). A aquisição desses objetos representava, sobretudo, a manipulação através das coisas das interações com os kopë (os não-índios). Era a resposta à rela-ção instituída pelos agentes de contato em que a a distribuição de presentes e promessas de assistência tornou-se política de disputa e barganha, pois o grau de interação com o kopë era medido pelas ações do grupo que melhor tirava proveito dessas relações. Uma vez que era aceita a convivência com os kopë aumentava o fluxo de mercadorias na aldeia e arranjos políticos e comerciais eram redefinidos.De um modo geral, a aparente consistência econômica desse segmento ser-ve-nos para pontuar as instabilidades das políticas intra-segmento, que pas-sará a nos fornecer uma das chaves para o entendimento da configuração social gerada pelo incidente que envolveu a garota Prwncwyj e seu primo. Essa discussão preliminar ajuda-nos a mostrar como os laços de parentesco entre os Apãniekra eram fundamentais para a formação de arranjos políticos fortes e para a constituição de redes sociais amplas. Os principais cargos da aldeia Porquinhos estavam sob controle dos membros do segmento residen-cial onde morava Prwncwyj. Portanto, esses elementos são de fundamental importância para a compreensão do processo de resolução de conflito que se estabeleceu quando se deu a morte da garota.

PUT TËKTXÖ: METÁFORA E PERFORMANCE. A PREDIÇÃO DA MORTE DE PRWNCWYJ

No dia sete de maio de 2008, por volta das cinco horas da tarde, do lado oposto ao segmento residencial em que fui adotado, uma mulher estava aos prantos. Os mais atentos decifraram imediatamente que alguém havia faleci-do na aldeia. Em primeiro momento, pensaram que o curador Pedro Servino,

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vulgo Serra Branca, houvesse morrido, pois o mesmo encontrava-se muito enfermo em um hospital na cidade de Barra do Corda à espera de se curar de uma tuberculose em estado avançado. O curador já havia sido despachado pelos médicos e, em razão do diagnóstico apresentado, os Apãniekra esta-vam preparados para receber a notícia a qualquer momento de sua morte. Serra Branca era mestre em curar picada de cobra entre os índios5.Mas logo chegou a notícia segura. Uma mulher anunciou em choro canta-do, muito peculiar entre os Apãniekra, que a filha de Antonio Iogo, Patrícia Prwncwyj, havia morrido. Meu irmão6 José Moraes Pryty correu assustado em direção ao nosso segmento residencial e tratou de detalhar o acontecido e, a cada palavra expressada por ele, formou-se um coro chorado, principal-mente das mulheres adultas que nos circundavam e que mantinham laços de parentescos com o segmento residencial da garota Patrícia Prwncwyj. Os Apãniekra costumam dizer que pressentem quando algo está prestes a acontecer com algum membro de seu grupo. Os curandeiros são as pessoas mais eficientes e notadas por tais pressentimentos, mas eles podem ser anun-ciados por qualquer indivíduo do grupo, embora alguns indivíduos possuam aspectos especiais para as predições. Quando era criança, Pryty passou por várias investidas para se tornar um curandeiro, primeiro quando recebeu, em sonho, o anunciado de um velho curandeiro de sua aldeia dizendo-lhe para procurar certo curador a fim de aprender as práticas de cura, porém, até aquele momento, ele não tinha seguido a idéia de ser um curador, mas as mensagens oníricas ainda eram frequentes em sua vida. O grupo percebia que Pryty era um homem especial para os Apãniekra e muitos acreditavam em seu potencial, tanto nas relações mágico-religiosa como nas relações po-líticas entre os homens de sua aldeia e os homens da cidade. Pryty apreendeu a ler e a escrever aos oito anos de idade e isso para os Apãniekra era uma ex-cepcionalidade, pois a maioria dos alunos Apãniekra começava a ser alfabe-tizado a partir dos doze anos de idade. Em seu discurso, era sempre enfático que precisava apreender as coisas do seu grupo como também as coisas do kopë, porque todos os dias ele encontrava com kopë na aldeia e na cidade7.

5. Serra Branca chegou a perecer logo depois no dia 22 de maio de 2008. 6. O modo como fui posicionado na rede de parentesco é levada muito a sério pelos “meus parentes” e pelos Apãniekra em geral. Tal relação eu considero positiva, pois me possibilitou contrabalancear a natureza generalizada da coleta de dados. 7. Em 2010, Pryty estava cursando o ensino médio na cidade. Pelo fato de saber ler e escrever, ele possuía os principais documentos básicos de cidadania brasileira, tais como carteira de identidade, CPF, título de eleitor, tornando-se desde jovem o secretário da Associação Apãniekra.

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Entre os “choros cantados”, Pryty com sua boa oratória parou para relatar o que estava pressentindo desde quando acordou na madrugada que antece-deu a morte de Prwncwyj. Ele sentiu que algo iria acontecer para entristecer o grupo, quando percebeu que “os raios do sol estavam fracos, como put tëktxö - o sol da morte - sem muito brilho”. Para os Apãniekra, quando o sol aparecia nas primeiras horas da manhã sem brilho intenso era sinal que alguém iria morrer. Outros fenômenos e fatos eram classificados pelo grupo como sinal de morte. Não é meu propósito listar aqui todos eles, mas faço referências aos principais sinais, que me foram ditos pelo próprio Pryty:

Todas as “comunidades” [parentes] sabem disso, dessa coisa que entristece todos aqui na aldeia, quando morre alguns dos nossos. Quando uma coisa acontece, como encontrar peixe morto no rio sem ninguém ter posto armadilha ou timbó. As pessoas já chegam em casa contado e aí fica todo mundo triste porque alguém pode morrer. Também se uma coruja cantar por duas noites seguidas atrás de uma casa é porque alguém dessa casa vai morrer e isso acontece mesmo. São muitas coisas que nos entristecem, mas o curandeiro é quem sabe melhor anunciar essas coisas e sabe mesmo quando alguém vai mor-rer. Eles são mais danados de todos daqui. Eles acertam mesmo, mas também outras pessoas também sabem. Mas a comunidade acredita mais é na conversa dos curandeiros (Pryty, conversas no interior da casa em que fui adotado; aldeia Porquinhos, 23 de maio de 2008).

Observa-se, portanto, que apesar dos curandeiros serem considerados como as pessoas mais indicadas para predizer ou prenunciar algo, metaforizar al-guma predição não requer exatamente um especialista. Cada pessoa é quali-ficada para prever a perda de seus próprios parentes. Durante minha última fase da pesquisa de campo, entre abril e junho de 2008, três moradores da aldeia faleceram de causas consideradas naturais pelos Apãniekra. Para Pry-ty, nesses três casos de morte, ele e a maior parte do grupo observaram o put tëktxö – “sol da morte” - no início do amanhecer. Uma explicação sobre o “sol da morte” foi para mim contada pelo curandeiro Zico Pinhöc:

O criador do mundo e dos mehẽ foi put – sol – por isso, ele sabe todas as vezes que irá acontecer coisa ruim com os Apãniekra. Assim, ele fica triste e fraco, logo seus raios ficam sem brilho e sem força. Nós velhos [curandeiros] que temos conhecimento de muitas coisas que nossos avôs nos ensinaram, sabemos disso muito bem e esse put tëk-

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txö é desde os tempos dos mais antigos. Isso é uma coisa muito certa. Nós sentimos e podemos esperar que, quando sentimos o put tëk-txö, boa coisa não vai acontecer (Zico Pinhöc, depoimento em língua português, aldeia Porquinhos, 10 de maio de 2008).

Nas narrativas dos Apãniekra, put (o sol) criou os homens e as coisas, mas não há entre eles nenhum rito que reverencia esse criador. Pinhöc enfatiza que put também é uma espécie de mensageiro para os Apãniekra. A posição e a combinação entre sol, chuva e as nuvens expressam certos significados de prosperidade, dificuldade, necessidade, atitude e tristeza. Put tëktxö é um dos expressam tristeza para o grupo. Quando se deu morte de Prwncwyj, o chefe da aldeia não estava presen-te. Portanto, o grupo designou um mensageiro para transmitir a notícia da morte de Prwncwyj para ele, Moises Neto Hàhàt, que imediatamente co-municou o fato para a administração da Funai em Barra do Corda a fim de providenciar os preparativos do funeral. Ele fez também um comunicado para as lideranças Apãniekra que residiam na cidade, convocando-as para uma reunião na aldeia para discutir o ocorrido.Na aldeia, o processo de comunicação na aldeia foi, de fato, instantâneo. O “chamador” da aldeia se direcionou para o centro da praça e ficou entoando palavras positivas e de bem sobre Patrícia Prwncwyj, cantadas durante quin-ze minutos. Meu colaborador de pesquisa, José Moraes Pryty, traduziu-me simultaneamente as palavras:

Oh! Como pode acontecer uma tragédia com uma menina que não fazia mal para ninguém (...) Seus pais são pessoas boas, sua comuni-dade [parentes] também (...) Isso é muito triste para um Apãniekra. Ela era nossa iguathu [iniciada e classificada do partido Harãcateje], nossa princesa, dona do wyty [casa ritual]. Agora, vamos ficar triste. Os Apãniekra vão ficar triste. Ela gostava de ficar alegre, gostava de brincar, ajudar sua ënxe [mãe], seu ënxũ. Era ä’krare impej [criança bondosa], que sua ënxe [mãe] cuidava bem. Agora, foi embora, foi embora. (Joel Raprô. Gravado na língua materna dos Apãniekra no final da tarde do dia 07 de maio de 2008; traduzido por José Moraes Pryty).

Depois desse chamado, que expressou as coisas boas da falecida e a triste-za pelo fato acontecido, comum nos choros rituais fúnebre entre os Apã-

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niekra, as pessoas aguardaram ansiosamente a chegada do corpo da garota na aldeia, o que aconteceu por volta das dezenove horas, despertando uma sincronia de choros e a formação de grupos que em seus choros expressa-vam a necessidade de punir os responsáveis pela morte de Prwncwyj. Nesse momento, enquanto o corpo da garota começava a ser velado em sua casa, no mesmo segmento residencial o garoto Hajahyco Kencwjnã, autor do disparo que atingiu Prwncwyj, era isolado do convívio social. Os líderes presentes na aldeia começam a divergir sobre a punição adequada para o garoto e instalou-se informalmente uma espécie de “tribunal tribal”, cuja composição e dinâmica serão abordadas mais adiante nesse artigo.

PROCESSO RITUAL FÚNEBRE: ARRANJOS CERIMONIAISE POLÍTICOS

Um rito funerário é um rito social por excelência. Seu objetivo apa-rente é a pessoa morta, mas ele beneficia não os mortos e sim os vivos. (...) Os mortos que parecem levar tanto, na realidade não levam con-sigo nada que seja nosso (FIRTH, 1974: 78-79)

Inicio com essa citação do antropólogo Raymond Firth por considerar bem ilustrativa e análoga à situação do rito funerário dos Apãniekra. Segundo Firth (1974), “o ritual funerário oferece um apoio social às suas tentativas de ajustamento, fornece-lhes um mecanismo catártico para demonstração pública de dor e fixa um período de luto”. Os dados etnográficos que disponho referentes aos ritos fúnebres8 entre os Timbira fornecem-me pistas para considerar a existência de três elementos de ajuste social entre o grupo: 1) coesão ou reintegração, 2) dispersão e 3) latência. O primeiro elemento ocorre quando o rito consegue ser restabe-lecido na volta de grupos/segmentos residenciais que se dispersaram da aldeia por motivo de disputas políticas, cisão faccional, acusação de fei-tiçaria ou brigas entre segmentos residenciais. O regresso desses grupos geralmente se dá quando ocorre um rito fúnebre, um grande ritual, quando se estabelecem condições de privilégio, os acordos de aliança de casamento,

8. Estou considerando os dados etnográficos referentes aos ritos fúnebres de todos os grupos Timbira que trabalhei no período de abril de 2001 a dezembro de 2006. Ao todo, foram mais de dez funerais que acompanhei. Entre os Apãniekra, acompanhei apenas quatro funerais.

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os pedidos de desculpa na forma de pagamento quando se causou paham9, etc. As lideranças oferecem garantia para o grupo se restabelecer na aldeia, oferecendo-lhes trabalho de mutirão para construção de suas casas e roças, dando-lhes algumas funções ou cargos e, sobretudo, oferecendo presentes que, no campo simbólico Apãniekra, têm um peso significativo para o pro-cesso e a consolidação de alianças políticas. Victor Turner (2008) enfatiza para o caso Ndembu que:

A reintegração com freqüência sucedia que, após um intervalo de vários anos separados, a aldeia promove um ritual importante para o qual os membros que cindiram sejam expressamente convidados, registrando, desta forma, uma reconciliação em um nível diferente de integração política (TURNER, 2008: 37).

No segundo elemento, a dispersão, ela ocorre quando grupos sentem-se pre-judicados pelo desfecho de certas situações sociais, sobretudo quando um ritual fúnebre não compõe de todos os elementos essenciais do rito (paga-mento de presentes, choros, luto, celebração do término do luto – pörgahök, etc.) ou se há a crença de que o lugar onde a pessoa morreu estava enfeiti-çado, portanto não propício para o grupo permanecer morando, causando migração para outras aldeias de grupos Timbira ou a constituição de uma nova. O terceiro caso vem à tona quando o grupo passa por um período de conflito em que se instala um processo para resolver tais conflitos, que eclodem a partir da oposição entre uma “pessoa” e os grupos que invocam princípios diferentes de afiliação residencial para suportar e justificar seus próprios interesses específicos, políticos e econômicos (TURNER, 1957).O período que estou denominando de “latência” equivale a um dos ele-mentos constitutivos daquilo que Turner (2008) chamou de “dramas so-ciais”, que consistem, portanto, de unidades de processos que surgem em situações de conflitos. Tipicamente, os “dramas sociais” possuem quatro fases de ação pública observáveis: 1) a ruptura, 2) fase de crise crescente (a que estou chamando de “latência”), 3) ação corretiva e 4) reintegração (TURNER, 2008: 33).

9. Paham é uma categoria que merece esclarecimento. Traduzido para a língua portuguesa, ela significa fazer alguém passar vergonha. Essa ação tem muitos complicadores entre os Apãniekra. Essa questão foi abordada no segundo de minha dissertação (NASCIMENTO, 2009).

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Victor Turner (1957) percebeu certos elementos que compõem o enredo fundamental da irrupção do conflito em uma situação similar de uma so-ciedade africana. Esse mesmo enredo ficou evidente para mim na situação etnográfica, quando irrompeu o conflito entre os Apãniekra a partir de cer-ta situação social, quando ocorreu a morte inesperada da garota Patrícia Prwncwyj. Seu rito funerário colocou em “latência” vários elementos, justo porque o óbito da garota não foi considerado, tal como os próprios Apã-niekra dizem, “da vontade de papã”, ou seja, não foi uma morte considerada natural, consumada como ratëk. A palavra papã foi incorporada à língua falada pelos Apãniekra a partir da atuação de missionários e significa Deus no sentido cristão. Portanto, “se não foi papã que a levou”, então as “comu-nidades” têm o direito de “punir” o responsável pela morte da garota. Esse mecanismo é muito comum no grupo, principalmente quando é evidencia-da uma morte causada por feitiçaria10. A morte de Prwncwyj irrompeu com o período de “latência” do conflito. Quando alguém foi proclamado membro de uma sociedade, ele não pode deixá-la para sempre sem uma despedida apropriada. Dessa maneira, o processo ritual fúnebre “estanca” com as irrupções de conflito mais laten-tes e abre-se para o momento dos pesares ordenados em arranjos políticos e cerimoniais.O processo cerimonial fúnebre entre os Apãniekra é repleto de simbolis-mo performático. Protagoniza uma cerimônia dinâmica, interconectada por atores sociais que desempenham papéis sociais na ação funeral. Esses agentes estavam ligados à jovem falecida por laços de parentesco e por laços políticos, ou seja, eram as amigas e os amigos formais – pinwtwyj e ikhuönõ – que ficaram responsáveis por todo desenrolar do funeral11. Pode-se dizer que todo funeral significa despesas que são acumuladas e transferidas de acordo com regras de cada grupo. Na maioria das socieda-des ocidentais, grande parte das despesas de um funeral envolve a comer-cialização da morte, pois gasta-se com o agente funerário e outras pessoas que fornecem os serviços que acompanham o morto. Entre os Apãniekra, todos os bens acabam por ser despendidos entre os membros do grupo,

10. Para mortes causadas por feitiçaria e a punição dos feiticeiros, ver Schultz (1976 [1947]). 11. Embora considere que as coisas estejam sendo reformuladas constantemente, esses agentes

ocupam um “papel de tradicionalização” dentro do desenvolvimento da organização social do grupo e do conhecimento por eles manejado. Nesse sentido, eles estavam envolvidos em um cerimonial que

era preciso “aprender a aprender” com as dinâmicas conjunturais.

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primordialmente devido a seus laços e obrigações de parentesco. Alguns parentes têm a responsabilidade de cavar o túmulo e enterrar o corpo. Ou-tros devem chorar nas ocasiões apropriadas e outros devem presentear o “morto”. Para cada um desses serviços, a pessoa obtém recompensas. Desse modo, a ocasião é marcada por um intercâmbio de bens e serviços12. Depois do corpo de Prwncwyj ter ser liberado para o sepultamento, ini-ciou-se o primeiro debate a respeito de sua morte, exatamente no mesmo local aonde fora velada. O grupo de conselheiros da aldeia, o pahë da aldeia – chefe – e um pastor evangélico Apãniekra iniciaram o processo de dis-cussão a respeito de sua morte com seus familiares. A partir dessa situação social, iniciou-se um longo período de crise que se instalou no grupo e continuou por quase um mês até chegar a um consenso para sua resolução. Irei tratar agora das etapas que envolveram tal processo.

KRIN, PROKLAM E PAHË: INSTITUIÇÕES LEGAIS LOCAIS

Krin, Proklam e Pahë foram as instituições locais Apãniekra que abriram as discussões a respeito do tipo de punição deveria ser aplicado ao garo-to Hajahyco Kencwjnã que disparou o tiro que causou a morte de Patrícia Prwncwyj. Se fossemos traduzir literalmente estas instituições para a lín-gua portuguesa, elas significariam respectivamente tribo/aldeia, classe de conselheiros que atuam como juízes no processo que ora analiso e chefe/cacique, os chefes cerimoniais. Por falta de consenso entre essas três ins-tituições locais, instalou-se uma situação de conflito, que passou por su-cessivas crises. Logo no início do processo, o krin - aqui representado pelo grupo em seu conjunto - não conseguiu utilizar mecanismos para a reso-lução do conflito e as instituições locais recorreram a outros mecanismos que ultrapassavam o campo de atuação dessas instituições, quando o grupo passou a solicitar a intervenção de mediadores extra-aldeia, compondo um quadro polifônico de argumentos e mecanismos para lidar com o conflito em iminência.

12. De fato, o ataúde é fornecido pelo órgão indigenista oficial, mas há custo. Os Apãniekra argumentam que os kopë ensinaram o modo de enterro dos “cristãos”, então eles têm que pagar com as despesas, segundo disse-me Zico Pinhöc, fazendo uma alusão para o governo tutelar: “a Funai é nosso pai é nossa mãe. Por isso, tem que dar as coisas que os índios precisam, porque foram eles que nos ensinaram fazer as coisas do cristão” (Conversa informal no pátio, aldeia Porquinhos, 11 de maio de 2008).

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Em uma sociedade como a dos Apãniekra, que possuem chefes como ele-mento do sistema social, uma das funções primordiais destes é assumir a responsabilidade por muitas das decisões mais importantes da vida do grupo. Porém, o poder do pahë – chefe - depende da boa vontade do gru-po, ou seja, do krin, que lhe mantém no cargo13. Compreendem-se, portan-to, que o pahë deve, então, atender aos interesses do krin que lhe respalda a manter a paz no grupo e sua permanência na chefia. A irrupção de uma crise interna pede a intervenção da estrutura de poder local, na qual está inserida o pahë, mas suscita ao mesmo tempo essa intenção de contesta-ção, pois o pahë não dispõe de meios suficientes para superar tais crises pela complexidade da situação social e recorre para mediação extra-aldeia. Muito comum entre os Apãniekra e na maioria dos grupos indígenas, a re-corrência a mediadores extra-aldeia está ligada ao processo de colonização e aos processos das relações interétnicas, principalmente quando o Estado utiliza seus próprios aparatos. Como ressaltou Souza Lima, o processo de centralização e monopólio sobre o exercício de diversos poderes exercido sobre o território e sobre os povos indígenas em um dispositivo de poder específico conduziu ao que este autor denominou de poder tutelar, isto é, “um modo de relacionamento e governamentalização de poderes, conce-bido para coincidir com uma única nação” (SOUZA LIMA, 1995: 39). Para uma análise de uma situação social do contato entre índios e não-ín-dios, João Pacheco de Oliveira (1988) enfatiza que pode surgir uma ní-tida clivagem entre uma organização nativa, representada por papéis de lideranças de cunho tradicional, e uma organização política imposta pelo contato, derivada do poder superior dos brancos:

A situação do contato interétnico amplia o leque das escolhas, fa-zendo surgir contextos onde as referências tradicionais podem ser reajustadas e reinterpretadas, ou inversamente trocadas por outras [...]. Deixa de ter sentido separar categorias impostas das “nativas”, uma vez que ambas ganham realidades na própria comunidade,

13. O chefe depende e está subordinado diretamente ao grupo. Essa subordinação é apenas aparente, pois ela, na verdade, dissimula uma espécie de chantagem que o grupo exerce sobre o chefe. Se este não faz o que o grupo espera, sua aldeia ou seu bando simplesmente o abandona em troca de um líder mais fiel a seus deveres. Sobre o papel da chefia entre grupos indígenas, ver Clastres (2003), Oliveira (1988, 1977), Pereira (2005).

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constituindo produto de uma elaboração realizada pelos grupos in-dígenas. (OLIVEIRA, 1988: 264-265)

Esse fato reflete-se igualmente na etnografia do que podemos chamar de política Apãniekra, quando, então, a política do Estado brasileiro passa a titular e legitimar lideranças indígenas para desempenhar o papel de porta-vozes de seus respectivos grupos. Mas na atual conjuntura, quando impera o princípio de “Estado democrático” com a inclusão nas esferas estatais de atores sociais de segmentos que historicamente foram marginalizados pelo Estado brasileiro, tais como os indígenas e os afro-descendentes, as lideran-ças indígenas estão cada vez mais ocupando cargos burocráticos estatais, que influenciam diretamente nos sistemas políticos locais das aldeias, con-figurando uma nova relação de poder e de tomada de decisões.A partir desse prisma, enfocarei o posicionamento dos pahë yõ kopë, ou seja, os chefes da aldeia que se relacionam com os não-índios. Tratam-se de lideranças que passaram a trabalhar e residir na cidade, porém manten-do relações constantes com o krin e influenciando nas relações políticas do grupo. Esses atores sociais fazem parte do sistema político dos Apãniekra e considero-os aqui como representantes de instituições legais locais, pois eles são frequentemente acionados pelas demais instituições aldeãs para lhes prestar esclarecimento sobre as relações de um campo político bem amplo, que não somente está relacionado com questões exclusivamente da aldeia, mas que passa por uma conjuntura política que chamo de “transnacional”, onde envolve desde assuntos da cooperação internacional às políticas de Estado regional e local. Esses pahë yõ kopë são os atores sociais designados e legitimados pelo grupo para atuar nessas situações “transnacionais”.A ideia aqui não é a de afirmar nenhum juízo de valor em relação à postura desses lideres - pahë yõ kopë, proklam, pahë yõ krin etc. - tampouco construir limites entre movimento político de aldeia e movimento político da cidade, mas sim evidenciar o posicionamento de cada um deles em uma situação social que ocasionou crises e conseqüentemente a eclosão de conflito. Dessa forma, procuro me distanciar da abordagem seguida pela maioria dos tra-balhos etnográficos, que costuma separar o estudo da organização política tribal da organização política operante em condições cultural e socialmente contrárias. Portanto, demonstrarei quais os mecanismos que esses atores so-ciais e outros membros de instituições consideradas pelos Apãniekra como legais acionaram para resolver tal conflito e a configuração que ganhou na política Apãniekra.

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Inicio pela posição imediata tomada pelo krin. Constatei esse posiciona-mento ao visitar trinta e cinco segmentos residenciais durante o rito fúne-bre de Patrícia Prwncwyj. Não utilizei nenhum questionário fechado, pois, durante o velório, os membros dos segmentos residenciais reuniam-se in-formalmente para falar e opinar sobre a morte da garota. Nas casas que entrei, a conversa em pauta centrava-se em saber “quem” foi o culpado pela morte de Prwncwyj? “Como” o grupo deveria punir? A conversa na perife-ria da aldeia influencia diretamente nas tomadas de decisões de seu pátio central e, portanto, tem importância significante. Com exceção dos segmentos residenciais do irmão do pai da vítima e do irmão da vítima, que afirmavam que o garoto teria que morrer já que havia tirado a vida de uma pessoa, a maioria dos segmentos residenciais visita-dos por mim foi unânime em afirmar que o garoto Hajahyco Kencwjnã deveria ser punido na “lei dos antigos”, cumprindo resguardo e limpando o sangue. Limpar o sangue significa abster-se de uma série de alimentos e do convívio social por um período determinado. Para os Apãniekra, quando uma pessoa mata outra pessoa, seu sangue fica impuro, contaminado e uma pessoa com sangue impuro mostra-se sinais de fragilidades fisiológicas e psicológicas.Os poucos depoimentos resgatados pela memória de alguns indivíduos do grupo referente a homicídios, evidenciaram que não era um fato comum acontecer homicídios entre o grupo. Mesmo assim, pesquisei nos arquivos da Funai em Barra do Corda e não encontrei nenhum registro que fizesse referência a esse tipo de questão. De fato, encontravam-se apenas os re-gistros sobre os Apãniekra referentes à última década, mas a maioria dos documentos encontrados tratava de questão fundiária e de educação. Con-versei também com o atual administrador da Funai em Barra do Corda, Raimundo Franco, que atua entre os índios por mais de uma década, e com alguns funcionários do órgão indigenista sobre esse assunto e todos foram taxativos em enfatizar que os “Apãniekra eram índios que não causavam nenhum problema. Na cidade, costumava-se dizer que os “Apãniekra são os índios bem mais aceitos de todos os grupos indígenas da região”14.

14. Observei essa posição quando saí uma vez da aldeia acompanhado de três homens Apãniekra em direção à cidade de Barra do Corda. Quando sentamos em uma lanchonete na cidade, a primeira coisa que o proprietário fez ao nos abordar foi elogiar os índios Apãniekra, enfatizando que “eu havia escolhido os melhores índios para trabalhar, porque esses índios não mexem com ninguém. São boas pessoas. Ao contrário do Guajajara e dos índios do Ponto [Ramkokamekra] que vivem se metendo em

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Em junho de 2008, um índio Ramkokamekra, grupo muito próximo geo-gráfica e linguisticamente dos Apãniekra, cometeu três homicídios na cida-de de Barra do Corda. Duas das vítimas foram golpeadas com flechas e uma à golpe de facadas. Todavia, não existia nenhuma ocorrência do fato regis-trada nas delegacias da cidade. Por precaução, o administrador da Funai proibiu esse índio de viver na cidade, deixando o caso para ser resolvido na aldeia, conforme a “lei dos antigos”. Esse caso teve vários desdobramentos, mas não será abordado nessa artigo. Contudo, esse exemplo serve para ilus-trar como os índios manipulam seus ordenamentos jurídicos de punição em conformidade com a situação social15.Passarei a descrever agora os pahë yõ kopë e o posicionamento adotado por esses atores sociais na situação. Mais recentemente, existem quatro pahë yõ kopë entre os Apãniekra de distinta dissidência parental e política, portan-to, eram portadores de posições distintas e discrepantes. Para análise de situação social, sabe-se que as dissidências e as discrepâncias são fatos de suma importância, pois:

Uma das suposições na qual a análise situacional está baseada é a de que as normas não constituem um todo coerente e consistente. São, ao contrário, freqüentemente vagas e discrepantes. É exatamen-te este fato que permite a sua manipulação por todos os membros da sociedade no sentido de favorecer seus próprios objetivos sem necessariamente prejudicar sua estrutura aparentemente duradoura de relações sociais (VAN VELSEN, 1987: 369).

É interessante detalhar a influência política a que cada um desses atores so-ciais, pahë yõ kopë, estava filiado e suas redes de conexão. A composição era formada por três grupos. O primeiro, uma composição entre Hiku e Cak-rãhy, que estavam ligados diretamente às influências políticas do administra-dor da Funai – portanto desempenhando o papel do órgão tutor. O segundo,

confusões na cidade. São ladrões, estupradores, assassinos. Nós aqui temos que ter muito cuidado”. Depoimento coletado no dia 11 de junho de 2008. Na ocasião, estavam presentes os Apãniekra Paulo Thukrãn, José Moraes Pryty e Zico Pinhöc e um geofísico da Universidade de La Plata na Argentina– Luís Oscar Gomes, que acompanhou-me durante a última etapa de minha pesquisa de campo. 15. Em novembro de 2001, durante o 18º Encontro Nacional dos Procuradores da República realizado em Manaus, foi aprovada a seguinte tese: “Nos crimes em que o autor, participante ou vítima se declararem índios ou houver indícios de que pertençam a um grupo indígena, o juiz determinará a realização de uma perícia antropológica para o fim de descrever todos os aspectos socioculturais pertinentes”.

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Hõnjhy, estava ligado ao prefeito da cidade de Fernando Falcão e atrelado à política de “barganha”, desempenhando um papel de representante do poder executivo. Enfim, o terceiro, Thukrã, estava ligado à influência política de uma organização indigenista não-governamental. Segundo Oliveira (1977), seria importante distinguir para os estudos de situ-ação social os diversos papéis políticos dos atores sociais, procurando as for-mas pelas quais se articulam tais papéis, quando eles manipulam igualmente conteúdos “tradicionais” ou “modernos” de acordo com as condições de vida específica de cada situação (OLIVEIRA, 1977: 163). Dessa maneira, foram apresentados pelos pahë yõ kopë três proposições para resolver o conflito do caso Prwncwyj em conformidade com os papéis políticos desempenhados e os interesses pessoais envolvidos. Para Oliveira (1988), há uma grande difi-culdade no processo de mediação de chefes, quando eles passam a:

Substancializar um esquema analítico, situando-se ou do prisma abs-trato e genérico do sistema, ou da visão dos interesses maximizan-tes do indivíduo que desempenha esse papel. Em qualquer das duas hipóteses omitem as culturas em interação e não buscam resgatar a consistência do discurso e dos valores dos atores reais envolvidos no processo (OLIVEIRA, 1988: 262).

A proposta do primeiro grupo de pahë yõ kopë centrou-se em um artigo do código penal civil brasileiro que declara que, em caso de homicídio provo-cado por um indivíduo ainda de menor idade, seus pais deveriam responder em juízo pela ação impetrada pelo tribunal. Assim, o grupo solicitava que fosse aberto um processo para que os pais do garoto Hajahyco Kencwjnã, fossem julgados. O segundo grupo defendeu que os pais do garoto deveriam pagar uma indenização de cinco mil reais e terem suspensos os benefícios dos programas Bolsa Família e Bolsa Escola. O terceiro grupo julgou proce-dente a tomada de decisão dos proklam, defendendo que se tem que respeitar a decisão das autoridades do conselho da aldeia, que eram as autoridades máximas do krin.Seguindo a perspectiva de Gluckman (1987), essas posturas discrepantes ocorrem dentro do mesmo segmento sócio-político – no caso estudado Apã-niekra, os pahë yõ kopë – porque:

Dentro de um sistema político, um indivíduo (ou grupo) pode ter papeis em organizações diferentes de modo que os conflitos incidem

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na pessoa (ou no grupo). Esta situação pode resolver esses conflitos somente até certo ponto, já que rupturas flagrantes são mais prováveis quando a cooperação e a oposição são representadas por indivíduos diferentes (GLUCKMAN, 1987: 293).

Para Gluckman (1979), um sistema social não é um modelo estático ou harmônico, nem um produto conceitual de perspectiva monística. Um sistema social é um campo de forças em que existem dois tipos de ten-dência, uma centrípeta e a outra centrífuga colocadas uma contra a outra, que faz persistir a emergência dos próprios conflitos que são transmitidos socialmente.De fato, as proposições dos pahë yõ kopë, já tão divergentes entre si, acirra-ram o conflito na medida em que algumas das proposições, embasadas no código civil brasileiro, colocaram-se em oposição às proposições tomadas pelos krin, que utilizaram mecanismos de punição atrelados à “lei dos an-tigos” e, pela posição dos proklam, que adotaram medidas de compensação ligadas diretamente para atender a situação imediata, ou seja, consolar os parentes da vítima, pagando uma indenização como compensação. A pro-posição dos proklam se aproximava da posição do pahë yõ kopë do segundo grupo, bem como se aproximava da posição do pahë yõ kopë do terceiro grupo. Como bem enfatiza Gluckman (1979), quase todas as sociedades deparam-se com incongruências e contradições entre vários conjuntos de norma nos diferentes campos de ação. A posição dos proklam reflete-se, então, em que:

Once enough people are involved in this conflict of loyalties, they can exert pressure towards peaceful settlement and compensation, since they have an interest in the restoration of harmonious relation between the members of the two kindred (…) The resident member of each clan exerted pressure on members of both parties to agree to a compromise: the member to pay compensation, the near kin of the murdered to claim only reasonable compensation, and not an extravagant one, lest one day they too be under extravagant demands (GLUCKMAN, 1979: 112-113).

A postura dos proklam reflete-se diretamente através do interesse de man-ter as relações “harmoniosas” no grupo, utilizando mecanismos de “efeito imediato”, campo de ação muito comum entre os Apãniekra, principalmen-

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te quando se trata de resolver desavenças causadas por ações que configu-ram paham entre pessoas de segmentos residenciais distintos, quando o grupo aciona mecanismo coercitivo como indenização ou pagamento para colocar a crise em “equilíbrio”. Dessa maneira, os proklam propuseram aos parentes do “culpado” que pagassem uma indenização aos parentes da “ví-tima”. O problema é que esses parentes faziam parte do mesmo segmento residencial. Todavia, essa postura acentuou o conflito, pois, diante da situa-ção, a configuração de parentesco e as normas residenciais se desdobraram, quando passaram a envolver o segmento residencial de origem do pai do “culpado”, exigindo que o pahë e o administrador da Funai retivessem os cartões de beneficio de aposentadoria dos membros desse segmento resi-dencial. Essa decisão trouxe à tona o envolvimento direto de outros atores sociais, acirrando ainda mais o conflito16. Como nos mostra Kevin Avruch (1991), um antropólogo que fez pesquisa sobre resolução de conflito em diversas culturas ocidentais e tribais, que os conflitos comunais são como um tabuleiro de xadrez, onde os jogadores pesam acima do melhor arranjo para resolver [o jogo], o conflito em uma jogada equivocada pode colocar em risco a eclosão de mais crises. Apesar de todas as resoluções tentadas pelos pahë yõ kopë, pelos proklam e pelo kin, o conflito central persistiu e acentuou-se. Cada ajustamento tem-porário engendrou outros conflitos entre partes persistentes e emergentes, mas agora em um novo padrão.Nesse sentido, a cada nova crise emergem novos atores e instituições. Entra em cena na conjuntura política do caso Prwncwyj, a postura política cristã, através do posicionamento do pastor indígena Zequinha Pohrone, adepto da doutrina cristã desde 1996, quando ele foi convertido pela Missão Novas Tribos do Brasil.

16. Verifiquei que um indivíduo pode fazer uma escolha com referência à relação específica de parentesco que deseja utilizar, de acordo com os seus objetivos em uma situação específica. Por exemplo, em uma situação presenciada por mim durante a situação etnográfica, uma mulher brigou com a irmã do seu marido, portanto com um membro do segmento residencial de origem do seu marido. A partir dessa pequena querela, tornou-se um conflito envolvendo dois segmentos residenciais. O marido afirmou-me que teria que ficar do lado do segmento da mulher e não do lado de sua irmã, porque agora ele está nessa situação e sua irmã, sua mãe e todos na casa onde ele nasceu entendem a posição que ele escolheu. “quando se junta [casam] nós fazemos essa escolha, mas quando separa a gente volta para nossa casa e ninguém vai ficar com raiva, porque entende com é o jeito de mehẽ [Apãniekra] (Depoimento de José Moraes Pryty, aldeia Porquinho, 15 de agosto de 2005).

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Pohrone exerce na aldeia, além da postura religiosa cristã, uma espécie de postura de “homem de caridade”, quando passou a comercializar produtos alimentícios subsidiados pela Missão a preço de custo para o grupo: óleo vegetal, sardinha, biscoito, café, óleo diesel, sabão, leite, fósforo, etc. Esse tipo de postura aumentou seu prestígio, colocando-o numa posição privi-legiada nas tomadas de decisões no sistema político Apãniekra, sobretudo quando esse agente faz parte de uma classe de idade que tem poder de voz e, portanto, integrante do sistema político Apãniekra. Pohrone exercia uma espécie de poder carismático entre os índios. Para Weber (2005), o poder carismático é aquele exercido em virtude da qualidade da pessoa. Em um depoimento gravado enquanto o pastor fazia um discurso, fica nítido a im-pressão que determinadas pessoas do grupo tinham a respeito da atuação do pastor Zequinha Pohrone:

Esse é o homem mais correto daqui de Porquinhos. Ele não faz mal a ninguém, não é cachaceiro, não usa cigarro dos Guajajara [maco-nha], não faz fuxico17 e ele é bom para todos nós. Se aqui no krin [al-deia] tivesse outras pessoas iguais a ele, não tinha muito fuxico, não tinha muitas brigas, não havia muita bebedeira. Mas ninguém aqui no krin quer viver igual a ele e nem entende o que ele diz, porque o povo não quer deixar de beber cachaça, não quer ser correto. Quer viver mesmo é feito bicho bruto, bicho do mato (...). (Raimundo Ca-pão Fet, depoimento em língua portuguesa, aldeia Porquinho, 19 de maio de 2008).

No final do velório de Patrícia Prwncwyj, quando os proklam estavam aconselhando os parentes da vítima e delineando uma tentativa de finalizar a crise, o pastor Pohrone expôs uma ideia conciliadora para o grupo, desen-cadeando um discurso apoiado no postulado da “missionary justice”, que supõe que as ações dos homens seriam somente julgadas pela “lei divina” e não pela do próprio homem18. Tomando as palavras do pastor Pohrone:

17. O fuxico ou fofoca muito comum entre os Apãniekra é um elemento desencadeador de conflitos e cisão, portanto merecedor de atenção, pois os índios utilizam-se desse elemento, o que é crucial para se entender os problemas entre pessoas do grupo. 18. Gluckman (1979), faz uma análise das concepções das “leis divinas” alegando que: “The laws of god and the laws of humankind. Their principles are axiomatic and patent to all reasonable men. These constitute at least an embryonic jus naturale.

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Meus irmãos, nós não devemos aqui na terra julgar as pessoas. A nossa irmã não vai mais estar aqui junto do nosso povo, mas vai está junto de papã [Deus], ele quem ordena as coisas. Nós não precisa-mos ficar brigando entre nós, ficar se matando, isso não resolve, por-que somente quem pode fazer justiça é papã. Antigamente nossos bisavós resolviam as coisas de outra maneira porque desconheciam a palavra do senhor, que é o nosso papã, que é o nosso guia para uma vida melhor, cheia de harmonia e felicidade para todos nós cristãos. O que devemos fazer agora é saber que nossa irmã está em outro mundo, junto de papã e o que devemos fazer por ela é mostrar que nosso povo é unido. Para isso, devemos juntar as forças, ser com-preensível, porque se ela morreu foi porque ela recebeu o chamado divino. Somente a harmonia entre nós trará o consolo, a paz e a ale-gria. Um povo que vive em harmonia merece um bom guardo de Deus. Peço-lhes, portanto, que não resolva essa situação procurando briga com os parentes, tampouco cobrar indenização. Não precisa nada disso. Nós somos um único povo e papã sabe qual é o caminho certo. Vamos continuar nossa vida procurando respeitar os nossos irmãos e que papã cuide de todos. (Discurso realizado no dia 08 de maio na aldeia Porquinhos, após a garota Prwncwyj ser encaminha-da para o cemitério)

O pastor Pahrone centrou seu discurso na questão do “modelo harmôni-co” para a resolução de conflito. O “modelo harmônico” surgiu com a pro-pagação do cristianismo e do colonialismo europeu enquanto uma fonte possível de resolução de conflito entre grupos colonizados. Antropólogos como Kevin Avruck (1991) e Peter Just (1991), que estudaram resolução de conflito entre os Dou Donggo na Austrália, consideram que o “modelo har-mônico” de resolver conflito é representado como um dos valores utiliza-dos pela ideologia missionária colonizadora, que toma como mote noções de natureza multidimensional, tais como unidade, consenso, cooperação, conformidade, passividade, irmandade. Para Just (1991), esse modelo tem algo de negativo quando ele passa a expressar significados que anulam as disputas. Assim, o “modelo harmônico” de resolução de conflito funciona como um mecanismo de controle social.

The idea of a neutrally valued harmony or conflict is difficult for Westerners to grasp unless we understand from the start that a mo-rality about harmony and conflict is just as much a construction as

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is the construction of a social organization that mirrors the ideology of either. Harmony may be used to suppress peoples by socializing them toward conformity in colonial contexts, or the idea of harmony models that operate as control or as pacification in the colonial and missionizing contexts (JUST, 1991: 45)

O discurso do “modelo da harmonia” é personalizado quando os proble-mas sociais são levados para o reino da emoção, muito presente nas falas do pastor Zequinha Pohrone, quando prega o consenso no grupo, apoiado no ideário de humanidade, irmandade, etc. A premissa é que todos comparti-lhem dos mesmos objetivos. Um deles é a de ser julgado somente pela “lei divina”. No discurso, a retórica que sobressai é a do litígio bíblico, quando segundo o Pohrone “papã nos finais dos dias cuidará das pessoas de bom coração”. Porém, o próprio pastor Pohrone que prega a harmonia entre os Apãniekra foi acusado de ser uma pessoa sovina, quando o mesmo se recu-sou a vender fiado óleo diesel para uma mulher que necessitava do produto em sua casa. Uma pessoa sovina entre os Apãniekra é representada como causadora de desavença. Avareza leva ao paham, que se caracteriza pela ins-tabilidade entre pessoas, segmentos residenciais e grupos. Uma pessoa que causa paham à outras pessoas não pode dar conselhos. Portanto, o discurso do pastor Pohrone se tornava ambíguo e sem credibilidade para o grupo19. Um dia após a morte de Prwncwyj, os Apãniekra reunidos em sessão no pátio da aldeia avaliaram que não havia naquele momento consenso entre o grupo que produzisse efeitos que levassem à estabilidade da crise. Dessa forma, recorreram inevitavelmente à inserção de mediadores externos ao grupo para negociar no processo de resolução do conflito eclodido pela morte de Patrícia Prwncwyj.Mediadores e árbitros de instituições de fora da aldeia foram convocados e envolvidos no drama social, que ganhou, então, uma dimensão “transacio-nal”, ou seja, todas as negociações possíveis teriam que ser apresentadas e discutidas por esses mediadores junto ao grupo para montar um veredicto. Foram, assim, chamados para mediar a situação dois funcionários da Funai (o administrador e um técnico em radiofonia) e eu mesmo na condição de pesquisador-antropólogo. Acredito que depositaram essa confiança em

19. O pastor Pohrone prega a harmonia no grupo, destacando que não existem diferenças entre as pessoas, mas o pastor no campo prático diferencia-se entre os índios, pois sua casa na aldeia é a única completamente cercada com arame farpado.

minha pessoa pelo fato de eu já me encontrar na aldeia durante a situação e também pela interação que foi construída com o grupo por quase dez anos, trabalhando junto aos índios através da ONG Centro de Trabalho Indige-nista (CTI), quando exerci a função de assessor de projeto. Na condição de autoridade representacional do krin, o pahë20 convocou uma sessão, quando deixou explícito que a posição dos mediadores ou ár-bitros seria de fundamental importância para dar fim à crise que irrompeu com a morte de Prwncwyj e que desestabilizava o sistema social e político do grupo. Assim, instaurou-se um “tribunal tribal” de caráter polifônico (ou antes, diversos tribunais tribais que, aos poucos, confluíram para um processo decisório geral) ao discutir as noções de lei, crime e sanção pelo fato do grupo não dispor de uma instituição jurídica legal, apesar do grupo dispor, ainda assim, de um conjunto de regras e instituições que conduzia as sanções. Dentro da situação social aqui analisada, essas instituições e as regras usualmente aplicadas para ações desse gênero (homicídio envol-vendo duas crianças, evento pouco comum no grupo), não foram, porém, suficientes para dar fim à crise que foi instalada.Algumas sociedades possuem mecanismos legais disponíveis como último recurso para resolver conflitos. Contudo, percebi que, entre os Apãniekra, foi difícil classificar ou separar procedimentos especificamente legais, mes-mo porque um dos critérios da lei não existia de forma unificada e, assim, as concepções existentes eram atualizadas de acordo com o contexto espe-cífico, como bem enfatiza Oliveira (2006):

Dichas concepciones son actualizadas en un contexto social especi-fico, donde los significados y estratégias pueden referirse a distintas escalas y adquirir múltiples sentidos. En este es como las instituicio-nes nativas y coloniales son contrastadas, produciendo superposi-ciones y diferencias que configuran una experiencia singular, que puede ser objeto de la visión etnográfica (OLIVEIRA, 2006: 132).

20. Às vezes, a decisão do pahë pode emergir quase espontaneamente, sem qualquer formulação muito consciente, do consenso da opinião daqueles que o cercam. Segundo Firth (1974), chefes tribais devem tomar uma decisão que não é absolutamente evidente a partir das circunstâncias e sem a qual a vida social se tornaria confusa com partes conflitantes (FIRTH, 1974: 93).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Raymond Firth (1974), quaisquer que sejam as tensões e oposi-ções dentro de um sistema social, a estrutura global está de certo modo em equilíbrio, quando as reivindicações de um grupo contrabalançam as de outros, como aconteceu no caso Prwncwyj. Na análise de Firth (idem), o ritual parece tomado como prova da estabilidade geral do sistema total, quando ele passa a considerar que o ritual funciona como um mecanismo de integração. No caso, o ritual teve um papel relevante para a resolução parcial do caso Prwncwyj21.Para Turner (2005), são as circunstâncias que vão determinar os rituais. Portanto, os Apãniekra ao perceberem a instabilidade política no grupo acionaram um mecanismo corretivo através de rituais a fim de neutralizar a crise, independentemente da sazonalidade costumeira do ritual: “As cir-cunstâncias vão determinar o tipo de ritual que se vai celebrar. Os objetivos do ritual guardarão uma relação clara e implícita com as circunstâncias precedentes e, por sua vez, ajudarão a por fim a crise (TURNER, 2005: 79)”. Os rituais expressados pelos Apãniekra têm um significado um tanto simi-lar com a idéia desenvolvida por Turner (1957):

Ritual is the social mechanism by which a group is purged of the anarchic and disruptive impulses which threaten its crucial norms and values. These impulses are present in the majority of its mem-bers and come dangerously near to overt expression if there has been a long series of quarrels between its members (TURNER, 1957: 124).

Existe todo um esforço entre os indivíduos do grupo durante o processo ritual para dar fim às suas crises. Mesmo que elas ou os conflitos perma-neçam ocultos no sistema social, em estado de suspensão (Turner, 1957), os indivíduos durante o rito utilizam todos os mecanismos corretivos para lidar com o conflito. O padrão das lutas faccionais é dissolvido no corpo simbólico e organizacional do ritual, ao menos para o caso analisado. Nessa perspectiva, são ativados mecanismos de fortalecimento político do grupo, enquanto unidade maior, ou seja, os Apãniekra, cujo objetivo seria o de garantir a segurança nas relações com os “outros” e entre eles próprios.

21. Leach (1996) passa a ver os rituais como um momento em que a sociedade procede com se estivesse em harmonia e equilíbrio. Fora deste contexto, o que se observa são os conflitos (LEACH, 1996: 39).

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As diversas abordagens teóricas demonstram a vitalidade do estudo dos ri-tuais, tomados como ferramenta conceitual e etnográfica privilegiada para nos ajudar a entender um pouco mais determinada sociedade, seus valores pensados e vividos. Em suma, considero que o ritual não somente atua para marcar a passagem de status, como também constrói e reforça os vínculos entre o indivíduo e o grupo mais amplo. Neste caso, os Apãniekra utilizam ao final, com maestria a ferramenta do ritual para consolidar aliança; am-pliar as relações interétnicas entre índios e não-índios e para solucionar o conflito entre o grupo.

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CAPITULO VI“CADA ÍNDIO EM SEU LUGAR”: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA CITADINA DE INDÍGENAS NO MARANHÃO

Rodolpho Rodrigues de Sá

O presente trabalho pretende discutir a situação dos indígenas que estu-dam em centros urbanos, dando ênfase às motivações e implicações desse processo. Analisa, através das relações interétnicas ocorridas neste contex-to, os fatores que conformam o estabelecimento da fronteira e da diferença cultural entre estudantes indígenas e não-indígenas1 . Teve como campo empírico a cidade de Barra do Corda2 , localizada na região centro oeste do estado do Maranhão, e as instituições públicas relacionadas à educação indígena.Barra do Corda foi fundada em 03 de maio de 1835 por Manuel Rodrigues de Melo Uchoa. Seu primeiro nome foi “Povoado Missão”, tendo sido ele-vada, pela Lei nº 343 de 31 de maio de 1854, à categoria de “Vila de Santa Cruz da Barra do Corda. Através da Lei estadual nº 67, de 28 de junho de

1. A utilização da categoria “não-indígena” não desconsidera a heterogeneidade dos atores sociais no contexto da cidade de Barra do Corda, mas indica que, diante da diversidade manipulável de identificações possíveis entre os que aqui são denominados não-indígenas, sobressai-se a (auto)identificação de “não-índio” que intensifica a fronteira frente aqueles identificados como “índios”. Para fins pragmáticos, foi relevante considerar que diante da diversidade de possíveis identificações, “ser índio” e “não ser índio” foram categorias utilizadas e acionadas rotineiramente para designar fronteiras nem sempre perceptíveis ao observador externo no campo em questão.2. “O território do município de Barra do Corda, o 6º do Estado em tamanho, com uma área de 14.058 quilômetros quadrados, está localizada na Zona Fisiográfica do Alto Mearim, Microrregião 039, limitando-se com os municípios de Joselândia e Esperantinópolis ao Norte; Mirador ao Sul; Tuntum a Leste e com Grajaú a Oeste. A sede está situada com as coordenadas geográficas entre 4º, 48’ 32” e 6º, 28’ 21” de Latitude Sul e entre 44º, 17’ 26” e 45º, 19’ 17” de Longitude W. Gr., distando da Capital do Estado 345 quilômetros rumo s.s.º em linha reta. Altitude de 81 metros. O clima caracteriza-se como tropical continental, com fases definidas: inverno e verão. A bacia hidrográfica é formada por pequenas lagoas, riachos e rios, sendo os mais importantes o Corda e o Mearim, que cortam o município” (MINISTÉRIO DO INTERIOR, 1985: 31).

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1984, passou à categoria de cidade de Barra do Corda. É uma cidade que poderíamos comparar, metaforicamente, a “uma ilha com índios por todos os lados”. Mas, não apenas ao seu redor, pois, tal como será mostrado, mui-tos indígenas residem também no meio urbano, o que, assim, a torna um centro de constantes e intensos conflitos interétnicos (latentes ou abertos) entre indígenas e não-indígenas (SÁ, 2006). O fato de eu ter vivido em Barra do Corda durante os primeiros dezoito anos de minha vida, onde tive constante contato3 com povos indígenas, tem exercido, de fato, impacto direto em minha prática como pesquisador. Assim, chamo atenção, utilizando as palavras de Peirano (1995: 137), para o fato de que a trajetória do pesquisador, suas opções teóricas e o contexto histórico-sociológico da pesquisa têm influência sobre as conclusões e os resultados obtidos:

Hoje sabemos que a pesquisa depende, entre outras coisas, da bio-grafia do pesquisador, das opções teóricas presentes na disciplina, do contexto sócio-histórico mais amplo e, não menos, das imprevisíveis situações que se configuram entre pesquisador e pesquisado no dia a dia da pesquisa. Mas houve época em que se pensou que basta-va aprender a fazer censos, mapas, genealogias, coletar histórias de vida, ‘anotar os imponderáveis’ em seu diário, escrever os mitos e seguir à risca os manuais que pretendiam [...] ajudar o etnógrafo a entender o mundo em que vivia o nativo. A ilusão de que era possível transmitir como fazer pesquisa de campo se esvaiu com a crítica à busca do nativo-exótico. Esse estado de coisas, hoje não é causa de desesperança, mas uma realidade que se explora nos seus aspectos positivos e, não raro, torna-se o fio condutor da etnografia que resul-ta da pesquisa (PEIRANO, 1995: 137).

A familiaridade com o campo empírico da investigação colocou-me diante do exercício proposto por Da Matta (1978: 29), o de realizar uma “dupla tarefa”. Esta implica em transformar, simultaneamente, em “familiar o exó-tico” e em “exótico o familiar”:

3. Sobre o contato entre indígenas e não-indígenas, ver Cardoso de Oliveira (1996). Este autor caracteriza este contato com o termo “fricção interétnica”, ou seja, “centrado no caráter antagônico das relações interétnicas, supondo que este sistema está em constante equilíbrio instável e que o fator dinâmico do sistema está no próprio conflito, manifesto e latente” (1996: 58).

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[...] a primeira transformação leva ao encontro daquilo que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no envelope do bizarro, de tal maneira que a viagem do etnólogo é como a viagem do herói clássi-co, partida em três momentos distintos e interdependentes: a saída da sua sociedade, o encontro com o outro nos confins do seu mundo social e, finalmente, o ‘retorno triunfal’ (como coloca Degerando) ao seu próprio grupo com os seus troféus. Na segunda transformação, a viagem é como a do xamã: um movimento drástico onde, para-doxalmente, não se sai do lugar. E, de fato, as viagens xamanísticas são viagens verticais (para dentro ou para cima) muito mais do que horizontais, como acontece na viagem clássica dos heróis homéricos (DA MATTA, 1978: 29).

Faz-se necessário ao investigador, como passo metodológico importante, colocar em suspenso, como já alertou Bachelard (1996), suas representa-ções primeiras sobre o que deseja estudar. Assim, o exercício da relativiza-ção, tão característico das ciências sociais, em especial da antropologia, o respeito por outros modos de vida em suas singularidades é imprescindível para a prática da pesquisa. Principalmente, quando se procura compreen-der uma realidade diversificada, tal como é o caso do Brasil. Este exercício levou-me a vivenciar aquilo que Bourdieu (1989: 49) denomina “conversão do olhar”, ao buscar-se, através do ensino em sociologia, dar, em primeiro lugar, novos olhos, “um olhar sociológico”. A investigação foi iniciada pela tentativa de identificar as relações que o Estado brasileiro vem mantendo com os povos indígenas desde os primei-ros tempos de contato, de modo a favorecer a compreensão da forma como essas relações estão se dando na atualidade, especialmente no contexto de Barra do Corda.Desde a colonização do Brasil até os dias atuais, a relação entre Estado e povos indígenas tem sido marcada por tensões. São tensões no Estado, que alterna tentativas integracionistas e homogeneizantes com a retórica do respeito à diversidade, entre os próprios indígenas, que alternam resistên-cia e assimilação. Esta relação pode ser caracterizada como uma situação colonial, definida por Balandier (1976:150) como “uma situação que nasce da conquista e se desenvolve a partir do relacionamento de duas entidades sociais por meio da qual se enfrentam duas civilizações”.

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Procuro analisar as relações interétnicas, tomando como foco as políticas e ações referentes à educação escolar para povos indígenas. Nesse contex-to, priorizo as questões relacionadas aos estudantes indígenas em centros urbanos. A análise do processo de escolarização dos índios recebe maior destaque porque parecer ser um dos instrumentos mais eficazes de coerção simbólica no sentido de homogeneizar as diferenças étnicas existentes no Brasil. Além disso, a problemática do deslocamento de estudantes indíge-nas para centros urbanos em busca, a priori, de dar “continuidade aos es-tudos” é uma temática que passa a ser abordada pelos documentos oficiais após a Constituição Federal de 1988. A Portaria Interministerial nº 559 de 16 de abril de 19914 é o primeiro documento legal que reconhece a existência da demanda por parte dos indígenas pela educação escolar em seus níveis mais “avançados”. O não atendimento à esta demanda tem influência no crescimento do processo migratório de indígenas, que buscam escolas na cidade e, portanto, fi-cam mais expostos às consequências das relações de “contato interétnico”. Atento que estas relações não podem ser interpretadas como uma equa-ção simples de dominadores e dominados. Oliveira Filho afirma que “é necessário desenvolver uma teoria sobre os fundamentos internos da dominação, evidenciando a forte e íntima ar-ticulação que criam entre si as instituições nativas e as instituições colo-niais” (1988: 10). Neste sentido, não seria suficiente perceber as relações interétnicas apenas de forma unilateral, pois o pólo dominado também desempenha uma função ativa, reinterpretando e selecionando as pres-sões que recebe do pólo dominante. A constatação do intenso fluxo de indígenas que se deslocam para estudar em Barra do Corda e das redes de relações mantidas levou-nos a procurar analisar os fatores que conformam o estabelecimento das fronteiras entre índios e não-índios. Procurei perceber como se dá o “processo de identifi-cação” dos estudantes indígenas na cidade, enfocando algumas represen-tações construídas na relação de contato interétnico.Este panorama levou-me a procurar conhecer a situação dos estudantes indígenas que residem e estudam em centros urbanos, procurando veri-

4. Encontramos esse documento em uma coletânea denominada Política Indigenista Brasileira (2003), a qual, sob a coordenação de Edvard Dias Magalhães, reúne os mais variados documentos referentes aos povos indígenas.

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ficar suas estratégias de manutenção, sua situação nas escolas e o tipo de assistência que lhes é direcionada. Constata-se haver sérios problemas na assistência aos estudantes indígenas, tanto nas aldeias como na cidade. Em razão disso, os estudantes indígenas Tenetehara-Guajajara, Ramkoka-mekrá-Canela e Apanyêkrá-Canela que vivem na cidade são os agentes do campo interétnico que estou analisando. A problemática que me propus a estudar teve como principais fontes os discursos dos agentes, documentos produzidos pelos órgãos relacionados aos índios e os registros decorren-tes da observação direta. Os resultados aqui apresentados são o produto das interpretações que fiz dessas fontes e devem ser percebidos como par-ciais, flexíveis e questionáveis, pois são produtos de classificações e ge-neralizações feitas pelo pesquisador. Assim, abordo questões referentes à “auto-identificação” e a “identificação por outros”, além dos lugares (des)ocupados por esses estudantes indígenas na cidade e em suas respectivas aldeias. A região da cidade de Barra do Corda possui significativa densidade po-pulacional indígena. São, aproximadamente, 10 mil sujeitos classificados como Tenetehara-Guajajara5, Ramkokamekrá-Canela e Apaniekrá-Cane-la, povos estes que mantêm contatos diretos e constantes com os regionais não-indígenas. Ressalta-se que a forma de contato entre não-indígenas e cada um dos povos acima citados tem sido peculiar, pois os contatos foram iniciados em momentos diferentes e de diversas maneiras. Os Te-netehara/Guajajara são os que têm maior tempo de contato6.

5. Coelho (2002: 102) afirma que “tem sido um hábito dos brasileiros de designar os índios com os quais entram em contato à revelia de suas autodenominações”. Atualmente, percebe-se uma incorporação pelos Tenetehara do termo Guajajara, já que, quase por unanimidade, assim se reconhecem.6. Na região, devem ser citadas ainda as seguintes localidades: Jenipapo dos Vieiras, Itaipava do Grajaú, Fernando Falcão e Grajaú. Não existem dados quantitativos em relação aos indígenas que vivem na zona urbana. Através da historiografia da região é possível constatar que um dos alicerces da relação entre índios e não índios esteve na disputa por terras e pela catequese indígena. Tais elementos impingem uma singularidade na relação interétnica, sendo bem presentes e atuais os episódios que desencadearam mortes, tanto de indígenas como de não-indígenas, e que ainda se apresentam na memória dos interlocutores nativos indígenas e nativos de Barra do Corda. Um desses eventos é o chamado “Massacre de Alto Alegre”, ocorrido em 1901 (ZANNONI, 1998; COELHO, 2002; CRUZ, 1982) ou o acontecimento de 1963 frente aos índios Canela (CROCKER, s/d), que culminou com o extermínio de aproximadamente 100 indígenas.

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PONTOS (TEÓRICOS) DE PARTIDA

Em minhas práticas de pesquisa em Barra do Corda, pude sempre obser-var uma presença significativa de indígenas na cidade, principalmente de estudantes indígenas. Esta situação despertou-me para tentar compreender o porquê dessa migração e o tipo de relações interétnicas estabelecidas com isso. Inspirado em Lander (2005) e a formulação sobre colonialidade do sa-ber/poder, procuro compreender o que existe por detrás da “atração” de indí-genas para os centros urbanos, geralmente em busca por educação escolar7. Segundo Ramos (1990), a migração de indígenas para estudar em centros urbanos resulta em modificações significativas das relações no interior das aldeias e na emergência de outras formas de atuação no espaço interétnico urbano. Afirma assim que nos espaços interétnicos as decisões não são to-madas apenas de forma unilateral. No caso pesquisado neste trabalho constata-se que a migração aldeia-cida-de é marcada por uma tensão constante, entre o que os índios denominam “risco de perda cultural” e a “necessidade de aprender outros conhecimen-tos” (“dos brancos”). Assim, a emergência de novos agentes, “embebidos” de outros valores, é, em algumas aldeias, vinculada à perda cultural. Mas a maneira como a educação escolar tem sido apresentada aos povos in-dígenas elege-a como única possibilidade de uma vida melhor, de desenvol-vimento. Essa idéia tem sido questionada por autores como Esteva (2000) e Lummis (2000) que, respectivamente, procuram discutir as categorias desenvolvimento e igualdade. Eles colocam em questão o próprio lócus no qual tais categorias são produzidas. Por serem construídas a partir de uma sociedade específica, a ocidental capitalista, transformam-se as diferenças em desigualdades, já que o parâmetro adotado para avaliar o “sucesso” é o do desenvolvimento econômico. Neste sentido, esses autores criticam a denominada política de alcançar os outros. Percebe-se que, entre os agentes investigados, voltados à educação indígena, o ideal de desenvolvimento, juntamente com a política de alcançar os outros, parece ser naturalizado. No caso dos indígenas, porém,

7. A utilização desse referencial teórico para refletir sobre o processo de subalternização de “saberes indígenas” frente aos “não-indígenas” e as conseqüências que isso pode ocasionar não implica desconsiderar a pertinência de autores como Elias e Foucault, mas trata-se simplesmente de escolhas intencionais do autor a partir de minha maior proximidade com uma literatura mais voltada para a discussão da “colonialidade”.

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as instituições e os agentes sociais que promovem tal política não se mostram interessadas em atentar para os limites estruturais dessa relação e acabam por estimular a migração aldeia-cidade, sem atentar tanto para suas conseqüências.Para os indígenas, a valorização e demanda por determinados elementos citadinos torna a migração para estudar na cidade como um ‘fetiche’. Pa-rece não haver percepção de que há uma produção desse objeto-fetiche e da forma como ele deve ser consumido. Miceli (2001: xlvi) afirma que “se produzir significa produzir para alguém, a demanda que emana das rela-ções sociais determina ao mesmo tempo não só a produção do objeto, mas também a maneira em que será consumido”. Neste sentido, a demanda por escolas, escolaridade e a migração para as cidades podem também ser en-tendidas como inseridas num contexto colonial de relações sociais. Além de gerar tensões, a vivência na cidade potencializa a própria evidência das fronteiras (BARTH, 1997) entre indígenas e não-indígenas, fronteiras essas que não são aqui percebidas como estáticas, mas, sim, dinâmicas e flui-das através das quais os agentes transitam e se comunicam constantemente. Assim, pude identificar momentos em que as fronteiras eram mais explícitas e outros em que eram mais latentes.Em Barra do Corda, os regionais ‘não-indígenas’ empregam designações, categorias sobre os índios que demonstram a existência de tais frontei-ras. Assim, termos e classificações como “caboclo” (caboco), “compadre” (cumpadi) ou “comedor de sapo” são empregados para demarcar frontei-ras entre “sociedades” distintas, não apenas entre indivíduos, mas notavel-mente pessoalizando os indígenas. Por outro lado, apreender os discursos dos estudantes indígenas ou os modos discursivos pelos quais os sujeitos dos diferentes povos se posicionam, acionando ou camuflando suas iden-tidades, tornou-se um caminho necessário para compreender a situação dos estudantes indígenas no contexto urbano. Ao fazer pesquisa de campo etnográfica, conversei com estudantes Tenetehara-Guajajara, Ramkoka-mekrá-Kanela e Apanjêkrá-Kanela, que acionavam formas diversas de identificação, dependendo muito das situações em foco.De fato, a manipulação das identidades no contexto urbano pode colocar e expor o estudante indígena a uma crise de pertencimento, já que ele está distante tanto do seu próprio “lugar de origem” como não incorpora sim-plesmente os valores da “sociedade receptora”. O lugar (des)ocupado por esse “indígena migrante” pode ser percebido nos termos de Bourdieu (1998:

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11), que afirma, com referência aos argelinos migrantes na França, que “o migrante é inclassificável e passa a ser incômodo em todo lugar, e doravante tanto em sua sociedade de origem quanto em sua sociedade receptora”.Sayad (1998), com referência à mesma situação de Bourdieu (1998), fornece alguns instrumentos que podem ser utilizados para refletir sobre a situação dos estudantes indígenas em Barra do Corda. Para este autor, o migrante vivencia uma “dupla exclusão”, pois ele não se sente pertencente à sociedade que o “acolheu” e também pode não mais acompanhar os ritmos e mudan-ças da sociedade de origem.Os indígenas que migram para os centros urbanos vivenciam uma situação de discriminação, sendo classificados e representados por critérios e idéias de ser “autêntico”, “puro” ou, ao contrário, “não-indígena”. Por um lado, são discriminados na cidade por serem diferentes e, por outro, são discrimina-dos nas aldeias por não conseguirem mais acompanhar, quando retornam aos contextos de origem, ao ritmo das mesmas aldeias. A situação de migrante ainda pode ser vista sob a ótica de Seyferth (1997) que, analisando a situação dos alemães no Brasil, afirma que esse processo não leva à perda do sentimento de pertencimento a um grupo específico e diferenciado, mas esse sentimento permanece. Pode-se identificar essa mes-ma situação no contexto pesquisado. Há a afirmação da “indianidade” em relação aos regionais não-indígenas e a escola passa a ser representada como um meio de luta e reivindicação por direitos específicos em função do pró-prio grupo. O elo de ligação com suas comunidades potencializa a tensão entre as lealdades distintas, quais sejam, aos valores indígenas e aos códigos requeridos e adquiridos no contexto urbano.Além de buscar perceber a inserção dos indígenas na educação escolar como parte de um processo de subalternização dos conhecimentos e sa-beres dos povos indígenas, este trabalho procura refletir, portanto, sobre as possibilidades de se pensar a construção e a manipulação de identidades por parte dos estudantes indígenas migrantes na cidade de Barra do Corda e as fronteiras evidenciadas nessa relação.

ENTRE (NAS) FRONTEIRAS: ESTUDANTES INDÍGENAS EM BARRA DO CORDA

Diante da omissão da Gerência de Articulação e Desenvolvimento da Re-gião do Centro Maranhense, órgão do governo estadual do Maranhão,

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os cerca de trezentos indígenas que vivem fora das aldeias de toda aque-la região acabam por recorrer aos núcleos da Funai em busca de algum tipo de assistência. Durante a pesquisa que realizei em Barra do Corda, localizavam-se três núcleos da Funai: o “Núcleo de Apoio Local Mardônio Amorim Pompeu - Nalmap”, o “Núcleo de Apoio Local da Funai - Nalf ” e o “Núcleo de Apoio Local de Kanela - Nalk”. Aos dois primeiros núcleos, estão jurisdicionados os Tenetehara-Guajajara e ao terceiro os Ramkoka-mekrá-Kanela e os Apanjêkrá-Kanela. Comecemos pelos últimos povos.Os Ramkokamekrá-Kanela e os Apanjêkrá-Kanela possuem, para os seten-ta indígenas que estudavam em Barra do Corda, duas casas estudantis na cidade, sendo uma voltada para cada povo. Os estudantes Ramkokamekrá--Kanela alojam-se em uma casa, denominada “padaria”, localizada no bair-ro Nossa Senhora das Dores. Os Apanjêkrá-Kanela ficavam residindo em local situado no bairro Vila Canadá. O Nalk ficava com a responsabilidade de pagamento das taxas e contas de água e energia elétrica, o que consiste em uma das funções que diferenciam este núcleo.Dos estudantes indígenas atendidos pelo “Nalmap”, cerca de setenta deles utilizavam, conforme observei, o transporte fornecido pelo Núcleo para conduzi-los das aldeias às escolas em Barra do Corda. A maioria desses indígenas estuda na Unidade Integrada Deputado Galeno Edgar Brandes em salas do EJA (Educação para Jovens e Adultos). Em Barra do Corda, esta é a única escola que possui classes de aulas compostas exclusivamente por alunos indígenas. Não houve por parte da escola nenhuma tentativa de implementar educação específica e diferenciada voltada para alunos in-dígenas, pois os conteúdos ministrados eram os mesmos encontrados em escolas regulares ou formais da rede pública de ensino. Os estudantes Tenetehara-Guajajara também jurisdicionados ao Nalf não possuiam casas de estudantes. Eles geralmente residiam com familiares em bairros e áreas marginalizadas da cidade, tais como em pontos extremos dos bairros Tamarindo, Vila Canadá e uma área no centro da cidade deno-minada, por indígenas e não-indígenas, de “aldeinha”, onde viviam apenas indígenas. O elemento comum encontrado em todos os núcleos é o fornecimento de material didático e fardamento escolar, ainda que de forma precária. Mes-mo diante de todas essas adversidades, a migração aldeia-cidade é uma re-alidade contínua e crescente.

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O DILEMA ENTRE SER GENTE E SER ÍNDIO DE VERDADE

No contexto de pesquisa, percebe-se que a escola, mesmo sendo uma insti-tuição que tem o poder de fazer crer, não consegue impor, unilateralmente, seus valores de forma hegemônica aos indígenas, pois eles imprimem mo-dos de resistência a ela. Mesmo com a reivindicação de práticas pedagógi-cas nos moldes da “escola regular”, os indígenas também buscam resistir e manter suas alteridades. Parece que a vontade de estudar na cidade envolve o interesse de atuar no espaço interétnico urbano (RAMOS, 1990), mas fa-vorecendo sua comunidade de origem. Para Ivam Rankokamekrá Kanela (2006), a escola seria o veículo para a “auto-determinação” dos povos in-dígenas, especialmente de seu próprio povo, pois ela poderia possibilitar a manutenção da alteridade, dependendo da sua forma de apreensão. Assim, os indígenas passam a representar a escola como “necessária”, pois, além da reafirmação étnica, ela é cada vez mais indispensável para a atuação no espaço urbano (RAMOS, 1990), que é, particularmente, interétnico. Além disso, há o fato da migração da aldeia para a cidade ser estimulada em ter-mos “coletivos”, não podendo ser explicada apenas como uma escolha indi-vidual, tal como me contou Moisés Neto, um estudante indígena Apanjêkrá--Kanela, migrante em Barra do Corda: “minha ida pra estudar na cidade foi decidida pelo Conselho Indígena”. Ao afirmar que “somente depois de aprender a escrita de vocês é que posso fazer uma escrita diferente - nós índios somos diferentes”, Ivam Ramkoka-mekrá expressava que a “necessidade” de educação podia ser uma alterna-tiva para uma coletividade ao se afirmar como diferente da outra. Mesmo sendo um dos elementos da “colonialidade”, a escrita não subtraia do in-dígena o sentimento de pertencer a um povo específico, de ter um perten-cimento étnico singular. A apropriação e ressignificação que os indígenas fazem de certos elementos culturais não indígenas pode ser caracterizada por como um processo de “atualização histórica”, importante porque po-tencializa a dinamicidade das relações interétnicas. Nesse sentido, não entendo que a educação indígena atue de modo sobe-rano, como se os indígenas não fossem sujeitos ativos e não atuassem de modo proativo nesta esfera. Como sujeitos de ação, os indígenas produzem estratégias de resistência diante da educação escolar que lhes é “imposta”. De algum modo, a evasão das aulas nos períodos de rituais, que acontecem nas aldeias, pode ser percebida como uma destas estratégias de resistência. Isso é muito mais notado entre os índios Timbira, que chegam a afirmar

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que “quando ocorrem as ‘festas de índio’ todos que estudam na cidade têm que ir [voltar] para a aldeia”8. Isso é também ressaltado por parte dos pro-fessores indígenas que afirmam que os estudantes devem participar ativa-mente da vida comunitária da aldeia, inclusive das ‘obrigações’ rituais e so-cietárias. Assim, os estudantes indígenas costumam retornar efetivamente para suas aldeias no período das “festas de índio” e em suas férias escolares. Mas o retorno dos estudantes indígenas às aldeias pode resultar em proble-mas internos. Segundo os professores indígenas Cornélio Ramkokamekrá e Filipinho Apanjêkrá, os índios que estudam na cidade, quando retornam para a aldeia, precisam ser “forçados” a fazer as coisas para a comunida-de, pois eles passam a valorizar apenas o que incorporaram dos “brancos”: “isso tá errado, nosso costume é lei”. Nas aldeias Timbira, os prok’man, os índios que já detêm mais status social em razão de sua idade, procuram reforçar nos estudantes indígenas a necessidade de “não se transformarem em cupê” (termo nativo usado para chamar o “branco” ou não-índio) e, sobretudo, permanecerem vinculados a seus povos.Trata-se de uma dinâmica relacional ambígua. Por um lado, os indígenas de mais idade buscam conter a migração das aldeias, já que a entendem como uma forma possível de “perda cultural”, mas, por outro lado, também a incentivam, pois eles também percebem a “importância/necessidade” da escola para “facilitar” o diálogo com os não-índios, os cupê. A escola é re-presentada, assim, como um “meio” do indígena fazer reivindicações no espaço urbano em favor da sua comunidade, mas também como um espaço de desadequação ao mundo da aldeia, quando o estudante indígena passa a ser visto com estranheza. Longe de ser contraditório, este contexto de “acei-tação” e “resistência” evidencia a tensão constante provocada pela situação de contato, o que exige a apropriação de certas regras para atuar no jogo interétnico urbano.Entre os Apanjêkrá-Kanela, com quem mantive mais contato, era muito mais explícita a tensão entre a “necessidade” e a “resistência” à educação escolar. Seus discursos evidenciavam a oscilação entre o “temor de perda cultural” e a “necessidade dos conhecimentos ocidentais”. Além disso, di-vergiam sobre a posição ocupada pelos estudantes migrantes na organiza-ção social da aldeia.

8. A utilização desse termo refere-se aos rituais de iniciação, separação ou agregação em contraposição às “festas de cupê” que também ocorrem nas aldeias.

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Em razão do valor conferido aos elementos da “sociedade majoritária”, pos-so afirmar que professores, enfermeiros, pesquisadores e outros não-indí-genas, cujo contato podia ser tanto direto como indireto com os índios nas aldeias, exerciam razoável influência na construção desse imaginário. Os indígenas podiam representá-los como “aqueles que sabem, aqueles que estudaram e se desenvolveram”. A “importância” que os valores não indí-genas podiam assumir entre os povos indígenas explicitou-se quando Hel-tón Antwá Canela me afirmou: “nós também já somos gente, já sabemos ler, mas ainda têm aqueles índios de verdade, (que) são analfabetos”. Essa constatação pode enfraquecer a relação dos estudantes com outros índios, já que eles podem passar a percebê-los como “inferiores”, desvalorizados e desiguais por conta de sua diferença. Estas representações negativas podem explicar a efetivação do deslocamento da aldeia para a cidade. Consequen-temente, esses “indígenas migrantes” passam a “constituir a parte marginal dos centros urbanos”.De fato, os indígenas que migram para estudar na cidade estão expostos às preocupações dos membros de sua comunidade de origem, já que eles são vistos e representados como aqueles que estão mais propensos a “perder a cultura”. O contato mais constante com não-indígenas suscitava a adoção de outras expressões culturais e novos estilos de vida, o que provocava suspei-tas e uma inquietação a respeito dos estudantes indígenas, se eles estavam deixando de ser índios e se transformando em cupê, termo que servia, como já notei anteriormente, para designar os “não-indígenas”. Essa tensão estava presente nas falas e discursos dos mais diversos sujeitos indígenas, o que mostrava que esses temores eram guiados pelas próprias relações internas do grupo indígena. As dificuldades de sobrevivência e de assistência na cidade não deixavam de aparecer nos discursos dos estudantes Ramkokamekrá-Kanela, sem que eles arrefecessem o próprio interesse de estudar fora das aldeias. Para um estudante Ramkokamekrá-Kanela, Hélton Antwá, estudar na cidade era si-nônimo de ter “uma boa vida, igual de cupê”.Diferentemente dos Ramkokamekrá-Kanela e dos Apanjêkrá-Kanela, os es-tudantes Tenetehara-Guajajara deixavam transparecer certas peculiaridades bem significativas. Seus discursos salientavam a manutenção de um “senti-mento de pertencimento” a um povo específico. De modo explícito, afirma-vam que “estudar na cidade é para poder trabalhar pelo seu povo”. Estes estu-dantes não cogitavam, porém, a possibilidade de retornar para suas aldeias, o

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que os diferenciava de parte dos estudantes Timbira. Segundo eles, poderiam ajudar a seu povo através da ocupação de cargos na Funai ou nos pólos-base da Funasa que existiam na cidade.Como a valorização dos conhecimentos do “outro”, do “não-indígena”, do cupê não implicava a negação9 de sua indianidade, posso afirmar que a inser-ção desses indígenas na escola, na cidade ou no “mundo não-indígena” podia colocá-los em condição de vivenciar um “lugar de passagem”, uma “frontei-ra”, conforme Hall (2003), em que o “ir além” não significava, necessariamen-te, a perda de características culturais pré-existentes, mas, sobretudo, a revi-são de valores e normas que possibilitassem uma adequação às atualizações históricas indispensáveis aos agentes sociais em contato.

“SER OU NÃO SER” OU “SERIA” - EXISTE LUGAR (PRÓPRIO) DE ÍN-DIO?

Nas cidades, sobretudo, as relações entre indígenas e não-indígenas constro-em-se em meio a tensões e contradições que são, ao mesmo tempo, étnicas, econômicas e sociais. O campo das relações interétnicas, configurado em ter-mos urbanos, nos oferece base empírica para compreender as implicações do processo migratório que se realiza entre as aldeias indígenas e as cidades. Isso pode ser entendido como produto do contato interétnico entre índios e não-índios, não sendo decorrente apenas de causas e motivações econômi-cas. Procuro assim, mapear as relações entre estudantes indígenas e sujeitos não-indígenas, enfatizando as fronteiras étnicas mais manifestas ou latentes.Na esfera das relações interétnicas, é possível observar entre os não-indíge-nas diretamente ligados à questão escolar na cidade (por exemplo, os dire-tores) a negação da existência de índios, sobretudo estudantes indígenas, em Barra do Corda. Em contrapartida, reconhecem a existência de sujeitos que são “diferentes” do restante da população. Regionalmente construído, o estereótipo acerca do que seria o “índio ver-dadeiro” refere-se aos indígenas que ainda se mantêm em aldeias. Assim, a definição, feita por alguns não-indígenas, do “índio verdadeiro” não engloba aqueles que se deslocam para os centros urbanos, inclusive os que vão para estudar.

9. O “se afirmar” nesta situação não é apenas dizer “eu sou índio”, mas expressar algum elemento que caracteriza a existência da fronteira, a língua, por exemplo.

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Os regionais não-indígenas afirmam que os índios da cidade já estão “inte-grados”, o que equivaleria a dizer que “não são mais índios”. São, contudo, definidos e classificados como “diferentes”. Essas afirmações não deixam de implicar, em certa medida, que haja algo de “indígena” nesses “índios migrantes”. Mas a imagem do “índio” associado ao do “bom selvagem” ainda permeia as representações. Por exemplo, os funcionários das esco-las chegam a afirmar que os indígenas que estudam na cidade “já não são tão índios, a não ser na aparência, pois já estão sem vergonha, igual aos brancos”. São também atribuídos outros estereótipos que desvalorizam os índios ainda mais frente aos regionais, como os de serem “traficantes” ou consumidores de maconha, uma classificação aferida também àqueles que trabalham com os indígenas. Portanto, o fato de um indígena morar na cidade é entendido por alguns não--indígenas como uma “negação da indianidade”. Em parte, esta “negação” é assimilada pelos próprios indígenas que, não só nas aldeias, mas princi-palmente na cidade, passam por momentos de tensão, digamos momentos liminares ou de flexibilização de seu “ethos indígena”. Isso pode ocorrer em diversos contextos, sobretudo em situações de conflito manifesto, tal como as interdições da rodovia BR–226, quando os estudantes indígenas tentam camuflar sua “indianidade”, pois são ocasiões em que eles afirmam se senti-rem inseguros. As interdições da rodovia, principalmente pelos índios Te-netehara-Guajajara, são episódios em que as “fronteiras” (BARTH, 1997) entre indígenas e não-indígenas são mais evidenciadas, quando o “confli-to” aflora10. Os Ramkokamekrá-Kanela e Apanyêkrá-Kanela não chegam a participar das interdições da BR-226, mas as retaliações são destinadas a todos os índios sem distinção. A discriminação negativa em relação aos indígenas genericamente é, então, mais evidenciada. Como afirma Bourdieu e Passeron (1992), “a escola serve para reproduzir os acontecimentos de outras instâncias da sociedade”. Neste sentido, po-demos dizer que há nas escolas certa reprodução da discriminação nega-tiva em conseqüência da exacerbação do preconceito frente aos indígenas. Outras formas de embates também evidenciam “fronteiras” interétnicas. As audiências públicas são exemplos. Estas têm repercussão na cidade e, principalmente, no cotidiano dos estudantes indígenas nas escolas. Che-

10. A noção de “fricção interétnica” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996) pode dar luz no entendimento desta situação.

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guei a notar que o número de índios decresce consideravelmente no perí-odo posterior das audiências. A expressão “medo de represálias” era muito recorrente. Mas pude constatar que existem não-indígenas com certa sensi-bilidade que, pelo menos, tentam compreender as ponderações a favor dos indígenas, o que desestabiliza o imaginário geral de que “tudo é culpa dos índios”. De qualquer modo, esses embates contribuem para o sentimento de incerteza e medo que os estudantes indígenas afirmam vivenciar na cidade. É claro que a relação entre “índios” e “não-índios” mostra-se ser bem com-plexa e se acirra quando há mais proximidade. Em Barra do Corda, as “fronteiras” interétnicas, evidenciadas em vários momentos, acabam por prevalecer de maneira definitiva na escola. Os não-indígenas atribuem a causa dos problemas da cidade (por exemplo, a poluição dos rios da região) aos “índios” e apontam em seus discursos até meios extremos para resolvê--los: o extermínio dos índios, ou seja o etnocídio. Mas considero que o que é chamado, localmente, de “problema dos índios” resulta, com certeza, dos problemas decorrentes das situações de contato, que poderíamos caracte-rizar como uma relação marcada pela contradição, histórica e estrutural, entre a “sociedade indígena” e a “sociedade não-indígena” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996).A clivagem entre “índios” e “não-índios” não é evidenciada apenas nos mo-mentos de “conflito manifesto”, tais como as interdições da rodovia BR 226 ou quando há alguma morte decorrente de tais conflitos. Ela está presente nas diversas relações do cotidiano, inclusive no cotidiano escolar. A sutileza de sua manifestação não significa, assim, a inexistência dessa clivagem. Por exemplo, nota-se abertamente a separação espacial dos alunos em sala de aula. Em conversa que mantive com Hélton Antwá Canela, ele chegou a me afirmar, em 2006, que “os cupê não se aproximam dos índios”. Há um claro distanciamento entre indígenas e não-índios, o que não significa, por certo, a inexistência de exceções. Em sala de aula, os estudantes indígenas encontram-se geralmente agrupa-dos e separados do restante dos alunos, principalmente os Ramkokamekrá--Kanela. Salvo exceções esporádicas, os estudantes indígenas na cidade não entabulam conversação, em sala de aula, com os estudantes não-indígenas. Conversam apenas entre si e na língua indígena nativa, o que provoca, por vezes, certa indignação de alguns professores que, pressupondo que estão falando mal ou zombando deles, os “estimulam” a falar em português, afinal de contas “estão na cidade”. Os índios resistem a esse “estímulo” para falar

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português quando estão apenas entre eles. Mesmo sentindo a “necessidade” de aprender o português, eles têm consciência de que a língua indígena na-tiva é o elemento que os caracteriza e os evidencia como povos diferentes. Certa vez, Hélton Antwá Canela me afirmou que é logo repreendido “o es-tudante indígena que estando apenas entre índios fala em português”. Essa repressão pode dar-se de diversas maneiras, mas uma delas, como aponta Hélton Antwá Canela, é seu isolamento do restante do grupo de indígenas na cidade.Além da obrigatoriedade de falar na língua nativa quando se está entre in-dígenas, observei que os indígenas Ramkokamekrá-Canela e Apanjêkrá-Canela, tanto homens e mulheres, vestem-se como se estivessem aldeia mesmo nas casas de estudantes em Barra do Corda. Essa atitude representa mais uma forma de manutenção e resistência da identidade indígena na cidade.Nas escolas da cidade, outros momentos evidenciam de forma bem explíci-ta a segregação dos estudantes indígenas na cidade. Por exemplo, isso ocor-re quando os professores pedem aos alunos que formem equipes para tra-balho de grupo. Nestes momentos, segundo Elias Pený Canela (Apanyêkrá que estudava em Barra do Corda), o distanciamento de alunos “não-indí-genas” e “indígenas” fica mais evidente. Os indígenas não são aceitos para formar equipes com os não-indígenas. Mesmo os alunos Tenetehara-Guajajara11 também eram percebidos como “diferentes” pelos regionais, ainda que tivessem uma maior facilidade e fluidez nas relações com a “sociedade não-indígena”, o que pode estar li-gado ao tempo maior de contato e convivência, quando comparados aos Ramkokamekrá-Kanela e Apanyêkrá-Kanela, mas pode ser motivada ainda pela maior proximidade de suas aldeias da cidade de Barra do Corda.No período escolar, é corriqueiro entre os jovens, principalmente, darem apelidos uns aos outros. Nas relações interétnicas em questão, este fato, que poderia ser considerado “normal”, ganha outra dimensão. Dar ou colocar apelidos pode envolver questões de preconceito, discriminação, identifica-ção e estratégia política. Em Barra do Corda, todos os indígenas, indepen-dentemente do povo, são denominados comedor de sapo, caboco ou cum-padi. Nesse caso, o ato de apelidar não é direcionado a um sujeito em sua

11. Classificados na Família Tupi.

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individualidade, mas a um conjunto de sujeitos, a um grupo étnico, a uma coletividade de sujeitos que são percebidos como diferentes. Estes apelidos evidenciam as “fronteiras” existentes entre “indígenas” e “não-indígenas”, entre sociedades distintas, entre aqueles que são legítimos para criar (ou dar) apelidos e aqueles que são os “destinatários legítimos” dos apelidos.Há também diferenciações e classificações hierarquizadas dos indígenas pelos não-índios. Alguns indígenas são classificados como ainda sendo “índios de verdade”, “título” designado aos Timbira que não se deslocaram para estudar na cidade.A auto-identificação dos indígenas é influenciada pelas classificações fei-tas pelos regionais não-indígenas, o que configura a “identidade indígena” como uma “identidade social contextual”, nos termos de Baines (2001):

A mesma pessoa pode se considerar indígena em alguns contextos, e não em outros, ou apelar a outras identidades genéricas geradas historicamente em situações de contato interétnico, como caboclo, índio civilizado, descendente de índio, remanescente, índio mistura-do, etc (BAINES, 2001).

As relações escolares entre indígenas e não-indígenas, na cidade, tendem a fazer o estudante indígena a perceber-se e classificar-se através dos olhos e valores do “outro” (do “não-indígena”). Isto pode afetar sua auto-identifica-ção e a forma como olhará ou identificará outros indígenas (por exemplo, aqueles que permaneceram nas aldeias). Marcado por tensões e conflitos, esse processo tende a provocar certa hierarquização de saberes (os da ci-dade), que faz com que os estudantes indígenas citadinos passem a perce-ber seus parentes como não sendo “gente” por não saberem ler, ao mesmo tempo em que os classificam como “índios de verdade”. Em determinados discursos de estudantes indígenas transparece que o “índio de verdade” é aquele que permanece na aldeia e que estaria submetido a uma situação transitória. No cotidiano escolar, há geralmente uma desconsideração das diferenças étnicas, a não ser quando se instiga ou favorece atitudes preconceituosas. Alguns estudantes chegam a afirmar que os professores nem se aproximam deles. Nas salas de aula, conteúdos universalistas são ministrados descon-siderando a presença interna de alunos pertencentes a “sociedades” dife-rentes. O conteúdo ministrado caracteriza-se por naturalizar os conheci-

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mentos citadinos ou universais como a única “ordem possível” (LANDER, 2005) e a única maneira de conhecimento. Em salas de aula, práticas e sa-beres indígenas são desconsiderados ou inferiorizados por professores até mesmo em turmas compostas apenas por alunos indígenas. Isso também se repete até mesmo nas escolas encontradas nas aldeias indígenas.Os estudantes indígenas Tenetehara-Guajajara que se deslocam diariamen-te para a cidade convivem também diariamente com a negação de sua “in-dianidade” pelos regionais, mesmo se permanecem morando em suas al-deias. Pude presenciar isso ao observar aulas em escolas de Barra do Corda, inclusive nas que têm exclusivamente alunos indígenas Tenetehara-Guaja-jara, tal como é o caso de salas de aula da Unidade Integrada Deputado Ga-leno Edgar Brandes. Isso explica, então, porque os próprios estudantes Te-netehara-Guajajara não se afirmem enquanto “índios puros”, termo usado por eles para definir, assim, os Ramkokamekrá-Kanela e Apanjêkrá-Kanela.Finalizo esta parte parafraseando os termos de Silva (2000), pois podería-mos afirmar que, em nosso contexto, o das escolas de Barra do Corda, as classificações não ocorrem de maneira inocente e servem, sobretudo, para afirmar “normalidades” (identidade) enquanto legítimas e legitimadas, mas negando e inferiorizando “anormalidades” (diferenças).

CONCLUSÃO

Considerando que o deslocamento de indígenas para os centros urbanos é uma realidade e possui diversas particularidades em nosso caso especifico, podemos apontar algumas considerações finais, entendidas, porém, mais como problematizações do que conclusões fechadas. Assim, a situação de migração coloca os estudantes indígenas na cidade em contato evidente-mente mais intenso com os regionais não-indígenas, o que pode represen-tar para outros índios como um contexto favorável à “perda da cultura”. Mas, por outro lado, o deslocamento para estudar na cidade e a apreensão dos conhecimentos do mundo dos “brancos” pode servir, como afirmam os próprios indígenas, como um meio de prepará-los para reivindicar, no espaço interétnico urbano, direitos específicos para sua comunidade.Neste sentido, a escola pode passar por um processo de “ressignificação” (GARNELO, 2003), tendendo a se constituir como uma instituição media-dora entre as perspectivas de sobrevivência das sociedades indígenas, en-quanto povos distintos, e a possibilidade de inserção e atuação no mundo dos “brancos”, garantindo as suas especificidades. Tassinari (2001) propõe

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que a escola indígena seja percebida como uma fronteira, ou seja, como es-paços de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, assim como espa-ços de incompreensões e de redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, tanto índios como não-índios.Desse modo, pude perceber que as relações interétnicas nas escolas da cida-de de Barra do Corda são também marcadas por tensões. Assim, momentos específicos favorecem o afloramento da fronteira (BARTH, 1997) entre in-dígenas e não-indígenas. Segundo Cardoso de Oliveira (1996), as fronteiras podem ser mais visíveis em situações de conflito manifesto, tal como ocorre geralmente, nos episódios em que os indígenas fecham a rodovia BR 226. Nestas circunstâncias, os estudantes indígenas, quando não retornam para suas aldeias, buscam manipular sua identidade indígena. Este movimento pode ser entendido como uma atuação do estudante “indígena migrante” em um espaço liminar.Os estudantes indígenas inseridos em escolas de centros urbanos viven-ciam uma tensão constante na cidade e, também, em suas aldeias. É a ten-são motivada pelos conflitos manifestos na cidade, quando são mais discri-minados, mas é também a tensão decorrente da dificuldade de adaptar-se ao ritmo de vida das aldeias, quando a elas retornam. Nos termos de Bour-dieu (1998), essa liminaridade pode ser caracterizada através da categoria de pessoa deslocada para definir a situação do migrante. Assim, constata-se que os indígenas empregam, por um lado, a “adoção” de estratégias (elementos citadinos) para “facilitar” essa relação interétnica e, por outro lado, a manutenção, no centro urbano, de diacríticos (língua indígena nativa) que reforçam suas indianidades. Observa-se uma série de elementos que envolvem transformação, permanência e reestruturação de fronteiras entre indígenas e não-indígenas no espaço urbano, onde “as relações interétnicas são, fundamentalmente, conflituosas e tensas, ocor-rendo num continuum que alterna imposição com resistência e momentos críticos com momentos de trégua” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). A migração para a cidade é representada, sobretudo pelos indígenas, como um meio facilitador na busca por estratégias de atuação nos espaços físicos e políticos urbanos, pois os indígenas migrantes também são percebidos como agentes potenciais, representativos, mediadores ou interlocutores, de sua comunidade no “espaço interétnico urbano” (RAMOS, 1990).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAPÍTULO VIIINDIGENISMO E MEDIAÇÃO: O CASO DO RIO GRANDEDO NORTE

Claudia Moreira da Silva Hofmann1

Carlos Guilherme do Valle

Na primeira metade da década de 2000, a imagem dos Eleotérios como “in-dígenas” foi sendo projetada por agentes e funcionários de várias instituições no estado do Rio Grande do Norte, circulando internamente em agências pú-blicas estaduais, além de já se notar em outras organizações de âmbito fede-ral. Foram publicadas reportagens de jornal, promovidas audiências públicas, além de tentativas de chamar atenção da sociedade para as questões étnicas. Nesse período, a questão indígena aparecia publicamente, mas sem causar grande inquietação a não ser por conta da atenção irregular da imprensa. Em uma das reportagens de 2003, o jornal Tribuna do Norte destacava o “resga-te do Tupi Guarani” na comunidade do Catu, substancializando a imagem dos Eleotérios como “indígenas”. O jornal enfatizava que os Eleotérios eram possuidores de “hábitos indígenas”, além de afirmações como a seguinte: “os moradores do Catu são reconhecidos como índios pela Fundação Nacional do Índio (Funai)”. Estas reportagens estavam marcadas pela condução de um tipo de militância indigenista, que pode ser chamada de “independente”, en-volvendo agentes de várias instituições do estado, tais como o Museu Câmara Cascudo (MCC) da UFRN e a Fundação José Augusto (FJA), órgão público estadual voltado para a política cultural, criado em 1963. Assim, as famílias Eleotério passaram por um processo paulatino de reconhecimento e identifi-cação como indígenas por parte de instâncias públicas2.

1. Este artigo apresenta parte de reflexão iniciada em minha dissertação de mestrado (SILVA, 2007). Em 2006, realizei pesquisa histórica e documental em instituições do Rio de Janeiro. Isso foi possível através do apoio do projeto de intercâmbio CAPES PROCAD entre o PPGAS/UFRN e PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. 2. Uso aspas (“”) para citação direta dos pesquisados não indígenas, aspas (“”) e itálico para citações direta dos indígenas e itálico para expressar meus grifos.

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Meu interesse de pesquisa pela situação dos Eleotérios surgiu, em particular, da “descoberta” da existência social de índios e suas demandas no Rio Gran-de do Norte. Depois, a militância indigenista foi se redimensionando com a entrada de outros atores sociais, o que viria a se tornar um caso especial, se comparado a outras situações de emergência étnica no Nordeste brasileiro. É importante observar que as demandas colocadas pelos indígenas do Rio Grande do Norte, inclusive as famílias Eleotério, não foram criadas simples-mente pelo campo de ação e de mediação indigenista. De fato, elas seriam engendradas e (re)configuradas a partir de um campo intersocietário que envolvia indígenas e não indígenas, instituições públicas e agências político--administrativas variadas, numa determinada situação histórica. Um dos efeitos gestados a partir da confluência de relações, práticas e conteúdos culturais foi o de aproximar essas demandas das agências governamentais que vêm atuando com a questão indígena no país (Funai, Funasa, etc). As famílias e lideranças Eleotério interagiam com agentes sociais sem deixar de produzir suas próprias significações e definições sobre os contextos em que viviam, as demandas sociais e os investimentos étnicos que lhes moti-vavam3.Entendo “campo intersocietário” a partir da discussão de OLIVEIRA (1988: 193) em que ele pode ser definido em termos das “ações, recursos, táticas e ideologias concernentes ao relacionamento” de segmentos indígenas e agentes indigenistas, em sua amplitude heterogênea, o que evita uma visão dualista e excludente dos agenciamentos e combinações que se produzem historicamente entre os grupos sociais e étnicos em interação. Por seu turno, o indigenismo é um termo usado para se referir a um conjunto determina-do de ações e idéias voltadas aos povos indígenas. Sua origem remonta ao contexto mexicano onde o conhecimento antropológico teria uma dimen-são aplicada e político-administrativa por parte de agências governamentais (ARMAS, 1981; SOUZA LIMA, 1995; 2002). Esse caráter aplicado, inter-vencionista do indigenismo precisa ser destacado, intervenção essa que se baliza através de conhecimento especifico, o que deriva do que seria uma antropologia aplicada. O indigenismo e campo indigenista devem ser con-sideradas categorias analíticas que se associam a contextos, agentes, práticas

3. Ao me referir a “demandas”, chamo atenção para os temas e problemas colocados pelas famílias Eleotério nos espaços públicos que atuavam, conforme as condições sociais que lhes eram possibilitadas. Particularmente, os principais “problemas” que privilegiavam era a falta de água, o acesso restrito às terras e às matas.

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e esquemas ideológicos historicamente definidos, categorias que podem ser articuladas entre si por meio da apreensão de possíveis conexões pelo pes-quisador. Se as categorias têm rendimento teórico, isso se deve à sua capaci-dade de construção heurística.No Brasil, o “indigenismo” foi reapropriado em sentido um pouco diferen-te (SOUZA LIMA, 2002; OLIVEIRA, 2002), afrouxando algumas amarras do conhecimento antropológico e de sua possível aplicação concreta para envolver práticas e políticas intervencionistas de agentes e agências (indige-nistas) de perfil governamental. Para Souza Lima (1995: 16), o indigenismo poderia ser abordado por uma variedade de planos, mas esse autor destaca que ele pode ser entendido como um discurso que vem sendo produzido diferentemente por uma variedade de agentes e agências, não apenas as go-vernamentais, mas inclusive as religiosas e as “militantes“, sobretudo as não indígenas. Verifica-se que o tema da mediação acaba dispontando no enfo-que do indigenismo. Assim, o indigenismo e os indigenistas passaram a ter uma dimensão iden-tificável socialmente, nomeando e classificando práticas e sujeitos caracte-rísticos, cujas ações voltavam-se aos povos indígenas, especialmente a partir das décadas de 1950 e 1960. Seria talvez interessante entender como o indi-genismo passou a se reconfigurar nos contextos do Nordeste brasileiro, es-pecialmente nas últimas quatro décadas. Alguns estudos chegaram a abor-dar como o indigenismo se constituiu em certos casos e situações concre-tas, entendendo-o como um componente do campo intersocietário em que as questões étnicas se anunciam de modo mais visível (OLIVEIRA, 1988). Nesse artigo, privilegio analiticamente, portanto, a militância e a mediação indigenista em torno da experiência da etnicidade dos Eleotérios, famílias que viviam em certas áreas do Catu, distrito dos municípios de Canguareta-ma e Goianinha, que consistiram em antigos espaços de ocupação colonial e de formação de aldeamentos indígenas. Diversas pessoas, agentes e enti-dades públicas destacaram-se por agir ou atuar em termos institucionais e, localmente, no Catu em prol da “questão indígena”, participando diretamen-te na produção de aspectos centrais dessa situação étnica, cujos objetivos últimos voltavam-se para as famílias Eleotério, enquanto sujeitos e objetos de ação política e discursividade étnica. Estas diferentes posições e atuações deram sentidos particulares ao processo de construção étnica no estado. Para entender a formação de um campo indigenista, terei que apresentar os Eleotérios, mostrando como eles estabeleceram relações e articulação com outros grupos indígenas, além do movimento indígena organizado.

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O CATU DOS ELEOTÉRIOS: HISTÓRIA INDÍGENA E“DESAPARECIMENTO”

As famílias Eleotério vivem na microrregião litorânea sul do estado do Rio Grande do Norte, ou seja, em área que fica a 80 km de Natal. A denomi-nação de “Catu dos Lotero” foi dada pelos regionais ao lugar onde vivem essas famílias, exatamente nos limites entre os municípios de Goianinha e Canguaretama às margens do rio Catu, que corta aquela área. No survey que conduzi em 2006, o Catu tinha 749 pessoas, divididas em 174 famílias e 151 unidades domésticas. Os dois municípios envolvidos na pesquisa são conhecidos por suas extensas plantações de cana-de-açúcar. Em termos das atividades econômicas, este modelo de monocultura, praticado há mais de dois séculos, teve inicio com as atividades dos antigos engenhos. As usinas Baía Formosa e Estivas controlam grande parte das terras, o que criou uma paisagem monótona onde se destaca a cana de açúcar. Em termos me-tafóricos, pode-se dizer que o Catu seria uma ilha no meio de um oceano de cana. Essa região potiguar vem sendo explorada pelos carcinicultores, sobretudo desde a década de 1990. Além disso, está inserida no circuito turístico do estado. A famosa praia da Pipa, por exemplo, fica situada a 25 quilômetros do Catu4. À primeira vista, os Eleotérios podem ser confundidos com qualquer re-gional, sobretudo se alguém deseja estabelecer critérios muito objetivos de diferenciação social e cultural. Não é possível falar de isolamento cultural, considerando a longa história de interações com grupos sociais. É evidente o compartilhamento de concepções culturais, religiosas e sociais, configu-radas historicamente naquela região. Isso não justifica dizer que não haja

4. Quando estava na graduação de Serviço Social (UFRN), realizei estágio em Canguaretama, onde passei a conhecer a situação étnica dos Eleotério. Iniciei a pesquisa somente quando estava no mestrado em Antropologia. Realizei primeiro um levantamento de dados básicos, um survey do Catu. Assim, fiz uso de um questionário com objetivo de reunir indicadores sociais acerca de cada uma das famílias. Pude chegar a diversas considerações relevantes para a pesquisa, tais como a cadeia dominial das terras. Foi possível me aproximar da memória genealógica dos Eleotérios e obtive condições de elaborar um esquema da ocupação histórica do espaço, iniciada por eles na segunda metade do século XIX. Através das conversas, selecionei algumas pessoas para realizar entrevistas. Mas entrevistei ainda autoridades locais. Fiz o mesmo com as famílias que migraram depois anos de 1950 para o Catu, e com pessoas que me foram indicadas como “especialistas da memória” dos Eleotérios. Nas entrevistas, priorizei as pessoas que estabeleciam interações no campo social e político que dava sentido à emergência étnica dos Eleotérios (moradores da região, lideranças do movimento indígena, funcionários de entidades governamentais, indigenistas, etc). Conjugada à observação participante, a entrevista foi a técnica mais utilizada na pesquisa etnográfica.

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formas de singularização a partir das próprias concepções culturais que estão sendo partilhadas. De forma geral, as famílias Eleotério são distingui-das pelos regionais através de categorias, tais como catuzeiros ou índios do Catu. Em Canguaretama e Goianinha, os Eleotérios podiam ser vistos de forma negativa. Uma vez, quando visitei a Secretaria de Assistência Social de Canguaretama, a assistente social me falou que muita gente já tinha ten-tado trabalhar no Catu, porém, sem êxito, pois “aquele povo tem parte com índio e é muito difícil qualquer coisa dar certo por ali”. Em Goianinha, sou-be que havia existido uma aldeia indígena no Catu e seus moradores “eram todos descendentes de índio”. Todos esses termos eram usados com sentido pejorativo, embora mais recentemente tais categorizações estivessem sendo aproveitadas de forma positiva entre os Eleotérios. Além disso, é importante salientar que os Eleotérios possuem um enten-dimento específico do que é ser índio a partir do momento em que eles se organizam politicamente. Como as demandas étnicas dos Eleotérios se tornaram públicas em determinada situação histórica, não é possível se ater exclusivamente a documentos históricos ou fontes secundárias, pois estas demandas expressam-se muito mais através dos discursos e dos agentes sociais, sobretudo quando se considera, por exemplo, a rede de relações que envolvem os Eleotérios com outros moradores do Catu, mas ainda preci-samos considerar a prática e intervenção de agências externas ou governa-mentais que têm estabelecido um campo de diálogos, ações e confrontos, o que nos permite pensar, seguindo Oliveira (1988), nos efeitos e práticas de um campo de ação indigenista. Esse contexto de relações interétnicas era marcado por uma visão histórica bem singular, que encara a presença indígena como um fato exclusivo do passado. Na verdade, aquela região do estado possuiu aldeamentos colo-niais indígenas nos séculos XVII e XVIII (SILVA, 2007; SILVA, VALLE, PEREIRA, 2006). Segundo Lopes (2003), pode-se destacar o de Mipibu, o aldeamento Guaraíras, onde fica hoje a cidade de Arez e o Igramació, situa-va-se nos arredores atuais da cidade de Canguaretama e Vila Flor. Há refe-rências da Aldeia de Antonia (XVII), onde Goianinha está localizada hoje5.

5. As pesquisas de Lopes (2003; 2005) apresentam um quadro mais sofisticado e moderno de análise, além de complexificar o entendimento das relações interétnicas no passado colonial. Outro estudo importante é o de Puntoni (2002). Não há, de fato, pesquisa sobre o fim dos aldeamentos no período imperial. Em 2006, visitei arquivos públicos no Rio de Janeiro (Arquivo Nacional, Museu do Índio e a Biblioteca Nacional) e aprofundei um pouco sobre o contexto histórico do século XIX. Ao consultar

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A literatura historiográfica clássica do Rio Grande do Norte assevera, porém, que os indígenas foram sendo ‘‘extintos’’ a partir do século XVI-II (LYRA, 1921; CASCUDO, 1955; MELLO, 1987; MEDEIROS FILHO, 1998; MEDEIROS, 1973). Esse ponto de vista é consensual na maioria da produção acadêmica do século XX, que acabou servindo de base para a apreensão popular da história, disseminada no estado. O desaparecimen-to indígena se tornou um fato tanto na historiografia como no senso co-mum potiguar, criando, então, impossibilidades históricas que desafiam o presente. Nos primeiros anos do século XXI, a auto-afirmação pública da identidade indígena de pessoas de comunidades rurais no estado tem nos colocado diante de uma realidade empírica, de um lado, exigindo constru-ções analíticas mais complexas que operem (des)construindo a perspectiva do determinismo histórico e, de outro lado, dialogando com chaves inter-pretativas que dêem conta da realidade social, na qual essas populações se mostram e procuram participar da sociedade mais ampla. No Rio Grande do Norte, os processos de emergência étnica indígena de-pendem de um contexto político determinado, que decorre do cenário de mobilização de segmentos da sociedade brasileira a partir da Constituição de 1988. De fato, a redemocratização e a revisão constitucional foram dois aspectos centrais para a possibilidade de afirmação de diversos sujeitos co-letivos e agentes sociais no Brasil (OLIVEIRA, 1999; ARRUTI, 2006). Foi também uma das bases para a revisão política e moral acerca das questões étnicas, inclusive para os povos indígenas do Nordeste, que, por longo tem-po, foram pensados como extintos, assimilados, integrados, aculturados ou, então, como “remanescentes”. Ao contrário de tal visão dos índios como personagens do passado, aquele contexto de redemocratização e da Cons-tituição de 1988 mostrou inúmeras mobilizações étnicas em prol e defesa de direitos específicos. Apesar da significativa mobilização étnico-política em todo o país, em par-ticular na região Nordeste, não se pode afirmar que esse movimento teve expressão significativa imediata no Rio Grande do Norte. A partir das en-trevistas e conversas com militantes da questão indígena no estado, pude conhecer um pouco sobre aquele cenário em termos locais. Uma efetiva mobilização em torno de questões étnicas indígenas demorou a acontecer,

os relatórios dos presidentes da província do Rio Grande, bem como os relatórios elaborados pelos presidentes das comarcas, havia pouquíssima referência à população ex-aldeada. Falava-se muito mais em “pobres”, “desvalidos” e “indigentes”.

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aparecendo de forma mais cristalina nos últimos anos do milênio. Coincide com a comemoração (sic) dos 500 anos de descoberta do Brasil, em 2000, um ano marcado tanto por eventos promovidos pelos órgãos governamen-tais como por manifestações indígenas contrárias à política indigenista. Em muitos contextos, as manifestações foram alvo de ações violentas contra o movimento indígena organizado. A partir de 1999, parece-me que, de fato, o debate sobre questões étnicas e indígenas reapareceu em alguns setores da sociedade potiguar. Na maior parte das vezes, eram tomados de forma negativa, relembrados como per-sonagens centrais dos antigos ‘massacres’ de Cunhaú e Uruaçu, quando religiosos e colonos foram trucidados, em 1645, de forma traiçoeira por índios, aliados dos holandeses que invadiram a capitania do Rio Grande do século XVII. Vale dizer que, na invasão holandesa, os índios eram chefiados por Antônio Paraupaba, indígena que viveu na Holanda e, ao retornar ao Brasil, passou a liderar seu povo contra a colonização portuguesa. Parau-paba não esteve envolvido com o massacre de Cunhaú, mas sim articulado à resistência indígena aos portugueses. Tanto o massacre como a figura de Paraupaba são instrumentalizados, em graus variados, nas visões históricas sobre o passado do Rio Grande do Norte, posicionando o indígena em termos negativos de selvageria e traição (OLIVEIRA, L. A, 2003)6. De fato, essa instrumentalização existia através de expressões culturais lo-cais. Na década de 1990, foi criado o Grupo de Teatro Ana Costa (Grutac) em Canguaretama, formado por jovens ligados à Igreja Católica, que pas-saram a representar a peça de teatro “Morticínio” para ser apresentada no II Congresso Eucarístico de Canguaretama em 1995. Ao longo dos anos, continuou a ser encenada, enfatizando a crueldade dos índios. Sua trama traduzia uma “estratégia de construção de santos locais” (OLIVEIRA, L. A, 2003: 46). Em 1998, o processo de beatificação dos chamados “mártires de Cunhaú”, conhecidos como os “santos da terra”, tornou-se bastante acalen-

6. Câmara Cascudo (1955) assinala que a presença holandesa iniciou-se em 1632 na capitania do Rio Grande. Além de Cascudo, Medeiros Filho (1998) e Mello (1987) sublinharam os confrontos coloniais entre portugueses e indígenas . O “massacre de Cunhaú” aconteceu na igreja de Nossa Senhora das Candeias no antigo engenho Cunhaú. As narrativas históricas explicam que, em julho de 1645, Jacó Rabbi, encarregado do governo holandês, chegou em Cunhaú acompanhado de indígenas. Convocou uma reunião com a população local após a missa. Durante a celebração realizada pelo padre Soveral ocorreu o “massacre” dentro da própria igreja. Além disso, “o motivo de sua morte é caracterizado como sendo ódio à fé pela selvageria do agressor” (OLIVEIRA, L. A, 2003). Outro “massacre” teria ocorrido na mesma época em Uruaçu, mas há controvérsias sobre esse fato.

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tado no estado e mobilizou os católicos da região. Depois de mais de 350 anos do massacre, a beatificação era pensada nos mesmos municípios onde viviam as famílias Eleotério do Catu, que se tornaram depois personagens contemporâneos de afirmação indígena. No final de 1998, o Papa João Pau-lo II confirmou o martírio de Cunhaú e, em março de 2000, foram beatifi-cados pelo Vaticano. Em 2010, a beatificação foi relembrada e comemorada com romarias e atividades religiosas promovidas pela Arquediocese de Na-tal, segundo a Tribuna do Norte (2010), o principal jornal do estado, que cobriu toda a beatificação. Contudo, alguns agentes sociais passaram a militar de modo mais siste-mático sobre a questão indígena no estado, estabelecendo contato direto e progressivo com os Eleotério do Catu e, assim, promover ações de mobili-zação para o seu “reconhecimento” como “remanescentes indígenas”. O que chamou a atenção desse grupo de pessoas com os interesses mais diversos para se voltar a um tema negligenciado nos meios acadêmicos? Como sa-lientei antes, os indígenas “desapareceram” da história mais recente do Rio Grande do Norte. Quais são os contra-argumentos em que se apóiam esses agentes para contestar essa história oficial?

FORMANDO UMA “MILITÂNCIA” INDIGENISTA

Para entender a formação do campo indigenista em termos locais e, ao mes-mo tempo, compreender em que medida se organiza, através de práticas de mediação, a “emergência étnica” das famílias Eleotério, precisamos consi-derar as agências e agentes que capitanearam o debate étnico. Em primeiro lugar, não se pode afirmar que as instituições nas quais os agentes estavam vinculados, quais sejam, o Museu Câmara Cascudo e a Fundação José Au-gusto, possuíssem em sua história atividades voltadas à questão étnica. A seguir, apresentarei estas instituições com o objetivo de situar o leitor sobre a produção acadêmica relacionada à questão indígena na região Nordeste e, sobretudo, no próprio estado do Rio Grande do Norte.Primeiramente, a existência do Museu Câmara Cascudo (MCC) precisa ser relacionada à criação do Instituto de Antropologia, que foi estabelecido como unidade interna da UFRN no ano de 1960. O Instituto tinha como objetivo “promover e divulgar estudos sobre o homem em seus diversos aspectos físicos e culturais, além de realizar pesquisas relativas às jazidas pré-históricas do território norte-rio-grandense”. O museu foi criado para manter o acervo do Instituto de Antropologia, cuja proposta era abran-

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gente e incluía departamentos de antropologia e etnografia, arqueologia, paleontologia, genética, botânica, museologia, etc. Dentre seus pesquisa-dores, estavam Luis da Câmara Cascudo, José Cabral de Carvalho, Veríssi-mo de Melo e Nivaldo Monte. Em 1963, o Instituto de Antropologia esteve envolvido com o Programa Nacional de Pesquisa Arqueológica. Segundo o antropólogo Nássaro Nasser, o Instituto voltou-se no período para realizar um levantamento das inscrições rupestres no estado7. Em 1973, foi criado o Museu Câmara Cascudo. O departamento de etno-grafia foi a unidade do Museu que mais se destacou. Em parte decorrente da vasta produção intelectual de Câmara Cascudo, o museu articulava-se, ao menos, à tradição folclorista de registro da “cultura popular, suas muitas expressões consideradas “típicas” e vistas como ameaçadas ou em “vias de extinção”. O indígena era visto como uma figura do passado e elemento formador, apesar de desaparecido, da cultura do estado. Em 1978, instalou-se o curso de especialização em antropologia social a partir do departamento de estudos sociais da UFRN. Antecedeu a criação do curso de mestrado no final da década. Durante o curso de especialização, foi promovido um curso de extensão que tratava da questão indígena, vin-culado à disciplina Etnologia do Brasil. De fato, a temática indígena nunca esteve ausente das idéias que engendraram o curso de mestrado. Segundo Nássaro Nasser, antropólogo e professor aposentado da UFRN, que foi uma das figuras centrais para a criação do curso: “O perfil curricular do mes-trado foi montado procurando oferecer uma referência teórica aos alunos e ênfase nos estudos das sociedades urbanas e camponesas, sem exclusão de áreas tais como sociedades indígenas” (NASSER & NASSER, 2006: 141). Em meados da década de 1970, tinham sido desenvolvidas as pesquisas dos antropólogos Nássaro Nasser e Elizabeth Nasser, os dois professores da UFRN, sobre os índios Tuxá de Rodelas no estado da Bahia (NASSER, 1975; NASSER, 1975). Em 1979, foi criado, portanto, o curso de mestrado na UFRN. Embora tivesse uma curta história, a experiência marcou a traje-tória da antropologia no estado. Na década de 1980, a discussão etnológica ficou reservada, porém, a casos distantes da região Nordeste. Não havia, assim, uma reflexão acadêmica de caráter antropológico sobre os índios do Rio Grande do Norte, o que confirmava a própria posição da Funai de que não havia presença indígena no estado. No máximo, o interesse de pesquisa

7. Sobre o Museu Câmara Cascudo, ver o portal: http://www.mcc.ufrn.br/wordpress/?cat=33 .

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esteve voltado aos índios Potiguara da Paraíba. Desde a década de 1980, certos agentes sociais do estado vinham fomentando contatos com os Poti-guara da Baía da Traição. Em conversa com uma professora da UFRN, Ivanilda Costa, ligada ao MCC, ela passou a se interessar por questões indígenas devido a sua forma-ção em antropologia na UFPE. De inicio, atuou junto de uma professora da UFPB, a bióloga Socorro Vilela, mas continuou a ter contato com os índios a partir das disciplinas que ministrava na UFRN. Mas não chegou a ter uma pesquisa etnográfica formal. Durante a entrevista realizada com Ivanilda Costa, escutei diversas vezes a professora referir-se aos Potiguara como “re-manescentes indígenas”, justificando-se pelo uso da expressão porque eles eram “descendentes de índios marcados pela miscigenação e aculturação”. Através do depoimento da professora, fiquei com a impressão que tanto ela como os demais agentes que passaram a mediar os contatos entre os Eleo-térios e os Potiguara (re)atualizavam os processos históricos vividos pelos Potiguara da Paraíba como experiências comuns aos ditos “remanescentes” do Rio Grande do Norte. Na década de 1990, Jussara Galhardo passou a trabalhar como técnica-admi-nistrativa do Museu Câmara Cascudo. Através dos contatos de Ivanilda Cos-ta com os Potiguara, Galhardo começou a ter uma atuação na Baía da Trai-ção, quando aproximou-se da temática indígena. Em 1998, fundou o Centro de Estudos dos Povos Indígenas (CEPI), que teve curta duração devido a fal-ta de pessoal. O centro chegou a montar uma exposição fotográfica durante a reunião da SBPC em Natal no ano de 1998, dando mais visibilidade à questão indígena. Nesse evento, houve a participação de algumas etnias indígenas e os Potiguara da Baía da Traição puderam expor seus artesanatos. Veremos que, gradativamente, a presença dos Potiguara da Paraíba se tornaria central para a formação de um campo indigenista no Rio Grande do Norte. No final da década de 1990, intensifica-se a proposta de beatificação dos “mártires de Cunhaú no município de Canguaretama. Através do CEPI, Jussara Galhardo produziu o vídeo “Cunhaú e Uruaçu: uma história de massacres”, que tinha, segundo ela, o objetivo de “questionar as versões históricas autorizadas que alimentavam uma visão negativa a respeito da participação do indígena naquele evento”. Para sua exibição, uma mesa re-donda foi organizada e reuniu Monsenhor Assis como representante da Arquediocese de Natal, além de simpatizantes da questão indígena. Não houve, porém, a participação de professores nem de antropólogos.

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Jussara Galhardo tornou-se uma figura cada vez mais central para a forma-ção do campo indigenista no estado, o que justifica um foco maior sobre sua trajetória. Desde essa época, ela tem representado sistemática e “ofi-cialmente” o MCC/UFRN nos debates sobre a questão indígena, ocorridos, sobretudo, a partir do contexto da beatificação. Embora a participação de um funcionário do quadro do Museu, nesses debates, não possa significar, a priori, que a instituição tenha passado a se preocupar com a temática. Ao realizar uma consulta ao acervo pessoal da pesquisadora e funcionária do MCC, constatei que, desde o final do ano de 1999, concomitante aos deba-tes gerados com a beatificação dos “Mártires de Cunhaú”, ela desenvolvia iniciativas individuais. Foi, contudo, em 2005, que o MCC afirmou publi-camente a preocupação com a questão indígena no Rio Grande do Norte como parte de seu objetivo institucional. No ano de 2003, uma das lideranças do Catu, Vando, me contou que havia, além de mim, outro “pesquisador” a estudar os “remanescentes indígenas” do lugar. Tratava-se de um funcionário da Fundação José Augusto (FJA), Aucides Sales, que se apresentava aos moradores do Catu como estudioso da história indígena no estado. Para Vando, sua presença era entendida como um agenciamento da própria FJA como instituição governamental: “A fundação estava interessada nos “remanescentes” para reconhecer nos-so sangue indígena”. Após conversa com um dos diretores da FJA, soube que o trabalho desenvolvido pelo funcionário não tinha, na época, caráter oficial, mas consistia uma iniciativa pessoal de Sales. De fato, a institui-ção sabia da existência do interesse do funcionário por “coisas de índio”. Segundo Aucides Sales, esse interesse era antigo e ele já conhecia o Catu dos Eleotérios desde 1973, quando desenvolveu trabalho topográfico nos municípios de Goianinha e Canguaretama. Da parte dos Eleotérios, eles registravam, contudo, que sua presença passou a ser conhecida apenas na época da viagem dos Eleotérios à Terra Indígena Potiguara na Baía da Traição em 2002.Seria valioso recuperar um pouco do interesse pessoal de Aucides Sales sobre a questão indígena, pois houve uma discussão não-acadêmica sobre o índio no estado do Rio Grande do Norte, sem passar especificamente pelos circuitos da UFRN, mas associada, em seu caso, ao movimento ar-tístico Cabra. Porém, não se poderia caracterizar muito concretamente a existência de um campo indigenista no estado em razão dessas atividades culturais, tal como não se poderia cogitar alguma relação direta entre ação indigenista e atividade acadêmica, mesmo com a existência do MCC desde

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a década de 1970. Como expliquei, o museu considerava a questão indíge-na como uma situação própria de outros estados e não do Rio Grande do Norte. Todavia, a atividade cultural como a atividade acadêmica podem ex-plicar as condições de possibilidade do interesse sobre a questão indígena, revigorado muitos anos depois. No final da década de 1970, Aucides Sales foi um dos participantes do mo-vimento artístico Cabra, que era “aglutinador” de poetas, músicos, artistas plásticos, desenhistas e escritores. Dentre as referências que fundamenta-vam a organização desses artistas, a suposta “inexistência” dos índios no estado também se colocava como um problema para o movimento:

(...) Da nossa geração todos nós tínhamos interesse, se você for olhar os livros, as referências poéticas, então existia uma espécie de uma angústia nossa de não termos índios. Aí, foi aí que começou a ques-tão: existem índios? Não existem? Nós fazíamos acampamentos nos matos para vivenciar e tentar resgatar essas coisas. Então esta era a referência daquela nossa realidade e também Che Guevara, os novos Baianos (...) havia uma angústia porque não tinha índios no estado (...) (antigo participante do Cabra, entrevista em Natal, 2007).

Além do Rio Grande do Norte, o movimento Cabra chegou a influenciar grupos artisticos em outros estados. Segundo meu interlocutor, Sales apro-ximava-se mais da “linha mística” do movimento, que ainda possuía outras duas “linhas”: “a do oba-oba e a política”. Em uma de suas primeiras pu-blicações tratou de apresentar uma versão da história potiguar. Em 1976, Aucides Sales foi um dos idealizadores e desenhistas da revista Maturi, que publicava histórias em quadrinhos e circulou nos segmentos culturais al-ternativos e universitários de Natal. Na época, o interesse por indígenas não era supostamente central, mas, durante a década de 1980, Aucides Sales voltou-se para o estudo da língua guarani, chegando a viajar ao Paraguai com essa intenção. De acordo com meu interlocutor, quase todos os mem-bros do Cabra se interessavam por idiomas e costumes indígenas, mas Au-cides Sales era a pessoa que mais sobressaia sobre a questão. Na década de 1980, Sales voltou a trabalhar na Fundação José Augusto8.

8. Sobre a revista Maturi, ver: http://www.diariodenatal.com.br/2010/08/08/muito10_0.php.

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Essas duas trajetórias pessoais e as agências a que estavam ligados se arti-culam, quando encaramos o interesse que o debate sobre a presença indí-gena no estado passa a ter na virada do milênio. Nesse período, os contatos e relações de Jussara Galhardo Guerra e Aucides Sales, enquanto agentes cruciais para a formação do campo de ação indigenista, com a Universi-dade Federal do Rio Grande do Norte, particularmente o departamento de antropologia (Dan), estavam sendo privilegiados. Segundo Galhardo, os dois se dirigiram a UFRN: “Procuramos a professora Julie [Cavignac] para sugerir e perguntar como podíamos estudar a questão étnica indígena no Rio Grande do Norte”. Foi, então, elaborado um projeto de pesquisa sob a coordenação da professora Cavignac, intitulado “Imagens da colonização: contos maravilhosos, narrativas e memória do Rio Grande do Norte”. Pos-suía como objetivo, mapear lugares denominados “portadores da memória indígena”. Ao longo da primeira metade da década de 2000, alguns projetos de pesquisa e produção acadêmica passaram a ser elaborados no âmbito do departamento (CAVIGNAC, 2003), articulando-se ao ativismo indigenista que, aos poucos, se formava no estado. Minha própria pesquisa se inclui no contexto que estou tratando. Houve, assim, uma paulatina inserção e atua-ção da UFRN no debate sobre a questão indígena, o que implicava posições e idéias que davam sentido autorizado, em termos de conhecimento espe-cializado, às emergências étnicas no estado, o que precisamos articular, em termos acadêmicos, à retomada mais contemporânea (na verdade, desde meados da década de 1970) dos estudos etnológicos sobre os indígenas na região Nordeste (OLIVEIRA, 1999; GRUNEWALD, 2005)9. Retomando os fatos apresentados até o momento, pode-se relacioná-los, em 2002, com as atividades propostas pela Igreja Católica no Brasil em torno das questões indígenas a partir da Campanha da Fraternidade, cujo tema era “Por uma terra sem Males”. No Rio Grande do Norte, foram pro-movidas atividades relacionadas à temática através da parceria entre a Ar-quidiocese de Natal e outras instituições, tal como a Universidade Federal (UFRN). Na época, a Arquidiocese apoiou atividades que envolveram os Potiguara da Baía da Traição. É interessante considerar como as ações da

9. Quando tomei conhecimento da existência de pessoas afirmando-se como “remanescentes indígenas” em Canguaretama, estava cursando a graduação em Serviço Social na UFRN (2003). Nesse período, a escolha pela questão indígena, enquanto área de interesse teórico-profissional já estava se definindo. Busquei dialogar, assim, com professores do Dan/UFRN. Através de conversa com a professora Cavignac tomei conhecimento dos Eleotério do Catu. Julie Cavignac coordenava, então, o grupo de pesquisa “Cultura, Identidade e Representações Sociais”.

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Igreja Católica mostram uma variedade de posições e modos de lidar com a história indígena, em certos momentos vendo os índios como a martirizar cristãos, tal como no processo de beatificação dos mártires de Cunhaú, e, em outros contextos, apoiando uma postura de apoio à causa indígena. Em 2002, um professor de história em Canguaretama, Francisco Alves, fazia curso de especialização na UFRN. Seus familiares rememoravam as relações que mantiveram com algumas famílias Eleotério no passado. Em uma entrevista, relatou-me que já conhecia o “povo do Catu” desde a infân-cia, quando seu pai tinha uma pequena loja no mercado público da cidade, local freqüentado pelos Eleotérios para comprar produtos: “Dia de sábado, eles sempre traziam coisas pra vender: feixes de lenha, carvão, e com o di-nheiro comprava suas coisas”. Afirmou que ele mesmo tinha feito pesquisa histórica sobre as antigas aldeias da região com alguns de seus alunos da escola e não tinha dúvidas de que os Eleotérios “tinham parte com índio”. Foram os contatos feitos por esse professor com outras pessoas em Natal que deflagraram a aproximação dos Eleotérios, chamados por ele como “re-manescentes indígenas”, e Aucides Sales da Fundação José Augusto. Segun-do Vando, uma das lideranças Eleotério, foi o professor Alves que mediou o convite do funcionário da FJA para os Eleotérios irem à Baía da Traição em 2002. No dia 19 de abril, dois representantes do Catu decidiram ir “em busca da realidade”, conforme um deles me disse em entrevista, mais parti-cularmente procurar e conhecer os índios Potiguara que viviam na Paraíba, com o objetivo de construir laços simbólicos e políticos. Esta viagem estava relacionada com a atuação da Igreja Católica através da Arquediocese de Natal em virtude da Campanha da Fraternidade. Assim, foram iniciadas nesse ano as interações mais sistemáticas entre os Eleotérios, índios e não--índios a fim de ter apoio político no processo de mobilização étnica. É conveniente destacar que, no Rio Grande do Norte, a intervenção das agências normalmente voltadas para o “indigenismo” não se apresentou da mesma forma que em outras situações e casos de “emergência étnica” ocorridos no Nordeste. Não havia qualquer atuação da Funai e de agên-cias como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ou de outras insti-tuições que têm, de algum modo, se preocupado com as questões étnicas indígenas no Brasil. No estado, essas instituições citadas tiveram uma presença frágil. Pode-se afirmar que nenhumas delas atuou no caso aqui tratado. Ainda que os militantes indigenistas as tenham procurado, mes-mo assim não obtiveram, ao longo da década de 2000, a inserção desejada que esperavam.

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De forma similar ao ocorrido entre os Tumbalalá (Bahia), os Eleotérios foram “achados” por um militante indigenista, Aucides Sales. A diferença entre essas duas situações foi que, no caso Tumbalalá, se tratou de um an-tropólogo ligado à Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai). Esse antropólogo orientou primeiramente a respeito dos procedimentos jurídi-cos mais adequados para as reivindicações dos Tumbalalá para a Funai. An-drade (2002) aludiu à participação dos índios Truká, Atikum e Tuxá para a definição de um “movimento político de natureza étnica Tumbalalá”, além de contribuir e articular-se à realização de viagens dos índios à delegacia regional da FUNAI em Paulo Afonso, “visando o reconhecimento oficial” (ibid: p.125-126). Segundo esse autor, a entrada do CIMI naquela situação viria a ampliar e efetivar os efeitos políticos do campo de ação indigenis-ta. Quero ressaltar, porém, uma das conclusões de Ugo Andrade, quando notou que a situação étnica Tumbalalá parecia configurar um caso diferen-ciado de “emergência étnica” no Nordeste indígena, o que veio a confirmar uma das hipóteses levantadas em sua pesquisa:

(...) ,pois estava caracterizado por “uma mobilização restrita e con-densada em figuras de liderança”, devido, primordialmente à falta de disputas agrárias que costumam funcionar como o grande – mas nunca o único elemento de mobilização interna nos grupos indíge-nas do Nordeste (ANDRADE, 2002 p. 125-127).

Embora a situação étnica dos Eleotérios tenha mostrado a condensação política em torno de certas lideranças, não posso afirmar que inexistissem disputas agrárias, pois, desde que me aproximei dos Eleotérios, notei o con-flito relacionado à presença das usinas de cana de açúcar e a intervenção de agências ambientais estatais, que regulavam o uso das matas e das áreas de “tabuleiro” (SILVA, 2007). Há de se convir que as demandas étnicas e as “insatisfações” dos Eleotérios se tornaram mais públicas a partir das ações dos militantes indigenistas. Tratava-se de uma situação delicada, pois as usinas apareciam como uma das maiores empregadoras na região sul do estado e, assim, também empregavam os moradores do Catu. Em resumo, a atuação direta dos militantes no Catu viria ampliar as relações políticas dos Eleotérios, a partir, sobretudo, da figura de uma das lideranças locais. No caso da Igreja Católica, como agência presente em diversas situações de “emergência étnica” no Nordeste indígena, deve-se ressaltar que a Ar-quidiocese de Natal relacionava-se, sobretudo, com os Potiguara da Baía

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da Traição, viabilizando programas “assistenciais”. De acordo com Jussara Galhardo, a Arquidiocese “ofereceu apoio logístico e financeiro para algu-mas das atividades realizadas no estado”. De acordo com depoimento dessa militante, esse apoio envolvia a realização de “viagens, debates na própria Arquidiocese, um debate na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a realização de exposições fotográficas”. De fato, a Arquidioce-se procurou a UFRN para intermediar e organizar os debates. Mostrou-se uma relação ainda tênue com o Movimento Indígena, que, até bem recen-temente, não tinha absorvido as demanda étnicas dos Eleotério e, de modo geral, da questão indígena no Rio Grande do Norte.No processo de emergência étnica dos Eleotérios, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte passou a ser uma das agências e espaços próprios de mediação e de produção do reconhecimento dos indígenas no estado. No ano de 2002, uma das primeiras atividades que tornaram mais evidente a questão étnica no contexto potiguar ocorreu na UFRN. No início de de-zembro, foi organizada uma mesa redonda, intitulada a “Presença indígena no Rio Grande do Norte”, estava associada às atividades promovidas pela Arquediocese de Natal durante a Campanha da Fraternidade. A mesa re-donda reuniu público razoável, mesmo tendo sido realizada um dia antes do “Carnatal”, o “carnaval fora de época” da cidade, que monopoliza grande parte da vida social de Natal. Diversas pessoas participaram do evento, que foi promovido pelo Departamento de Antropologia. Aucides Sales era um dos palestrantes e foi, nesse momento, que passei a conhecer o funcionário da FJA. Ele iniciou seu relato auto-afirmando-se como “caboclo” descen-dente de Jerônimo de Albuquerque, o fundador da cidade do Natal. Nessa ocasião, foi enfático ao afirmar da presença indígena em diversos lugares do estado, citando, particularmente, o município de Canguaretama, “onde moravam uns índios no distrito chamado Catu”. Como acabei por notar, Sales era bastante conhecido por seu interesse pelas questões indígenas e, assim, sentia-se autorizado a nominar etnias e a falar em nome dos grupos indígenas que afirmava conhecer, classificando-os como “remanescentes indígenas” ou “caboclos”10.

10. Em 2002, Carlos Guilherme do Valle trabalhava na UFPB e foi convidado pela Profa. Julie Cavinac para compor a mesa redonda junto de Aucides Sales, o antropólogo José Glebson Vieira, o líder Potiguara Caboquinho da Baia da Traição; o historiador e cientista social Edson Silva e um representante da Funai/João Pessoa. Estavam presentes alguns estudantes de graduação da UFPB, ligados aos projetos

de extensão do GT-indígena/SEAMPO, que formou uma geração de futuros antropólogos (Estevão Palitot e Kelly Oliveira) e documentaristas paraibanos.

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Ao que tudo indica, os dois funcionários do MCC e da FJA envolvidos nes-se campo de ação indigenista, ainda em formação, tiveram experiências in-dividuais com a questão indígena, antes mesmo que as respectivas institui-ções se voltassem para tal questão. Considero que essas formas singulares de atuação no processo de construção da etnicidade dos Eleotérios devem ser apreendidas como alguns dos elementos fundamentais para entender a tessitura do campo indigenista em relação ao processo de “emergência étnica” dos Eleotérios. Terá, portanto, uma singularização em termos de prática e de concepção no caso do indigenismo que se produziu no estado, se compararmos a outros estados no Nordeste e ainda, mais geralmente, ao indigenismo brasileiro. Posso estimar, a partir desse período, a formação de um campo de ação indigenista que passou a envolver também políticos, como é o caso do de-putado estadual Fernando Mineiro e do ex-vereador Hugo Manso, ambos filiados ao PT, além de pessoas ligadas à Coordenadoria dos Direitos Hu-manos e das Minorias (Codem/Sejuc), cujo coordenador chegou a enviar informações sobre os indígenas para o procurador regional dos direitos do cidadão que, por sua vez, pediu esclarecimento sobre o assunto ao Minis-tério Público Estadual a fim de “averiguar as demandas dessa comunidade”. A ampliação do campo de ação indigenista e as mobilizações étnicas dos Eleotérios passariam a proporcionar a esses políticos um novo espaço ou segmento social aonde se inserir, voltando-se a um novo grupo ‘vulnerável’, que demandava ‘reconhecimento’ e ‘inclusão social’. Houve, posteriormen-te, no processo de formação do campo de ação indigenista no Rio Grande do Norte um maior agenciamento do Museu Câmara Cascudo e da Fun-dação José Augusto. Essas agências foram configurando posições, contatos e exercícios diferenciados em relação às comunidades indígenas em que atuaram, pois o funcionário da FJA estava mais voltado para os Eleotérios do Catu, enquanto que a funcionária do MCC atuava de forma mais intensa na comunidade do Amarelão situada no município de João Câmara, onde ela realizou pesquisa de mestrado (GUERRA, 2007). As duas instituições tomaram a questão indígena, então, como um dos seus novos temas de interesse. Em primeiro lugar, a Fundação José Augusto não possuía oficialmente me-tas ou ações voltadas às comunidades ‘indígenas’. Como funcionário da FJA, Aucides Sales desenvolvia um trabalho ativista e pesquisa autodidata sobre os indígenas do estado que não se inseriam nos objetivos da funda-ção, mas que, no entanto, não era solapado ou inviabilizado pela instituição,

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que, aliás, até chegava a dar-lhe apoio. Como uma de suas primeiras propostas de mediação com os Eleotérios, o funcionário da FJA passou a incentivar o aprendizado de língua indígena, o “Tupi-Guarani”, que, segundo ele, poderia vir a definir “a maneira de pensar” dos Eleotérios e atuar na definição da sua identidade. Tomei conhecimento que, em 2003, Sales conseguira o apoio de um político do PT durante o primeiro período de experiência de ensino de Tupi. Depois, conforme relato de funcionário da Secretaria Municipal de Edu-cação de Canguaretama, Aucides Sales e Jussara Galhardo apresentaram, em 2005, à secretaria o projeto “Nhe – em – Catu: noções da língua tupi em sala de aula” com a proposta de inseri-lo na carga horária da escola municipal do Catu. As aulas de Tupi-Guarani estavam sob coordenação de Aucides Sales. Aconteciam aos domingos pela manhã e tiveram como participantes, em sua maioria, as crianças e adolescentes moradores do Catu. Essa iniciativa foi sen-do apropriada por parte dos próprios Eleotérios, cuja experiência com a língua Tupi acabava por gerar investimentos simbólicos na construção da etnicidade. Ambos os esforços de ativistas indigenistas e dos indígenas Eleotérios do Catu se complementavam e convergiam entre si na medida que investiam positiva-mente na linguagem como expressão central de autoctonia e tradicionalidade. Em segundo lugar, o diretor do Museu Câmara Cascudo, Professor Jerôni-mo Medeiros, que ocupou o cargo de 1987 até 2008, passou a ser informado por Jussara Galhardo sobre as “emergências étnicas” indígenas e colocou-se pública e institucionalmente a favor da questão indígena no estado. Pode-se dizer que esse apoio institucional teria implicações políticas no campo indi-genista, fortalecendo a posição de determinado mediador em comparação a outro. Mais precisamente, a posição institucional pró-indígena do MCC foi efetivamente afirmada em uma reunião com o então presidente da Funai, o an-tropólogo Mércio Pereira Gomes, que esteve in loco no museu em fevereiro de 2005. A convite do diretor e de Jussara Galhardo, Mércio Gomes iria participar de um momento, conforme foi apontado, “histórico” para o RN. Para o MCC, a reunião foi, de fato, um compromisso oficial. O jornal Diário de Natal publi-cou, inclusive, matéria sobre a viagem do presidente do órgão indigenista ao Rio Grande do Norte para tratar do processo de “reconhecimento” dos índios do, inclusive citando as famílias Eleotério do Catu, que “se consideram rema-nescentes da tribo Potiguara”. Segundo os agentes indigenistas, o presidente da Funai teria se comprometido a apoiar a questão indígena, embora ele tivesse justificado sua presença em Natal apenas pelo fato de estar de férias durante o carnaval. Verificou-se depois que a agência governamental não tomaria ne-nhuma posição político-administrativa de imediato, muito menos se colocaria

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explicitamente sobre a emergência de grupos indígenas no estado. Um entre-choque de cobranças, de ditos e não-ditos começaria a ser produzido após essa reunião, que anteciparia as audiências públicas que foram sendo planejadas e realizadas na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte11. Em março de 2005, após a conversa com o presidente da FUNAI, passaram a ocorrer, na sede do MCC, reuniões de forma mais regular entre alguns dos funcionários do museu e “convidados”, dentre outros: professores e alunos vinculados ao departamento de Antropologia/UFRN (Julie Cavignac, Carlos Guilherme do Valle; eu mesma como mestranda da UFRN e estudantes de ciências sociais); o representante da Coordenadoria dos Direitos Humanos e das Minorias (Fábio Santos); um assessor do Deputado Estadual do PT, Fer-nando Mineiro; o coordenador da Arquidiocese de Natal, uma representante da Funasa, etc. Certas vezes, Aucides Sales participava das reuniões, fazen-do destacar seu modo singular de pensar a questão indígena, apoiando-se na autonomia facultada por sua trajetória pessoal e sua vinculação ao FJA. To-das essas pessoas passaram a agenciar e exercer militância ou ação específica em torno da questão, conformando um campo de ação indigenista singular. Desses encontros, a funcionária do MCC sugeriu a criação de um grupo de pesquisa, embora fosse visível que a militância indigenista fosse o objetivo e a diretriz interna que mais se sobressaia. Em abril de 2005, foi criado e batizado com o nome de Grupo de Estudos da Questão Indígena no RN – Paraupaba. O nome do grupo merece um rápido comentário. Por um lado, ele mostra a importância do discurso autorizado, produzido em uma unidade interna da UFRN, a referendar os estudos sobre os índios no estado, que iriam mostrar uma (contra)história, aquela da “resistência indígena”, tema caro para os pró-prios discursos dos militantes. Além disso, seria uma resistência que se mos-traria, inclusive, pela figura à qual o grupo homenageava – Antonio Parau-paba, índio que resistiu à colonização e combateu os portugueses. Seria bom reconsiderar aqui as questões em torno do “massacre de Cunhaú” e da beati-ficação dos mártires. O grupo Paraupaba emergia em oposição à visão oficial do desaparecimento indígena e afirmava resistência junto dos índios no tempo presente. As táticas seriam diversas, tal como se verá.

11. Na reunião do MCC em que Mércio Gomes esteve presente, participaram o diretor do MCC, Jussara Galhardo e outros funcionários do museu; Aucides Sales da FJA; o coordenador da CODEM; o assessor do deputado Fernando Mineiro do PT; Cláudia Moreira; mais duas lideranças Eleotério do Catu; uma representante dos Mendonça do Amarelão; uma freira que atua no Amarelão; e o índio Kanela Awá, que vivia no Catu desde 2002.

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De acordo com diversos participantes do grupo e minha própria experiência, não era claro quem era, de fato, “membro” do Paraupaba ou se esse foi, de fato, gestado a partir da iniciativa do MCC. Por um lado, era evidente a lide-rança que Jussara Galhardo tomava na organização das atividades do grupo Paraupaba, colocando-se à frente comumente do grupo e do MCC quanto às questões indígenas e, assim, representando-os em diversos eventos públicos. Essa liderança foi tornada definitiva, inclusive, quando chegou o momento de se decidir a coordenação do grupo. Apesar da dinâmica de interações entre as pessoas que participavam das primeiras reuniões do Paraupaba, motivada por posições e diferenças sutis no que concernia a questão indígena, o vínculo institucional de Galhardo no MCC e a organização que fazia das atividades do grupo consubstanciaram seu projeto e sua agenda específica para o grupo. Dessa forma, era evidente que, então, o MCC passou a expressar um “novo” tipo de agenciamento relativo à questão indígena no Rio Grande do Norte através, especificamente, da proposta do Paraupaba. Contrastava, em parte, com a esfera de ação própria da Fundação José Augusto, onde Aucides Sales se destacava. Contudo, é preciso salientar que a forte presença de Galhardo no grupo não significa que os demais participantes acompanhassem sempre suas propostas. Havia certa dissonância, um nível de tensão e um plano de autonomia próprio dos que freqüentavam as reuniões, ecoando suas próprias iniciativas e sua percepção política sobre o que fazer quanto à questão indí-gena. Em muitos momentos, as propostas convergiam e, em outros, as vozes específicas dos agentes evidenciavam posturas antagônicas no que se referia a temas como a mobilização e agência indígena. Desde sua criação, o Grupo Paraupaba foi responsável por diversos eventos relacionados à visibilidade e afirmação das “emergências étnicas” no estado. Através do agenciamento da questão indígena, realizou viagens até as referidas comunidades tanto para atuação militante quanto para reunir acervo áudio-visual das duas situações mais evidentes de emergência étnica, publicamente, no RN, quais sejam: as famílias Eleotério do Catu e as famílias Mendonça do Amarelão. Desses eventos de caráter político, talvez o mais significativo tenha sido a audiência pública ocorrida em junho de 2005, alguns meses depois da passagem do presidente da Funai no estado12.

12. O grupo Paraupaba continua a manter suas práticas indigenistas, realizar atividades político-culturais e tem estendido suas intervenções para outros contextos no estado.

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AS AUDIÊNCIAS, AS ASSEMBLÉIAS E AS ETNIAS

Ao longo da década de 2000, algumas audiências públicas foram realizadas em auditórios da Assembléia Legislativa em Natal. Em razão dos propósitos desse artigo, analiso aqui apenas a primeira audiência pública, realizada em 15 de junho de 2005, intitulada “Comunidade indígenas do Rio Grande do Norte: afirmação de suas identidades”. Ela indica algumas questões para se entender a consolidação do campo indigenista e as emergências étnicas no Rio Grande do Norte. De fato, a audiência pública (AP) realizou-se com a mobilização dos agentes que estiveram presentes nas muitas reuniões ocorridas no museu. Além de funcionários do MCC, capitaneados por Galhardo como atividade do grupo Paraupaba, as reuniões pré-audiência congregaram diversos agentes sociais, que orbitavam e posicionavam-se no campo indigenista local. Mesmo a presença de professores (antropologia e história) e de alunos de graduação e de pós-graduação, indicava as posi-ções múltiplas e certamente ambíguas do “campo” em discussão, sem ser, por completo, um “campo” etnográfico e sem ser, por outro lado, apenas um “campo” de ação militante, expondo a tensão da própria participação dos “agentes” acadêmicos, cuja agência se produzia pelos efeitos de posicio-nalidade em que eles mesmos se colocavam ou eram confrontados. Esses aspectos estimulam pensar em uma auto-análise etnográfica, mesmo se si-nuosa, tensa e necessariamente reflexiva (BOURDIEU, 2005)13. Buscou-se fazer ampla divulgação da audiência pública, apoiando-se nos contatos com a imprensa escrita e de TV. Convites, cartazes, material gráfi-co e internet foram usados para materializar a grande divulgação. A escolha dos participantes da mesa que encabeçariam o evento e das instituições que representavam foi objeto de discussão nas várias reuniões pré-audi-ência. Essa escolha teve sentido político evidente que também existiu no caso dos convidados que iriam compor a platéia e dar apoio por sua pre-sença direta. Chegando a participar da reunião prévia com Mércio Gomes,

13. Vale salientar que tanto Jussara Galhardo e Cláudia Moreira da Silva faziam pós-graduação em antropologia, respectivamente na UFPE e na UFRN, como os professores de antropologia da UFRN, Julie Cavignac e Carlos Guilherme do Valle fizeram parte das reuniões do Paraupaba e realizavam pesquisas acadêmicas sobre questão indígena. Assim, a discussão sobre reflexividade e posição etnográfica do pesquisador não é nova e foi tratada por muitos antropólogos a partir de diferentes “linhagens”, tradições ou correntes. Em termos desse artigo, gostaria de citar, por exemplo, Rabinow (1977), Clifford (1988), Oliveira (2002), Bourdieu (2005). Há certamente uma relação aqui entre esse artigo e o de Edmundo Pereira, incluído também nessa coletânea. Tratei de problema similar ao abordar sua experiência de elaboração de um laudo antropológico (VALLE, 2004).

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o deputado Fernando Mineiro do PT teve posição-chave ao intermediar as relações entre o Paraupaba/MCC e as instâncias internas da Assembléia Legislativa a fim de que a AP fosse concretizada. Seu assessor era, aliás, presença constante das reuniões do grupo. De fato, as práticas de media-ção envolvem a articulação de diversos planos de autoridade e precisamos lidar com o fato de que se os agentes indigenistas mediavam os índios do estado, eles próprios dependiam de seus mediadores em instâncias, esfe-ras e planos em que não tinham direto acesso. Foi o deputado do PT que presidiu a audiência pública, cuja mesa reuniu o procurador da República; o administrador regional da Funai em João Pessoa, Petrônio Machado; o antropólogo Luiz Assunção, representando o reitor da UFRN; o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos; o diretor do Museu Câmara Cascudo, que representava o Grupo Paraupaba; Carlos Guilherme do Valle que representava a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasi-leira de Antropologia (CAI-ABA), além de lideranças indígenas: Antonio Soares, o Caboquinho, cacique geral dos Potiguara; José Cyriaco Sobrinho, mais conhecido como Capitão Potiguara, representando a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito San-to (Apoinme). Contou também com a presença de um representante de cada comunidade indígena que estava se mobilizando no estado: os Eleoté-rios do Catu; os Mendonça do Amarelão e os “Caboclos do Açu”. Deve-se ressaltar que o presidente da FUNAI, Mércio Gomes, foi convidado, mas justificou sua ausência e delegou sua apresentação ao administrador regio-nal do órgão indigenista em João Pessoa14.

Com o auditório lotado de um público heterogêneo, a AP pode ser vista como uma situação social e etnográfica bem interessante, que mostrava como o espectro de participantes, convidados e pessoas presentes envolviam posições sobre a questão indígena. Um grande número de pessoas era oriundo da comunidade do Amarelão, en-quanto havia pouca gente do Catu e muito menos do Açu. O único contratempo envolveu alguns homens dos Eleotério, que foram bar-rados na entrada da Assembléia porque estavam usando bermudas. Os militantes indigenistas conseguiram contornar o problema. Mui-

14. Os Mendonça do Amarelão vivem no município de João Câmara, habitando em parte de uma área de assentamento do INCRA (GUERRA, 2007). Os “Caboclos do Açu” eram a comunidade menos conhecida. Habitando o agreste potiguar, viviam de “meia”, portanto sob regime de patronagem. Estavam em conflito com proprietários locais.

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tos estudantes (na maioria de graduação) e poucos professores da UFRN estavam presentes ou foram convocados a participar, além de funcionários do MCC. Havia pouca presença de parlamentares, mas contou com a participação de funcionários de órgãos governamen-tais, tanto estaduais como federais, que tinham sido informados do evento. O evento foi todo registrado por mídia áudio-visual e trans-mitido em canal de TV, além da cobertura por parte da imprensa potiguar15.

Após a abertura da audiência pelo deputado do PT, houve a leitura de texto por Jussara Galhardo que informou sobre a questão indígena no estado e descreveu a situação dos três grupos presentes, além de declarar que iria encaminhar dossiê para os órgãos públicos competentes. De modo geral, cada participante da mesa redonda colocou posições objetivas e claras a fa-vor das questões indígenas, embora expusessem concepções que não esta-vam plenamente convergentes entre si em relação a todos os aspectos abor-dados. Uma questão destacou-se como o fio-condutor da audiência: o tema do reconhecimento. Aparente em muitas falas, esse tema colocava-se como um problema para o campo indigenista, não consistindo em discussão ex-clusiva da audiência. Pode-se dizer que o reconhecimento dos índios no Rio Grande do Norte seria a questão central na formação do indigenismo local, das emergências étnicas no estado e, sem dúvida, seria o elemento de arti-culação com outras questões e situações indígenas do Nordeste brasileiro. Em termos teóricos e políticos, Arruti (2006) aponta para a questão do “re-conhecimento”, apoiando-se na discussão de Nancy Frazer e Charles Taylor, para tratar dos dilemas e tensões a respeito das emergências quilombolas no país e a garantia de direitos específicos. Concordamos com sua idéias e desenvolvemos aqui diálogo teórico-etnográfico ao pensar que o reconhe-cimento seria visto, no contexto discutido, em termos de significações que foram sendo engendradas por um complexo processo discursivo de deba-tes e contra-debates, razoavelmente tensionado, entre os participantes do campo indigenista, associado às suas relações com indígenas, agências do

15. Dos convidados, estiveram presentes os antropólogos Nássaro e Elizabeth Nasser, professores aposentados da UFRN; um representante do SEAMPO/GT-indígena/UFPB, Estevão Palitot, doutorando da UFPB ; funcionários do MCC; a historiadora e professora Fátima Lopes (UFRN); funcionários do INCRA, que atuavam na questão quilombola; participantes de movimentos sociais diversos. Essa análise inspira-se na proposta situacional de Max Gluckman (1987) e na discussão sobre situação etnográfica (OLIVEIRA, 2002).

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estado, pesquisadores e os grupos e redes sociais que interagiam, que ora se aproximavam e ora se distanciavam. Isso ficou bem aparente na audiên-cia, mas era também saliente durante as reuniões e discussões do Grupo Paraupaba, nos emails trocados entre seus participantes e nos eventos que envolviam a questão indígena, além de termos de incluir aqui as práticas discursivas produzidas pela imprensa, tornadas públicas e circuladas, sur-tindo efeitos diretos na compreensão do reconhecimento ou não, se positi-vo ou negativo, dos índios do Rio Grande do Norte. De fato, a auto-atribuição étnica como fator legítimo e central para o reconhecimento de uma comunidade como indígena foi o ponto crucial afirmado por vários componentes da mesa, tal como o representante da Funai e o diretor do MCC. Era esse o teor também das lideranças indígenas, tanto os representantes da Apoinme como os representantes das três comunidades locais. Nesse sentido, um dossiê foi entregue a cada um dos componentes da mesa redonda, que incluía os abaixo-assinados que foram circulados nas comunidades do Catu, do Amarelão e do Assu, reivindicando o reconhecimento oficial das comunidades como indígenas, mesmo quando o representante da Funai afirmou que era essencial considerar a auto-atribuição indígena como fator central. Muitas vezes, cheguei a ouvir em reuniões e eventos indigenistas que os índios tinham que ser reconhecidos, que a Funai, seu presidente e seus agentes tinham de fazer o reconhecimento indígena. Isso era notado em matérias de jornal, nas falas e mensagens circuladas entre agentes indigenistas. Havia, assim, uma tensão nos modos de entendimento do auto-atribuir-se como auto-definição ou “auto-reconhecimento” indígena e, por seu turno, o reconhecimento como um ato cuja investidura dependia de agente externo, de um mediador, de alguém que pudesse reconhecer o outro como índio, ou seja, aquilo que os antropólogos vinham questionando nas práticas indigenistas até, pelo menos, o ano de 200216.

16. „A Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovada em 1989, durante sua 76ª Conferência, é o instrumento internacional vinculante mais antigo que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo“ (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL). Em 2002, foi ratificada no Brasil e passou a estar em vigor através do Decreto Legislativo nº 143 em 2003. Suspeito do interesse real da Funai em viabilizar e resolver as situações dos índios do estado. Por exemplo, toda vez que um representante da Funai aparecia em algum evento sobre a questão indígena em Natal iniciava sua fala ou alertava que o órgão indigenista tinha uma longa lista de processos a resolver. Na audiência de 2005, o representante comentou que existiam mais de 120 processos de regularização da terra indígena a serem conduzidos.

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Outro ponto de interesse que apareceu diversas vezes ao longo da audiência foi o destaque dado às pesquisas antropológicas a fim de solucionar dúvi-das a respeito dos indígenas. Por um lado, o interesse na produção etno-lógica era evocado por representantes das agências e lideranças indígenas. Evidenciando muito mais a disputa em torno de um conhecimento que se entende como autorizado e legítimo, suspeito que acontecia a multiplicação das vozes competentes que poderiam falar da questão indígena, para além dos discursos propriamente indígenas. Trata-se, para mim, de uma dinâ-mica tanto do campo indigenista como do intelectual. Por outro lado, boa parte das questões colocadas envolviam a definição do correto etnônimo dos grupos indígenas do estado, o que novamente exigiria, por suposto, a decisiva atuação de antropólogos a fim de definir a origem e a identidade étnica daqueles índios. Esse ponto foi colocado tanto pelo Procurador da República, pelo representante da Funai como por uma das lideranças da Apoinme. Havia uma contradição clara entre a idéia e a demanda de auto--atribuição étnica e a conclamação aos antropólogos, ali presentes, que in-dicassem qual seria a identidade dos indígenas, a que grupo étnico ou povo indígena pertenciam. Parecia que se colocava em suspeição um grupo ser conhecido como os índios Eleotério ou os índios Mendonça. Ao contrário, eles teriam que se ajustar à grade etnológica, certo modelo culturalista em que pudessem ser entendidos por sua singularização, que não seria válida se eles fossem tomados como os Eleotérios do Catu. Essa discussão fasci-nante associa-se a outros casos e situações, que envolveram a especulação, a busca e a problematização de categorias identitárias, digamos incomuns ou paradoxais, não conhecidas. Há discussão bem interessante sobre a questão do nome, da categoria, da identidade e da palavra nomeadora ou classifica-dora (CLIFFORD, 1988; BOURDIEU, 1992, BARRETTO, 1993; ANDRA-DE, 2002; OLIVEIRA FILHO, 2003, PALITOT, 2010)17. De fato, esse é um problema interessante, pois os Eleotérios se identifica-vam também como Tapuias em contextos públicos (SILVA, 2007). A cate-goria Tapuia podia ser usada até por indigenistas, que não viam qualquer problema com o termo, embora suspeite que eles não conhecessem as im-plicações da oposição colonial entre índios Tupi e índios Tapuia (POMPA, 2003). Essa preocupação com o etnônimo seria central tanto para o campo

17. Nesse sentido, entendo que nenhuma pesquisa antropológica é realmente necessária a fim de definir a origem étnica “correta” de qualquer comunidade indígena, afinal as identidades étnicas operadas pelos próprios grupos já são etnológica e politicamente legítimas.

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indigenista como para se entender as dinâmicas interétnicas que envolviam cada grupo que estava emergindo etnicamente no estado. Envolvia um du-plo paradoxo: o do reconhecimento e o da objetivação desse mesmo reco-nhecimento, quando o problema seria o de saber qual era a etnia (verda-deira) daqueles índios. Afinal, qual era a etnia dos ditos “caboclos do Açu”? E os índios Eleotério? E os índios Mendonça? Esse valor da nomeação se mostrou também presente, por exemplo, na Assembléia da Apoinme, que tinha acontecido uma semana antes da audiência pública de junho de 2005. Realizada na Baia da Traição e reunindo grande número de lideranças in-dígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, os índios do Rio Gran-de do Norte e os indigenistas estiveram ali presentes, tanto para conseguir apoio para suas demandas e sua mobilização como ainda para conhecer e se familiarizar com o movimento indigena18. Em uma das atividades, houve o momento de apresentação pública dos índios do Rio Grande do Norte, introduzidos por Jussara Galhardo que falou da audiência em Natal. Um representante dos Mendonça do Ama-relão e outro dos Eleotério do Catu se apresentaram. O rapaz do Ama-relão identificou-se como da família dos Canindé. O homem do Catu apresentou-se como Tapuia, salientando que estavam visitando com fre-qüência os Potiguara. Ao terminar sua fala, uma importante liderança da Apoinme, Maninha Xukuru Kariri, já falecida, perguntou porque eles se chamavam Tapuias, se eram os Potiguara afinal que viviam em toda aque-la costa. Segundo uma liderança, Maninha Xukuru chegou a afirmar: “Ta-puia não existe. Vocês são é Potiguara”! (SILVA, 2007). O homem respon-deu que ele podia até mesmo ser Potiguara, mas ele tinha sempre ouvido dizer que eles eram Tapuias. Talvez fosse exigir demais que os Eleotérios investissem em uma ação, no mínimo, audaciosa de se auto-atribuirem como índios Tapuias, o que diria como índios Eleotério. Em antropologia, há claro limite das posturas anti-essencialistas, pois devemos considerar que as categorias são realmente impostas através de forças e práticas de-finidas social e historicamente. Entendo que essa situação social permite uma comparação com a situação dos Caxixó de Minas Gerais, que tiver-am seu etnônimo questionado por uma antropóloga em laudo pericial

18. A assembléia foi realizada em uma escola na entrada da cidade da Baía da Traição. Um grande toldo de circo reunia uma multidão de mais de 100-150 pessoas. Além de grande presença indígena, vários antropólogos estavam presentes: José Augusto Laranjeira Sampaio (Anaid), Vânia Fialho (UFPE), Rodrigo Grünewald (UFCG), Marcondes Secundino (Fundaj), Estevão Palitot, Marcos Albuquerque, além de agentes do CIMI e de outras ONGs.

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para a Funai. Segundo essa antropóloga, havia insuficiência documental referente ao etnônimo Caxixó nas fontes primárias históricas da região estudada. Para Oliveira Filho (2003), não é exatamente o etnônimo de um grupo que pode ser associado à uma permanência histórica e, então, atestar verdades por si só:

É importante enfatizar que, independentemente do caráter ideológico da definição do que é ou não tradicional, o etnônimo Caxixó é produto do processo social de constituição do próprio grupo étnico como tal, processo eminentemente histórico, não preexistente à colonização. Dificilmente, portanto, estaria registrado em documentação do período colonial, ou mesmo arrolado em qualquer “relação de tribos indígenas de Minas Gerais”. (OLIVEIRA FILHO, 2003 p.114).

Por último, pode-se pensar ainda no uso da categoria “remanescente indí-gena” para identificar os Eleotérios. Segundo Arruti (1997), o termo “re-manescente” foi utilizado não apenas por agentes e agências indigenistas, mas seria ressignificado pelos próprios índios. Em certo contexto históri-co, o termo foi estratégico para solucionar as questões em torno das visões que se produziram sobre um tipo de indígena contemporâneo. Como ex-plicar a situação do indígena do Nordeste, tão distante da representação modelar do índio amazônico? Talvez uma justificativa plausível estivesse no termo “remanescente” para explicar esse modelo cultural de indígena:

A fórmula “remanescentes” parece ideal por apontar mais clara-mente para a presencialidade do estado de índio, sem deixar de reconhecer uma “queda” com relação ao modelo original: os rema-nescentes são uma espécie de índios caídos do nosso céu de mi-tos nacionais e acadêmicos. Em termos legais, no entanto, o fato de serem “sobras”, “restos”, “sobejos” [...], em que se reconhecem profundas e talvez irremediáveis perdas culturais, não negaria aos remanescentes indígenas seu direito ao status de índio. Assim, re-manescentes tornou-se uma categoria fundamental na viabilização de um discurso sobre os grupos e dos próprios grupos indígenas do Nordeste, fugindo à discussão sobre o ser ou não ser através de um acordo tácito entre ser e não parecer: presta obediência ao

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índio etnológico, pede passagem o índio histórico e adentra o índio jurídico (ARRUTI, 1997: 45).

A reflexão de Arruti pode ser aproximada da situação aqui apresentada. Ao ser acionada pelos agentes mediadores, o termo “remanescente” se incorporou ao processo de construção étnica, passando a fazer parte da semântica da etnicidade, segundo a idéia de Valle (1993; 2004), que os Eleotérios e os agentes indigenistas passaram a recriar e robustecer, tan-to por convergência entre seus projetos e idéias como por singularização em termos de significação e prática. Embora possuam distintos significa-dos para tal expressão e um conjunto de afirmações que a (re)atualizam a partir das experiências vivenciadas, o auto-identificação como “rema-nescente” era comum entre os Eleotérios mais “militantes” e destituído de significado para outras pessoas que não tinham relação tão sistemática e intensa com o campo de ação indigenista, portanto apresentando inves-timentos semânticos menos articulados com os discursos e práticas dos agentes indigenistas. A partir de 2005, os Eleotérios do Catu e os Mendonça do Amarelão passa-ram a se identificar cada vez mais como índios Potiguara, criando formas culturais indígenas, destacando-se a organização da dança do toré, a pro-dução de artesanato e o aprendizado da língua Tupi (SILVA, 2007). Além da preocupação com as categorias identitárias e os processos de nomeação, as audiências e assembléias sugerem que a singularização social e cultural pre-cisa ser encarada tanto como uma produção inventiva dos próprios grupos como uma negociação ativa entre diversos participantes e agentes de um campo intersocietário que envolve índios e não índios. Assim, como uma situação social, pública e caracterizada por uma forte dimensão política do movimento indígena, entendo que a assembléia da Apoinme tal qual a au-diência pública em Natal se colocavam como espaços e eventos próprios de um processo progressivo de objetivação étnica, cujos efeitos eram gerados pelos próprios índios Eleotérios e os Mendonça, os indigenistas do Rio Grande do Norte, os agentes de diversas entidades e instituições, mas ainda por índios e lideranças indígenas do movimento indígena organizado. Era somente com sua presença e em sua apresentação pública em evento ritual como a Assembléia da Apoinme que iria justificá-los como indígenas e suas demandas seriam significadas como «étnicas». Da mesma forma, a audiência pública seria um espaço central para essa objetivação, quando os públicos e os agentes que os iriam reconhecer não seriam outros índios,

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mas a «sociedade» potiguar. Ouvi, então, de um interlocutor de pesquisa, a constatação um dia após a audência: “Ontem, foi um dia histórico”. A partir daquele dia, uma história de resistência seria afirmada diante daquela do desaparecimento indígena no Rio Grande do Norte19.

CONCLUSÕES

Destaquei, portanto, a rede de relações que foi sendo constituída em tor-no da situação étnica privilegiada. Nesse sentido, além das ações isoladas atuando sobre a “emergência étnica” dos Eleotérios, percebeu-se a forma-ção de um campo de ação indigenista. Foi somente após o ano de 2002 que esse campo obteve maior visibilidade ao atuar enfaticamente nos processos de ‘emergência étnica’ no estado. Mas por si só, esses contextos de intera-ções não definem o processo de construção étnica e não são exclusivas do caso dos índios no Rio Grande do Norte, tampouco desconhecida da antro-pologia. Concordo aqui com Oliveira Filho (2003) em sua reflexão acerca do processo de atuação das agências no caso dos índios Caxixó (MG) qual seja:

A atuação de entidades de organizações similares em processos de emergência étnica (ou etnogênese) semelhantes ao caso Caxixó não é desconhecida da antropologia brasileira. A presença de agentes “deflagradores” (incluindo grupos étnicos já reconhecidos) de uma consciência relativa ao direito indígena e sua amplitude é citada como fator recorrente nas análises referentes aos povos indígenas no Nordeste, região que mais tem instigado o estudo desse fenômeno social. (...). Trata-se, portanto, de um processo legítimo de viabiliza-ção de uma alternativa política – a alternativa étnica – que possibilita a sustentação do pleito por um direito anteriormente desconhecido (o reconhecimento oficial e os direitos recorrentes), freqüentemente a partir do contato com uma concepção de índio que, de modo re-

19. Em 2008, a Comunidade dos Mendonça do Amarelão “(da etnia Potiguara), de João Câmara/RN, encaminhou projeto ao Ministério da Cultura ... e foi contemplada com o Prêmio Xicão Xucuru - Prêmio Culturas Indígenas. O referido projeto intitula-se Motyrum-Caaçu: unidos pela arte (o nome está escrito na língua Tupi que em português significa Mutirão no Mato Grande). O projeto realizará oficinas em outras comunidades indígenas, difundindo o ofício do artesanato indígena e, posteriormente, irá constituir o primeiro grupo de artesãos indígenas no Rio Grande do Norte” (GUERRA, 2009).

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flexivo, repercute nas concepções auto-identitárias do grupo. Não se pode, contudo, atribuir a consolidação do pleito por reconhecimento exclusivamente à atuação dessas entidades – e ao campo indigenista, se ampliamos o contexto. Para que isso ocorra, é necessário que tal alternativa seja socialmente efetiva, isto, é, esteja sustentada por uma rede social e um universo simbólico que confira sentido à atribuição étnica (OLIVEIRA FILHO, 2003: 119-120).

É interessante observar que essas redes de relações, nas quais os povos indígenas do Nordeste são envolvidos, podem também ser vistas como uma correlação de forças internamente ao próprio movimento. Muitas vezes, os agentes indigenistas disputam em termos dos modelos de ação e ativismo bem como da própria definição do que é ou não é ser “indígena”. Contudo, tal como afirmou Oliveira Filho (2003), essas forças não agem sozinhas no processo, mas entram em confluência com as diversas escolhas políticas e expectativas dos indígenas. Apoiando-se em Bourdieu (1992), seria válido tomar os discursos da mili-tância indigenista, dos pesquisadores, do movimento indígena, das agên-cias governamentais, tal como a Funai, e dos próprios Eleotérios como a desenrolarem “lutas por critérios de avaliação legítima”. Dessa forma, a participação dos Eleotérios em atividades públicas, tais como audiências e assembléias indígenas, conformava situações de “objetivação” e “oficializa-ção”. A dimensão da oficialização estaria realizada no aspecto da manifes-tação, ou seja, na visibilidade através da qual o grupo tornava-se manifesto “para outros grupos e para ele próprio”, conformando sua existência “como grupo conhecido e reconhecido, que aspira à institucionalização. O mundo social é também representação e vontade, e existir socialmente é também ser percebido como distinto” (BOURDIEU, 1992: 118)20. Em 2009, foi organizada a I Assembléia Indígena do Rio Grande Norte, cujo tema foi “Reconstruindo a cidadania”, patrocinada pela Funai e com a participação da Apoinme. O grupo Paraupaba esteve à frente da orga-

20. “O poder sobre o grupo que se trata de trazer a existência enquanto grupo é, a um tempo, um poder de fazer o grupo impondo-lhe princípios de visão e de divisão comuns, portanto, uma visão única de sua identidade, e uma visão idêntica da sua unidade. O fato de estar em jogo, nas lutas pela identidade – esse ser percebido que existe fundamentalmente pelo reconhecimento dos outros –, a imposição de percepções e de categorias de percepção explica o lugar determinante que, como a estratégia do manifesto nos movimentos artísticos, a dialética da manifestação detém em todos os movimentos regionalistas ou nacionais” (BOURDIEU, 1992: 117. Grifos do autor).

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nização do evento. É interessante pensar na posição recente da Funai que passou a assumir as questões e demandas indígenas, “reconhecendo” seu pleito como legítimo. Estamos distantes da posição reticente de meados da década, quando o órgão indigenista não tinha realizado nenhuma iniciati-va mais sistemática de ação. Em 2005, a Funai seguia a idéia de que apenas tomava qualquer tipo de atitude a partir de demandas locais indígenas. Não podemos simplesmente entender o que está em jogo no contexto do Rio Grande do Norte se consideramos as demandas indígenas como produ-zidas e circuladas a partir exclusivamente do “ponto de vista do nativo”. Deve-se aqui observar os indigenistas como mediadores que atuam em um campo intersocietário em que as agências governamentais e os indígenas não têm relação direta. A dependência da mediação é uma questão central a se entender. No caso do Rio Grande do Norte, a mediação estava sen-do levada adiante, sobretudo, por agentes associados à produção cultural e acadêmica. Considero que essas características singulares de mediação ex-põem caminhos e trajetos diferenciados de mobilização política indígenas. A presença de agentes não-índios foi fundamental para que as demandas políticas e as culturais fossem fortalecidas. Se, em 2000, o Rio Grande do Norte era um estado sem presença indígena, em 2010, passou a ser um es-tado com presença indígena, com “cultura indígena”, com atuação, mesmo se limitada, da Funai. Entre estes dois esquemas opostos, há uma história dinâmica de convergências e complexificação a favor do reconhecimento e da singularidade.

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CAPITULO VIIIA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA: O CASO DO SÃO GONÇALO DA MUSSUCA (LARANJEIRAS, SE).

Wellington de Jesus Bomfim

As considerações que se seguem são baseadas na pesquisa que realizei en-quanto mestrando no PPGAS/UFRN, cujo resultado foi uma dissertação, defendida em 2007 (BOMFIM, 2007). O estudo foi realizado entre os anos de 2005 e 2007. É o resultado de uma discussão teórica acerca da etnicidade e envolveu uma prática social específica, a dança de São Gonçalo, que é or-ganizada no povoado de Mussuca, localizado no município de Laranjeiras (estado de Sergipe). O presente artigo consiste em uma síntese da revisão de literatura especializa-da, dos resultados do trabalho de campo e da pesquisa documental. Além dis-so, faço um trânsito entre o momento da pesquisa em si com alguns elementos da atualidade, tendo em vista que, mesmo com o fim do estudo, me mantenho a freqüentar a localidade. Essa relação permanente com o povoado tem ocor-rido principalmente em virtude das visitas que tenho realizado com alunos de diferentes cursos da Universidade Federal de Sergipe. Espero que seja en-tendida a minha preocupação com relação à construção da identidade étnica, pois considero que a antropologia tem avançado muito nas reflexões acerca da matéria. Pretendo contribuir com esse texto para esse aprimoramento1.

SOBRE ETNICIDADE, O OBJETO DE ESTUDO E O PESQUISADOR NO CENÁRIO DAS INTERAÇÕES

O culto a São Gonçalo é uma prática social encontrada em todas as regiões do país, logo apresentando diferentes maneiras de ser realizada. Cada gru-

1. Desde 2007, atuo como professor substituto de Antropologia na Universidade Federal de Sergipe.

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po incorporou à esta devoção religiosa elementos presentes em sua realida-de histórica e social, criando deste modo um caminho por onde é possível perscrutar sua cultura. Parafraseando Edmund Leach (1996) é, portanto, possível considerar este rito como uma linguagem que expressa uma or-dem social, ou seja, as relações que os grupos sociais estabelecem em seus arranjos internos e, mais ainda, com a sociedade geral onde estão inseridos. Partindo deste principio, é possível realizar um empreendimento antropo-lógico abordando os mecanismos e condicionantes de uma coletividade, presentes em suas práticas sociais, tal como no caso de um rito.Em particular, trata-se de um agrupamento que reivindica uma descen-dência ligada ao sistema escravocrata através do culto religioso a um san-to português. Pode parecer estranho, porém a plasticidade cultural que envolve essa manifestação é resultado da configuração de um determi-nado grupo étnico. Entendendo que este perpassa por um “processo de constituição” e pode ser considerado “uma forma de organização social” (BARTH, 2000: 25-31). Deve-se pensar que, nesse processo de forma-ção dos agrupamentos, alguns elementos são partes constituintes de seu universo simbólico e, dessa forma, um canal de reivindicação de perten-cimento. Para investigar esta temática que se insere na discussão sobre etnicidade, estarei me valendo de uma reflexão teórica acerca do assunto bem como de aspectos empíricos construídos a partir de pesquisa reali-zada em 2006 sobre a dança de São Gonçalo da Mussuca, um povoado do município de Laranjeiras (SE).Em torno desta prática social, percebe-se a existência de uma memó-ria que remete a um pertencimento étnico, pois é declarada como um aspecto da presença dos escravos negros outrora existentes na região. Esta associação está presente na população local quando remete este culto religioso à memória de um passado longínquo: “O São Gonçalo é do tempo dos escravos” - essa expressão é como uma lição nas falas dos moradores. Associando o rito à localidade, é possível considerar essa narrativa com o auto-reconhecimento de sua afro-descendência, que é explicada ao considerar os contextos sociais do grupo, bem como as rela-ções e interações internas e externamente estabelecidas. A ligação histórica com o sistema escravocrata não consiste em uma pro-va a ser tirada, mas sim um arcabouço histórico que, de alguma forma, é evocado para sustentar uma idéia de ancestralidade. Esse recorte his-tórico não representa o momento definitivo e definidor da identidade

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em pauta, mas uma “(...) configuração circunstancial de um dinamismo aberto à história (...), e não só um dado presente” (BARTOLOMÉ, 2006: 41). Logo, para entender essa relação foi preciso lançar mão de um per-curso histórico, o que trouxe elementos para explicar os caminhos que auxiliaram na elaboração dessa associação (BOMFIM, 2007). A pesquisa em si focalizou, a priori, à situação relacional que este grupo social estabeleceu com agentes externos, em determinados períodos, e que nestes contatos os elementos que inclinaram a dinâmica deste pro-cesso identitário são concebidos por um conjunto de relações que se es-tende ao longo das últimas décadas. Foi importante investigar os primei-ros sinais de quando essa ligação passou a ser evidenciada, inicialmente na literatura, depois em determinados órgãos públicos e por conseqüên-cia, adotada pela coletividade em questão. Quais motivações levaram a afirmação desse pertencimento étnico? Que conjunto de interesses (externos e internos) acionou essa afirmação? Esta declaração partiu dos agentes externos e, em determinado momento, pas-sou a ser uma narrativa local ou, na localidade, já existia essa afirmação mesmo antes dos primeiros contatos? De que forma a localidade e o São Gonçalo se relacionam para fortalecer essa declaração? Estas questões foram aprofundadas no texto final da pesquisa (BOMFIM, 2007), onde apresentei o contexto no qual as relações foram construídas, procurando assim, identificar os agentes externos e seus interlocutores na tentativa de criar um quadro inteligível dos interesses que moveram as ações de seus personagens (atores sociais, órgãos públicos, instituições, organizações civis, etc.).Estou inclinado a dizer que o processo de construção desta “auto-decla-ração” (se assim posso chamar) tenha iniciado com a saída do grupo para as apresentações fora da localidade. Relaciono, assim, o rito ao contexto da “folclorização” no Brasil. Assim, esta prática teve seu primeiro regis-tro realizado em 1976, com o “Caderno de Folclore do São Gonçalo de Sergipe”. Este texto relaciona o rito ao sistema escravocrata no estado, quando indica que existem “(...) nítidas influências árabes, introduzidas pelos africanos (...)” (DANTAS, 1976: 06). Desde então, o conjunto se torna presença recorrente em evento de diferentes naturezas, no estado e fora deste.Particularmente tive um primeiro contato direto com este agrupamento através da militância no movimento negro. Fazendo parte de uma enti-

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dade que em 1998 desenvolveu um projeto voltado para o fortalecimento da “identidade negra e cidadania”. Nesta ocasião me aproximei do grupo de São Gonçalo da localidade, sobre o qual tinha algumas informações. Quando realizei a primeira visita como estudante de mestrado em antro-pologia, em 2005, ainda definindo os rumos do estudo, fui recepcionado com um texto. Este manuscrito acabou por determinar meu objetivo cen-tral: investigar a participação da dança de São Gonçalo na construção da identidade étnica da Mussuca. Segue a reprodução do texto:

São Gonçalo do Amarante2. São Gonçalo é de Laranjeiras/SE, mais especificamente do povoado Mussuca surgido da época da escravi-dão, a 3 quilômetros (sic) da cidade de Laranjeiras. A dança do São Gonçalo é uma manifestação de origem européia, ligada ao catoli-cismo do interior, em homenagem a São Gonçalo do Amarante, da cidade de Amarante, ao norte de Portugal. Conta-se que Gonçalo era um Frade que, para evitar o crescimento da prostituição na cidade de Amarante, saía pelas ruas com uma viola, cantando e dançando, vestido de roupas de femininas (sic), assim entretendo as mulheres para não tomassem o caminho da vida devassa. Após sua morte, sentida e lamentada, a sua idéia se perpetuou. É uma Historia que se conta, à margem do que se tem em documentos da sua vida como Frade3 (grifos do original).

Esta idéia é fortemente presente no estado de Sergipe. Isso se expressa em vários setores da sociedade sergipana em virtude da ligação que se estabelece da Mussuca com a ocorrência de quilombos no estado, relação esta encontrada na própria localidade. Mas é interessante ressaltar que não se trata de uma posição unânime, pois existem moradores que não aceitam esta idéia. Situação esta que demonstra inconsistências internas, o que deve ser também levado em consideração. O curioso é que, desde 1997, a comunidade Mocambo (município de Porto da Folha) teve o reconhecimento oficial enquanto “comunidade remanescente de quilombo”, através do artigo 68 da Constituição Federal de 1988, tendo José Mauricio Arruti como antropólogo que elaborou o

2. Costuma-se tratar de Dança de São Gonçalo, a conotação do remete com mais ênfase à figura do santo. Percebe-se também a referencia ao “catolicismo do interior”.3, O texto original foi apresentado com o uso de letras maiúsculas.

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laudo antropológico neste processo (ARRUTI, 2006). Contudo, a noto-riedade quilombola é atribuída pelo conhecimento publico à Mussuca4. Dessa forma, alguns aspectos foram privilegiados aqui no que tange à dis-cussão em torno de conceitos fundamentais para esse artigo: grupo étnico, memória coletiva, narrativa, rito. Certamente, outros conceitos serão igual-mente discutidos, mas esses serão aqui priorizados. Iniciarei a discussão tomando como ponto de partida a definição de grupo étnico como uma ca-tegoria analítica que tem como base a auto-atribuição, que está diretamente ligada à forma de organização social dos grupos segundo as indicações de Fredrik Barth (2000). Também abordo a memória coletiva, sendo a dança a sua maior expressão. Nela se atualiza os eventos do passado onde são in-corporados elementos da realidade social como sugere Maurice Halbwachs (1990). Por entender a necessidade de compreender o processo inserido em determinado contexto social, abordo a idéia de Edmund Leach (1996), para o qual essas ações formam uma linguagem do grupo acerca da ordem social onde estão inseridos.

ALGUMAS REFLEXÕES TEÓRICAS PRELIMINARES

A utilização de termos para identificar populações ligadas historicamente ao sistema escravocrata no Brasil é notificada desde antigos documentos. Alfredo Wagner de Almeida (2002: 70), versando sobre as implicações do conceito de “quilombos”, destaca o uso deste que remonta ao século XVIII (elaborado em 2 de setembro de 1740), e que tem sido muito debatido na contemporaneidade, em eventos e publicações, a saber: “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não te-nha ranchos levantados e nem se achem pilões neles” (ALMEIDA, 2001: 70).Esta noção de quilombo enquadra apenas uma situação de agrupamento, o que acaba não dando conta de outras possibilidades. Diversas situações sociais na história não condizem com este conceito, mas que podem ser de-finidas como tais. O número de fatores que se relacionam neste assunto ul-trapassa os pontos apresentados. Dessa forma, reforço que aqui não se trata de comprovar a descendência quilombola do rito ou do povoado, mas sim entender como essa configuração se coloca.

4. Em novembro de 2005, uma das lideranças da Mussuca solicitou o titulo, o que em maio de 2009 foi atendido pelo Governo Federal, o que gerou polêmica e conflito no povoado. Coincidentemente, eu estava realizando pesquisa de campo na ocasião.

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A problemática ilustrada acima traz consigo um pano de fundo teórico que versa sobre questões de etnicidade. Ao passo que trata de referências ao passado, sugeri uma reflexão acerca da memória dos grupos, tendo em vis-ta que, tal como afirma Michael Pollak, “a memória é um elemento consti-tuinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva” (1992: 05). Seu caráter social se refere às relações que se estabelecem para con-firmar as lembranças uns dos outros. As lembranças são fragmentadas e desconectadas individualmente, mas consolidadas por narrativas coletivas.A “auto-definição” é construída através das relações sociais do grupo, tendo nas reminiscências o aporte que por vezes se recorre na tentativa de justificar essa ou aquela posição no presente. O que remete à uma desconsideração do conceito do “tipo-ideal” em quesitos de etnicidade. Chama atenção para as motivações sociais que promovem a construção da identidade. Logo, memória e identidade não se separam. Barth refuta a idéia de um conceito fundamental que compromete a per-cepção da complexidade dos grupos, pois essa noção supõe um isola-mento sociocultural e dificulta a compreensão do lugar desses grupos na sociedade. Para ilustrar e ajudar no entendimento, apresento, assim, a “definição ideal” criticada pelo autor, para a qual o grupo étnico:

1)em grande medida se autoperpetua do ponto de vista biológi-co; 2) compartilha valores culturais fundamentais, realizados de modo patentemente unitário em determinadas formas culturais; 3) constitui um campo de membros que se identificam e são iden-tificados por outros, como constituindo uma categoria que pode ser distinguida de outras categorias da mesma ordem (NARROLL apud BARTH, 2000: 27).

O aspecto da perpetuação biológica remete o suposto isolamento dos grupos, o que simplifica um problema fundamental: “o pressuposto de que a manutenção das fronteiras não é problemática” (BARTH, 2000: 28). Esse é um ponto primordial na proposta do autor, tendo em vista que tais fronteiras se estabelecem a partir das ações sócias e o contato com o “outro”.Tendo em vista que estou tratando de um grupo social – que certamente não se encontra isolado – inserido em uma sociedade mais geral, onde constitui uma minoria dentro do contexto social, econômico, político e

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cultural; a manutenção de fronteiras é um critério de afirmação. Dessa forma, como caracterizar essas fronteiras em torno do rito?Se práticas sociais como os ritos são uma forma de linguagem do grupo acerca de sua ordem social, cada momento histórico apresentará condicio-nantes que impulsionam as formas de estabelecer as relações. E nestas, o grupo, mediante uma determinada situação, elege aspectos enquanto um investimento na perpetuação de uma identidade, reforçando assim, “o sen-timento de unidade, de continuidade e coerência” (POLLAK, 1992: 7). Mas que também obedecem a um conjunto de fatores circunstanciais, ou seja, podem sofrer modificações significativas.As relações sociais e a organização dos grupos promovem a mobilidade do auto-reconhecimento, esta situação perpassa pelos “incentivos para mu-dança de identidade que são inerentes à mudança de circunstancia” (BAR-TH, 2000: 48). Mudanças estas movidas pelos interesses presentes em cada situação, conseqüência de diferentes posicionamentos. Assim sendo, a et-nicidade é, também, uma questão política.

A organização social do grupo é um fator primordial para as formas de atribuição. Sua identidade parte de intencionalidades que promovem suas fronteiras, que são modificáveis no transcorrer dos tempos. Estas, por sua vez, são híbridas e proporcionam relações diversas (HANNERZ, 1997), podendo aproximar grupos que por vezes formam “comunidades políti-cas”. Os interesses em jogo, se não contrastantes, são um vetor fundamen-tal nesta associação. Assim, são criadas essas comunidades. Para Weber o fator de pertencimento está condicionado “por destinos políticos comuns e não pela ‘procedência’, deve ser, segundo o que já foi dito, uma fonte muito freqüente da crença na pertinência ao mesmo grupo étnico” (2000: 274).Este aspecto ressaltado por Weber, também contrapõe a idéia de consan-güinidade na medida em que este fator não define a totalidade do grupo étnico. O autor conduz sua análise para uma dimensão macro, ou seja, da nacionalidade. Mas como pensar a situação dos grupos minoritários? Se considerar a existência de grupos minoritários no bojo de uma socie-dade, estarei elucidando relações de poder que implicam na existência de grupos majoritários, que mesmo não sendo maioria numérica, detêm cer-tos privilégios – como obter o direito a grandes latifúndios, ou ter acesso a determinados privilégios sociais e públicos. Como indica Wirth (1945), di-versos critérios definem a variabilidade destes grupos: raça, nacionalidade, origem, linguagem, religião, etnia; o que estabelece um sistema de status,

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fazendo com que assim os grupos adotem estratégias para obter, relativa-mente, mecanismos que garantam condições favoráveis na vida social.

Thoroughgoing differences and incompatibilities between dominant and minority groups on all fronts – economic, political, social and religious – or consistent and complete separation and exclusion of the minority from participation in the life of the larger society have tended toward more stable relationships between dominant and minority groups than similarity and compatibility on merely some points, and the mere segmental sharing of a few frontiers of contact (WIRTH, 1945: 354).

A situação acima é compatível com a realidade das populações que durante os séculos XVI a XIX foram trazidos para o Brasil e que vem sendo estu-dadas pelas ciências sociais, principalmente a partir da década de 1960. Milhões de membros de grupos africanos raptados de suas terras, onde, obviamente, tinham seus elementos referenciais que constituíam suas cul-turas, aportam em “glebas” estranhas, onde são obrigados a trabalhar e es-tabelecer novos vínculos. A necessidade de adaptação em uma nova condi-ção social proporcionou a construção de novos referenciais culturais. Mesmo em condições adversas, as populações escravizadas fizeram valer sua capacidade de re-elaboração de padrões culturais. Dessa forma, é pos-sível pensar o culto a São Gonçalo como um exemplo deste processo. Para tanto se faz necessário considerar o grupo que o realiza, bem como a rela-ção tempo e espaço em questão. Sendo assim, como pensar uma declaração de pertencimento, na medida em que esta relação (tempo-espaço) estará sempre em mudança?

Toda memória coletiva tem por suporte um grupo limitado no es-paço e no tempo. [...] o grupo, no momento em que considera seu passado, sente acertadamente que permaneceu o mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo (HALBWACHS, 1990: 59).

Porém, é preciso ressaltar que esta “consciência” se dá no contato com o outro, o que também promove a aquisição de novos elementos. Isto de-monstra a importância da diversidade de elementos que passa a compor o rito. Ora, se os grupos sempre se mantiveram em contato, isso implica que

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o conjunto de traços culturais que monta seu arcabouço simbólico não é oriundo de uma unidade.

E uma vez que a origem histórica de qualquer conjunto de traços culturais é sempre diversificada, esse ponto de vista abre espaço para uma “etnohistória” que produz uma crônica de aquisições e mu-danças culturais e tenta explicar a causa do empréstimo de certos itens... Paradoxalmente, aí devem ser incluídas culturas existentes no passado, que no presente seriam evidentemente excluídas devido a diferença entre suas formas – justamente as diferenças usadas para identificar a diferenciação sincrônica de unidades étnicas. (BARTH, 2000: 29-30).

A citação acima favorece abordar os traços culturais de forma diacrônica. Por essa razão, é possível pensar nas particularidades da dança de São Gon-çalo da Mussuca, como elementos que remetem o grupo social e o rito aos negros escravizados naquela região?É oportuno admitir neste momento que considero o culto a São Gonçalo, neste grupo, uma forma de reivindicar ou, pelo menos, uma busca de ga-rantia de determinados ganhos e privilégios, sejam sociais ou materiais. Afinal, sendo uma dentre as várias localidades existentes no estado em si-tuação de precariedade social, o grupo percebe neste rito, e com este sua ancestralidade afrodescendente, um caminho de alcançar este objetivo. Porém, é preciso retomar a questão conflituosa que existe por traz deste encaminhamento, citada anteriormente. A idéia de equilíbrio, segundo Leach (1996) é apenas um artifício do pes-quisador para enquadrar os grupos em noções predeterminadas. É a des-consideração das incoerências fruto das inter-relações. Estas são funda-mentais para alcançar as causas das configurações do grupo.O efeito das contradições – como a aceitação ou não da ligação com o sistema escravocrata - sobre o grupo é marcante, pode elevar a unidade já existente, deixando ainda mais clara as fronteiras com o outro; como também pode aproximar pessoas e grupos. Mas também pode promover separações. Em 2006, a Mussuca estava vivendo um quadro onde a questão quilombola acirrou divergências políticas, reforçando as incongruências no grupo. O fato é que essa situação reflete posicionamentos divergentes, mas que transcendem aos fatores locais. Grupos políticos da região se inserem

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neste processo. Representam interesses maiores e tomam como represen-tantes lideranças comunitárias. À medida que diferentes elementos – como os diferentes agentes externos (pesquisadores, prefeitura, etc) - se aproximam do grupo, possibilita o florescimento das divergências, o que evidencia a instabilidade social do grupo. Possivelmente em virtude de novas perspectivas resultantes deste contato, e assim, se configura uma circunstância, mas não uma forma espe-cifica de organização.

The triad as such seems to me to result in three kinds of typical group formations. All of them are impossible if there are two elements; and, on the other hand, if there are more than three, they are either equally impossible or only expand in quantity but do not change their formal type (SIMMEL, 1964: 145).

Uma fórmula exata pode não atender a todas as diferentes situações. Ao se deparar com um número amplo de elementos, a realidade pode parecer insólita, pois os personagens, que atuam neste tipo de cenário, podem se enquadrar numa tipologia extensa. Como entender este panorama se cons-tituiu um real desafio para o pesquisador. Logo, quanto maior for à abran-gência do caso, maior a necessidade de se conhecer o cenário.Assim, também se pode pensar em outro aspecto que é oportuno para dis-cutir a situação. Falo do meio-ambiente e, com certeza, não de adaptação, mas da possibilidade de que, em determinada circunstância ecológica, po-de-se gerar uma diversidade de comportamento que não corresponde às diferenças de orientação cultural, daí porque situar a Mussuca na região do Vale do Cotinguiba se fez pertinente. Com isso não estou defendendo que este processo social de afirmação étni-ca nesta localidade se explica por seu posicionamento geográfico. Mas sim como este aspecto leva à uma determinada situação histórica, tendo em vis-ta que aspectos da geografia da região proporcionaram o desenvolvimento das plantações de cana-de-açúcar no estado. O fato de que outros grupos de São Gonçalo não recorrerem a esta ligação histórica, mesmo com carac-terísticas semelhantes, se constitui em uma situação diferente. Neste quadro de emergência étnica, existe um elenco de práticas que esta-belecem laços solidários mais fortes e duradouros do que a alusão à uma determinada ancestralidade. Para Alfredo Wagner Almeida:

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O pertencimento ao grupo não emana, por exemplo, de laços de consangüinidade, não existe a preocupação com uma origem co-mum, tampouco o parentesco constitui uma precondição de per-tencer. O princípio classificatório que fundamenta a existência do grupo emana da construção de um repertorio de ações coletivas e de representações em face de outros grupos. Trata-se de investigar etnograficamente as circunstâncias em que o grupo social determi-nado acatou uma categoria, acionando-a ao interagir com o outro (ALMEIDA, 2002: 74-75).

Estas “circunstâncias” merecem atenção quando se trata de um grupo que se vê retratado em um passado longínquo e que, no presente, se vale des-te passado para assumir pertencimento étnico. Desta forma, alguns casos indicam o fator da origem comum ou mesmo ao parentesco como uma recorrência. Com isso, percebo ser conveniente recapitular a passagem in-dicada, acrescentando que o grupo também pode fazer esse tipo de aporte, pois, quando se trata das demandas de direitos perante os poderes públicos, a diversidade de possibilidades aumenta. O grupo pode, inclusive, recorrer à defesa de uma história fabulosa ou, neste caso, por meio de uma prática social religiosa, o que reforça a necessidade de encarar cada situação por ela mesma5.Dessa forma, foi preciso ressaltar a importância das narrativas – sem des-cartar as fontes documentais escritas – presentes em diferentes interlocu-tores. Saliento que o seu caráter metafórico, passado de geração a geração, pode assumir novas conotações (PRICE, 2004). Mesmo aqueles que não vivenciaram o evento histórico tendem a incorporar elementos do presente com base em “quadros sociais da memória” (HALBWACHS, 1990). Este quadro me impulsionou a lançar mão de um esforço intelectual procu-rando encontrar o significado do dito, entendendo que este procedimento “é tudo que a ‘nova etnografia’, com seu apelo à reflexividade, à contextua-lização, à escrita experimental e ao envolvimento ético e político, se supõe ser” (PRICE, 2004: 307).São em encontros dessa natureza que a participação do antropólogo e a apropriação das categorias nativas refletem-se e são refletidas nas relações

5. Há exemplos de estudos nesta direção. Alguns deles são encontrados na coletânea Quilombos: identidades étnica e territorialidade , organizada por Eliane C. O’Dwyer (2002).

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com o meio acadêmico. Quero indicar o reconhecimento do compromisso político deste com o grupo estudado. Certamente não foi o ponto central das interpretações e considerações, mas um desdobramento intrínseco à questão. O antropólogo acaba sendo um tradutor, mas também um media-dor. Ele disponibiliza seus conhecimentos sobre esses grupos para outros. Estou alertando com isso não para uma pressão sobre aquilo que é produ-zido – afinal não podemos ser reféns de nosso objeto –, mas para a necessi-dade de um aprimoramento teórico, bem como a consideração do contexto intersubjetivo que se coloca.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA DE PESQUISAETNOGRÁFICA

Na continuidade de minhas reflexões, desloco-me agora para o proces-so de aproximação com o campo. Aqui, procuro apresentar algumas das facetas que vivenciei no tocante ao contato com os sujeitos da pesquisa. Desse modo, iniciei meu trabalho de campo, intensivamente, ou seja, mo-rando na Mussuca a partir do mês de abril até o mês de junho de 2006. Ao voltar ao local, procurei encontrar uma casa que serviria de “escritó-rio” e moradia, mas isso não foi tão simples. Percebi que algumas pessoas relutavam quanto à minha presença no povoado. A razão principal desta desconfiança decorreu da “fama” que a comunidade obteve, o que até cer-to ponto defendem várias pessoas que passaram por lá. Foram pesquisa-dores, fotógrafos, cinegrafistas, o movimento negro, além de outros, que, para complicar a minha situação, pouco ou quase nada apresentaram de retorno à população, nem o resultado de algum trabalho realizado. Mas é interessante salientar que os moradores entendiam que com essa apro-ximação o conhecimento do povoado iria crescer, e assim as atenções do poder público voltar-se-iam para os problemas enfrentados por essa po-pulação.Como indiquei anteriormente, a Mussuca era alvo de atenção. Esta no-toriedade era aceita pelos moradores, mas em contrapartida esperavam um retorno. E pelo que pude perceber essa “recompensa” não se tratava apenas de valores materiais. Seus visitantes que filmavam, fotografavam, entrevistavam (etc.), quando partiam com seus objetivos alcançados, nem se quer compartilhavam com o grupo. E assim tem sido com o São Gon-çalo, o samba de Pareia, o samba de coco e os cultos afro-brasileiros na localidade. Eles se sentiam vitimados por não terem recebido nenhum

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tipo de retorno do trabalho realizado e conseqüentemente alguns se posi-cionaram com certa desconfiança à minha aproximação.Assim me relatou Marizete dos Santos (presidente de uma das associações locais): “Nós estamos cansado desse povo que vem pra cá pegar nossas coi-sas e não traz nada de volta, vai embora e não dá nem satisfação”. Quan-do ouvi este relato, fiquei preocupado com o andamento da pesquisa de campo. Mas, como já tinha obtido a confiança de alguns e de uma pessoa importante na localidade, seu Sales (o “patrão” do São Gonçalo), achei que era apenas uma questão de tempo. E assim o foi, depois de alguns dias, convivendo com as pessoas do local, foram me conhecendo e aceitando minha presença. Participando das suas atividades sociais, econômicas e de lazer, fui-me dan-do conta da situação em que me encontrava: o contato pesquisador/sujei-to. E a necessidade do afastamento para minha produção foi ficando clara. Sem este entendi que a objetividade de minha produção ficaria comprome-tida. Precisava ter claro meu posicionamento, pois, por vezes me envolvi de tal modo que perdia a noção de meu papel, ou seja, da produção de um conhecimento que se destinava ao meio acadêmico e que, por outro lado, não podia perder de vista a exigência de ser fiel aos dados obtidos. A pretensa objetividade na antropologia, como salienta Fischer (1983), é uma antiga preocupação na formação da antropologia que data do final do século XIX. Malinowski reivindicava a cientificidade da área, defendendo a ida do pesquisador a campo – observação participante – alcançando o “ponto de vista do nativo”. A etnografia inaugurada na ocasião estabeleceu a tentativa de interpretar um fenômeno social com base numa descrição criteriosa do objeto. No entanto, a presença do antropólogo nesta cons-trução se perde nas linhas descritivas, conseqüentemente sua empreitada parece obscurecida por uma busca de detalhes refratados pela tentativa de objetivar a tarefa.A publicação de “Um Diário no Sentido Estrito do Termo” de Bronislaw Malinowski (1997) foi um acontecimento singular na antropologia. Des-te episódio de denúncia – colocou sobre suspeita o “mito do pesquisador como semi-camaleão” -, diversas questões foram levantadas, além de mui-tas críticas dirigidas a um dos principais personagens da antropologia so-cial inglesa. Para Geertz (1997), esta publicação salienta uma questão fun-damental na empreitada do trabalho de campo que remete à produção do conhecimento antropológico:

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[...] se não é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária, a uma capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir e perceber o mundo como um nativo [...] como é possível que antropólogos che-guem a conhecer a maneira como o nativo pensa, sente e percebe o mundo? (GEERTZ, 1997: 86).

De fato, é uma questão epistemológica. Esta explanação sugere pensar em mais outra questão: permanecer durante um relativo período em contato com a vida social do outro, se familiarizando com suas particularidades, confere a possibilidade de adentrar em seu pensamento? Em matéria de etnicidade, até onde chegam os limites do pesquisador que se encontra in-serido no cotidiano de uma coletividade? A tarefa da realização de uma pesquisa etnográfica, perante as informações que se afloram, consiste em um dilema a ser discernido pelos tramites do conhecimento antropológico. Para Leach (1996), é tarefa do antropólogo realizar uma interpretação na tentativa de compreender, “aproximadamente”, as motivações simbólicas que determinam as ações sociais. E tendo em vista que toda descrição é uma interpretação, como indica Roberto Cardoso de Oliveira (1995), e esta se expressa por meio da palavra, qualquer fenômeno social é passível de análise.Atendendo a sugestão de Oliveira (1995: 10), aqui não se trata de se aden-trar na idéia de “compreensão” ou de “explicação”, mas de reuni-las, em uma “única categoria cognitiva” e assim admitir “que a mais singela descri-ção carrega sempre um certo grau de interpretação”.Malinowski, na busca do “ponto de vista do nativo”, pretende justificar a ne-cessidade do trabalho etnográfico. Preocupa-se em demonstrar que esteve lá, demonstrar que o antropólogo participa da vida do nativo, assumindo sua língua, acompanhando suas tarefas e todos os outros elementos que comprovam o “contato cultural”. Este se reflete no texto etnográfico, que é estruturado por palavras. É descrição, logo, uma interpretação, mas esta, até então, conduz a apenas uma voz, aquela de quem escreve. E aí se pode indagar: como inserir o outro no texto?Pensando em diferentes informantes, ou seja, em diferentes exegeses, Fis-cher (1983: 57) alerta para o fato de que “os indivíduos mantêm (sic) dife-rentes posições na sociedade, diferentes percepções, interesses, papéis e de suas negociações e conflitos surge um universo social plural no qual po-

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dem coexistir e competir muitos pontos de vistas opostos”, principalmente quando se trata de questão étnica, pois esta, por sua vez, também é sempre política. Trata-se, assim, de um conjunto de subjetividades que formam o trabalho etnográfico. De fato, se Malinowski defendeu a cientificidade da disciplina, não poderia dotá-la de tantas possibilidades. Dessa forma, como pensar esse problema de captar de maneira objetiva os elementos intelectuais, mo-tivadores e culturais que influenciam a ação social, como a declaração de um pertencimento étnico? De fato, não é uma questão simples a resolver. Fischer (1983) ressalta que é difícil combinar o esforço de alcançar as metas científicas com o fato de considerar o homem como mero objeto, tendo em vista que este age de acordo com suas reflexões. As tentativas de mediar às experiências objeti-vas se deram em diferentes níveis, mas interessa-me aqui apenas o nível da cultura.Nesta direção é que foram se encaminhando os primeiros passos da dis-ciplina rumo à cientificidade. James Clifford (1998) apresenta essa traje-tória iniciada por Malinowski, quando refutou as descrições de “outros” (salienta a necessidade da observação participante), fortalecida por Radcli-ffe-Brown, emergindo assim na metade do século XX uma fusão da teoria geral com pesquisa empírica. Foi, segundo Clifford, com o livro de Bronislaw Malinowski, “Os Argonau-tas do Pacífico Ocidental”, que se estabelece a validade científica do método criado: observação participante. Este novo estilo dependeu de algumas ino-vações institucionais e metodológicas: 1- o pesquisador de campo foi legi-timado público e profissionalmente por meio da cientificidade; 2- o relati-vismo cultural e viver na aldeia por um período suficiente; 3- usar a língua nativa, mesmo sem dominá-la, evitando os intérpretes; 4- investigar certos temas clássicos; 5- uso de “abstrações teóricas” que levava o pesquisador em pouco tempo a construir um arcabouço central ou estrutural do todo cultural; 6- focalizar algumas instituições específicas, ou seja, partes que se chegavam do todo; 7- estas partes tendiam a ser sincrônicas. James Clifford afirma que todas as inovações acima mencionadas podem ser contestadas. A proposta entendida de forma literal é uma fórmula pa-radoxal e enganosa, mas que pode ser montada seriamente em termos de considerações, como uma dialética entre experiências e interpretações, das diferentes posições no contexto estudado.

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Abordando este contexto como o meio social onde se processa a pesquisa ou o estudo antropológico, cabe ressaltar, a princípio, que qualquer inter-pretação sempre estará “... condicionada por um contexto intersubjetivo (a comunidade de profissionais da disciplina)” (OLIVEIRA, 1995: 11). O pes-quisador pode se isentar das amarras da cultura de seu objeto, ele se afasta, escreve o significado do acontecimento, “fabrica” um texto, e então, coloca em jogo sua “imaginação científica”, leva ao contato com a vida do outro seu discurso teórico. Este esboço teórico direciona o diálogo que resultará nas assertivas do texto etnográfico.Para Mariza Peirano (1991) – e corroboro com essa idéia – este arcabou-ço teórico não se desenvolve, por sua vez, de forma uníssona. As diversas controvérsias existentes na história da formação da disciplina, e que pro-duzem os diferentes contextos, promovem o desenvolvimento da “tradição antropológica”. De fato as produções dos antropólogos são postas à prova dos olhares de seus pares. Sua validade ou a objetividade das suas observações científicas, tal como lembra Luis Roberto Cardoso de Oliveira, “depende das possibi-lidades delas virem a ser compartilhadas pelos membros da comunidade de cientistas” (1993: 77-78). Este é também o meu propósito ao colocar em evidência o que venho pensando e produzindo.Em seguida, retomo alguns apontamentos para discutir a questão da cons-trução da identidade étnica, visualizando minha experiência com o grupo e a fundamentação teórica selecionada para a elaboração do estudo.

ENTRE O PASSADO E O PRESENTE: PRELÚDIOS DE UMAIDENTIDADE ÉTNICA

Ponderando as alterações como fazendo parte dos diferentes contextos pelos quais passaram o rito e o povoado, considero importante salientar possíveis implicações destas variações. Quando perguntei a seu Sales (o “patrão”) sobre a questão das mudanças, ele me respondeu com a seguinte interpretação:

Mudou muitas coisas daquele tempo... Mudou se entenda, mudou negócio de enfeite e a roupa também... , mas o tênis é o mesmo... Mudou pulseira, brinco, a calça que naquele tempo era top. Agora, é calça branca..., mas mudou porque o pessoal que estuda, eles dis-

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seram que quando começou era roupa branca... Diz o pessoal que estuda. Quando eu comecei foi com calça top... , mas tudo muda... O pessoal que estuda disse que, quando ele chegou, era como mari-nheiro. Tinha roupa branca e veio numa barca... Deve ter sido pelo rio... e aí apareceu aqui, mas mudou muita coisa... volta (colar), não, volta tem, ainda usa... Brinco ninguém quer usar mais. Pulseira nin-guém usa mais. O bigode ninguém quer tirar... porque era pra tirar tudo, no tempo do finado Paulino tirava tudo... (Depoimento cedido em maio de 2006).

Quando estive realizando o primeiro contato com seu Sales, me foi apre-sentado, o que ele chamou de “documento”. Na verdade, uma cópia do Ca-derno de Folclore, elaborado pela Campanha de Defesa do Folclore Brasi-leiro (DANTAS, 1976). Esta produção recebeu uma valorização significa-tiva. Era considerada um registro do rito, legitimando sua importância no cenário do folclore brasileiro. Na própria versão interna, apresentada sobre o São Gonçalo, percebe-se elementos semelhantes a trechos do texto de Beatriz Dantas (1976). A apropriação da versão etnográfica realizada pelo pesquisador, sobre este ou aquele aspecto da cultura nativa, é algo já registrado na literatura antro-pológica. Neste caso, estou tratando de um trabalho de caráter mais descri-tivo. No entanto, incorpora o poder da escrita na relação com os sujeitos:

Many voices clamor for expression. Polivocality was restrained and orchestrated in traditional ethnographies by giving to one voice a per-vasive authorial function and to others the role sources, “informan-ts”,” to be quoted or paraphrased. Once dialogism and polyphony are recognized as modes of textual production, monophonic authority is questioned, revealed to be characteristic of a science that has claimed to represent cultures. The tendency to specify discourses – histori-cally and intersubjectively – recast this authority, and in the alters the questions we put to cultural descriptions. Two recent examples must suffice. One involves the voices and reading of Native Americans, the second those of women. (CLIFFORD, 1986: 15).

Acredito que o texto elaborado por Beatriz Góis Dantas não pretendia ser validado enquanto versão “nativa”. A ausência dos sujeitos no texto pode ser entendida como um procedimento normal no período em que foi reali-

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zado o estudo. Ressalvas devem ser dadas ao trabalho da antropóloga que, no período do encontro com o grupo, algumas preocupações não perpas-savam neste campo:

[...] identidade é um problema que não se colocava pra mim quando eu fiz a pesquisa. E se colocasse hoje também, vejo identidade como uma coisa a ser construída. Por exemplo: não expressarem naquele momento vinculações com os cultos afros. Hoje, é bem possível que você encontre essa vinculação, porque eles também se apropriam das categorias que estão sendo usadas pelos pesquisadores e pela, enfim (...) Nessa construção de identidade, o grupo é um repertório... (Bea-triz G. Dantas, depoimento cedido em novembro de 2005).

Contudo, a discussão sobre identidade não se colocava bem como sobre a prerrogativa da presença do sujeito no texto. Estou inclinado a pensar na possibilidade de, naquele momento, a variante local se apresentar. Ao se deparar com suas versões, os sujeitos poderiam sinalizar para uma com-preensão de sua prática, partindo de suas próprias categorias. Seria possível ter tomado outro rumo à associação que se fez no tocante à “herança africa-na”? Por outro lado, esta possibilidade poderia trazer à tona diferentes nar-rativas locais, o que seria um passo fundamental para entender as relações internas do grupo. No meu entendimento, isso é a chave da interpretação do processo de construção da identidade étnica em questão.Mesmo não adotando esta perspectiva polifônica, compreendo ser impor-tante as noções dos atores. O que cabe é sim indagar como e por que assu-mir uma versão externa, dando-lhe o atributo de verdade? Será que o fato de assumirem esta versão do rito preenche a falta da oralidade ou consiste em ação circunstancial? Na medida em que o rito se desloca da presença dos “guardiões” da memória - os possíveis narradores dessa história - favo-rece as mudanças na direção de uma adequação com o cenário da socieda-de geral: a folclorização, ou seja, um processo que vem se desenvolvendo com grande parte das expressões populares (religiosas ou não).A presença de espaços de transmissão da história oral aparentemente – pois não posso considerar como sendo a realidade – é restrito ou tem pouca ocorrência no local. Quando me fazia presente nas casas dos moradores com o intuito de conversar e conhecer suas histórias, sentia a falta da pre-sença dos jovens. Mesmo fora desta situação, me parece que essa prática tem sido a cada dia menos freqüente no povoado. Os interesses das novas

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gerações estavam muito próximos dos valores difundidos na sociedade ge-ral. Afinal, não se tratava de um agrupamento distante das zonas urbanas. Mantinham, pelo contrário, uma relação de proximidade muito forte com essa dinâmica social. Dessa forma, pode-se inferir que faltavam pessoas, por outro lado, com a disposição de narrar suas experiências ou mesmo aquilo que tinha sido repassado de forma oral. Walter Benjamim (1994) sugere que a prática de narrar historia ou experiências é uma arte em “vias de extinção”. A razão desta ausência seria as novas facetas do mundo moderno.Contudo, é preciso salientar que também existia a falta de interesse no ato de ouvir. Para as novas gerações, a visão dos mais velhos se constituía como reminiscência que pertencia a um tempo pretérito. O fato de seu Sales ter assumido o que contava o texto da antropóloga, como a ser a versão da história sobre o rito, pode ter relação com a idéia de não conhecerem seu próprio passado. Para Benjamim, o narrador é fiel a sua época e onde se pretende gerar uma face nova, essa fidelidade precisa ser negligenciada:

Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades [...] A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela correspon-de à musa épica no sentido mais amplo (BENJAMIM, 1994: 210-211).

Se no contexto atual da Mussuca estive diante de polêmicas entre as mu-danças e o sentimento de permanência, o interesse em manter aquilo que se narrava iria de encontro à postura que a dança do São Gonçalo vem assumindo nos últimos anos. Eis um aspecto muito interessante em se estu-dar, que foi encontrado na Mussuca. Como estive tratando da participação do rito na construção da identidade afrodescendente, presumo ser viável entender que existe, de forma geral, a assunção do rito enquanto uma mar-ca identitária local, porém, com duas faces. Aqueles que recorriam a ele-mentos do passado na tentativa de se sentirem os mesmos (HALBWACHS, 1990). Por outro lado, existia uma alusão conveniente a aspectos deste mes-mo passado, mas assumindo as mudanças na ação e reforçando a identi-dade na narrativa. O aspecto recorrente desta perspectiva era a ligação do

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rito com os “tempos da escravidão”. O que remetia a uma suposta origem difícil de definir, mas fácil de ser incorporada, tendo em vista a notoriedade que girava em torno da Mussuca enquanto um agrupamento originário de quilombo.Percebe-se, assim, que a situação e os rumos das relações estabelecidas de-finiam a que passado recorrer em uma ou outra situação. Esta população manteve um contato com um importante agente externo no que tange à mobilização para o “resgate” de uma identidade afrodescendente. Durante a década de 1990, a localidade foi alvo privilegiado do Movimento Negro, que defendia que a Mussuca era “um pedaço da África em Sergipe”. Po-rém, ainda no momento desta relação não se encontrava – segundo relatos de integrantes do MN e de pessoas locais – a tendência em assumir esse auto-reconhecimento. Motivações atuais não se faziam presentes naquela ocasião. De fato, a questão étnica é relacional e situacional, como defende Barth (1998: 195):

Apenas os fatores socialmente relevantes tornam-se próprios para diagnosticar a pertença, e não as diferenças “objetivas” manifestas que são geradas por outros fatores. Pouco importa quão desseme-lhantes possam ser os membros em seus comportamentos manifes-tos – se eles dizem que são A, em oposição a outra categoria B da mesma ordem, eles estão querendo ser tratados e querem ver seus próprios comportamentos serem interpretados e julgados como de As e não de Bs (BARTH, 1998: 195).

Os fatores encontrados na Mussuca e que podem ser considerados moti-vadores desta reivindicação se constituíram na demanda de uma situação social pela qual passava esta coletividade, a envolver a infra-estrutura e atendimentos básicos no plano social. A procura de uma aquisição material sempre se fez presente nas intenções deste grupo social. O que pareceu se apresentar também era a tentativa de se organizar socialmente por meio de um novo quadro de relações, ou seja, constituir-se enquanto “quilombola”, além de representar um novo arranjo interno, requeria outras formas de diálogos com outras partes importantes imbricadas na questão.Apesar de não se configurar um conflito, a relação com os donos das fazen-das demonstrava o desfavorecimento desta população para com as ativida-des laborais desenvolvidas em conjunto com esses proprietários: o arrenda-mento de terras para a extração de pedras e para plantações. Nas duas ativi-

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dades, a distribuição econômica era desigual. Cerca de 20% da produção da pedreira ficava com os trabalhadores, outra parte era para os caçambeiros (motoristas dos caminhões), o gerente do local e com o dono das terras. Este mapa socioeconômico por si só sugere a articulação da população a fim de promover mudanças. Assim, dentro do conjunto de mecanismos à disposição local, valer-se da notoriedade da dança do São Gonçalo com o intuito de se fazer presente nos cenários da sociedade mais geral constituiu-se em uma estratégia social. Certamente, existem outros fatores que podem ser acrescentados à esta situação. Considero que todo este processo foi desencadeado quando o grupo per-cebeu o “sucesso” adquirido nas apresentações do São Gonçalo ao longo dos anos. Aquilo que era apenas uma “brincadeira”, uma “festa” ou uma “representação” passou a representar aquela população, onde a dança fosse organizada. Quando se enfatiza que é o “São Gonçalo da Mussuca” e não qualquer São Gonçalo elabora-se uma idéia de fronteira em relação a ou-tros grupos que realizam este culto. A fronteira fica demarcada pelas suas particularidades, defendidas como singulares, o que seria apenas possível diante das características dos outros. Definida em termos de pertencimento étnico, essa defesa abarca o conjunto de critérios que o grupo seleciona para produzir e reproduzir sua individualidade. Meu principal interlocutor e “fi-gura de frente”, Erivaldo Santana dos Santos, me relatou uma nova versão sobre o rito, acrescentando alguns aspectos, e marcando sua singularidade:

Primeiro, foi que veio da escravidão. Quando os negros que trouxe-ram de Portugal, é... Há muitos anos até eu mesmo... até o chefe do grupo não conseguiu distinguir em que geração eles vieram... que século, mais ou menos. O século dezessete, dezoito... No final do sé-culo dezessete. Já tem muito tempo isso... eu sei é que é descendente de negro. Vieram lá de Portugal pra cá. Os escravos que trouxeram. Viu eles se apresentando lá e trouxeram pra Sergipe... A gente é di-ferente... O ritmo, a dança, o traje, vestimenta, e o ritual de violões, cavaquinho... Você só vê isso no São Gonçalo da Mussuca (Depoi-mento cedido em junho de 2006).

Certamente, ele se referia à forma que era executada a dança e o culto em geral. Tendo em vista que estes elementos, como foram apresentados, fa-ziam parte da composição da maioria dos grupos. Porém, a forma de dan-çar e os cantos são características que marcam algumas diferenças. Mas o

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que realmente distinguia a dança do São Gonçalo da Mussuca era o fato dos homens se vestirem com roupas femininas. E, aparentemente, sempre foi assim. Dona Antonieta explica como acontecia na década de 1950, quando acompanhava o rito:

Quando os homens iam se vestir, as mulheres que preparavam eles [...] a gente levava nossas roupas e vestia neles [...] por cima da cal-ça (risos) era a saia, a anágua, uma blusa, lenço, xale. Era tudo de qualquer cor, só depois que começou a dançar fora é que teve esse uniforme. Ainda tinham os brincos, as pulseiras e os colares até se botava um pouco de pó [...] e eles tinham que tirar a barba e o bi-gode. Não podia dançar com a cara suja, tinha que tá com a cara limpinha, parecendo mesmo uma mulher [...] Só você vendo! Mas pra aprontar os homens tinha que ser ou a mulher ou alguém da família. Não era qualquer uma não [...] eu aprontava meu marido e meu irmão, (a)depois que ele casou é que foi a mulher (Depoimento cedido em maio de 2006).

É uma associação com a lenda do santo. Diziam que ele se vestia de mu-lher e, assim, também ocorria na povoação da Mussuca. Para reforçar esta particularidade, evocando ainda o passado longínquo, associava-se à vinda de Portugal, trazida pelos escravos. Essa ligação promove sua extensão ao povoado. Torna-se, assim, uma marca identitária do lugar.

Mussuca, eu to falando em torno do grupo né, a divulgação de Mus-suca com o grupo, eu acho que aumenta mais ou menos uma por-centagem de 80%, a população. O grupo já saiu pra fazer varias apre-sentações, em vários estados. Recebe o nome de Laranjeiras... mas é, sempre tem o nome que eles divulgam... Mussuca.... porque é como se fosse uma caixa postal da Mussuca, em termo do grupo do São Gonçalo, é principalmente quando agente sai fora, muitos pessoal pergunta: “eu posso participar do grupo?” Ai primeiramente, não! Porque o grupo já vem de hereditariedade, há muito tempo de famí-lia, de pai, de neto... pai e filho (Erivaldo, idem).

Com a “hereditariedade” como fator de transmissão do cargo, o grupo es-tabeleceu o parentesco para definir a inserção das novas gerações no rito. Assim, se constituiu em fronteira étnica, o que, ao mesmo tempo, não ga-rantiu a continuidade de suas características.

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Quando as unidades étnicas são definidas como um grupo atribu-tivo e exclusivo, a sua continuidade é clara: ela depende da manu-tenção de uma fronteira. As características culturais que assinalam a fronteira podem mudar, assim como podem ser transformadas as características culturais dos membros e até mesmo alterada a forma de organização do grupo. Mas o fato de haver uma continua dicoto-mização entre membros e não-membros nos permite especificar a natureza da continuidade e investigar a forma e conteúdo culturais em mudança (BARTH, 2000: 33).

Creio que outro viés possível de investigação são as atitudes de alguns membros perante os caminhos da mudança. O antigo patrão, finado Pauli-no, pode ser considerado um agente de mudanças, pois, tudo começou em seu comando. Em 1973, ele aceitou o convite de levar o grupo a fazer parte da Festa de Santo Reis na sede do município (Laranjeiras). Esta festivida-de não era, certamente, desconhecida dos moradores da Mussuca. Isso me leva a pensar na possibilidade de que existia uma pretensão previa de se fazer presente na solenidade. Pode ter sido um momento oportuno e, as-sim, concretizado um anseio coletivo. Sendo assim, o precursor desta ino-vação promoveu, internamente, a conexão do rito com a sociedade geral. De algum modo, esta nova faceta influenciou a forma do grupo se perceber. Barth considera esta situação uma oportunidade para examinar a forma de como a identidade étnica se relaciona com a organização do grupo:

[...] os inovadores podem optar por enfatizar um nível de identidade entre os vários fornecidos pela organização social tradicional. Tribo, casta, grupo lingüístico, região ou Estado, todos têm traços que os tornam uma identidade étnica primariamente adequada para a re-ferência de grupo, e o resultado final irá depender do modo como os outros podem ser conduzidos a acatar tais identidades e também da fria realidade dos fatos táticos (BARTH apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998: 221).

Neste caso, a manutenção de traços, tal como o da hereditariedade e outros já apresentados aqui, permitiu que os membros do grupo aceitassem na ocasião as mudanças que foram apresentadas. Mesmo se passadas algumas décadas, a inovação tivesse gerado alguns descontentamentos. O cenário mais recente demonstrou certa insatisfação em torno das variações, o que também se configurou em outro contexto.

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Se na década de 1970, o grupo estava vivendo o processo de folclorização do rito, a situação começou a apresentar novas facetas no final da década de 1990. Passou a se observar a presença de novos agentes externos, o que proporcionava novas possibilidades. Assim, impulsionados pela relação rito/povoado e valendo-se de associações realizadas no contexto anterior, o conjunto tomou outras nuances. Foi o momento da dita etnicização do rito e, consequentemente, da localidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como salientei, o processo de etnicização da Mussuca tem relação dire-ta com a dança de São Gonçalo. Por meio deste rito, o grupo incorpo-rou também a categoria quilombola. Diferentemente de tempos passa-dos, pois, ser quilombola não era uma atribuição aceitável. De qualquer maneira, a questão quilombola no Brasil atualmente apresenta o direito étnico fundiário como prerrogativa. Isso independe do reconhecimento de relação do rito com os tempos da escravidão ou não. Sabemos que o critério da “auto-definição”, segundo o Decreto 4.887/03, é o mecanismo para se obter a certificação de “comunidades remanescente de quilom-bos”. Para tanto, a comunidade requerente envia à Fundação Cultural Palmares (FCP) o pedido de reconhecimento e esta encaminha ao Incra o prosseguimento do processo de regularização fundiária.Foi, assim, que também aconteceu na Mussuca. Em janeiro de 2006, a certidão de auto-reconhecimento foi emitida pela FCP. Quando o Incra realizou a primeira reunião para entrega do documento, eu estava em pleno trabalho de campo.Esse encaminhamento contou com a motivação de personagens da polí-tica partidária estadual, mas que tem relações com o movimento negro do estado. Após o acontecido, coube às pessoas representantes internas presenciarem as contestações. Uma preocupação mais premente foi o fato de que a questão envolve terras. O receio de algumas pessoas de se confrontar com o proprietário era visível. D. Maria Santana dos Santos (Mariposa do São Gonçalo) assim relatou sua preocupação: “... essas me-ninas não sabem nada. Nasceu um dia desses e quer dizer que teve qui-lombo aqui... Agora, vai mexer com esses donos de fazenda...”. Curioso é que pessoas que narravam a existência do rito desde o período da es-cravidão, colocaram-se, então, contra a versão de que a localidade tinha sido um quilombo, o que por sua vez, não interferiu no processo, pois,

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certamente a idéia é de quilombo “ultramarino”. Segundo o historiador Jacques Le Goff:

[...] a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (LE GOFF, 1996: 423).

Diante de algo supostamente problemático, a relação com o passado escra-vocrata foi omitida. Assim, recriou-se a idéia de ser ou não ser quilombola. O agrupamento encontrava-se dividido entre os que queriam ser quilom-bolas e os que não desejavam participar. Para alguns, principalmente os “de fora”, não restava dúvida: a Mussuca era um quilombo. Para outros, porém, principalmente “de dentro”, simplesmente “... as pessoas foram chegando, pegando um pedaço de chão e foi ficando”. Seja como for, o cenário estava posto e a dinâmica local passou a apresentar mais esse dado. A Mussuca passou a fazer parte do conjunto dos “remanescentes das comunidades de quilombos” no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O COCO DE ZAMBÊ E A EMERGÊNCIA ÉTNICA QUILOMBOLA EM SIBAÚMA (RN)

Cyro H. de Almeida Lins1

O trabalho de pesquisa que estou aqui apresentando de forma breve teve por objetivo investigar o papel desempenhado pelo coco de zambê no processo de emergência étnica quilombola de Sibaúma, povoado praieiro, distrito do município de Tibau do Sul (Rio Grande do Norte). O coco de zambê foi-me apresentado pelos moradores de Sibaúma como sendo um de seus costumes mais antigos e “autênticos”. Alguns defendem que a brincadeira surgiu entre os antigos moradores – escravos fugidos ou libertos que serviram como mão-de-obra nos engenhos da região. Chamou-me a atenção o fato de que em meio a dissensões internas condizentes ao processo de regularização fundiária como território quilombola, o coco de zambê aparece como um dos poucos elementos consensuais no que se refere à afirmação da ancestralidade comum do grupo. Dito de outra forma, a prática do coco de zambê nos foi apresentada como uma característica específica e ancestral do grupo tanto pelos que defendem quanto por aqueles que são contrários ao reconhecimento territorial. É como se o coco de zambê estivesse além de qualquer divergência política existente no grupo. Essa brincadeira, que até então havia sido abandonada no povoado, passa a ser novamente praticada por alguns indivíduos, notadamente aqueles diretamente envolvidos nas demandas de direitos coletivos, em particular a da titulação de seu território com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. São membros do Grupo Filhos de Zumbi (GFZ), ligados à Associação de Remanescentes de

1. Mestre em Antropologia Social – PPGAS/UFRN, pesquisador do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-riograndenses.

CAPITULO IX

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Quilombolas da Praia de Sibaúma (ARQPS), os principais interlocutores de nossa pesquisa.Partimos então da idéia de que uma etnografia da memória do coco de zambê, bem como do seu atual processo de “revitalização interna”, possibilita compreender algumas formas duráveis de sociabilidade, modelos de representação da história e formas de relacionamento do grupo com a sociedade envolvente. Posto isto, percebemos que o coco de zambê está diretamente relacionado (a) com as narrativas de origem do grupo; (b) com os modos de sociabilidade, especialmente no que tange à regulação de conflitos e, finalmente, (c) com o atual processo de (auto) reconhecimento étnico quilombola. Desta forma, o coco de zambê de Sibaúma deve ser entendido para além de seu contexto atual, onde se apresenta como um dos instrumentos por meio do qual o grupo investe num processo político e reivindica um reconhecimento de sua singularidade cultural pela retomada de uma prática vista como central para sua história. Mais do que isso, o coco de zambê, entendido como uma prática social que é tida como tradicional e associada à própria identidade do grupo, consiste em um elemento por meio do qual o grupo organiza sua experiência no mundo (SAHLINS, 1997). De fato, iremos verificar que as formas de experiência vivida coletivamente incluem tanto os modelos de sociabilidade interna como as relações estabelecidas com a sociedade envolvente (WACHTEL, 1990). Entender a complexidade do coco de zambê na realidade social presente e passada de Sibaúma é compreender os mecanismos pelos quais o grupo funda uma crença na continuidade de sua identidade e na constância de seus ambientes de ação social e material (GIDDENS, 1991: 95).Sendo assim, nossa investigação pretendeu apreender as maneiras pelas quais o coco de zambê de Sibaúma constitui, através das narrativas a seu respeito, uma linguagem por meio da qual se reafirma uma ancestralidade comum e se transforma em um instrumento político de reconhecimento identitário quilombola. A investigação priorizou entender de que modo esta brincadeira, que até então havia deixado de ser praticada pelos moradores de Sibaúma, estando presente apenas na memória dos mais antigos, passa a ser “reativada”, revalorizada e ressignificada pelo grupo no contexto das mobilizações em torno do reconhecimento do território quilombola. Procuramos, no decorrer da pesquisa, entender as dinâmicas de apropriação deste “costume ancestral” a partir da análise de diversos registros orais e da observação de diferentes situações ocorridas ao longo

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de um intenso período de convivência com o grupo, bem como desde um trabalho de assessoria desenvolvido junto ao GFZ. Com base nestes registros, buscamos apreender a realidade atual do coco de zambê de Sibaúma e analisar a importância que o coco de zambê tem para o grupo. Como se constrói uma “tradição” em torno de uma manifestação cultural que integra um projeto político local? O que a brincadeira, antes analisada como folclore, tem a ver com a emergência étnica local? Estas são algumas das questões que norteiam nossa investigação. Partindo de uma abordagem que prioriza a análise dos aspectos imbricados na constituição de uma memória social referente às brincadeiras de coco de zambê, tentaremos visualizar o que “permanece vivo no presente [...] reconstituir a película do devir com suas repetições, suas latências, suas lacunas e suas inovações” (WACHTEL, 1990: 21). Apresentamos aqui parte dos resultados de uma experiência de pesquisa que foi se transformando numa parceria entre os moradores de Sibaúma em um período de convivência que teve início em meados de 2006.

A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SIBAÚMA

Sibaúma é uma praia, distrito do município de Tibau do Sul, localizado no litoral sul do Rio Grande do Norte, distante cerca de 90 km da capital Natal. Ao sul, Sibaúma é separada do município de Barra do Cunhaú pelo Rio Catú; ao norte, faz extrema com a praia de Pipa (distante cerca de 5 km) internacionalmente conhecida e um dos principais roteiros turísticos do estado. Pipa se caracteriza pela forte especulação imobiliária e uma estrutura turística de hotéis e restaurantes que fez sua paisagem mudar radicalmente ao longo dos últimos 15 anos. Para grande parte da população de Sibaúma, cerca de 800 pessoas, Pipa é um exemplo a ser seguido para que possam alcançar o “progresso”: é lá onde a maior parte da população trabalhadora ativa de Sibaúma se encontra empregada; a maioria com ocupações em serviços ligados ao turismo hoteleiro (camareira, vigia, porteiro, jardineiro, etc.). Alguns são empregados na construção civil e muitos são “caseiros” em Pipa ou até em Sibaúma ao tomar conta das casas dos vários “veranistas” que passam curtas temporadas em suas casas de praia. Vale salientar que uma outra importante fonte de renda para o grupo é oriunda dos programas sociais do governo federal - bolsa escola, bolsa família, dentre outros.

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Ao nos aproximarmos do povoado, especialmente pela rodovia estadual RN 003, logo podemos perceber os sinais da especulação imobiliária no local. Existem vários terrenos e casas à venda, residências luxuosas pertencentes a pessoas externas e propriedades privadas, cujo acesso é proibido. Na entrada do povoado, há uma placa de boas-vindas, indicando que Sibaúma está localizada em uma Área de Preservação Ambiental (APA). Além disso, a mesma placa contém explicações sobre a etimologia da palavra Sibaúma: “Do tupi, árvore de fibras para fazer cordas. Ou concha preta, molusco de água doce”. E sobre a origem do povoado: “Historicamente, o local era um antigo quilombo”. Passemos agora a considerar com brevidade o contexto político de emergência étnica em Sibaúma, identificando os diversos agentes – indivíduos e instituições – que estiveram envolvidos no processo. Este é o contexto a partir do qual nossa pesquisa foi desenvolvida.

CONTEXTO POLÍTICO LOCAL

Em 2005, Sibaúma é reconhecida e certificada pela Fundação Cultual Palmares como uma “comunidade remanescente de quilombo”2. No mesmo ano, o reconhecimento foi declarado em uma audiência pública ocorrida no povoado. Desde então, o grupo passa a ser beneficiário de políticas públicas direcionadas às populações quilombolas e pleiteia a titulação de seu território, conforme previsto no artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988. Esse processo foi iniciado em 2006 a partir da elaboração do relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-cultural do grupo. Na ocasião, fiz parte da equipe de elaboração do relatório antropológico, sob a coordenação da antropóloga Julie Cavignac (CAVIGNAC et al. 2006)3.Demos início aos trabalhos de pesquisa para o relatório antropológico em janeiro de 2006. Nossa equipe foi apresentada em uma reunião pública, convocada pelo Incra, e que ocorreu na escola local. Naquele momento, pudemos perceber que havia um exacerbado conflito interno concernente ao processo de titulação. Grande parte do grupo se opunha à titulação de seu território, acreditando que isso poderia impedir o progresso de Sibaúma.

2. De acordo com o decreto nº 488-7 de 20 de Novembro de 2003. 3. O Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sócio-cultural integra o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) de territórios quilombolas.

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O argumento se apoiava no fato de que, uma vez tituladas, as terras não podem mais ser vendidas, o que supostamente poderia afastar possíveis investidores. Esta foi a primeira de várias reuniões conturbadas que ocorreram posteriormente em Sibaúma, na tentativa de mediar os conflitos e levar esclarecimentos sobre o processo de titulação. Vários representantes dos órgãos responsáveis pelo processo visitaram o povoado: representantes do Ministério Público Estadual, da Fundação Cultural Palmares, do Incra, da Secretaria do Patrimônio da União, Ibama, Idema.Os moradores favoráveis ao processo de titulação eram institucionalmente representados pela Associação de Remanescentes de Quilombolas da Praia de Sibaúma (ARQPS). A ARQPS era liderada por Francisco Nicácio, conhecido como Mestre Tiego, mestre de capoeira angola. Mestre Tiego não nasceu em Sibaúma, mas chegou ao lugar em meados da década de 1990, e é apontado como o principal responsável pelo reconhecimento do povoado como comunidade quilombola. Também eram lideranças da ARQPS os irmãos Sérgio, Laelson e Jaelson Caetano. Estes formaram junto de Mestre Tiego o Grupo Filhos de Zumbi, que realiza ações de valorização da cultura local. Dois anos depois de concluído o relatório antropológico de Sibaúma, o processo regularizador parecia estar parado. O assunto da titulação das terras foi perdendo fôlego diante da descontinuidade das ações dos órgãos responsáveis pelo processo. As lideranças estavam afastadas e as mobilizações cessaram. Foi esse o panorama que presenciei em Sibaúma quando lá retornei em 2008, dessa vez com outro interesse de pesquisa: o coco de zambê.

IDENTIDADES E ETNOGÊNESES

Constatamos que, mesmo antes de sua “nomeação” por parte do Estado, Sibaúma já se reconhecia enquanto um grupo distinto de seus vizinhos. Sua identidade, entendida aqui enquanto “uma afirmação do nós diante dos outros” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976), já era declarada e reconhecida por eles mesmos, mediante a afirmação de uma trajetória histórica e de uma origem comuns. Desta forma, atentamos para o fato de que, embora nossa proposta seja a análise de uma situação especial, cravada em um tempo e em um espaço particulares, não podemos perder de vista o fato de que a (re) construção de uma identidade diferenciada é “um processo histórico constante que reflete a dinâmica cultural e política das sociedades anteriores ou exteriores ao desenvolvimento dos Estados nacionais da atualidade. É

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o processo básico de configuração e estruturação da diversidade cultural humana” (BARTOLOMÉ, 2006: p.40).Dessa forma, Bartolomé chama atenção em relação ao (re) surgimento de diferentes grupos étnicos como um fenômeno em contínua construção e não apenas um dado da contemporaneidade. Contudo, é importante lembrar que, os processos de surgimento ou reelaboração de identidades étnicas são todos perpassados por particularidades advindas dos contextos em que surgem. É nessa perspectiva que o autor operacionaliza a noção de “etnogêneses” (no plural), ressaltando o aspecto de constância histórica, mas, também, o seu caráter conjuntural. Trata-se de um processo de reelaboração de uma identidade cujos fundamentos se encontram não apenas num processo do presente, mas, especialmente no devir histórico do grupo, tendo como base elementos tomados de seu passado e ressignificados no presente, tal como é o caso do coco de zambê.Concebendo a identidade social como “uma ideologia e uma forma de representação coletiva”, Roberto Cardoso de Oliveira atenta para o caráter contrastivo das identidades étnicas, ou seja, trata-se de “uma identidade que surge por oposição, [...] é uma “afirmação do nós diante dos outros” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 5). Caberia, então, aos antropólogos entender de que forma e em que contexto social se dá tal (auto) afirmação, levando imprescindivelmente em conta o “sistema de relações sociais que deram origem à tal ou qual identidade” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 51). Nessa (auto) afirmação de que fala Cardoso de Oliveira, encontramos elementos que são acionados e que ajudam a evidenciar as diferenças: a afirmação de uma identidade étnica, mesmo se configurando como um processo político inserido em um contexto particular, é erigida a partir de uma gama de elementos partilhados pelo grupo, precedentes a qualquer mobilização política voltada para objetivos específicos, tal como a titulação do território. Perceberemos que o coco de zambê é um destes elementos. Trata-se de uma brincadeira antiga, que é atualizada num contexto de mobilização política em torno da afirmação de identidade quilombola. Sendo, assim, vemos que “a etnicidade se vale de objetos culturais para produzir distinções dentro das sociedades em que vigora” (CUNHA, 1994: 122).Procuramos, assim, entender a emergência étnica quilombola de Sibaúma não só na sua relação com o Estado ou a sociedade envolvente, mas também a partir da história do próprio grupo e das suas próprias categorias

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de auto-definição. Levando em conta as dinâmicas internas do grupo, suas (re) invenções, suas apropriações e manipulações de referentes simbólicos na constituição de sua identidade, procuramos entender o(s) sentido(s) dado(s) por estes atores ao processo político no qual estão inseridos.

OS COCOS

Coco é um termo genérico que designa um tipo específico de manifestação cultural tida como característica da região Nordeste. No entanto, está presente também em outras regiões do Brasil. Talvez sua caracterização como uma manifestação “nordestina” ocorra devido sua popularidade nesta região, especialmente em meio a um público menos abastado e geralmente (mas não exclusivamente) de regiões rurais. O termo “coco” designa ao mesmo tempo um ritmo e uma dança. Todo coco é, sim, cantado, porém nem sempre é dançado, existindo, assim, uma grande variedade de cocos, classificados segundo diferentes critérios, como a composição instrumental (coco de zambê, coco de ganzá, coco de vola, etc.); a estrutura poética (coco de oitava, coco de décima); o tipo de coreografia dançada (coco de roda, coco de ciranda, samba de coco), dentre outras coisas. Enfim:

Os cocos assumem várias feições, podendo se configurar como can-to acompanhado apenas por palmas e batidas dos pés; canto com acompanhamento de pandeiro ou ganzá; só texto escrito, quando integra a literatura de folhetos; dança acompanhada de versos can-tados ao som de bumbos, ganzá e outros instrumentos de percus-são; cantos integrados a cultos religiosos afro-brasileiros (AYALA & AYALA, 2000: 13).

Segundo nossos interlocutores de Sibaúma, o coco seria antes de tudo uma brincadeira, uma forma de divertimento, sobretudo para os homens, que procuravam distração depois das duras jornadas de trabalho nos engenhos da região; sendo assim, procuro me referir aos cocos não como uma manifestação, mas me utilizarei da denominação “nativa” de brincadeira. O coco de zambê é uma brincadeira dançada, as duas coisas (brincadeira e dança) estão intimamente relacionadas. O coco de zambê apresenta características muito peculiares, que serão apresentadas de forma mais extensa depois, mas que podemos adiantar alguns elementos, tal como a participação exclusiva de homens, que entram

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um de cada vez na roda, executam passos livres e escolhem seu substituto na roda com uma umbigada ou uma vênia com o pé; o coco de zambê se aproxima da coreografia do lundu, descrita por Luís da Câmara Cascudo: “Dança e canto de origem africana, trazidos pelos escravos bantos […] No Brasil, a coreografia evoluiu para o samba, solto, individual, sacudido, enfim a batucada, em que o dançador é um competidor” (2000: 341). A dança é uma característica fundamental de algumas formas de cocos, certas variações são denominadas a partir de sua coreografia (ex.: coco de roda, coco de parelha, samba de coco). O coco de zambê é também denominado por nossos interlocutores como dança do zambê, o que nos faz inferir que a dança é elemento fundamental da brincadeira. A música, como um elemento indispensável para a dança, também apresenta uma particularidade no coco de zambê. De fato, o que torna o coco de zambê mais distinto de outras formas dançadas de cocos (o coco de roda, o samba de coco, o coco de parelha, etc.) é a sua forma de dançar, caracterizada por uma coreografia individual e composta exclusivamente de homens; assim como sua música, que apresenta uma estrutura rítmica bastante sincopada e letras com estrofes mais curtas se comparadas às outras variedades de cocos. Apesar de serem muitas vezes vistas como fenômenos separados, música e dança são elementos intimamente ligados. Aportamos nossas reflexões na concepção de dança e música como “sistemas expressivos que contêm seus próprios objetivos ao mesmo tempo em que são um meio para comunicação e socialização” (RONSTRÖM, 1994: 06). A brincadeira do coco de zambê sintetiza estes dois elementos – música e dança – tornando-se um meio no qual os indivíduos de Sibaúma experimentam um sentimento de unidade. O contexto da brincadeira permite que as eventuais diferenças entre os indivíduos que a compõem sejam temporariamente suspensas, forjando assim sentido de comunalidade. A concepção sobre dança e música da qual lançamos mão nos afasta da perspectiva folclórica que, ao se preocupar em encontrar nestes elementos algo representativo de uma “identidade nacional autêntica”, acaba negligenciando o caráter comunicativo e socializante dos fenômenos em questão.Já com o tratamento dos folcloristas brasileiros, o coco foi uma dessas “coisas” tomadas como “traço” da cultura nacional de que fala Richard Handler a respeito dos elementos da “cultura québecois” (1984: 61). Houve, de fato, um investimento intelectual por parte de estudiosos empenhados em delinear as feições da identidade nacional brasileira, tomando como objeto os costumes mais “tradicionais” e “autênticos”, herdados das “raças

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originárias” de nossa sociedade – índios, brancos e negros. O coco, por sua vez, sintetizava de forma emblemática, sobretudo, dois destes elementos – o índio e o negro – tornando-se um dos principais representantes da “autêntica” cultura brasileira, mais especificamente, nordestina. Considerado como uma “síntese folclórica” de diferentes ritmos e danças herdados de índios e negros, o coco adquiriu notoriedade entre o círculo de intelectuais e pesquisadores do folclore nacional, especialmente em meados do século XX. Em sua viagem às regiões Norte e Nordeste do país em 1928 e 1929, Mário de Andrade pôde registrar diversas manifestações culturais, especialmente alguns cocos que foram descritos e agrupados em seu célebre livro, intitulado “Os Cocos” e preparado por Oneyda Alvarenga (2002). Na viagem, Mário de Andrade se encantaria com o cantador de coco norte-riograndense Chico Antônio, sobre quem escreveu três crônicas em “O turista aprendiz” e a quem dedicou um artigo no jornal “A República” (ALVARENGA, 2002). Contudo, Mário de Andrade não foi o único a tratar com mais atenção o tema dos cocos, pois autores como Théo Brandão, Aloísio Vilela, Manoel Diégues Júnior, Mariza Lira, entre outros, contribuíram para a construção do coco como um “objeto” do folclore nacional. O tema da “identidade nacional” foi uma preocupação frequente dos estudiosos do folclore e formulava-se com base no que Roberto Da Matta (1987) denominou como “a fábula das três raças”. Índios, negros e brancos seriam, portanto, as matrizes étnicas do “povo” brasileiro e é nesse “povo” - de preferências o mais “isolado” e, portanto, mais próximo de suas condições originais - que a maioria dos folcloristas buscavam “as raízes autênticas e genuínas que permitiam definir sua cultura nacional” (VILHENA, 1997: 23). Os cocos são apreendidos pelos autores como herança dessas “raças originárias” sendo, então, englobado como um “fato folclórico” e, como tal, necessário que seja identificado, descrito, coletado e preservado.

HISTÓRIAS DO ZAMBÊ

Apesar das especulações dos folcloristas, não é possível afirmar com segurança quando surgiu o coco de zambê, os registros históricos não são abundantes, e são pouco sistematizados; o mesmo pode ser dito sobre a origem do próprio povoado de Sibaúma. Apesar dessa escassez de registros escritos, encontramos diversas narrativas que dão conta de descrever o surgimento da brincadeira e do próprio grupo. Contudo, o conteúdo dessas narrativas não pode ser tomado como uma descrição dos fatos históricos,

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mas uma interpretação destes por parte de quem os narra. De qualquer modo, não é nosso objetivo investigar com precisão a origem histórica da brincadeira ou atestar a veracidade dos fatos narrados. Estamos sim interessados em apreender as representações dos nossos interlocutores a respeito do seu passado e o lugar que o coco de zambê ocupa nestas representações. Para tanto, recorreremos à uma análise de diversas narrativas a respeito das origens de Sibaúma e do coco de zambê.A descrição de hábitos e manifestações “exóticas”, tal como o coco de zambê, cara aos estudos folcloristas, caracteriza a maioria dos estudos sobre “o negro” no estado do Rio Grande do Norte. A redução destes atores a categorias estatísticas e caricatas – como “caboclos”, “mestiços”, “camponeses” ou “sertanejos”, sem que se proceda a um exame crítico de sua situação, aprisionam estes a modelos românticos de leitura da história e do presente dos grupos analisados e remetem a um passado estanque do qual os interessados têm dificuldade em escapar. Segundo a historia “oficial” do Rio Grande do Norte, índios e negros, se não desapareceram, foram “rebaixados” ao estatuto de “assimilados”, “misturados” ou relegados a um segundo plano da história. No entanto, as narrativas coletadas em campo apontam para uma história cheia de elementos que exprimem sentimentos de pertencimento a uma ancestralidade comum, habitada por escravos fugidos, índios bravios e até mesmos seres sobrenaturais. Entre estes elementos recorrentes na memória do grupo, destaca-se a prática do coco de zambê como pratica lúdica e educativa “dos tempos dos antigos”. Passemos, agora, a explorar o universo de narrativas em torno das origens de Sibaúma e do coco de zambê, temas que estão intimamente relacionados. Como mostrarei, estas narrativas apresentam uma modelização dos eventos históricos e constitui uma verdadeira versão nativa do passado.A maioria dos moradores de Sibaúma é capaz de narrar minimamente a história local. Contudo, alguns deles são apontados como “porta-vozes”, detentores legítimos da memória coletiva. Estes são apontados como interlocutores preferenciais para tratar dos assuntos da história do grupo e recebem, de modo geral, o consentimento da maior parte dos moradores. Sendo assim, desde a minha chegada em Sibaúma me foram indicadas algumas pessoas tidas como “especialistas” quando o assunto era “os costumes dos antigos”. De fato, por falta de registros precisos, não se pode afirmar com exatidão há quanto tempo o zambê é praticado em Sibaúma. Wellington Bomfim

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(2007), ao analisar a dança de São Gonçalo da Mussuca (Sergipe), deparou-se com o mesmo problema e propôs uma estimativa do tempo em que a dança tem sido praticada naquele povoado por meio de uma categoria local, o “patrão”, uma espécie de líder. Podemos seguir o exemplo de Bomfim e estimar a longevidade do coco de zambê a partir da categoria local de chefe. Este seria, igualmente, uma espécie de líder da brincadeira. A partir dos relatos, fiz um esboço de cronologia dos chefes do coco de zambê de Sibaúma: O último chefe do coco de zambê de Sibaúma, foi seu José Leandro, mais conhecido como Zé Pequeno, que faleceu em 2008 com cerca de 80 anos de idade. Desde provavelmente os 18 anos de idade, Zé Pequeno chefiava o coco de zambê de Sibaúma, o que remete aos meados da década de 1940. Antes de Zé Pequeno, o chefe do coco era seu pai, Henrique Leandro, falecido em 1984, com 109 anos de idade. O Henrique Velho, como é muitas vezes referido, ainda moço já era chefe da brincadeira, levando-nos para o final do século XIX. Provavelmente, o coco de zambê de Sibaúma remonta ao início do século XIX, uma vez que o Henrique Velho aprendeu a brincadeira com seu pai, o Leandro Velho, o mais antigo chefe do coco de zambê e que, segundo relatos, teria inventado a brincadeira e também teria sido um dos fundadores de Sibaúma:

Eu sei que o irmão do meu pai era do pessoal velho, aí ele disse assim [...] que o bisavô dele chamava Leandro Barbosa. Aí ele disse o nome da mulher aí eu não sei, era uma índia. Aí tinha um pé de pau aí ói, pé de pau grande, quando ela tinha filho ela passava só aquela noite e emburacava no meio do mundo. Não vivia em casa não. O velho Leandro Barbosa, foi 10 filhos que ela teve, dez filhos, ele criou esses meninos tudinho [...] E ela no meio do mundo. A roupa dela era só de pena de pássaro, e o cabelo todo esvoaçado, e o marido Leandro véio levava, botava roçado sozinho, e levava as crianças com medo de ela vir comer os meninos. Aí ele criou. aí a brincadeira que ele inventou, nesse tempo não tinha esse negocio de escola [...] pegou um pau furado, um pedaço de couro, fez um zambê, saía no meio do mundo brincando mais as negas [...] e tudo era moreno, tudo, sim! Era cinco filho homem e cinco filha fêmea. Ele saia pelo meio do mundo com eles pra brincar. Por São João, pelas festas, filho de Lean-dro, e saiu [...] Andava no meio do mundo, o pessoal chamava pra eles brincarem. E eles brincavam [...] (Seu João Modesto, Sibaúma, Junho de 2008).

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Seu Modesto nos apresenta sua versão do surgimento do coco de zambê, dando ênfase à personagem da índia selvagem que supostamente comia os próprios filhos. Percebemos que, pondo em evidência personagens bravios ou selvagens de sua história – como uma índia errante ou um “homem valente, pra morrer com um prego enfiado nas orelhas feito cão ladrão”, tal como Cosme de Souza –, nossos interlocutores elaboram uma imagem de si. Essa imagem caricatural é compartilhada pela maioria de seus conterrâneos e ainda mais pela sociedade envolvente. Podemos perceber o mesmo em relatos de outros moradores, como no de seu Paulo Camilo (cerca de 50 anos): “o povo daqui sempre foi muito brabo, gostavam de confusão”; ou seu Geraldo Leandro (80 anos), que afirma que “o povo daqui antigamente brigava era de cacete. Tem uma coisa, quando os cabra pegava pra brigar aqui era de manhã até a boca da noite, e era homem, mulher, tudo no mundo!”Os relatos podem parecer um tanto exagerados ou fantasiosos, mas com ou sem exageros ou fantasias, é fato que há por parte do grupo uma imagem construída de si, e que é constantemente atualizada por meio das narrativas. A fama de “negros brabos” ou “caboclinhos” de Sibaúma é conhecida pelas pessoas “de fora” e ao, menos, retoricamente sustentada pelos “nativos”. Notamos que o coco de zambê, de início, está associado a esse passado povoado por personagens selvagens, errantes e bravios; um passado que se confunde com a própria história de fundação do lugar. Na versão de Seu Modesto, o coco de zambê surge em Sibaúma, criado por um dos primeiros habitantes do lugar – um cativo fugido do engenho de Tacima, casado com uma índia selvagem – o que seria atestado de uma ancestralidade bastante singular desta brincadeira. Não cabe a nós aqui julgar o grau de veracidade da versão de Seu Modesto, uma vez que:

Mesmo sendo obras de ficção, as narrativas aparecem como o pro-duto do “pensamento objetivado”, pois verificamos que apresentam uma versão normativa dos eventos históricos e levam consigo a lem-brança de uma identidade étnica muitas vezes apagada voluntaria-mente. O “conto”, termo genérico que no nosso caso designa as nar-rativas coletadas em campo, poderia então ser definido como uma categoria do discurso nativo, um texto com um alto valor etnográfico que permitiria atingir não uma realidade presente ou passada, mas a sua modelização; a forma (oral) sendo determinante na perpetuação deste discurso formalizado (CAVIGNAC e MOTA, 2008: 25).

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Como vimos nas outras narrativas apresentadas, a evocação direta à escravidão e aos caboclos - que desta vez são especificamente localizados: na África – e o reconhecimento destes como seus ascendentes, nutre um sentimento de pertencimento a uma entidade social comum. O coco de zambê, uma brincadeira dos antigos, serve como mote para tratar de coisas bastante sérias, como a própria origem do grupo. Além disso, a brincadeira é tida como uma herança deixada por seus ancestrais, aprendida com os avós, tornando-se um elemento fundamental na construção da auto-imagem do grupo, onde aspectos como a valentia, a honra e a obstinação são enfatizados. Passemos a explorar de que forma estes elementos influem nas atuais ações de revitalização do coco de zambê em Sibaúma.

“O ZAMBÊ É NOSSA CULTURA”

O coco de zambê de Sibaúma deve ser entendido a partir de um quadro múltiplo de referências: trata-se da reelaboração de um antigo costume, de uma brincadeira do passado recente de Sibaúma, em um contexto atual de mobilizações em torno da afirmação de uma identidade em consonância com os “ditames” do aparelho burocrático estatal. O resgate do coco de zambê4 em Sibaúma foi estimulado pelo contexto de emergência étnica local e baseia-se em uma polifonia de elementos, tal como nas histórias do povo antigo; na matéria de uma revista de circulação nacional (Revista Realidade, 1969); em escritos de folcloristas locais. Do mesmo modo, responde a parâmetros “oficiais” (governamentais e de organismos internacionais) de reconhecimento de especificidades étnicas (textos jurídicos, decretos, etc.). As ações são desenvolvidas por um grupo de jovens de Sibaúma – o Grupo Filhos de Zumbi (GFZ), que sob a liderança de Francisco Nicácio, o Mestre Tiego, passa a desenvolver atividades de valorização de sua “cultura negra”, que se expressa através da prática da capoeira e, mais recentemente, do coco de zambê. Criado em 2002 por Mestre Tiego, o GFZ está mais recentemente sob a coordenação dos irmãos Sérgio, Laelson e Jaelson. Como será mostrado, a formação do GFZ antecede a mobilização local em torno da auto-afirmação quilombola e se tornou uma espécie de vetor desta luta, atuando juntamente com a Associação dos Remanescentes de Quilombolas da Praia de Sibaúma (ARQPS). Os seus membros foram os fundadores da ARQPS, que deu início aos processos de auto-reconhecimento e de

4. Reforço, aqui, que o termo “resgate” é utilizado pelos próprios interlocutores.

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titulação do território. As ações atuais do GFZ estão atualmente voltadas para o resgate do coco de zambê e a continuação das aulas de capoeira que são, desde 2005, ministradas para crianças da escola municipal local. Sua atuação está relacionada a uma rede de sujeitos e instituições responsáveis pela mediação de políticas públicas e outros benefícios aos quais Sibaúma, por se tratar de uma “comunidade quilombola”, tem direito.O coco de zambê de Sibaúma pode ser compreendido hoje como uma “performance de identidade” (AGIER, 2002; KAPFERER, 1995), entendida como a dramatização da diferença cultural através de elementos culturais ressignificados e sua retórica interpretativa associada, criado e novamente unificado a partir de fragmentos de lendas e crenças regionais (AGIER, 2002: 141). Tal performance, acredito ser influenciada pelo atual contexto nacional de implementação de políticas de promoção da igualdade racial e, localmente, pela emergência étnica quilombola e pela ampliação de programas regionais de desenvolvimento e incentivo à cultura. Contudo, como mostrarei, o resgate do coco de zambê de Sibaúma ocorre em uma base de comunicação direta com o seu passado, através das “histórias dos antigos”. A partir disso, tentarei evidenciar de que forma o coco de zambê tem se tornado um instrumento na busca de legitimidade do reconhecimento quilombola de Sibaúma; que identidade é esta que está sendo performada através do “retorno” da prática do coco de zambê? Com o intuito de melhor entender essa nova “performance de identidade” buscarei especificar adiante algumas situações na quais o coco de zambê é retomado. Quais atores estão em interação? Que conceitos e estratégias mobilizam? Neste momento, buscarei “fechar o foco” especificamente nas ações de “retorno” da prática do coco de zambê.O GFZ, até certo ponto apoiado pela ARQPS, é o responsável pelas ações de resgate do coco de zambê. Até 2002, suas atividades estavam voltadas para a capoeira. O coco de zambê só se tornaria objeto de ação do GFZ depois da descoberta da revista Realidade, que despertou no Mestre Tiego a idéia de “resgatar a cultura de Sibaúma”. No entanto, o mestre sabia que a tarefa seria difícil, pois havia uma desvalorização dos antigos costumes por parte dos mais jovens. Dessa forma, a capoeira acabou se tornando uma estratégia de sensibilização dos jovens, conforme me explicaram Laelson e Sérgio Caetano:

Laelson: É que a gente tinha vergonha mesmo, que nem antigamente, que o avô de Oziel dizia que antigamente a única educação que exis-

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tia aqui era o pau ôco, depois que chegaram as pessoas mais brancas, aí foram tendo vergonha, e deixaram […] que esse povo via a gente dançando e dizia ‘pía (espia), parece um bando de macaco’, aí a gente tinha vergonha.

Sérgio: O Mestre Tiego conseguiu reunir a gente através da capoeira, porque a gente tudo gostava de capoeira, na época ninguém falava de zambê não, mas o Mestre já sabia que tinha, que ele já conversava com esse povo mais velho daqui, e eles contavam. Aí ele começou com a capoeira, que todo mundo gostava, se ele tivesse já começa-do com o zambê, aí ninguém ia querer, porque aqui o pessoal mais novo sabia do zambê, mas não dava valor, que era coisa dos velho, e o pessoal tinha era vergonha, né [...] (Entrevista, Sibaúma, junho de 2008).

O coco de zambê foi finalmente reapropriado pelo GFZ a partir de um dos eventos dos quais participaram. Meus interlocutores não souberam precisar, mas me informaram que foi num encontro de comunidades negras promovido pelo governo do estado, ocorrido em Natal no ano de 2005. Naquele evento, o GFZ teve contato com um grupo de coco de zambê de Capoeira dos Negros, comunidade quilombola do município de Macaíba. Segundo Laelson Caetano, foi a partir deste contato que o GFZ “se animou pra dançar zambê”. O encontro do GFZ com o grupo de coco de zambê de Capoeira dos Negros em um evento promovido pelo governo do estado possibilitou, aos jovens de Sibaúma, “a reversão de um estigma a fim de encontrar uma estratégia moralmente “positiva” para a identidade” (AGIER, 2002: 157). O fato do coco de zambê ter sido “reaprendido” com um grupo de brincantes de outra localidade durante um encontro de comunidades negras do estado do Rio Grande do Norte demonstra a forte influência que o contexto estadual de emergência étnica exerceu sobre as iniciativas do GFZ. A importância da atuação do Estado não se resume ao fato deste criar espaços que possibilitem encontros como este e que impulsionou o resgate do coco de zambê pelos jovens do GFZ. Nesse caso, a influência fundamental da ordem burocrática do estado reside em seu papel ativo na própria reelaboração de identidades e de significados atrelados a elas. Como bem nos lembra Kapferer: “[...] the bureaucratic character of modern states creates a particular stress on identity, and is active in the construction of identity and in the way people come to see themselves as possessing identities of particular form and content” (KAPFERER,1995: 68).

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Contudo, mesmo que o GFZ tenha “reaprendido” o coco de zambê com o grupo de Capoeira dos Negros, não podemos afirmar que simplesmente aqueles “copiaram” a prática destes, nem que os dois grupos dão um mesmo sentido para a brincadeira. Pelo contrário, parafraseando Grünewald (2005: 18) a respeito do toré, os sentidos do coco de zambê são múltiplos e constituídos a partir de muitos posicionamentos narrativos. São estes posicionamentos que gostaríamos de explorar a seguir. Descrevo a seguir uma situação através da qual podemos por em evidência alguns dos sentidos atribuídos por diferentes sujeitos do GFZ ao coco de zambê atualmente. Ocorria em Natal, mais precisamente no Museu Câmara Cascudo (MCC), a exposição intitulada “Câmara Cascudo: o olhar do etnógrafo”, que tinha como objetivo abordar a produção do folclorista sob a ótica da etnografia. Na exposição, foram mostradas ao público objetos pessoais, manuscritos, assim como objetos que simbolizam a “cultura potiguar” abordada por Cascudo em sua obra. A exposição foi realizada em parceria pelo colégio CEI; o Memorial Câmara Cascudo; o Centro Federal de Educação Tecnológica-RN; e o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norteriograndenses (Nccen). Este último, do qual eu faço parte como pesquisador, é um núcleo multi-disciplinar que agrega pesquisadores que desenvolvem estudos sobre o Rio Grande do Norte nas áreas de literatura, história e antropologia, assim como sobre a produção intelectual de Câmara Cascudo. Naquele momento, eu sub-coordenava um projeto de extensão do Núcleo Câmara Cascudo (Nccen) em Sibaúma, intitulado “Coco no quilombo”, que tinha como objetivo apoiar ações de incentivo e valorização local da “cultura quilombola”, o que incluía oficinas de capacitação em elaboração de projetos e assessoria na estruturação e organização do grupo de coco de zambê local. Portanto, meu trabalho era desenvolvido diretamente e, inevitavelmente, com o GFZ, responsável pelas ações locais de incentivo e resgate de sua cultura tradicional. Como parte da exposição, foi proposto ao Grupo Filhos de Zumbi a realização de uma aula-espetáculo de coco de zambê. Uma vez que eu tinha contato mais aprofundado com o GFZ, fiquei responsável pela organização da aula-espetáculo, desde o contato com o Grupo até a realização do evento. Fiz então contato com Sérgio, um dos responsáveis pelo GFZ, e este ficou de avisar Mestre Tiego que, naquela época, estava afastado de Sibaúma, pois organizava um grupo de capoeira em Natal. Ele era o único dos “Filhos de Zumbi” a ter alguma experiência com aquele tipo de exibição. A “aula-espetáculo do grupo de coco de zambê da comunidade

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quilombola de Sibaúma” foi noticiada na imprensa e os interessados em participar do evento poderiam fazer sua inscrição gratuitamente no Núcleo Câmara Cascudo. Além dos “Filhos de Zumbi”, Elson Barbosa - nativo de Sibaúma que se reconhece quilombola, mas que não pertence a nenhuma das associações locais – participaria do evento, expondo seu trabalho autodidata de adaptação de plantas nativas de sua região a vasos ornamentais.Chegado o dia da aula-espetáculo no Museu Câmara Cascudo (MCC), os últimos preparativos estavam sendo feitos e havia uma preocupação em relação ao êxito do evento em razão do grande período de chuvas em Natal. Antes mesmo do Grupo chegar de Sibaúma, Mestre Tiego já estava no Museu e, assim, pudemos conversar um pouco a respeito do processo de titulação de terras em Sibaúma e sobre a recente desarticulação da ARQPS. O Mestre fazia as mesmas queixas que os outros líderes da associação faziam, chegando a desabafar: “a gente já meteu muito a cara aí nesse processo e, até agora, não recebemos apoio de ninguém, nem mesmo da própria comunidade”. Afirmou que ia continuar com o “trabalho com a cultura” em Sibaúma.Naquela ocasião, pude presenciar os “bastidores” da apresentação: a escolha do repertório, a combinação da forma de apresentação e uma interessante preleção feita por Mestre Tiego acerca da importância daquele evento. Em sua fala, havia a preocupação de impressionar o público, especialmente pela presença de algumas figuras “importantes”, como a diretora do museu, pesquisadores e produtores culturais. Mestre Tiego enfatizava que “a partir dessa apresentação, a gente vai ter mais visibilidade. Tem gente importante aí e a gente tem que ter o apoio dessas pessoas na nossa luta […] quando eles virem a beleza que é essa nossa cultura, aí vão saber dar valor aos negros de Sibaúma!” Depois da “preleção” de Mestre Tiego, o GFZ se dirigiu ao local da apresentação, o pátio interno do MCC. Percebi algumas modificações ocorridas na performance do coco de zambê em comparação com outras situações que eu tinha presenciado em Sibaúma; o mais evidente era o aumento no número de dançadores. Desta vez, ficou claro que houve uma mobilização prévia no sentido de levar um maior número de pessoas para aquela apresentação. Na ocasião, mudou a disposição espacial dos dançadores. Ao invés de um círculo fechado, tal como se costuma dançar, organizou-se um semicírculo, de forma que a platéia pudesse observar

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todos os dançadores. O público era outro diferencial, pois contava-se pelo menos 30 pessoas entre estudantes de ensino médio, universitários, professores, pesquisadores e funcionários do MCC e do Núcleo Câmara Cascudo. A dinâmica da apresentação também era bem diferente. Era uma aula-espetáculo, uma proposta que exigia mais comunicação e interação com o público. Neste sentido, Mestre Tiego não deixou a desejar. Depois de cantar dois cocos, sem parar de tocar, o mestre introduz o GFZ e passa a falar vigorosamente sobre o passado de Sibaúma., narrando brevemente sua versão da origem do povoado, citando seus heróis e antepassados, apropriando-se de fragmentos de histórias que ouvira dos mais antigos:

Os que lutaram, os que fugiram da opressão de cativeiro pra não viver sobre o açoite da escravatura infame do branco. E ali fizeram um reduto, e a partir dali passaram a viver livres […] esses são os quilombolas de Sibaúma [...] o Câmara Cascudo, infelizmente, pou-co fala sobre isso, mas nós temos registros constando que Sibaúma é remanescente quilombola […] a comunidade quilombola de Sibaú-ma são 45 famílias, que são os herdeiros, O Leandro, os Caetano e os Camilo, essas três famílias. Isso é o que nós temos: o coco de zambê, essa é a nossa cultura que foi deixada pelos nossos ancestrais.

Então, entre um coco e outro, o mestre discorria sobre diversos temas relacionados à história e à trajetória do GFZ na emergência quilombola em Sibaúma, suas lutas e conflitos atuais, suas dificuldades em levar adiante “a luta quilombola”. Chamou, então, a atenção para a responsabilidade social de estudantes e pesquisadores e em um coco improvisado exige dos presentes uma maior atenção à “luta dos quilombolas de Sibaúma”. Durante os discursos do mestre, os dançadores permaneciam parados em seus lugares, em semicírculo, e só dançavam quando algum coco era cantado. Por vezes, pude notar uma certa impaciência por parte dos dançadores, especialmente quando Mestre Tiego se alongava em suas falas. Já a reação do público pareceu positiva, pois a maioria procurava ouvir atentamente às palavras de Mestre Tiego, chegando a ensaiar passos quando um coco era cantado. Para finalizar, em um coco improvisado, o mestre questionou a efetivação do direito de titulação do território, pois já faziam dois anos que o processo de regularização havia sido iniciado e nenhum avanço até então ocorrera. Tudo isso não durou mais do que 40 minutos, e ficou “no ar” por parte do público um misto de incômodo com algumas falas “duras” do mestre; e de “quero mais” do ritmo contagiante do coco de zambê.

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A importância da intervenção de atores externos – sejam indivíduos ou instituições – nos processos de reconhecimento étnico é conhecida e debatida por diversos autores (CARVALHO, 2009; ARRUTI, 2006). Esses atores podem contribuir tanto para o início dos processos, “despertando” os grupos para sua identidade diferencial, como também no apoio às suas iniciativas depois de reconhecidos. É interessante notar a ambiguidade da figura de Mestre Tiego no caso de Sibaúma, aonde chegou como um agente externo, influenciando diretamente no processo de emergência local. Contudo, seu posicionamento público deixa a entender que o mestre é um nativo de Sibaúma, tal posicionamento, a depender da situação, pode ser confirmado ou rechaçado pelos nativos “verdadeiros” de Sibaúma. A situação que acabo de apresentar é um contexto de promoção do reconhecimento étnico de Sibaúma, por meio da intervenção de um agente externo, no caso o Núcleo Câmara Cascudo, ligado a uma das principais instituições de ensino do estado. Pela fala de Mestre Tiego, podemos perceber que os próprios sujeitos têm consciência disso e procuram aproveitar ao máximo o apoio destes agentes externos em sua luta – os discursos de Mestre Tiego, a presença de um maior número de dançadores, a preocupação com a disposição da roda, tudo isso pode ser tomado como índice da percepção dos sujeitos da importância política daquela situação. Durante a aula espetáculo, Mestre Tiego e o GFZ buscaram mobilizar o apoio de seu público por meio de uma “performance de identidade” que procurava colocar em evidência certos “traços culturais” - nesse caso o coco de zambê - que propiciassem o seu reconhecimento enquanto quilombolas (CARVALHO, 2009: 12). Além disso, a performance do GFZ “jogava” com as impressões e expectativas da audiência, expressando para o público uma noção de “quilombolidade” que transmitia a sensação de que aquela noção era representativa de Sibaúma como um todo (KAPFERER, 1995).O resgate do coco de zambê de Sibaúma deve ser entendido como uma adaptação de um modelo cultural local - fundamentado na história (oral e/ou escrita) do grupo – a um modelo estatal, virtual, construído em consonância com parâmetros internacionais de apoio às novas “demandas étnicas” (GALINIER, 2008: 117). Procuramos evidenciar e problematizar estes modelos polifônicos que interagem nutrindo a construção de uma identidade reelaborada a partir de um elemento eleito pelo grupo como sendo um dos principais marcadores diacríticos da cultura local, qual seja: o coco de zambê.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAPITULO X“NÃO É SE ASSOCIAR, É SE ACONCHEGAR”: NOTAS SOBRE O PROCESSO DE REORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CAPOEIRAS1

Maíra Samara de Lima Freire

Este artigo tem como intuito pensar a implantação do modelo de associação como prática organizacional institucionalizada na “Comunidade de Capoeiras”, localizada no município de Macaíba (estado do Rio Grande do Norte), composta por cerca de 300 famílias que, nos últimos sete anos, iniciaram processo de reconhecimento enquanto comunidade “quilombola”. Procuro a partir dos modelos de organização social pré-existentes, em particular os arranjos familiares e de gênero, compreender a formação das Associações Quilombolas: Associação dos Moradores Quilombolas de Capoeiras e Associação de Mulheres Quilombolas de Capoeiras, como instrumento político acionado pelo grupamento familiar negro no reconhecimento identitário e territorial. É no diálogo (por vezes tenso) entre modelos de organização política que tais grupos constroem seus projetos políticos. O interesse pelos processos de etnicização presentes nas “comunidades quilombolas” surge anteriormente à minha inserção no meio acadêmico,

1. Esse artigo baseia-se em pesquisa realizada durante os anos de 2006 a 2009, com o objetivo de obter o título de bacharel em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do professor Doutor Edmundo Marcelo Mendes Pereira. Foram realizadas alterações no texto original para seguir a formatação de artigo. Gostaria de agradecer a todos e todas que permitiram viabilizar a pesquisa, sobretudo, aos moradores do quilombo de Capoeiras/RN; ao intercâmbio PROCAD entre o PPGAS/UFRN e o PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, que pude participar durante o mês de julho de 2010 por proporcionar o acesso a leituras e conversas com professores do Museu Nacional e do CPDA/UFRJ; ao convite de Carlos Guilherme do Valle para compor este capítulo do presente livro; ao Edmundo Pereira por tecer considerações importantes na construção deste trabalho; grata as críticas e comentários auferidos quando da exposição de partes dos resultados deste trabalho no VI Congresso de Pesquisadores (as) Negro(as), UERJ, Rio de Janeiro, em 07/10; na 27 ª Reunião Brasileira de Antropologia, Belém, em 08/10; e na Semana de Humanidades FAFIC/UERN, Mossoró, em 11/10.

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enquanto simpatizante do Movimento Negro. Todavia, foi através da minha atuação como assistente de pesquisa no ano de 2006-2007, tendo em vista a produção de um relatório de identificação, demarcação e titulação de terras quilombolas em Capoeiras/RN (convênio INCRA-FUNPEC/UFRN/DAN), e durante a elaboração deste trabalho, que iniciei leituras a respeito da relação entre dois modelos de organização (BARTH, 2000): o associativismo e o parentesco. A pesquisa tentou se pautar nos seguintes objetivos específicos: 1) mapear o campo social em torno dos processos quilombolas; 2) entender os processos internos e externos que incidem na formação das associações quilombolas; 3) analisar os discursos e práticas em torno do associativismo; 4) traçar as redes sociais que se formam na relação entre o grupo e outras agências mediadoras no processo de reorganização política e, enfim, 5) identificar qual seria o lugar do parentesco na organização política local. Como método de coleta do material antropológico, realizei observação participante (MALINOWSKI, 1978). Desse modo, acompanhei as reuniões da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras para entender como nelas eram discutidos os assuntos e interesses dos grupos ligados à comunidade, bem como compreender como são resolvidos os conflitos. Realizei entrevistas (abertas e semi-estruturadas) com lideranças locais e a aplicação de um questionário com os associados da Associação dos Moradores Quilombolas de Capoeiras (AMQC). Nas entrevistas, procurei saber a percepção dos componentes do universo social das associações, compreender as significações atribuídos à prática associativa a partir do ponto de vista local. Tentei traçar um mapa da organização política local e mapear suas lideranças.A etnografia se utilizou da metodologia de rede social para dar abertura a análises sobre a organização política local num contexto de amplo re-ordenamento social e teve as reuniões de associação como situação social privilegiada para análise. Tal metodologia nos pareceu rentável dado que:

(...) o conceito de rede social é apropriado em situações em que gru-pos persistentes, como partidos e facções, não estão formados, bem como em situações em que indivíduos são continuamente requisi-tados a escolher sobre quem procurar para obter liderança, ajuda, informação e orientação. (BARNES, 1969:163).

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Com o instrumento analítico de rede social, procurei fazer a descrição e análise de processos políticos, envolvendo conexões que ultrapassam os limites dos grupos. Isso ajudou a identificar quais eram as lideranças dentro de uma rede política ou dentro de uma rede de parentesco e outros campos sociais. O conceito de rede proposto por Barnes, tinha sido discutido anteriormente por Radcliffe-Brown (1973), que entendia a estrutura social como “a rede de relações sociais efetivamente existentes”. Mayer (1987:129) apontou o sentido atribuído à rede por Barnes, como um campo social formado por relações entre pessoas, relações essas, por sua vez, definidas a partir de critérios subjacentes ao campo social, os critérios de vizinhanças e amizades, as conexões dos parentes e outros. É crucial perceber o posicionamento de certos indivíduos específicos em seu grupo, seu comportamento político e suas ações e evidenciar, através das redes, as relações sociais que vinculam os indivíduos a outros. Por meio dessas redes pessoais, é possível chegar a um entendimento dos campos sociais e seus padrões (GLUCKMAN, 1987). Deste modo, percebi a ação social e o campo das escolhas individuais, que sempre se encontram em contexto relacional. Esta análise pode ser alcançada através de métodos de micro-análise, que garantam um maior adensamento de unidades menores.Procurei saber se os atores sociais em questão participavam das discussões em torno da questão quilombola, no jogo das relações com o Movimento Negro ou outras agências mediadoras que corroboravam as ações de seus integrantes, envolvendo, como já apontei, conexões que transpassam as fronteiras de seu território. Desta forma, objetiva-se perceber se o surgimento das associações coincidiu com a emergência de uma identidade política quilombola, sobretudo pela aproximação e da atuação da mediação e de mediadores neste contexto.Na literatura historiográfica sobre o estado do Rio Grande do Norte, a diversidade étnica não costumava ser apresentada. Essa era a versão escrita pela intelectualidade local, movida por modelos socialmente homogeneizantes, articulados aos grupos dominantes na política regional2. 

2. Entretanto, com trabalhos de Assunção (1999); Ratts (1998) e Silva (2003); e recentemente, nos anos de 2006 e 2007, pelo convênio firmado entre o INCRA, FUNPEC e UFRN, foram produzidos seis relatórios técnicos e antropológicos de comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte, que pleitearam a titulação de suas terras junto ao Governo Federal (Capoeiras, Acauã, Jatobá, Boa vista dos Negros, Macambira e Sibaúma), havendo um importante passo para a história começar a ser re-escrita e seu fundo ideológico revelado.

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Não é de se surpreender que uma bibliografia sobre o associativismo voltado à questão étnica ainda é muito pouco desenvolvida, sendo praticamente incipiente na literatura antropológica. Conhecemos apenas um trabalho que coaduna o associativismo com a questão indígena (FIALHO, 2003). Se lançarmos o olhar para o Rio Grande do Norte, então, não encontraremos trabalhos que adotem tal perspectiva tanto no campo da sociologia quanto da antropologia, ainda que os trabalhos em associações de representação possam ser mencionados. Além de dar visibilidade a esses grupos, que através das práticas associativas legitimam um direito de reconhecimento de uma cidadania frente ao Estado e perante a sociedade em geral, marcam um espaço de construção histórica e de luta por direitos sociais.

APRESENTANDO CAPOEIRAS

Capoeiras está situada no município potiguar de Macaíba, a 65 km da capital e a 36 km do município. O significado do termo “Capoeira” denota uma área de terra que, originalmente, era composto de mato que foi queimado para cultivo. Encontramos relatos que no tempo de antigamente3, Capoeiras ocupava as terras do município de Bom Jesus. Quando indaguei para umas das lideranças sobre o pertencimento ao município de Macaíba, seu Manuel Batista dos Santos declarou-me a propósito deste fato:

Era Bom Jesus. Então, como nessa divisão de município Capoeiras ficou pra Macaíba, aí o sindicato também. Então, Capoeiras ficou com Macaíba. Era o único movimento que existia aqui. Era o sindi-cato (...). Capoeiras, Pavilhão e Grossos têm muita família lá casado com pessoas daqui. Por exemplo, Marta, ela é de Traíras, mas só que a família do marido dela é quase toda de Parnamirim, era uma parte de Pavilhão e outra parte está em Parnamirim, que faz parte da famí-lia de Silvana [moradora da comunidade de Moita Verde]... Só que hoje essas pessoas do Pavilhão está lá e aqui, porque antigamente, Pavilhão e Capoeiras era uma comunidade só, as pessoas eram as mesmas, aí quando municipalizou Bom Jesus, ai Pavilhão ficou pra Bom Jesus, mas era a mesma Família: Pavilhão, Grossos e Capoeiras. Era uma família só (Manuel Batista dos Santos, 03/03/2009).

3. Expressão nativa.

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Atualmente, Capoeiras apresenta uma área territorial de 884,933 hectares. Seu território está limitado ao norte pelo rio Jundiaí, com a fazenda do Sr. Luis Aves e a fazenda de José Francisco da Silva; ao sul, com Félix Lopes e a fazenda de Manuel Ferreira; a oeste com a fazenda do Sr José Azevedo de Oliveira; e ao leste com o espólio (MILLER, 2007). As famílias da localidade vivem principalmente da atividade agrícola e da pequena produção agropecuária e da criação de pequenos animais (galinha, porco, bode) para consumo doméstico e da comercialização da farinha da mandioca, das aposentadorias, pensões, recebimentos de auxílios financeiros dos programas federais.De acordo com a história oral, há várias versões acerca da origem do grupo (SILVA, 2003; MILLER, 2007). Em reportagem dos Cadernos Especiais do Jornal da Tribuna do Norte- RN, que apresentam a história do estado do Rio Grande do Norte, encontra-se a seguinte referência a Capoeiras.

Capoeira dos Negros. Os habitantes desse local, conta o Sr. Severino Paulino da Silva, um de seus descendentes, vieram de Açu, talvez por causa de uma grande seca. Faziam parte de uma família formada pelo casal Joaquim e sua senhora, Caiada, e seus filhos, todos negros. O casal vendeu doze cavalos não adultos para comprar a proprieda-de. O Sr. Carrias, antigo dono da Capoeira, enganou seu Joaquim en-tregando uma procuração em lugar do documento de venda. Quan-do o Sr. Joaquim morreu, o Sr. Carrias reuniu os filhos do falecido e disse a verdade, exigindo mais cem mil réis para passar o documento legal da venda do sítio. Os filhos do Sr. Joaquim pagaram a quan-tia exigida, assegurando a posse definitiva da terra (TRIBUNA DO NORTE, 1988).

A ocupação do território de Capoeiras se deu através de uma família originária da Serra de Martins. Primeiro, chegaram os Garcias, depois o patriarca Nô, pertencente a família dos Santos e, posteriormente, os Mouras. As famílias provindas do Ferreiro Torto traziam consigo o sobrenome Moura, provavelmente herdado do coronel Estevão José Barbosa de Moura, que comprou o Engenho Potengi e construiu o Ferreiro Torto. Os vinte filhos de Garcia se casaram com os filhos das famílias procedentes de Ferreiro Torto, Açu, e depois de Alcaçuz: a família Costa. Deram origem, hoje, ao que conhecemos como os troncos velhos de Capoeiras: os Garcia, os Moura, os Santos e os Costa. Em resumo, Capoeiras teve sua origem por meio de

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pessoas ou famílias que ali chegaram, estabelecendo moradia, montando roçado, criando animais e demarcando o espaço habitado por negros e índios. Vários autores colocam as referências de fundadores: ora uma mulher negra (Maria da Capoeira) ou um homem (João da Capoeira), ora um casal que em seguida foram agregando outros indivíduos com origem étnica ou condição social semelhante que vinham para essas bandas, matas. Em relação ao arranjo familiar espacial dentro de Capoeiras, é revelado:

Tem ali o povo dos Severios, a família dele começou aqui logo na beira da lagoa, aí foram casando, aí vai entrando, aí o último que tem lá é o Severo, lá onde tá Severo está arrudiado de filhos. Aqui de per-to da lagoa tem Mario que ta arrudiado dos filhos, tem Antônio de também de Antônio velho que está arrudiado dos filho. É geralmente um chefe que estão arrodeado dos filhos.

A espacialidade das casas está na maioria das vezes organizada ao redor de um patriarca, como bem notamos no relato acima: “Aqui perto da Lagoa tem Mario que tá arrudiado dos filhos”. Determinadas famílias ocupam um local certo na distribuição espacial do território de Capoeiras. São o que podemos chamar de territórios de parentesco (ALMEIDA, 2006; COMERFORD, 2003). Conforme Alfredo Wagner (2006): “Os nomes de famílias perpassam as distintas territorialidades chamando a atenção para os laços de solidariedades”.Nas unidades domésticas, encontramos geralmente de quatro a oito pessoas residentes em uma mesma casa. Como frisei em relação ao espaço de moradia, os filhos, filhas, netos, netas tendem a permanecer próximos à casa de seus principais familiares. Para pensar esse caso, é boa a proposição do antropólogo Louis Marcelin (1996) ao ter realizado estudo acerca da produção das relações familiares no meio “negro” no Recôncavo Baiano. Ele focalizou a casa como uma categoria cultural, considerando-se ser mais que uma unidade familiar, pensada em termos de espaços de socialização, de invenção e articulação de redes familiares intra e inter-geracionais e do parentesco, a partir das relações existentes na casa.Internamente, encontramos uma sub-divisão do território, que outrora foi relatada por Silva (2003) e Miller (2007). É nomeada socialmente uma dada localidade, onde as pessoas residem e plantam, deste modo, surgem termos como arisco e a caatinga, que denotam o recinto da plantação coletiva de Capoeiras, onde não se faz uso de cercas para delimitar o espaço de plantação

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de cada família; favela, local onde residem as famílias afastadas do centro ou sede (parte principal), geralmente pessoas com parcos recursos materiais; beco, que são os caminhos de areia que conduzem a determinadas casas, onde localizam- se as famílias mais pobres da comunidade; cajado, que é a parte onde reside o conglomerado de famílias que moram próximas à plantação de Cajá; pitombeira, localidade onde moram as famílias próximas ao pé de Pitomba; e a sede, onde fica a rua principal de Capoeiras e moram as famílias com melhores condições econômicas. Nesse espaço, encontramos o Clube, as Igrejas, os Bares, mercearias.A maioria das famílias possui um roçado. As poucas famílias que não possuem, então, negociam com àquelas que possuem para plantar e fazem, assim, o arrendamento. As atividades agrícolas ocorrem no período de chuvas durante os meses de dezembro a março. Suas terras agricultáveis são de arisco, onde planta-se principalmente a mandioca, feijão branco, milho, jerimum, batata. Em Capoeiras, encontram-se duas casas de farinha. A mais recente é a Agroindústria de Beneficiamento da Farinha de Mandioca4. O acesso à terra e a organização da produção é perpassado através dos laços de parentesco. As terras passam de geração à geração entre as famílias através de mecanismos internos que garantem o controle à terra, tal como, por exemplo, os casamentos entre primos, que asseguram espaço para morar e plantar. A apropriação da terra é feita pelo sistema, segundo Wolf (1970:104), denominado herança por partilha.

CAPOEIRAS NO QUILOMBO

Somos todos quilombolas. Nunca devemos esconder nossa cor, nossa história (Ana Cleide, poetisa de Capoeiras)

As categorias segundo as quais um grupo se pensa, e segundo as quais ele representa sua própria realidade, contribuem para a realidade desse mesmo grupo. (BOURDIEU, Pierre, 1988)

4. Ela é também referida como a ‘casa de farinha’ pelos moradores de Capoeiras.

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De fato, é crucial a presença de integrantes do Movimento Negro através de Kilombo - Organização Negra do Rio Grande do Norte5 para pensar a identificação da “comunidade quilombola de Capoeiras”. A partir desse trabalho e da atuação do agenciamento da Kilombo é que se estimulará a discussão e a participação de alguns atores sociais em torno da questão étnica/racial e também da mobilização e organização dos grupos em associações. Essas são algumas funções que a entidade desempenhará, atuando como uma “entidade de apoio” no sentido de “articulação e manutenção de contatos” com comunidades negras rurais e isso permitiu que inicialmente dois grupos, Capoeiras e Boa Vista dos Negros, fossem incluídos dentro do circuito de conferências, seminários, palestras, cursos, oficinas sobre temáticas de quilombos. Na época, estas comunidades compuseram a Articulação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas. A nomeação que foi dada a esses grupos é fruto da discussão que foi sendo tecida, sobretudo, no final da década de 1990 e no início da década atual. Não se falava tanto antes como hoje em “comunidades quilombolas”. É salutar remeter as discussões para o nível nacional, onde essas populações reconhecidas atualmente como “comunidades quilombolas” estavam inseridas ou tentando se inserir nesse campo de debate, tal como, por exemplo, visualizado durante a V Reunião da Comissão Nacional Provisória das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, ocorrida em São Paulo, no mês de maio de 1999, o qual contou com lideranças de Capoeiras e da Organização Kilombo. A mobilização dos grupos reconhecidos enquanto “quilombolas” estava sendo ventilada através destes encontros, quando passaram a ser referidos como “comunidades negras rurais quilombolas” e, posteriormente, surgiu o que conhecemos atualmente como a Coordenação Nacional de Quilombos (CONAQ), cuja coordenação executiva foi inicialmente composta pela representação de diversos estados (RS, MS, RO, RJ), inclusive o Rio Grande do Norte6. A definição de “quilombo” foi sendo ressemantizada ou reelaborada (ALMEIDA, 2002; ARRUTI 2008) ao longo da história recente do Brasil.

5. Trata-se duma sociedade civil sem fins econômicos, que surgiu no final da década de 1980 com o intuito de atuar no combate ao racismo e as práticas de discriminação, prestar assessorias em “comunidades quilombolas”, trabalhar a negritude como uma positividade, desenvolveu diversas atividades junto as comunidades negras rurais desde a década de 1990 a fim de viabilizar estratégias de acesso da população negra a determinadas políticas públicas.6. Dado obtido através do site da CONAQ. Disponível em :> http://www.conaq.org.br/estrutura.php, acesso 7 de outubro de 2009.

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Contudo, foi a partir do artigo 68 da Constituição Federal de 1988 que o termo assumiu um novo significado, o de “comunidade remanescente de quilombos”, designando a situação dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos no Brasil, fazendo referência a terras dos mais diversos perfis, tanto as que resultaram da compra por negros libertos; as de posse pacífica por ex-escravos de terras abandonadas pelos proprietários em épocas de crise econômica; de ocupação e administração das terras doadas aos santos padroeiros ou de terras entregues ou adquiridas por antigos escravos organizados em quilombos, sempre em regimes de assimetria étnica.Trabalho e considero quilombo, ou seja, os grupamentos familiares que nos últimos anos assim se apresentam enquanto um grupo étnico (BARTH, 2002). Esse autor entende o grupo étnico como um “tipo organizacional”, assumindo a forma de organização quando os atores sociais têm como finalidade a interação, usando da identidade étnica para categorizar e se apresentar como grupo. Assim, é nas fronteiras da interação que os grupos se definem, enfatizando a auto-atribuição da identidade como uma característica fundamental. Das definições encontradas, o que prevalece é o caráter relacional e transitório das identidades, no caso de perfil étnico, tratando- se nessa perspectiva analítica de uma mobilização política em uma conjuntura particular. Dentro desse panorama, se inscreve a atual comunidade quilombola de Capoeiras. No ano de 2004, a Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras inscreveu-se junto da Fundação Cultural Palmares como “comunidade remanescente de quilombos”, constituindo uns dos primeiros passos para o processo de demarcação, titulação e regularização de suas terras. Essa era uma estratégia nevrálgica no processo de lutas por direitos sociais e cidadania, incluindo-se aí o processo de reorganização política em torno da questão territorial, que será melhor explanada no tópico a seguir e que leva, dentre outras, à uma re-organização política nos modelos de representação.

GÊNESIS DAS ASSOCIAÇÕES QUILOMBOLAS: OS ENCONTROS E O RETORNO PARA CASA.

O primeiro encontro que trouxe a comunidade de Capoeiras para a discussão das temáticas dos quilombos e dos quilombolas, no âmbito nacional, foi o evento promovido pela Fundação Cultural Palmares com o

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apoio do Banco Mundial, realizado em Recife no ano de 2003. Contou com a participação de representantes de algumas comunidades do Rio Grande do Norte. Além de Capoeiras, havia a presença de líderes de Sibaúma, dos Negros do Riacho, de Gameleira e de Boa Vista dos Negros.Os dois representantes de Capoeiras foram Maria Lídia Basílio da Costa, que dirige atualmente a Associação de Mulheres Quilombolas de Capoeiras, e Manuel Batista dos Santos, o atual dirigente da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras. Ao buscar dados sobre a inserção política dos dois na vida social de Capoeiras, ambos se referiram a esse encontro como etapa decisiva para a formação da Associação Quilombola de Moradores de Capoeiras (AQMC), consolidada no ano de 2003. Neste momento, a questão quilombola assumiu posição central na re-estruturação das relações sociais e políticas da comunidade.Como declara Alonso (2004), “esses encontros são eficazes, sobretudo para a constituição de redes ou de articulações de relações sociais, manifestas num determinado tipo de coletividade ou de um movimento político emergente”. O retorno à Capoeiras colocou a necessidade de se organizar a comunidade politicamente. Os dois líderes perceberam que havia, no encontro em Recife, várias comunidades negras rurais que apresentavam características sócio-econômicas similares às encontradas em Capoeiras. Nesse sentido, contaram com o agenciamento da militância do Movimento Negro no processo de reorganização política. Antes de 2003, Capoeiras se organizava politicamente em termos de Conselho Comunitário, depois como uma Associação Comunitária e finalmente para Associações Quilombolas. Discorrerei sobre o processo de gênese dessas duas associações e da situação social em que foram criadas, compreendendo o projeto político em resposta à uma demanda especifica.Para compreender o surgimento destas associações, foi preciso dialogar e recuperar a trajetória de vida das lideranças que estavam envolvidas diretamente no campo político da comunidade quilombola de Capoeiras. Deste modo, encontramos primeiro a presidente da Associação de Mulheres Quilombolas de Capoeiras, Maria Lídia Basílio da Costa, mais conhecida como Lídia ou “Lidinha” em Capoeiras. Na década de 1970, ela migrou para São Paulo, como muitos outros moradores do lugar. Um caso semelhante foi o de Manuel Batista dos Santos, o presidente da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras, que também migrou para São Paulo. Ele passou dezoito anos trabalhando, segundo me disse, como

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“motorista de madame” na capital paulista. É de se notar que a viagem para grandes centros urbanos elevou estas pessoas para um status diferenciado diante dos que ficaram, acumulando prestígio, experiência e conhecimento distinto frente aos outros.A trajetória de Lídia enquanto líder comunitária ocorreu ao mesmo tempo através do prestígio político social do seu pai, Raimundo Basílio da Costa. Este prestava diversos favores em prol dos moradores locais, bem como desenvolvera relações clientelistas com prefeitos e vereadores de Macaíba. Foi o responsável pela fundação do primeiro clube de futebol da comunidade, o Bangu Futebol Clube, e pela construção de sua sede. Na época da pesquisa, ele ainda era associado ao Sindicato Rural de Macaíba. Desse modo, para qualquer auxílio vinculado à falta de remédio, alimentação, meio de transporte para Natal, Raimundo Costa estava ali para auxiliar. Segundo Lídia, seu pai, ao envelhecer, incentivou-a a se envolver mais no cotidiano da comunidade:

Meu pai era representante daqui da comunidade. Aí, ele chegou as-sim até mais idade. Aí, não quis mais ficar, se envolver assim com nada. Até porque quem faz um trabalho com comunidade, assim ajudar, aí começar a ajudar aí o povo da comunidade e depois a co-munidade não agradece. Aí, ele se chateou e não quis mais. Vinham todos pra cá pra resolver os problemas. Aí, depois, se acostumaram comigo. Aí, comecei. Tudo era eu. Era pra ir no médico, pra resolver problemas. Era pra fazer documento. Pessoa que não sabia ir a Na-tal, era eu que levava...Até a secretária de educação chamou a minha atenção, que o meu trabalho era na escola e não levando gente pro médico. Eu gostava de fazer isso e até eu hoje eu gosto.Só sei que ele deixou de fazer, aí eu comecei a fazer as coisas (Maria Lídia Basílio da Costa, abril de 2008)

Foi, então, que Lídia passou a se “envolver nas coisas” de Capoeiras. Além disso, foi diretora e professora da escola Santa Luzia, localizada na comunidade. Assistimos, então, o processo de construção da trajetória de uma liderança local.Na década de 1980, a Prefeitura de Macaíba estimulou a formação de “Conselhos Comunitários” com o intuito de atender as reivindicações dos moradores dos distritos do município. Este conselho ficou sob a responsabilidade das professoras de cada distrito. Assim, Lídia logo

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assumiria a coordenação desse conselho comunitário: “Toda diretora da escola ou a professora era diretora desse conselho. Aí, daqui era eu. Eu era professora e diretora da escola. Aí, vários conselhos as pessoas viam que não dava em nada, mas eu continuei. Fiquei na luta (Maria Lídia Basílio da Costa, abril de 2008)”.Lídia tornou-se, então, a pessoa de referência e contato para aqueles que chegavam “de fora” para obter informações sobre Capoeiras, referência esta que passou a ser percebida pelo Movimento Negro no estado do Rio Grande do Norte. Na década de 1990, a Kilombo passou a ter mais conhecimento da comunidade e convidava a liderança local para participar de encontros, seminários, reuniões do movimento negro e de comunidades negras rurais.Como expliquei, seu Manuel Batista dos Santos era associado ao Sindicato Rural de Macaíba, do grupo da “terceira idade”, membro da diretoria da Cooperativa Agrícola de Macaíba, presidente da Cooperativa de beneficiamento da farinha de mandioca de Capoeiras, além de fazer parte da comissão de representantes da Coordenação Estadual de Quilombos do Rio Grande do Norte. Quando Maria Lídia Basílio foi dirigente da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras, entre 2003-2005, seu Manuel Batista dos Santos atuou como tesoureiro da associação. No ano de 2005 a 2007, ele candidatou-se como seu presidente e ganhou a eleição, sendo re-eleito novamente em 2007. Em setembro do ano de 2009, ocorreu uma nova eleição com chapa única e, conforme o estatuto da Associação, ele não poderia candidatar-se como presidente, o que motivou que ele ficasse no cargo de vice-presidente7. A partir das conversas travadas com o Movimento Negro e a participação nos encontros estaduais e nacionais, evidenciou-se a necessidade para a regularização da Associação. Anteriormente à ida para Recife, Capoeiras já contava com uma Associação Comunitária, cuja presidente era Maria Lídia Basílio da Costa, mas a entidade ainda não estava regularizada nesse período, o que apenas aconteceu no ano de 2003, quando foi criada a Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras. Ao ser regularizada, passou a ser acionado o termo “quilombola” em sua constituição, fato que foi lembrado por Manuel Batista dos Santos:

7. De acordo com o Capítulo IX- Das Disposições Gerais e Transitórias do Estatuto da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras, o Art. 26º declara: “O mandato da Diretoria Executiva e Conselho Fiscal terminará ao término de 02 (dois) anos, podendo ser reeleito por mais um mandato”.

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Com a fundação da nossa associação em 2003, o presidente era Lí-dia. Foi fundadora com visita e chamamento de Elizabeth. Fizeram algumas viagens. Ela envolveu outras pessoas, inclusive eu fui uns desses envolvidos e estou nesse movimento até hoje, que desenca-deou em associação, que foi a primeira associação a ser registrada. Foi essa, que outra não existia. Eu faço parte da associação desde a fundação e já passemos por duas gestões como presidente e como estatuto não permitia que eu saisse mais como presidente, mas estou saindo como vice. Eu queria ficar só como associado, mas o pessoal não quer (Setembro de 2009).

Em outra ocasião, perguntado sobre a nomeação da associação, seu Manuel declarou:

Antes, logo quando foi aberta, quando foi fundada, ela (a associa-ção) passou quase dois anos só com o nome sem ser cadastrada, né! Registrada. Antes, era associação comunitária. Aí, quando foi cadas-trada passou para quilombola de Capoeiras. Antes, era só associa-ção comunitária. (...) Aí, mudou para quilombola. Aí, em 2003, teve uma viagem que a gente foi lá para Recife. Aí, nessa época de 2003 que passou para quilombola. Essa foi à primeira viagem que eu fiz. Primeira, não, ah! Já tinha ido a Brasília, Foi a segunda para Recife. Foi um encontro que teve de comunidade né? Tinha muitas comu-nidades. Tinha Sibaúma, Gameleira, tinha os Negros do Riacho, a dona Teresa... Só sei que foi muitas comunidades. Era um encon-tro de comunidades quilombolas de todo lugar, de São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia, Alagoas, Maranhão. Eram 26 comunidades no encontro. Foi um encontro de sete dias. Esse encontro era promovi-do pelo Banco Mundial. Teve até um prêmio que foi sorteado pelas comunidades (...) (maio de 2008).

Como está registrado no estatuto da associação, no capítulo I, artigo 1º, encontramos: “É instituído aos 12 dias do mês de janeiro de 2003, a Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras-Município de Macaíba- Rio Grande do Norte, originária de um movimento espontâneo das famílias desta comunidade”. Por meio dessa pesquisa, estamos constatando que houve um processo histórico-político-social para efetivação desse fato. Do período de 2003 a 2005, Lídia assumiu a presidência da AQMC. A primeira secretária era sua filha Cidileide, que atuou por três anos como

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representante da Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (Conaq) no estado. Em um dado momento, a ex-presidente da AQMC resolveu formar outra associação, a Associação das Mulheres Quilombolas de Capoeiras.

Tinha algumas pessoas na associação que eu não combinava. Gostava de gritar os outros, sabe? Só eles sabem fazer as coisas... Aí, eu formei outra associação de mulheres, se arrastando, mas estamos. Ainda falta registrar, mas esse mês vou registrar. Um monte de político já me pro-meteu, mas... Aí, depois não quis pra depois não ter compromisso com político. (abril de 2008).

A existência e regularização de uma associação é uma condição imposta pelo Estado para garantia de direitos e atendimento de demandas sociais, mas o processo é burocrático e lento. Em conversa com a entrevistada, ela relatou sobre a condição atual das mulheres na comunidade, além de alegar que a Associação de Mulheres Quilombolas de Capoeiras conta com 50 associadas. Foi possível perceber através da declaração de Maria Lídia a necessidade da constituição de outra associação como possibilidade de negociação de políticas públicas:

Com a associação, a gente consegue mais coisas. Tudo o que a gente vai conseguir de políticas públicas é através de uma associação... Pra gente, ela [Associação de Mulheres Quilombolas de Capoeiras] já está exis-tindo. Para as políticas públicas, ela só vai existir quando estiver regu-larizada (...) A dificuldade que a gente temos é a regularização,porque nós temos os associados, aí eu não estou cobrando nenhuma taxa aos associados porque não estamos legalizadas. A gente temos 50 associa-das. O que a gente espera que consiga mais. As mulheres daqui têm muita dificuldade em trabalhar, em ficar na comunidade. As mulheres trabalham fora e o marido fica cuidando dos filhos. Aqui tem mais de 100 mulheres trabalhando com empregada doméstica em Natal.

O surgimento das associações coincide com a emergência de uma identidade política quilombola, sobretudo pela aproximação e atuação de mediadores em Capoeiras. De acordo com o Estatuto da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras (AQMC), em seu Capítulo II - Do quadro social, Art. 4ª, serão sócios da associação todas as famílias que atendem os seguintes requisitos:

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I. Podem ingressar na associação todas as famílias da comunidade, que concordem com as disposições deste Estatuto e que, pela ajuda mútua, desejem contribuir para a consecução dos objetos da associação; II. Podem ainda ingressar na AQMC aqueles que participam direta ou indiretamente das atividades da comunidade e que residem na mesma.

Em 2010, eram 180 associados, mas a cada mês esse número crescia. A partir das atividades da associação, pude presenciar o que seria, do ponto de vista do pesquisado, uma “associação”, bem como, a importância dada pelo grupo. Para Maria das Graças Barbosa Moura, 37 anos:

A associação é uma questão de organização da comunidade. Para mim, é assim, eu acho que é assim. Eu não acho não, eu vejo que no estatuto diz alguma coisa assim, é uma forma de organizar a comu-nidade e também de trazer melhoria, a gente sabe que a gente tem as políticas tem tudo mais...Mas eu acho que a associação é uma coisa mais nossa, aonde a gente pode está discutindo as coisas que preci-sam aqui, o que mais a gente quer, como é que a gente vai buscar e a forma como buscar. Eu acho que associação é isso, essa organização, esse tipo de organização da comunidade (setembro de 2009).

Manuel Sebastião de Moura, de 60 anos, conhecido como “Boê”, declarou:

Uma associação surgiria, na minha opinião, no meu conhecimento, que é o meu entender e quando fala numa associação é um símbolo de união. Vejo que estamos forte. Temos parceria com alguma coisa. É vamos dizer assim...reunir ou está unido. Até tem um provérbio que diz que a mão unida, as duas mãos postas unidas faz a força, né. E eu acredito que uma associação, se o povo entendesse o que é uma associação, era uma coisa de andar pra frente, porque é a união que faz a força, vamos dizer. Entenda que seja unido dentro de uma associação por isso que se funda muitas empresas, em associar. Sou associado em uma empresa, por que? Porque ali tem um entendi-mento, né. E aquilo junto pra trabalhar né. Numa associação, através da associação. Associação eu acredito que seja um símbolo de união para que tenha força e com apoio do governo aí que tem. (setembro de 2009).

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Nas interlocuções com o grupo, é enfatizado o quanto uma associação atua como espaço para a comunidade se organizar, passando a ser símbolo de união da mesma, onde se realizam trabalhos em grupo em prol desta. Entretanto, em dados casos como é ressaltada nas falas dos sujeitos, essa união ainda não possui o nível de “participação” esperado pelo grupo, isso se dá pela falta de informação de saber do que se trata uma associação, de qual é a sua finalidade, os seus objetivos.

AS REUNIÕES GERAIS DA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA

Apresento agora a etnografia das reuniões gerais da Associação dos Moradores Quilombolas de Capoeiras8. Compartilho com a proposta de John Comerford (1999: 47) de pensar as reuniões para além de seu caráter meramente instrumental de tomadas de decisões, na discussão de interesses comuns. Elas podem ser entendidas como fator importante:

(...) na medida em que geram espaços de sociabilidades que contri-bui para a consolidação de redes de relações que atravessam a estru-tural formal das organizações, estabelecem alguns dos parâmetros e mecanismos para as disputas pelo poder no seio dessas organiza-ções, possuem uma dimensão de construção ritualizada de símbolos coletivos e colocam em ação múltiplas concepções de representações relativas à natureza das organizações de trabalhadores e ao papel de sés dirigentes e membros, bem como sobre a natureza da própria categoria que essas organizações propõem a representar (COMER-FORD, 1999:47).

Em sua dissertação de mestrado, Comerford analisou as reuniões das associações de assentamento rural e do Sindicato dos trabalhadores rurais no Rio de Janeiro, a proposição acima citada corrobora também para pensar o universo das reuniões da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras. É partindo deste pressuposto que realizarei uma análise das reuniões da AQMC. A fim de apreender do ponto de vista dos associados o que seria uma reunião, qual o sentido atribuído a ela, queremos também

8. Foram acompanhadas quatro reuniões gerais no ano de 2008, nos dia: 06 de maio, 05 de agosto, 04 de setembro e 03 de novembro de 2008. No ano de 2009, nos dias: 03 de março, 07 de julho e 03 de setembro e a eleição da nova diretoria da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras no dia 05 de setembro de 2009.

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realizar uma descrição da reunião da AQMC, de como se tece e são resolvidos os “problemas”, conflitos de Capoeiras. As reuniões gerais eram realizadas de maneira sistemática, acontecendo mensalmente na Igreja Católica de Capoeiras por ser um espaço amplo e com cadeiras suficientes para comportar os associados. As reuniões eram marcadas para ocorrer às 19 horas e tinham de uma a três horas de duração. Ainda que a associação mantivesse o aluguel de um prédio na comunidade, este não era utilizado para reuniões gerais da associação por não comportar a presença de todos os associados, mas era usado apenas para as reuniões internas dos cargos da AQMC. Recentemente, estava sendo finalizada a construção da sede da associação em Capoeiras que, ao mesmo tempo, era onde se situava o Ponto de Cultura Quilombola – Baobá.As datas das reuniões seguintes eram anunciadas durante as reuniões mensais. Era, assim, que os associados ficavam informados das reuniões, mas também quando havia missa na igreja católica local, quando se relembrada a data da próxima reunião. Segundo me informaram seu Manuel Batista e Maria das Dores, os membros da diretoria da associação eram aqueles que relembravam das datas das reuniões. Em termos quantitativos, havia variação de pessoas presentes nas reuniões. Na primeira que acompanhei, havia 47 pessoas e na última estavam 78 associados presentes. O público também costumava variar. Em alguns dias, havia uma grande maioria de mulheres, mas, em outros, predominavam os homens, se bem que em outras reuniões havia equiparação de presença por diferença de gênero. Em 2010, a Associação dos Moradores Quilombolas de Capoeiras registrava 154 famílias ativas, famílias estas que estavam a seis meses contribuindo com uma taxa mensalmente de dois reais. Em termos da disposição espacial das pessoas, percebi o seguinte posicionamento dos presentes. No centro, ficava o presidente da associação, enquanto em seu lado esquerdo ficavam os homens e, na direita, ficavam as mulheres que possuíam cargos na Associação (vice-presidente, secretárias, tesoureiras, conselheiros fiscais, diretora social e diretor esportivo), que geralmente ficavam sentados em cadeiras de plástico dispostas circularmente de frente para os associados. Os sócios sentavam-se em cadeiras de madeira, que ficavam distribuídas em duas grandes fileiras. Percebi, assim, que em diversos momentos as mulheres estavam distribuídas, majoritariamente, no lado esquerdo para quem

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entrava na Igreja e, por seu turno, os homens permaneciam no lado direito. Mas algumas mulheres, sobretudo as mais idosas, ficavam junto dos homens. Contudo, nunca cheguei a ver um homem sentado aonde as mulheres ficavam mais concentradas. A minha presença também era anunciada e, mesmo, bem vista, tal como declarou em umas das reuniões seu Manuel Batista, no momento em que falava sobre a importância do estar associado e da contribuição mensal dos associados:

Por isso que a gente bate nessa tecla todo mês. Vamos nos associar, se aconchegar, né. Não é se associar, é se aconchegar! Então, vamos crescer a nossa associação. Para nós, pra toda a comunidade, pra todas as pessoas (reunião de maio de 2008).

Além de ser um espaço para resolver os “problemas” e as “coisas” da comunidade, percebi que as reuniões eram espaços de sociabilidade. Assim, sujeitos que não viam algum compadre ou comadre havia algum tempo, quando se iniciava ou terminava a atividade, eles aproveitavam para conversar. Era também ocasião para encontros com madrinhas, padrinhos, momentos de “dar a bênção” e “receber a benção”. Eram ocasiões também de descontração, de risadas, aliás, na verdade, muitas risadas. Em frente à Igreja aonde ocorriam as reuniões, as crianças brincavam entre si enquanto seus pais, avôs, mães e avôs discutiam interesses em comum. Nas reuniões, criavam-se oportunidades para vender o artesanato produzido por mulheres de Capoeiras entre suas amigas. Eram toalhas de mesa de tricô, bolsas feitas de fuxico, bonecas de pano, chaveiros entre outros utensílios. Realizavam-se até mesmo o sorteio de brindes para os associados, tais como bacias, conjunto de vasilhas de plásticos, copos, colheres, pratos. Como revelou-me Mãezinha no final da reunião, quando nós duas fazíamos o percurso de volta à sua casa: “esses sorteios são para deixar as reuniões mais atrativas, para o pessoal vim”. Eram nas reuniões que se convocavam os mutirões para melhoria de algum espaço público, tal como, por exemplo, a reforma da nova sede da associação, para as feijoadas comemorativas, para as festas religiosas, principalmente no mês de outubro, o mês da padroeira de Capoeiras, Nossa Senhora Aparecida. Esses mutirões eram convocados a fim de se contribuir com recursos humanos e financeiros.

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PARENTESCO E ASSOCIATIVISMO

No estatuto da Associação Quilombola dos Moradores de Capoeiras, encontramos a definição desta associação e seus objetivos. Em seu primeiro capítulo I e no artigo terceiro, lê-se:

A associação é uma entidade civil, sem fins lucrativos, de duração indeterminada com sede e foro na comunidade de Capoeiras, Muni-cípio de Macaíba/RN, e tem por objetivo:

I- Contribuir para o desenvolvimento econômico social das famílias da comunidade de Capoeiras, através do apoio e participação da rea-lização de obras e melhoramentos comunitários de atividades que venham beneficiar diretamente as famílias, com recursos próprios, cedidos, doados ou emprestados;II- Contribuir para a organização da pequena produção ou outros assuntos ligados a agropecuária;III- Promover a organização das famílias, através de trabalhos edu-cativos, e participativo;IV- Proporcionar a integração das famílias, através de trabalhos edu-cativos e participativos;V- Promover atividades sociais, culturais e desportivas para os seus associados e familiares;VI- Buscar e gerenciar recursos à nível municipal, estadual, federal e internacional, nas áreas de agropecuária, social e cultural, que ve-nham beneficiar as famílias, de forma grupal, coletiva e comunitária.

Ao colocar esse longo trecho do estatuto da AQMC, tenho o objetivo de atentar para a importância da família dentro das questões e objetivos almejados pelo grupo. Era recorrente ouvir expressões, tais como “aqui é uma família que se ramificou”, “somos todos parentes”, “tudo primo aqui”, “Capoeiras é uma família só”, “nós somos uma família de quatro famílias”, “só sei que era misturada danada aqui. Ainda é. É uma benção!”. Eram falas e expressões emitidas durante minha pesquisa em Capoeiras, sobretudo em seu início, quando acompanhei a produção do relatório antropológico de identificação e delimitação do território quilombola de Capoeiras (MILLER, 2007) bem como durante o processo de elaboração deste trabalho. É interessante pensar a “família” como uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008) e como um espaço de onde se pensa e

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age. Isso me fez pensar sobre a natureza da relação entre redes políticas e redes familiares e, assim, compreender como opera a lógica da organização política local.Como demonstrei antes, seria através das atitudes de certas pessoas que poderíamos entender de modo crucial a reorganização política de Capoeiras. Ao entender o papel que Lídia exercia em Capoeiras, tive que remeter para a história de seu próprio pai, que exerceu liderança na comunidade por longo tempo. Ele era considerado por alguns moradores como uma espécie de chefe local junto de outros homens mais velhos. Por tudo isso, sua filha acabou por destacar-se politicamente em Capoeiras e, em certo sentido, essa influência estava passando dela para sua neta, Cidileide.Em setembro de 2009, ocorreu a eleição para a nova diretoria da AQMC. Mas, conforme o estatuto da entidade, Manuel Batista dos Santos não poderia concorrer mais uma vez. Assim, tal como mostrei antes, a estratégia para que ele permanecesse nas atividades da associação foi sua participação como vice-presidente na chapa que se candidatava. Assim, Maria das Graças Barbosa de Moura tornou-se a presidente da AQMC. Mas a relação de parentesco entre a presidente e seu vice era bem próxima, pois ele era irmão da mãe da atual presidenta. Se lançássemos o olhar para outros cargos, veríamos que o avô do ex-presidente era também irmão do avô do atual conselheiro fiscal. As relações entre famílias, ou seja, as relações de parentesco, mapeavam as relações da vida política local. Eram através de arranjos familiares, dos vínculos de amizade e de afinidade que certos sujeitos adquiriam liderança interna, desempenhando papel fundamental na dinâmica das associações. Eram as pessoas que tomavam iniciativa política, conservavam os níveis de participação e mobilização, interagiam com agentes externos à comunidade. Além disso, essas lideranças eram definidas no processo de condução da vida associativa por meio de sua habilidade oratória, por disporem de certo nível de escolaridade ou deterem um bom relacionamento com a comunidade ao não se envolverem em muitos conflitos, intrigas, brigas ou, ainda mais, não serem alvo de desconfiança de qualquer ordem. Associava-se à questão das relações de convivência e de pertencimento à uma dada família bem considerada em Capoeiras, ligada aos troncos familiares da comunidade. Eram famílias que estavam mais próximas da questão quilombola e percebiam a “importância” de se organizar politicamente. Mas, reconhecemos que outrora houvesse outras famílias a atuar frente a esses processos, mas que mais recentemente se apresentavam de forma secundária devido aos conflitos e às desconfianças

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pessoais. Dentro desse quadro geral de situações sociais vividas pelos atores envolvidos em um mesmo campo social, escolhemos trabalhar com uma situação social específica, quais sejam, os eventos que perpassavam a reorganização política de Capoeiras.Deste modo, apoiei-me da discussão clássica de antropólogos africanistas, tais como Meyer Fortes e Evans-Pritchard (1940), que trataram da importância do parentesco na vida política: “(...) por que em qualquer sistema social as instituições políticas, as instituições econômicas, a organização de parentesco e a vida ritual estão intimamente relacionadas e são interdependentes (1940:6). Sendo assim, considero o papel proeminente das relações de parentesco na organização política de Capoeiras. Retomando os autores citados:

Há aquelas sociedades (...) em que mesmo a unidade política mais vasta abrange um grupo de pessoas todas unidas às outras pelos la-ços parentescos de modo que as relações políticas são confinantes com as relações de parentesco e a estrutura política e a organização de parentesco se encontram complementarmente fundidas ( FOR-TES, Meyer; EVANS-PRITCHARD, E. Parentesco na organização política.In: Sistemas Políticos Africanos. 1940:34).

Na perspectiva de Evans-Pritchard e Meyer Fortes, visualizei o parentesco e a organização política, mas considerando as colocações de Maurice Godelier (1992) em relação à definição de parentesco proposto por Meyer e Evans-Pritchard:

(...) o parentesco, antes de mais nada, são as relações de filiação exis-tentes entre indivíduos conectados por vínculos genealógicos e reu-nidos em um mesmo grupo de dependência, linhagem, clã, graças a um princípio que privilegia seja a descendência pelos homens(sis-tema patrilinear), seja a descendência pelas mulheres( sistema ma-trilinear), ou que combina esses dois princípios em diversos tipos de estrutura biliniares, ou então reúne todos os descendentes(tanto pelos homens como pelas mulheres) de um casal de ancestrais ou de um par de primos germanos de sexo oposto (GODELIER, 1992: 12).

Em Capoeiras, a própria divisão do espaço da moradia refletia as relações de parentesco. Assim, os grupos familiares tendiam a ocupar um determinado

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território dentro de Capoeiras, tal como se diz: “Aqui de perto da lagoa tem Mario que está arrudiado dos filhos. Tem Antônio velho que está arrudiado dos filhos”. As relações dentro da Associação perpassavam também as relações familiares, pois, tal como foi apontado, era geralmente uma filha, uma sobrinha, primos, tios, tias ou parentes próximos que ocupavam cargos de direção na AQMC. Mas aliado a isto também existia a questão da desenvoltura, de uma boa oralidade, simpatia para com o relacionamento com outras pessoas. Tudo isso se somava ao fato do grupo desejar um “representante” que participasse e “deixasse claro” as coisas que aconteciam na associação. Na casa de farinha, o ato de raspar, de prensar e de cozinhar a farinha seguiam relações de parentesco, de compadrio e amizade. Uma determinada família convocava os filhos, netos, genros, sogras, compadres, comadres para ajudar no processo da “farinhada”. Por exemplo, uma mulher chamava as suas filhas e dependendo da quantidade da mandioca (advinda da plantação do seu roçado ou do roçado do marido, pai ou mãe) convidava uma comadre para ajudar na raspagem da mandioca. Em outro momento, a filha dessa mulher ou sua comadre iria chamar outra para auxiliar na produção da farinha. Assim, eram estabelecidas as relações de amizade e confiança. Quero chamar atenção aqui para o lugar da família e das relações de compadrio, que tinham uma importância crucial nas relações do grupo. Estou pensando a família como também um modelo político, porque outrora, antes da institucionalização da Associação, o poder político em Capoeiras era atribuído a uma determinada pessoa de uma determinada família. Ele era conhecido por alguns como o “chefe”, que pertencia aos troncos velhos (famílias mais antigas, extensas). Para qualquer ajuda que era necessária (comida, remédio, dinheiro, etc.), esta pessoa estava apta para auxiliar e aconselhar aqueles que necessitavam dos seus conselhos, mesmo apadrinhar alguém em uma constante troca de favores. Assim, a ajuda mútua, as oportunidades políticas ou o acesso à terra tinham como fundamento as relações de parentesco. Através de uma investigação inicial apontada neste trabalho, percebo que a forma associativa criava estratégias de diálogo com o Estado e outros órgãos, tais como as ONGs, com intuito de consolidação, reconhecimento e concretização de direitos sociais e políticos, ou seja, era através desta prática associativa que existia a possibilidade de uma cidadania reconhecida. Compreendo que através das formações de novos dirigentes, das novas posições de comando e poder na comunidade eram criados, sobretudo, por

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consenso ou conflito, por meio de cargos instituídos e formalizados através das associações, que eram fruto de relações de vizinhanças, de compadrio e de parentesco. É interessante pensar as políticas públicas existentes atualmente em Capoeiras, sobretudo a construção do primeiro Ponto de Cultura Quilombola do estado do Rio Grande do Norte, bem como a consolidação da Cooperativa de Beneficiamento da Farinha de Mandioca, no qual entendo que o acesso a essas políticas sociais são o fruto e reflexo da mobilização política em moldes do associativismo (FREIRE, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mobilizações políticas geradas pelo processo de formação quilombola (ARRUTI, 2006) tiveram como conseqüência mudanças no processo de organização política destas comunidades, que são significativas para a estruturação das relações sociais do grupo. O associativismo se insere nesse contexto: é um modelo de organização civil para reivindicação de direitos e estabelecimento de diálogo com diversas agências externas às comunidades e tem crescido cada vez mais entre os grupos étnicos, constituindo de fato novos desafios para sua implementação, administração e uso pelos grupos bem como pelas redes clientelistas a que estão historicamente vinculados. Ao estudar a organização e o processo de re-organização política com a institucionalização das associações, tencionei explorar as relações entre o grupo e o envolvimento com diversas agências mediadoras (ONGs, Estado, Universidades, etc). Através de uma investigação inicial, percebo que a forma associativa cria estratégias de diálogo com o Estado e outras entidades como as ONGs, visando a consolidação, reconhecimento e concretização de direitos civis, políticos e sociais. Compreendo que a formação de novos dirigentes é responsável pela criação de novas posições de comando e poder na comunidade (o que nem sempre acontece de forma tranqüila), sobretudo, pelos cargos instituídos e formalizados por meio das associações - frutos de relações de vizinhança, compadrio e de parentesco.Deste modo, procurei compreender, partindo dos modelos pré-existentes baseados no parentesco, o modelo de associação como instrumento político acionado pelo grupo, uma vez que o modelo de organização civil exigido na legislação brasileira é a formação de associações com suas específicas rotinas administrativas para estabelecer diálogo com outras esferas públicas, que ultrapassam as fronteiras da comunidade: sua obrigação legal de representar a coletividade em diversos assuntos como território, educação e saúde,

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em outros espaços sociais. É no diálogo (por vezes tenso) entre modelos de organização política que tais comunidades constroem seus projetos políticos. Em meio à essa conjuntura, tentei pensar, em especial, as relações de parentesco com o intuito de compreender o papel de instituições ou modelos organizacionais (BARTH, 2000; WOLF, 2002) como a família, a vizinhança ou o compadrio, para os novos arranjos políticos que vêm se formando.Com isso, identifiquei novas formas de organização do grupo: as associações. A prática associativa demanda novas formas de lidar com a administração de recursos, de gerenciar uma atividade, de alcançar determinados objetivos que perpassam desde o aprendizado de escrever a ata das reuniões até trabalhar com questões financeiras, a cópia de documentos, o recibo de compra e de vendas de produtos. Essas práticas têm sido aprendidas durante o processo da construção de um modelo institucional.Além de dar visibilidade a esses grupos através das suas práticas, o associativismo legitima um direito de reconhecimento de uma cidadania frente ao Estado e perante a sociedade em geral, mas marca um espaço de construção histórica e de luta por direitos sociais. Pretendo enfatizar que as relações de parentesco assumem papel importante na organização política em Capoeiras através da gênesis das associações. Afirmo, então, que as relações de parentesco norteiam as principais relações sociais do grupo, estando presente na constituição da reorganização política de Capoeiras, não é à toa que a fala do presidente da Associação dos Moradores de Capoeiras, durante uma reunião da associação, foi: “Não é se associar é se aconchegar”. Essa expressão pressupõe outra lógica para lidar com as relações da vida associativa, havendo como pano de fundo a lógica familiar.

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CAPITULO XISENTIDOS DA IDENTIDADE ENTRE MILITANTES NEGROS DE MOSSORÓ (RN)

Francisco Carlos de Lucena1

Este artigo discute a problemática relativa de construção de “identidades ra-ciais” em um contexto bem específico. A discussão desenvolvida baseia-se em pesquisa realizada na cidade de Mossoró nos anos de 2006 e 2007 entre os mi-litantes negros do Centro de Estudo, Pesquisa e Atividades Culturais: Negro e Lindo2. Esse texto é uma modificação do quarto capítulo de minha dissertação de mestrado (LUCENA, 2007). Discuto aqui, sobretudo, o processo de au-to-afirmação identitária dos militantes negros mossoroenses. As entrevistas apontam um processo de construção da “identidade negra”, permeado pela subjetividade dos militantes a fim de elaborar uma imagem positiva do negro diante dos preconceitos sofridos, além de colocar o discurso da mistura ra-cial como um aspecto intrínseco de suas “identidades negras”. Dessa forma, o artigo permite pensar o processo de auto-afirmação dos militantes, dando ênfase, sobretudo, ao contexto social de sua elaboração. Optamos por colo-car “identidades negras”, no plural, por compreendermos que a construção de “identidade” engloba tanto particularidades do contexto cultural como da subjetividade das pessoas envolvidas. Dessa forma, a “identidade” é pensada como uma realidade processual, dando ênfase às mudanças e às diferencia-ções no interior do grupo ou sociedade (OLIVEIRA, 2003; POLLAK, 1992).

1. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN. Agradeço as sugestões, as revisões e os comentários de meu orientador, Carlos Guilherme Octaviano do Valle. 2. Vale destacar que as palavras colocadas entre aspas indicam categorias e termos técnicos, além de enfatizar o caráter cultural e histórico de seu uso. Os vocábulos em itálico correspondem aos termos locais, usados no contexto da militância negra de Mossoró. Com isso, busco dar prioridade às especificidades locais e as particularidades históricas e culturais que permeiam as discussões sobre “raça” e racismo.

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A cidade de Mossoró localiza-se na região do semi-árido do Rio Grande do Norte, distando 277 quilômetros da capital do estado, Natal. Segundo os dados do IBGE, sua população foi estimada em 234.390 habitantes em 2007. É a segunda maior cidade do estado em decorrência de um forte pro-cesso de crescimento urbano, ocorrido ao longo da década de 1980. Dentre suas principais atividades econômicas, devemos citar: a extração e indus-trialização de sal, a extração de petróleo realizado pela Petrobrás, a agri-cultura irrigada e o comércio logístico. O crescimento urbano de Mossoró foi causado, sobretudo, após a instalação da infra-estrutura da Petrobrás e o fortalecimento da agricultura irrigada na região. Essas atividades trou-xeram significativas transformações socioeconômicas para a cidade. Os investimentos na produção petrolífera fizeram com que a cidade despon-tasse “como uma das mais importantes áreas em volume de produção de petróleo do país” (CASTRO, 2001: 25). Foi também a partir da década de 1980 que se consolidou a produção de frutas irrigadas, fazendo com que Mossoró ocupasse uma posição de destaque no mercado de frutas nacional e internacional. Os principais produtos frutícolas exportados são o melão, a manga e a melancia. Em 2000, passei a residir em Mossoró quando ingressei no curso de gra-duação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Foi, porém, nos dois últimos anos da graduação que iniciei os primeiros contatos com a militância negra da cidade. Primeiramente, conheci uma das militantes do movimento negro local. Com o passar do tempo, intensificamos os contatos e, nas nossas conversas, demonstrei in-teresse em realizar um estudo sobre a dinâmica do movimento negro. Re-solvi elaborar, então, um projeto de pesquisa, com o objetivo de entender a organização da militância negra de Mossoró e acabei elaborando minha monografia de graduação. Ao iniciar o curso de mestrado na UFRN, con-tinuei pesquisando sobre a militância negra local. Dessa vez, o propósito da pesquisa era realizar um estudo comparativo entre os processos de auto--afirmação da “identidade negra” dos militantes e de moradores do bairro popular de Santo Antônio, buscando refletir sobre as semelhanças e dife-renças em tais processos identitários.Um dos aspectos cruciais da pesquisa etnográfica de campo é o estabeleci-mento de contatos com os possíveis interlocutores. Uma preocupação cons-tante que o antropólogo deve ter é, justamente, a sua aceitação no contexto social dos pesquisados (FOOTE-WHYTE, 1980). Isso porque, do resultado dessa aceitação, depende o andamento da pesquisa. Ademais, a pesquisa

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de campo apresenta-se como contexto por meio do qual estão colocadas diversas expectativas, por parte dos entrevistados e onde o antropólogo precisa ter clareza de seu papel diante do grupo. A pesquisa de campo é uma configuração singular que depende dos parâmetros da sociedade em estudo, mas também das relações entre antropólogo e seus interlocutores. Desse modo, é fundamental o controle das impressões nos processos de interação social com os agentes, redes e grupos a serem pesquisados (GO-FFMAN, 1978). No contexto de pesquisa, as impressões são o resultado de um complexo processo de reflexividade, envolvendo o pesquisador e seus interlocutores (BERREMAN, 1980). De fato, a entrada do antropólogo no campo configura um encontro de alteridades e, portanto, uma situação de estranhamento. O antropólogo deve se apresentar a fim de criar possibili-dades de construção de relações sociais substantivas, que permitam o de-senvolvimento posterior da pesquisa (BERREMAN, ibid). Nesse sentido, portanto, cada pesquisa possui especificidades e dilemas, que servem para aprimorar o método e as técnicas de pesquisa em antropologia. Em meu caso, eu já mantinha contatos com os militantes desde 2003, então, ao iniciar o trabalho, em 2006, já conhecia todos os meus interlocutores de pesquisa. Desse modo, encontrava-me em uma situação privilegiada. Os militantes do movimento percebiam-me como um agente que poderia co-laborar com a divulgação das ações do ativismo negro local. Realizei, assim, entrevistas com a maioria dos militantes do movimento negro de Mossoró. Além deles, fiz também entrevistas com quatro ex-militantes. Foram eles justamente que iniciaram a organização do movimento negro local, e atual-mente, por mais que estejam à distância da militância continuam colocando o problema do racismo em seus eventos teatrais e faziam militância à sua própria maneira. Esses ex-militantes se desligaram do grupo por não con-cordarem com a forma do movimento fazer suas mobilizações. Para eles, a militância negra de Mossoró estava se restringindo a realizar dois eventos apenas por ano: um no dia da Consciência Negra e o outro no carnaval. Também enfatizaram que, quando criaram o movimento, o propósito era construir uma agenda bem mais abrangente. Para eles, o movimento negro local estava se tornando, de certa forma, “elitista” não conseguindo, assim, ter maior visibilidade perante a sociedade mossoroense (LUCENA, 2007)3.

3. Por não ser “negro”, achava que a “cor” da pele poderia se transformar num entrave para a pesquisa, mesmo conhecendo a maioria dos militantes do Movimento Negro de Mossoró. Depois, acabei por relativizar totalmente esta idéia e entendi que, para os militantes, a “cor” da pele não se

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O NEGRO E LINDO

O surgimento do movimento negro de Mossoró está relacionado ao mundo do teatro mossoroense, mas igualmente pela participação de pessoas liga-das a setores da Igreja Católica. Ele foi iniciado na década de 1980 através das ações dos grupos de teatro Terra e do grupo Tártaros. Os primeiros militantes do movimento negro tiveram participação basicamente nos dois grupos teatrais, compostos, em sua grande maioria, por atores “negros”. Ha-via entre eles o interesse em abordar questões relativas ao preconceito racial em seus espetáculos. Perseguindo tal objetivo, tentaram inserir a questão do racismo na agenda de suas apresentações teatrais. Apesar de existir cer-ta mobilização desses atores, o movimento negro somente começou a se organizar em 1985 (LUCENA, 2007). Nesse ano, o processo de organização foi fortemente influenciado pela visita à Mossoró de Frei David, religioso mineiro e liderança política do combate ao racismo no Brasil4. Frei David participou de um seminário na cidade que abordava o racismo na sociedade brasileira. Esse seminário foi o estopim para que os atores começassem a organizar o movimento negro local. É importante frisar que Frei David visitou a cidade por influência de dois seminaristas mossoro-enses, que estudavam em Recife e eram irmãos de uma atriz de teatro do grupo Tártaros. Vejamos o que uma militante falou sobre a importância da visita de Frei Davi para o início da organização do movimento.

Quando este Frei veio para Mossoró foi de uma riqueza de possibili-dades, que a gente não conhecia. Esta coisa do racimo, da negritude

traduzia num entrave para se ter acesso ao movimento e até para participar da sua militância. Para eles, o que mais importava era o compromisso com a luta contra o racismo. É claro que eles não me viam como um militante. Naquele contexto, eu representava a figura do pesquisador; da pessoa que detinha um conhecimento especializado sobre o racismo e poderia fazer uma análise da ação anti-racista do Negro e Lindo. Lembro-me de uma entrevista que realizei com uma militante, que afirmou que “eu era a pessoa mais indicada para saber se ela era uma militante ou não, pois estava pesquisando sobre o assunto”. 4. Na década de 1980, Frei David desenvolveu um trabalho religioso que misturava os cânticos da religião católica com os sons dos tambores da umbanda e do candomblé. Atualmente, Frei David dedica-se a trabalhos, sobretudo na área da educação, sendo o diretor executivo da EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes – que é uma associação da sociedade civil sem fins lucrativos que atua no Sudeste. O seu objetivo é buscar promover a “inclusão” da população “negra” nas universidades públicas e particulares do país. Pode-se notar, então, que Frei David vem se destacando, desde a década de 1980, na luta contra o racismo no Brasil. Ver portal da EDUCAFRO: http://www.educafro.org.br/.

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era, naquele momento, muito distante das nossas discussões. Então, chegou, aqui em Mossoró, este padre com muita música e discussão sobre o racismo. Ele passou três dias aqui. Fez um seminário. Passa-mos três dias em Mossoró discutindo racismo e negritude. (Mulher, 41 anos, casada, sem religião; curso superior incompleto).

Depois do seminário, os atores dos grupos de teatro citados começaram a se reunir com o objetivo de elaborar a agenda pública do movimento. Como resultado das reuniões, surgiu uma agenda composta por três ativi-dades: a Louvação ao baobá, a exposição fotográfica Negro e Lindo e o bloco e desfile carnavalesco da boneca negra Maria Espaia Brasa. Estas atividades conjugam elementos valorativos da identidade do Negro e Lindo. A Louvação ao baobá é realizada anualmente na Estação das Artes Eliseu Viana, o principal espaço de atividades festivas públicas da cidade, no dia da Consciência Negra (20 de novembro). Ressalto que a realização da Lou-vação na Estação das Artes se dá porque lá existe um baobá (adansonia digitata), uma árvore de grande porte, advinda das estepes africanas. A Louvação ao baobá significa, para os militantes, um momento de louvor aos seus antepassados africanos e o fortalecimento dos seus laços simbó-licos com a África. Para eles, o baobá é visto como um símbolo de resis-tência dos “negros” ao regime de escravidão. O bloco e o desfile da boneca negra Maria Espaia Brasa saem pelas ruas de Mossoró durante o carnaval, percorrendo várias ruas do bairro Santo Antônio. O objetivo do bloco e do desfile da boneca é trazer para o espaço público temas relacionados à discriminação racial e outras formas de preconceito. A exposição fotográ-fica Negro e Lindo era realizada em locais variados a cada ano: o Banco do Brasil, a COSERN (Companhia Energética do Rio Grande do Norte), o SESC-RN (Serviço Social do Comércio) e na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, considerados pelos militantes negros como espaços estratégicos para dar visibilidade à beleza “negra”. Em 2004, a referida expo-sição fotográfica deixou de ser apresentada publicamente. Assim, a militân-cia do Centro de Estudo, Pesquisa e Atividades Culturais: Negro e Lindo vem centrando mais atenção na organização da Louvação ao baobá e do desfile de Maria Espaia Brasa. É importante enfatizar que o movimento negro está sendo pensado aqui como uma forma de organização política de pessoas com o objetivo de lu-tar por igualdade racial, buscando colocar a cultura como base valorativa da atividade ético-política (GUIMARÃES, 1999; HANCHARD, 2001). O

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Negro e Lindo é composto por seis militantes: uma atriz de teatro, duas pro-fessoras universitárias, um fotógrafo e dois jornalistas. Vale salientar que fiz entrevistas com dez pessoas ao todo, pois, além dos seis militantes, entre-vistei quatro ex-militantes do Negro e Lindo. Busquei descrever, mesmo de forma sintética, a conjuntura atual do Negro e Lindo. No entanto, isso foge ao objetivo do presente artigo. Uma descrição etnográfica mais densa (GE-ERTZ, 1989) encontra-se na minha dissertação de mestrado (LUCENA, 2007). Contudo, enfatizo que a intenção foi traçar um panorama da con-juntura organizativa do movimento negro local, buscando evidenciar de forma breve o espaço de atuação dos militantes entrevistados. Vale ressaltar que, apesar de ter feito observação participante na realização do desfile de Maria Espaia Brasa e na Louvação a Baobá, as interpretações desenvolvidas no artigo têm embasamento, sobretudo, nas falas dos militantes. É impor-tante lembrar aqui a preocupação de Malinowski (1980: 40) quando afirma que “há freqüentemente uma enorme distância entre o material informati-vo bruto – tal como é apresentado ao pesquisador em suas próprias obser-vações – e a balizada apresentação final dos resultados”. Então, sabemos que os discursos, ao mesmo tempo em que revelam, também escondem parte da realidade social. Não obstante, as falas dos militantes permitem refletir, tal como mostrarei mais adiante, acerca de peculiaridades dos processos de auto-afirmação de determinadas pessoas como “negras”.

IDENTIDADE SOCIAL

Com relação à bibliografia utilizada, apoiei-me em autores que discutem a construção da “identidade social”, priorizando a sua dimensão seletiva e relacional. Entendo que, abordando o fenômeno da “identidade” dessa forma, evita-se pensá-lo de maneira estática. É na perspectiva relacional e dinâmica que desenvolvo a discussão sobre “identidade negra”. Em relação à “raça” e o discurso da mestiçagem, estamos nos apoiando num referen-cial teórico que entende tais realidades como historicamente determinadas e constantemente atualizadas nas práticas sociais. Dessa forma, portanto, pretende-se afastar da discussão uma visão monolítica da elaboração de “identidades negras”. Para melhor delimitar o sentido em que está sendo empregada a categoria “identidade” neste artigo, partimos da premissa de que as “identidades so-ciais” são construídas mediante processos sociais dinâmicos, envolvendo aspectos da subjetividade, do contexto social e das especificidades cultu-

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rais. Dessa forma, afasto-me de qualquer intenção objetivista ou essencia-lista. As “identidades” não se elaboram a partir de uma polarização estan-que entre o eu e o outro. Elas são marcadas por tensões e negociações, co-locando-as sempre como realidades projetadas através das subjetividades das pessoas e do contexto social e político (VALLE, 1999). Isso sugere que as “identidades” nem são homogêneas em termos grupais e nem contínuas no tempo. Elas estão sujeitas às mudanças sociais e aos desdobramentos das conjunturas políticas locais e globais (HALL, 2006). Diante disso, é im-portante salientar que as “identidades” não obedecem a um modelo fixo. Para uma análise acerca da construção de “identidades sociais”, é muito mais proveitoso buscar entendê-las a partir das relações que os membros de certos grupos articulam com outros, considerados como diferentes. De fato, é no interior dessas relações que as “identidades” se modificam. Vale enfatizar que a “identidade” apresenta-se também como um elemento po-lítico e organizativo, podendo ser estrategicamente negada ou afirmada de acordo com a conjuntura social e política e o momento histórico em que está inserida (BARTH, 2000).Como destacamos, a “identidade” é sempre pensada em termos relacionais. Dessa forma, as categorias sociais de auto-atribuição são produzidas no âmbito das relações sociais e das disputas de poder (ELIAS & SCOTSON, 2000). Isso implica que a “identidade” resulta da manipulação de uma ima-gem positiva ou negativa do grupo. Com efeito, os processos identitários se baseiam no fato de que somos sempre o outro de alguém, ou seja, o outro de um outro (AGIER, 2001). Assim, a “identidade” individual ou coletiva se forma a partir de um olhar sobre o outro ou a partir do olhar que o “ou-tro” legitima sobre nós. Isso coloca em foco questões relativas a conflitos e alianças, dando a “identidade” uma roupagem, de certa forma, contingente. Desse modo, as “identidades” não devem ser pensadas como categorias fi-xas no tempo e no espaço. Elas se elaboram através de complexas interações dos indivíduos com seu grupo e com o grupo de fora, configurando um espaço de encontro de subjetividades (DU BOIS, 1999 [1903]). A “identidade” remete a se pensar sempre num caminho inacabado e re-novável, caminho esse que se constrói mediante um trabalho de elabora-ção de um passado mais ou menos comum e de uma memória coletiva compartilhada pelo grupo (ELIAS & SCOTSON, 2000). Como sugere Max Weber, é preciso que exista uma crença subjetiva em uma origem comum para se criar laços de solidariedade e de comunhão no grupo (WEBER, 2000 [1922]). Isso não exclui a presença do conflito e da heterogeneidade

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no interior da formação identitária. Mas, tal crença subjetiva é necessária e apresenta-se como um fio norteador da “identidade social”. Vale salientar que os discursos sobre a origem comum do grupo são usados como legi-timadores da “identidade” grupal, perfazendo uma retórica estratégica no sentido de dar maior destaque ao processo identitário (CAPONE, 2005). É também relevante destacar que os processos de elaboração de “identidades sociais” são marcados, conforme Pollak (1989), como um “enquadramento de memória”, qual seja, como um “trabalho de reinterpretação incessante do passado em função dos combates do presente e do futuro” (POLLAK, ibid: 10). Dessa maneira, pode-se dizer que a formação de “identidades sociais” é permeada pelo trabalho de construção da sua história, utilizando os elementos considerados mais relevantes da memória coletiva do grupo. Assim, quando analisamos as “identidades”, há um exercício de se deparar com inovações, invenções, e uma grande abertura para as demandas do mundo presente. Em razão disso, a análise sobre as “identidades” deve se deslocar simples-mente do conteúdo cultural dos grupos para o estudo da emergência e da manutenção das formas de categorização desses grupos ou sociedades (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998). Ou seja, não existe uma corre-lação estreita entre traços culturais específicos e “identidade” de um grupo social. Muito mais importante para se pensar “identidade” é buscar enten-der como as pessoas, em seus contextos de interação, estão se definindo e definindo as outras pessoas como pertencentes ou não a um determinado grupo social. Dessa forma, categorias genéricas como “índio” ou “negro” não dão conta do processo de formação das “identidades”, sendo mais proveito-so refletir, e buscar entender a forma como as pessoas se reportam às suas identificações raciais, mediante os contextos de interação e de mudanças. Portanto, a reflexão sobre “identidade” pressupõe sempre uma contextuali-zação densa das especificidades das relações sociais vividas pelos indivíduos envolvidos. Como vêm destacando estudos antropológicos, a “identidade” é um fenômeno dinâmico, seletivo e situacional (OLIVEIRA, 2003). Dessa forma, dependendo do contexto social e político, “identidades” podem res-surgir; outras podem ser silenciadas. Pensar assim os processos identitários permite considerar as pessoas como agentes sociais capazes de operar e cons-truir a sua cultura, modificando-a e transformando a si mesmas de acordo com seus próprios valores e interesses políticos, mesmo que neste processo de transformação da cultura e das “identidades”, ajam muitas vezes de modo não-refletido.

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Além disso, é pertinente evidenciar que a formação de “identidades” envol-ve também os fluxos e símbolos culturais globais (HANNERZ, 1997). O refe-rido autor enfatiza que as “identidades” locais são influenciadas por dinâmi-cas globais, provocando modificações em seu interior. Hall (2006) também salienta que os processos de globalização colocam as pessoas dos mais dife-rentes lugares do mundo em contextos de interação com símbolos global-mente vivenciados. Tanto é que a antropologia vem demonstrando que um dos grandes fatores de divulgação de símbolos étnicos e trajetórias de mo-bilizações de base étnicas é justamente a mídia (GLAZER & MOYNIHAN, 1975), principalmente através da TV, dos jornais, da internet, etc. No caso das “identidades negras” e suas relações com a modernidade e a globalização, vale pensar na discussão sobre a diáspora negra. Paul Gilroy (2001) sugere que a “cultura negra” e as “identidades negras” são criadas e redefinidas através de uma troca triangular entre o continente africano, o Novo Mundo e a diáspora negra na Europa. Para ele, esses processos de re-elaboração cultural são efetivados através de uma “conexão que deriva tanto da transformação da África pelas culturas da diáspora como da filiação das culturas da diáspora à África e dos traços africanos encerrados nessas cultu-ras da diáspora” (GILROY, ibid: 372). O que se destaca na argumentação de Gilroy (ibid) é, justamente, a ênfase na capacidade das “identidades negras”, formadas a partir da diáspora, dialogarem com a modernidade. Isso implica em afastar a discussão sobre “identidade negra” de uma associação exclusi-va com a tradição, tal como aparece em muitas interpretações (SANSONE, 2003). A “identidade negra”, como qualquer outra “identidade”, é extrema-mente dinâmica. Desse modo, a “identidade negra” é um sentido disputa-do através de interações e conflitos sociais. Sua construção pressupõe um exercício de reelaboração por parte das pessoas, seus grupos e sua história. As “identidades negras” somente tornam-se inteligíveis a partir de contex-tos culturais dinâmicos (SANSONE, 2003: 24). Abordar, assim, as “identi-dades negras” possibilita que pensemos como os militantes do movimento negro de Mossoró pensam a si mesmos e aos outros, especialmente através de suas próprias práticas sociais e culturais. Essas identidades são interpreta-das como uma construção intersubjetiva definida nos contextos sociais. Para ilustrar isso, antes de tratar especificamente dos relatos e formas de reflexão sobre a identidade que os agentes do movimento negro me dispuseram, gos-taria de apresentar uma construção singular da africanidade em Mossoró, que é ritualizada e performatizada através de uma prática cultural bem inte-ressante: a louvação ao baobá.

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A LOUVAÇÃO AO BAOBÁ: OS SENTIDOS DA ÁFRICA NORIO GRANDE DO NORTE

Realizado no dia da Consciência Negra, a primeira Louvação ao baobá foi organizada em 20 de novembro de 2000, quando os militantes do movi-mento negro Raízes e artistas da companhia Escarcéu de Teatro souberam que existia um pé da árvore na Estação das Artes. Na época, a companhia Escarcéu de teatro era composta, em grande parte, por artistas negros que também eram membros do Raízes e tinham igualmente a preocupação de discutir o racismo através da arte na cidade. Nos anos seguintes, o evento passou a ser realizado pelo grupo negro Raízes, que foi aos pouco incorpo-rando os terreiros de umbanda na Louvação. A Louvação ao baobá possui uma significação multidimensional. Ela impli-ca tanto um processo simbólico de reencontro com a África, de valorização da resistência dos negros à escravidão e ao preconceito racial; como tam-bém um momento performativo de afirmação e visibilidade de expressões culturais negras em Mossoró. Por ser realizada em um local público de in-tensa movimentação de pessoas, a Louvação constitui-se como um espaço de visibilidade bastante significativo para o movimento negro de Mossoró. O evento foi se consolidando gradualmente na agenda das comemorações do dia 20 de novembro. Ao conversarmos com as organizadoras da Louva-ção, elas explicaram como foi se constituindo o evento:

A louvação ao baobá necessita de uma explicação. Primeiro, o que é um baobá? Baobá é uma árvore africana que na nossa cidade, em 2000, identificamos um exemplar desta árvore. Conta a história que veio para o Brasil trazido pelos escravos em seus cabelos como sím-bolo de vinculação das suas origens. Nós descobrimos que existia um baobá plantado na Estação das Artes, em homenagem a Vingt Twin Rosado. Numa das discussões do Raízes, foi proposto que a gente realizasse neste lugar um reencontro com as nossas origens, colocando como símbolo da nossa consciência negra e ocupando o espaço público local com a referência a esta árvore negra. Este evento seria uma adoração no sentido de uma referência ao pé desta árvore e às nossas origens africanas. Inicialmente, foi feita pelos artistas do Escarcéu e posteriormente nós fomos incorporando os terreiros de umbanda de Mossoró. Hoje é uma atividade realizada pelos terreiros de umbanda. (Fátima, 43 anos, casada, católica, pós-graduada)

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A gente tem duas coisas: Uma porque a gente não tem candomblé na cidade. Mas temos a umbanda que vem de um ritual africano. Eu achei importante englobar todas as formas de preconceito e discri-minações com o negro, com o umbandista e com o homossexual. Não é só do negro, mas é o dia da Consciência Negra para que a gente olhe e veja os discriminados. Isso a gente está conseguindo. Os umbandistas da cidade de Mossoró estão conseguindo crescer o mo-vimento. Eles estão se afirmando como religiosas dentro da cidade e acontece o respeito quando a gente vê que hoje temos quatro terrei-ros. Um dia vai ter cem terreiros com toda certeza. Hoje a gente nem toma mais de conta. É a afirmação social deles, dizendo que estão presentes na cidade. O baobá é de fato uma reverência aos nossos antepassados. (Júlia, 41 anos, solteira, umbandista, graduada)

Chama a atenção o fato do baobá da Estação das Artes ter sido planta-do em homenagem às lideranças políticas da família Rosado e não como uma referência à resistência dos negros ao regime escravocrata. A família Rosado detém o poder político local desde a década de 1930. Estrategica-mente, consegue através de uma série de monumentos, eventos, nomes de praças e prédios públicos atualizar na imaginação local a atuação política da família na cidade. Certamente, a família Rosado não homenageou Vingt Twin Rosado com a plantação de um baobá sem uma estratégia política implícita. Nesse caso, a significação do baobá foi usada pelas lideranças po-líticas locais no sentido de fortalecer sua história familiar e política. Como destaca Kertzer (1988), as realidades e contextos políticos são criados, em grande medida, através de referenciais simbólicos. Esse autor afirma que as criações simbólicas relativas à imagem de uma liderança política são meios poderosos para se garantir uma estabilidade nas relações de poder. Então, o fato de um baobá ter sido plantado pela família Rosado pode sinalizar a intenção simbólico-política de ocupar e criar um sentido próprio para o espaço público, relevando as personagens políticas desta família.Mas o baobá é também um símbolo de resistência e grandiosidade para os povos da diáspora negra (GILROY, 2001). Apresenta-se, assim, como uma fonte de significação para a construção de novas narrativas e novas histórias relativas à presença do negro na sociedade ocidental (BHABHA, 1998). Por representar uma idéia de grandiosidade, o baobá da Estação das Artes, plantado para referenciar uma personagem da política local, conju-gou-se à aspiração militante negra de torná-lo um símbolo de resistência

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para as gerações futuras. Com o decorrer do tempo, os militantes negros deram, assim, outro significado ao baobá, que era associado diretamen-te às origens simbólicas da árvore com o continente africano. No trecho de entrevista acima citado, foi enfatizado o fato da Louvação propiciar um sentido de reencontro com as raízes culturais africanas. Na Louvação, as origens africanas são revividas e realçadas durante a sua realização. Para Sansone (2007), “a África é utilizada como um banco de símbolos do qual são sacados símbolos de uma forma criativa”. Paul Gilroy (2001) sugere que a cultura negra e as “identidades negras” são criadas e redefinidas através de uma troca triangular entre o continente africano, o Novo Mundo e a Diáspora negra na Europa. Para o autor, esses processos de reelaboração cultural são efetivados através de uma “conexão que deriva tanto da trans-formação da África pelas culturas da diáspora como da filiação das cultu-ras da diáspora à África e dos traços africanos encerrados nessas culturas da diáspora” (GILROY, ibid: 372). Vale ressaltar que, para Gilroy (2001), a conexão existente entre as culturas da diáspora com a África não significa um restabelecimento com um passado perdido, mas sim configura um pro-cesso extremamente dinâmico e criativo de trocas e de mistura culturais. Para ele, o hibridismo e a mistura cultural são entendidos como princípios basilares da formação das culturas da diáspora negra. Em sua proposta, está intrínseca a questão da resistência e do poder criativo inerente às culturas. A Louvação ao baobá perfaz o sentido de trocas culturais existentes entre o continente africano e as culturas negras que se organizaram fora da África. Também serve para se pensar no intenso processo de recriação cultural de símbolos africanos que foram trazidos para outras sociedades durante e depois da escravidão. Um outro fato muito interessante é que a árvore plantada na Estação das Artes como sendo um baobá é, na verdade, uma caraibeira (Tabebuia caraí-ba). Popularmente, ela também é conhecida como ipê-amarelo-do-cerra-do. Existem baobás em Mossoró, mas estes se encontram na Universidade Federal Rural do Semi-Árido-UFERSA. Mesmo sabendo que o baobá da Estação das Artes não é “verdadeiro”, a Louvação permanece sendo reali-zada no mesmo local. Um dos fatores apontados pelos militantes para não realizarem a Louvação na UFERSA é o fato de ela se localizar muito distan-te do centro da cidade, tornando-se difícil o acesso para os participantes do evento. A Estação das Artes torna-se um espaço estratégico por permitir uma maior visibilidade à Louvação, já que está situada bem próxima ao centro da cidade. É importante destacar que a Louvação expressa também

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a intenção de combater o preconceito e a discriminação não somente com relação à população negra, mas imbrica-se com outros segmentos social-mente discriminados. Dessa forma, ela coloca-se como uma expressão e espaço plural de afirmação de identidades socialmente estigmatizadas.Geralmente, a Louvação ao baobá iniciava-se por volta das dezessete horas, embora os participantes chegassem bem mais cedo ao local. Podiam ser os convidados dos militantes do Negro e Lindo ou dos pais de santo que iriam fazer parte do evento. Na maioria, eram estudantes e professores univer-sitários, além da presença da imprensa que era chamada pelos militantes, que incluíam também um jornalista. Ficavam tirando fotografias e conver-sando sobre os mais diversos assuntos e, sobretudo, a respeito das questões relativas ao preconceito racial e ao racismo na cidade, enfim dificuldades e problemas enfrentados no cotidiano dos participantes. A Louvação era dividida basicamente por etapas e momentos. Em sua etapa inicial, os mili-tantes do Negro e Lindo e os pais de santo convidavam as pessoas presentes para compor um círculo ao redor da árvore. Outras pessoas ficavam apenas olhando o evento, próximas ao círculo ou dispersas nas proximidades da área. Vale ressaltar que os umbandistas estavam trajados com suas vesti-mentas rituais, deixando bem claro sua afiliação religiosa. Obviamente, não posso afirmar que a Louvação signifique um espaço de afirmação para os umbandistas do bairro popular de Santo Antônio. Mas, ao menos, posso dizer que a Louvação criava um espaço público que encorajava sua apre-sentação religiosa. As lideranças que organizam o evento iniciaram seus discursos, destacando o significado e importância do evento e do baobá para a população negra. Aproveitavam ainda para valorizar a umbanda e destacar as dificuldades que eles enfrentavam por seguirem sua religião. Os discursos e falas eram intercalados pelo batuque dos tambores de umbanda, mas, a cada vez que os tambores paravam, os discursos voltavam a ser proferidos. Em paralelo à louvação, as pessoas, ao passarem na rua, ficavam a olhar, curiosas, pelo que estava acontecendo. Muitas vezes, diziam frases preconceituosas. Às vezes, ficavam rindo dos pontos da umbanda. Geralmente, estas pessoas não esperavam a Louvação terminar, apenas elas passavam interferindo e iam embora. Outros seguiam com seus carros ou motocicletas, gritando algo de caráter estigmatizante. Assim, os discursos iam sendo apresentados um após o outro. Ao térmi-no de cada fala, havia sempre o acompanhar das palmas das pessoas pre-

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sentes. Vejamos o discurso de um pai-de-santo: “Esta louvação significa a nossa busca para acabar o preconceito contra a umbanda e contra os nos-sos irmãos negros. Também serve para louvar o baobá que é uma árvore símbolo do povo africano e da sua luta contra as injustiças que sofreram”. Terminado seu discurso, seguiu-se outra vez o som dos tambores e, então, mais um breve silêncio, interrompido por outro pai-de-santo, que também destacaria a necessidade de se combater o preconceito contra a umbanda. Os discursos religiosos eram alternados com as falas das organizadoras do evento, que destacaram a importância da união dos terreiros:

Esse dia 20 para nós é mais do que o encontro dos ancestrais. Nós que somos umbandistas é o momento de buscar a confraternização entre os terreiros e a população de Mossoró. Para mim, está come-çando a nascer a questão da união dos terreiros da cidade de Mos-soró. E o aparecimento deles em público para sair de esconderijo. (Júlia, 41 anos, solteira, umbandista, graduada).

Mas outra organizadora passou a enfatizar o significado cultural e histórico do baobá. Explicitou claramente a ligação simbólica da árvore com a África:

O baobá aqui está representado nesta cesta com flores e frutos que veio com os nossos irmãos e nossos ancestrais lá da África. Que eles traziam como lembranças do rompimento com suas famílias por causa da escravidão e do tráfico de escravos. E aqui plantaram essa árvore no Brasil. Esta árvore é uma árvore sagrada onde a gente de-posita nossa referência ao nosso passado e aos nossos ancestrais que vieram como escravos. Para nós, este momento é como se nós retor-nássemos às nossas origens. Significa tentar encontrar nosso passa-do. Porque se a gente pegar um branco ele sabe quem é o seu avô, seu bisavô e tetravô. Sabe da história da sua família. Mas se perguntarem a nós, a qualquer um de nós que está aqui, vai ser muito difícil a gente saber. Porque nós não viemos para cá porque quisemos. Nós fomos tirados dos nossos lugares e dos nossos ancestrais. Da sua fa-mília para vir para cá arrebatados. Para vir sofrer aqui. O baobá é esta referência ao nosso passado na tentativa de encontrar as nossas asas nesta história. Nós não vamos encontrar os nossos tataravôs. Mas vamos referenciá-los como negros, como pessoas que respeitam as origens do povo africano aqui nesta cidade. (Fátima, 43 anos, ca-sada, católica, pós-graduada)

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Os discursos duraram por volta de 40 minutos, quando recomeçaram o ba-tuque dos tambores. No segundo momento, são entoados vários pontos de umbanda. Dois círculos de dança foram formados, enquanto os tambores eram tocados e os pontos entoados. No circulo interno, ficavam os religio-sos da umbanda, enquanto os outros participantes formavam a segunda roda, mais exterior. Havia ainda a entrega de flores do baobá. Próximo ao seu tronco, foram colocados vasos de cerâmica com flores, outros com ar-roz e mais outros com água. Durante a realização do evento, o arroz era jogado sobre as pessoas, simbolizando sorte para elas. A água servia para lavar suas mãos. No final, as flores de baobá eram distribuídas, simbolizan-do o fortalecimento dos laços de amizade, a comunhão com as ancestrali-dades africanas e a união para luta contra o preconceito racial. Aos poucos, os dois círculos de dança foram se fundindo em apenas um. Com muita alegria e festividade, a louvação adentrou pela noite, tendo durado duas horas em média. Em geral, podemos destacar algumas questões interessantes a partir dos discursos e falas emitidos. Um deles é a ênfase que os pais-de-santo deram à importância que a Louvação ao Baobá tinha para aproximar os terreiros de umbanda, além de apresentá-la como uma religião digna de respeito. Como também são vítimas de muitos preconceitos, apresentar-se publica-mente é importante para demonstrar que a umbanda é uma religião como qualquer outra e que ela não é uma expressão dos resquícios do primitivis-mo da humanidade (MAGGIE, 2001). Na Louvação, os militantes negros e os umbandistas buscavam estabelecer uma ligação simbólica com o conti-nente africano, apresentada como símbolo de resistência e de orgulho. Era um espaço e momento de ligação com uma África que somente através de um espaço ritualístico era revivida e atualizada, além de ser momento de intensa confraternização entre as pessoas. Assim, a Louvação apresentava-se como um espaço de oposição à uma vida social hierarquizada e conflitiva. Se entendermos que os rituais configuram formas de afirmação simbólica da ordem social (LEACH, 1996), pode-se dizer que a Louvação ao Baobá propiciava significados de afirmação e de fortalecimento das expressões cul-turais Afro-brasileiras no contexto social de Mossoró. O baobá representava a África através da idéia de resistência e grandiosidade que estavam simbo-lizadas na árvore. Isso nos faz lembrar a reflexão de Peirano (1995) sobre a pesquisa do simbolismo das árvores Ndembu por Victor Turner. Ademais, Peirano (ibid) chega a destacar como é recorrente em muitas culturas os rituais que utilizam árvores em suas elaborações simbólicas.

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Sansone (2007) destaca que os processos de africanismo reinventam dife-rentes formas da África a depender das razões políticas envolvidas. A Lou-vação ao baobá possibilita uma ligação com o continente africano através das lembranças do escravismo e das ancestralidades africanas, contextual-mente re-criadas pelos participantes do ritual. Desse modo, a Louvação nos permite pensar nas forças sociais locais que influenciam os modos em que as expressões culturais africanas têm sido classificadas e posicionadas nas diferentes regiões do Brasil (SANSONE, 2007). A Louvação ao baobá instiga também a pensar na relação entre rituais e ação social (PEIRANO, 2001). A Louvação estabelece, ao mesmo tempo, um significado de ligação simbólica com a África e um propósito de dar visibilidade às expressões culturais afro-brasileiras. De certa forma, a re-alização da Louvação revela aspectos de um contexto de conflitos em tor-no das expressões culturais e religiosas. Como os rituais são momentos de intensificação do que é usual na sociedade, eles refletem traços comuns a outros momentos ou situações sociais (PEIRANO, ibid). Assim, a Louvação evidencia e problematiza os preconceitos gerados na sociedade local, tal como apresentado nos discursos dos pais-de-santo e das militantes negras, além de expor a importância do baobá como símbolo de resistência dos afro-brasileiros. Assim, os discursos apresentam a Louvação como um mo-mento de valorização da cultura negra e como um espaço de visibilidade para a umbanda. Entendendo a performance também como um meio agen-te das mudanças culturais (TURNER, 1987), os discursos dos pais-de-santo e das militantes buscaram produzir a Louvação como um espaço afirmativo das expressões culturais afro-brasileiras na cidade de Mossoró. De fato, era um evento que possibilitava o reencontro simbólico, o fortalecimento de laços sociais provocado pela natureza ritualística da Louvação. Como diria Bhabha (1998), era um momento de construção e de elaboração de novos discursos de africanidade, discursos esses que se relacionavam e se con-tradiziam com a própria construção das identidades raciais por parte dos militantes do movimento negro de Mossoró, tal como discutirei a seguir.

A “IDENTIDADE NEGRA” DOS MILITANTES DE MOSSORÓ

Para iniciar essa reflexão, gostaria de destacar que não havia, entre os militantes do movimento negro, uma polarização racial absoluta ou totalmente definida. As categorias de auto-atribuição podiam expressar significados próprios de um sistema de relações raciais que opera segundo

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múltiplas lógicas classificatórias (DA MATTA, 1990). As falas dos militantes evidenciaram, sobretudo, a construção de “identidades negras” formadas a partir de representações sobre “cor”, “raça” e mistura racial. A “cor” está sendo entendida, neste artigo, como um critério classificatório que leva em consideração aspectos fenotípicos e sociais (CAVALCANTE, 1996). Em relação ao fenótipo, vários fatores da aparência, tais como o tipo de cabelo e o formato do nariz, são canalizados para definição da “cor” da pessoa, ficando subjacente a associação com a ideia de “raça”. Os aspectos sociais influenciadores da definição da “cor” englobam, dentre outros, a posição social, as relações de amizade e prestígio que a pessoa possui. Já “raça” está sendo usada como uma categoria social e historicamente determinada, objetivando naturalizar diferenças e desigualdades sociais através de um discurso biologizante (BANTON, 1977). Assim, a “raça” está, essencialmente, ligada à cultura e ao contexto social, afastando tal conceito de qualquer sugestão de determinismo biológico.As falas de alguns dos militantes evidenciavam um processo de auto-afir-mação permeado por representações sobre “cor”, “raça” e mistura racial. A fala seguinte é bastante ilustrativa de tal realidade. Primeiramente, pergun-tei ao militante qual era a sua “cor” e ele respondeu que era “pardo”. Então, fiquei a pensar qual seria o significado de “pardo” que ele empregava. Na realidade, queria saber se “pardo” era entendido, pelo entrevistado, como a sua auto-identificação ou se relacionava apenas a descrição de sua “cor”. Começamos a conversar e, no decorrer da entrevista, ele tentou me explicar a diferença que existia entre ter a “cor” da pele “parda” e ser “negro”.

Considero-me pardo devido a minha origem familiar. Mesmo sendo considerado pardo, visualmente falando, não poderia me considerar assim. Sinto-me negro e me vejo como negro e me defino como negro. E não é pelo fato de gostar e participar de movimentos que militam contra o racismo. É porque sinto em meu sangue e em meu ser que sou negro. (26 anos, solteiro, protestante, segundo grau completo. Grifos do pesquisador).

O militante, ao enfatizar a questão de sua origem familiar e ao sangue, deixa implícito o fato de ser produto da mistura de “raças”. O discurso do militante sugere se refletir acerca dos processos de disputas e de negocia-ções inerentes à construção de “identidades negras”, bem como dos mitos fundadores da nação brasileira, em especial, a fábula das três “raças”. A mis-

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cigenação como projeto ideológico da elite brasileira, colocou o branquea-mento da população como forma de diluir e, gradativamente, formar uma nação “branca” (SEYFERTH, 1995; MUNANGA, 2004). O que tal discur-so ideológico almejava era, de certa forma, não possibilitar aos “negros” a construção de uma “identidade” diferenciada, de uma “identidade negra”. No entanto, o discurso da mestiçagem revela peculiaridades da construção da “raça” em uma nação que se deparou, desde sempre, com a problemática da mistura (ORTIZ, 1985). Ainda mais, é preciso considerar que o discur-so da mestiçagem não é apropriado pelas pessoas de forma neutra. A fala acima permite pensar sobre a complexidade envolvendo a construção da “identidade negra” do militante, e as suas relações com o discurso da mes-tiçagem. Em primeiro lugar, a maneira como o entrevistado se reportou à categoria “pardo” transparece uma dupla vinculação de significado. Num primeiro momento, ela é usada com referência ao encontro de “raças” diferentes, remetendo à origem da família do militante. Já em outro momento, “pardo” parece significar, para ele, uma descrição cromática de sua pele. Mesmo havendo uma associação da categoria “pardo” com a ideia de “raça”, tal cate-goria expressa também, neste caso, uma dimensão descritiva da pessoa em termos de “cor”. Isso porque o militante se refere à categoria “pardo” como uma característica materialmente visível de seu corpo, dando a entender que “pardo” apresenta-se, para ele, mais como uma forma de adjetivar a pessoa com relação à “cor”, do que substancializar a sua “identidade”. O significado que estamos dando a dimensão descritiva da “cor” se apóia nos argumentos de Sheriff (2001) sobre o caráter descritivo de termos como “moreno”, “escuro”, “cabelo cacheado”, que ela ouviu numa pesquisa reali-zada no Morro do Sangue Bom, na cidade do Rio de Janeiro. Para a autora, a dimensão descritiva do discurso relativo à “cor” da pessoa, apesar de ter associações raciais, traduz mais uma descrição provisória de aparência. Em segundo lugar, a categoria “negro” aparece na fala do entrevistado como a expressão de seu sentimento de pertença à população “negra”, e através da qual ele se afirma. A sua afirmação como “negro” indica que, mesmo sendo oriundo da mistura de “raças”, tal mistura não o impediu de construir a sua “identidade negra”. Ao colocar que sente-se negro e se ver como negro, o militante destaca elementos subjetivos de seu processo identitário. A identidade não é construída somente pela imagem elaborada pelo outro. Essa imagem passa por um processo de reflexividade, podendo ser alterada e até contestada por quem a recebe. O que nos permite afirmar

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que as categorias identitárias são, elas mesmas, fruto de uma construção dialética dos sujeitos que as inventam. Ampliando mais um pouco a análi-se, pode-se dizer, de certa forma, que os discursos oficiais, como o discurso da mestiçagem ou da mistura, não são necessariamente aceitos pelas pes-soas nos seus contextos de interação. Eles podem ser questionados. Como sugere Vale de Almeida (2002: 31), “a análise da especificidade não significa necessariamente a aceitação da excepcionalidade – isto é, de alguma espé-cie de luso-tropicalismo ideológico”. A ênfase dada à mistura racial ou à mestiçagem como representantes da particularidade da nação brasileira possui seu viés ideológico. No entanto, pode também revelar aspectos de um sistema de relações raciais alicerçado em tal mistura, apontando caminhos para se falar em “negros misturados”. Ou seja, uma “identidade negra” ciente que é fruto da mistura de “raças”, e não de um sistema de polarização racial (DA MATTA, 1990), sem que a que a idéia da mistura de “raças” oblitere, necessariamente, a construção da “identidade negra”. A meu ver, é isso que sugere as falas de alguns mi-litantes. Para alguns deles, o “negro” brasileiro é racialmente misturado, configurando uma expressão dos intensos contatos das três “raças”. Agora, a constatação, por parte dos militantes, de serem racialmente misturados não foi colocada como um elemento de enfraquecimento de suas “identi-dades negras”. A mistura racial foi interpretada, na visão de alguns militan-tes, como uma realidade que particulariza o Brasil.

No Brasil, ninguém é plenamente branco e nem plenamente negro. O Brasil tem uma mistura muito gostosa de raças e de suingues. Eu acho fantástica a mistura racial brasileira. O sincretismo religioso do Brasil é fantástico. O sincretismo religioso da Bahia é muito parecido com a formação do Brasil. Porque o Brasil é uma nação que não teve pla-nejamento em sua formação. O nosso país se formou aproveitando um pouco de cada cultura, que aqui se misturaram. Então, esta mis-tura de raças gerou a raça brasileira. Você imaginar o Brasil sem esta mistura fica difícil. Eu acho que não deveria haver nenhuma barreira racial no Brasil justamente por causa desta mistura racial. (30 anos, casado, católico, graduado. Grifos do pesquisador).

Eu acho que no Brasil não tem brancos puros. Nós somos de três raças, da miscigenação. Não existe pureza racial no nosso país. Como tam-bém não temos negros puros. O nosso negro é miscigenado. Nós somos

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misturados. Esta mistura é maravilhosa porque nós não podemos dizer quem é branco e nem quem é negro. Nós somos miscigenados. Mas, ainda não conseguimos aceitar que somos impuros. São três os san-gues que correm nas veias dos brasileiros. Então, eu não posso dizer que sou uma negra pura. Mas, eu tenho que me assumir como negra porque é a minha cor e são os meus antepassados. (41 anos, solteira, umbandista, graduada. Grifos do pesquisador).

Nos discursos dos militantes transparecem aspectos de uma interpreta-ção da mistura racial como sendo uma realidade intrínseca às relações raciais brasileiras. No entanto, para os militantes ela não significa o de-saparecimento gradual do “negro”, como almejado no mito do branque-amento. A mistura foi colocada como um fenômeno que impossibilita, na visão deles, a existência de “brancos” e “negros” “puros”. Ademais, as falas acima colocam os argumentos de Gilberto Freyre (1998 [1933]) de cabeça para baixo. Ao invés de afirmarem que, devido à mistura, os brasi-leiros não podem ser racistas, as falas evidenciam que a mistura das raças é precisamente o motivo pelo qual os brasileiros não deveriam ser racis-tas. Portanto, a mistura das “raças” é vista não como justificativa de uma sociedade na qual as relações raciais são mais amenas, como é cotejada em Freyre (ibid). Para os militantes, a mistura configura uma realida-de na qual estão envoltos, sem minimizar a possibilidade de se pensar a “identidade negra”. Dessa forma, as representações sobre a mistura racial se articulam dinamicamente com o processo de auto-afirmação dos mili-tantes citados acima. De fato, para eles a mistura configura uma realidade da qual não se pode fugir. De modo que, nascidos da mistura das “ra-ças”, não podem se considerar “negros puros”. A vivência com a mistura não fez com que os entrevistados tivessem uma “falsa consciência” racial ou desprestigiassem a “cultura negra”. Pelo contrário, eles se afirmaram como “negros”, e destacaram ter orgulho de tal “identidade”. Fato que sugere uma interpretação dinâmica da mistura, colocando-a não mera-mente como uma barreira à formação da “identidade negra”. Schwarcz (2001) destaca que é preciso levar a sério o processo de formação da na-ção brasileira; processo esse fortemente marcado pelas representações da miscigenação e da mistura cultural. Também é necessário considerar que os discursos da mistura racial, apesar de ser articulados ideologicamente pela elite, são negociados e reinterpretados pelas pessoas, fato que fica evidente nas entrevistas.

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Pode-se ver nas falas acima que a mistura racial apresenta-se como uma negação da “pureza” de ser “negro” e também de ser “branco”. Isso parece indicar, pelo menos no caso desta pesquisa, que a significação de ser “ne-gro” não deve ser entendida como uma polarização estanque entre “negros” e “brancos”. O significado que os militantes deram as suas “identidades ne-gras” não exclui a presença da mistura de “raças”, ao mesmo tempo em que configura uma resistência aos discursos que evocam a mistura como inibidora da formação de “identidades negras”. Assim como no caso da formação de “identidades negras”, pode-se destacar também a interpreta-ção de João Pacheco de Oliveira sobre a ideia de “índios misturados”. Para tal autor, a questão da mistura nos povos indígenas do Nordeste brasileiro precisa ser abordada de forma dinâmica, evitando qualquer reducionismo que induza a afirmação da perda de suas identidades étnicas (OLIVEIRA, 1999). O discurso da mistura tem diferentes dimensões. Pode ser usado para minimizar as diferenças culturais, como foi feito pelo Estado brasilei-ro. Mas, também faz parte de um processo ativo, a partir do qual “brancos”, “negros” e demais categorias raciais são elaboradas e afirmadas, demarcan-do espaços de diferenças culturais. Vale salientar que a “identidade negra”, para os militantes, além das relações com a mistura racial, foi também associada à questão dos seus antepassados africanos. Nesse sentido, o continente africano surge como uma referência para a auto-afirmação da “identidade negra”. Certamente, as representações sobre a África são elaboradas a partir das suas trajetórias de vida, nos contex-tos locais de relações sociais. A relação com os antepassados africanos pode ser interpretada como uma forma de afirmação das raízes africanas. Desse modo, os militantes buscam dar maior realce a suas “identidades negras”. Vale destacar a argumentação de Capone (2005) sobre o movimento de busca e de valorização das raízes e das tradições africanas dentro do candomblé. Para a autora, tal ênfase nas ancestralidades e nas tradições culturais africanas, no contexto do candomblé, representa um movimento de resistência perante o sincretismo religioso. Assim, a África e as ancestralidades africanas são bus-cadas, também, no sentido de afirmação social diante do contexto local, além de ser uma forma de manter laços simbólicos com o continente africano. É relevante também destacar a discussão sobre a diáspora negra para o Novo Mundo, e todo o processo de influências que as idéia e símbolos, associados à África, exerceram e exercem sobres os processos de elaboração de “identida-des negras” fora do continente africano (Gilroy 2001). Essas questões ficaram aparentes em minha descrição etnográfica da Louvação ao Baobá.

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Para os militantes, “ser negro” associa-se também ao uso especifico do cor-po “negro”. Neste caso, alguns aspectos do corpo, simbolicamente associa-dos à “raça”, passam a ter um significado positivo para os militantes. No entanto, existe um processo de estigmatização das características fenotípi-cas “negras”. Tais características são, geralmente, associadas à animalidade ou à rusticidade (VALLE, 2006). Nesse caso, é exemplar a associação que se faz de pessoas “negras” com macacos ou com animais rústicos. A idéia de rusticidade ou incivilidade é associada à “raça” negra ou aos “índios”. Nesse sentido, existe uma noção de inferioridade atrelada às representações sobre as características fenotípicas “negras” e também indígenas. Por outro lado, pessoas “negras” têm usado a aparência “negra” e a exibição de gestuali-dade “negra” de forma a construir uma imagem positiva do “negro”. Esse fato evidencia que a aparência da pessoa faz parte dos fatores norteadores da construção da “identidade negra”. Porém, a forma como a aparência da pessoa se relaciona com a elaboração de sua “identidade negra” é cultu-ralmente determinada. Isso implica que, por si só, ela não diz muita coisa sobre a “identidade negra”. Como se pode ver nas falas seguintes, a refe-rência a fatores como a aparência, a cultura negra e o Continente africano permeiam os processos identitários dos militantes:

Minha identificação como negra se relaciona primeiramente com os aspectos culturais. Isso é muito importante porque desde pequena a gente já sabe que é diferente, e vai enfrentar muitos desafios. Nós já começamos nossa caminhada sendo vítimas de muitos preconceitos. E têm os fatores relacionados à estética, que também influenciaram muito. Se você for negro, as pessoas olham para você e já vão que-rendo lhe desclassificar. Eu sinto muito isso aqui em Mossoró. Eu achava que quando ficasse adulta isso ia acabar, mas, ainda sinto o olhar preconceituoso das pessoas. (41 anos, casada, não tem religião, curso superior incompleto).

Minha vontade pessoal de me auto-proclamar negra surgiu a partir de uma coisa que chamo de prova do espelho: predominância das ca-racterísticas físicas que me aproximam - e que são majoritárias - dos provenientes da África (cor, cabelos, traços físicos). Minha identifi-cação cultural com estes. O sentimento de igualdade e de estimular as pessoas a se autoproclamarem, e se orgulharem da condição de negros. Ser negro para mim é afirmar a sua identidade, levando em consideração a sua proveniência, a sua origem (o continente africa-

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no), as suas raízes culturais e pelo referencial nesta finda da África. Mas, sobretudo, reconhecendo que você sendo miscigenado, sendo misturado, mantêm e afirma os principais referenciais do povo negro e da população negra (nariz e o cabelo), e as suas articulações cultu-rais. Então, eu considero que você se assumir como negro é assumir este conjunto de valores. É você olhar e ver que do conjunto da mis-tura que você foi gerado tem maiores características de negros. Aí, a variação da sua cor da pele passa a ter um valor secundário. (43 anos, casada, católica, pós-graduada).

Eu sou uma pessoa que sinto orgulho e gosto de ser negro. Se eu tivesse que escolher, escolheria novamente ser negro. Isso porque eu apreendi a admirar os negros, que hoje são referências na História do Brasil. E não só por isso, mas, pela própria cultura, pela identi-dade cultural que eu tenho com as tradições afro-brasileiras, e pela própria história de nós. Nós, o povo negro que saiu da África, e por meio de navios chegou aqui no Brasil, como escravos, e que foram capazes de influenciar a cultura brasileira. (44 anos, solteiro, não tem religião, graduado).

Nestas falas, um dos pontos importante é a referência ao continente africa-no como lugar de origem e das tradições “negras”. Tal referência ao conti-nente africano como lugar de origem aproxima-se do que Max Weber, em Economia e Sociedade (2000 [1922]), denominou de crença subjetiva da origem comum do grupo. Para o autor, tal crença em uma origem comum funcionaria como elemento construtivo de sentimentos de pertença grupal e, assim, formador da identidade social do grupo (WEBER, 2000 [1922]). Nestas falas, a África é simbolicamente mobilizada através da questão da vinda do povo africano para o Brasil. Esse complexo e amplo processo de trocas de símbolos e idéias entre a África e outras partes do mundo faz parte do fenômeno chamado de Atlântico Negro (GILROY, 2001). Tais símbolos e idéias, associadas à África, são redefinidos nos contextos culturais locais, tal como acontece na Louvação ao Baobá. Vale enfatizar que a África, ao ser mobilizada a fim de auto-elaboração da “identidade negra”, funciona como lugar de origem das culturas e traços fenotípicos “negros”, como um ponto de referência para elaboração de retóricas identitárias (SANSONE, 2003). Além disso, as falas revelam, novamente, a idéia de mistura racial como um elemento presente na construção das “identidades negras” dos militantes citados acima. Outra vez, as representações sobre o mito das três “raças”,

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fundadoras do Brasil, aparecem relacionadas aos processos de construção das “identidades negras”. Também é relevante salientar o fato do estigma funcionar como um ele-mento construtor de “identidade social” (BOURDIEU, 2000). As falas acima revelam que o olhar e as ações preconceituosas serviram como um despertar no processo de auto-afirmação dos militantes. O que ocorre nes-tes casos é a percepção de que se é diferente e que tal diferença estabelece posições socialmente diferenciadas (GOFFMAN, 1978). Quando a diferen-ça é percebida, pode ter início um processo de reflexividade relativo ao significa de tal diferença e, conseqüentemente, à formação de uma postura contrária a tal estigma (DU BOIS, 1999 [1903]). O estigma funciona, então, como um impulso para sua reversão. Neste caso, fatores como a educação e a condição socioeconômica do grupo estigmatizado são importantes nas “lutas de classificação” (BOURDIEU 2000). Volto novamente às reflexões de Goffman (1978) para pensar no processo complexo de elaboração do estigma social. Isso porque nas falas acima foram destacados elementos que apontam aspectos da maneira, até certo ponto, particular dos militan-tes perceberem que eram vistos como diferentes, e que essa diferença se estabelecia pelo fato de eles apresentarem traços fenotípicos associados à “raça” negra. O estigma vai se consolidando através das relações sociais ao mesmo tempo em que as pessoas estigmatizadas desenvolvem, sobre ele, uma forte reflexividade. Em tal reflexividade, colocam em questionamento e avaliação a auto-imagem e a imagem que possuem dos outros (ELIAS & SCOTSON, 2000; GOFFMAN, 1978). A percepção de que se é socialmente diferente desenvolve-se gradativa-mente, de forma mais ou menos particular para cada pessoa detentora de estigma social. De fato, são as interações da vida cotidiana que faz, de certo modo, com que o grupo socialmente estigmatizado desperte para o olhar diferenciado que recebe (DU BOIS, 1999 [1903]). Para o autor, as atitudes racistas e discriminatórias apresentam-se como extremamente degradantes e, ao mesmo tempo, reveladoras de que existe um mundo de valores, no qual o “negro” é percebido como inferior. Quando ocorre a percepção, por parte dos discriminados, de tal mundo de valores estigmatizantes, pode ter início um processo de auto-descoberta da pessoa como “negra”, e da construção de uma postura crítica relativa ao racismo. Ao conversar com uma militante, perguntei como foi o seu processo de auto-afirmação. A sua resposta aproxima-se da argumentação de Du Bois (ibid) sobre o processo de auto-descoberta que os “negros” estão sujeitos a enfrentar.

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Na infância, eu acho que não aceitava muito a ideia de ser negra. Eu não entendia, e as pessoas diziam que eu era morena. Eu achava que ser morena era uma coisa boa. Mas, as mesmas pessoas que me chamavam de morena, quando tinham uma raiva, me chamavam de negra nojenta. A gente enfrenta muitas dificuldades na escola, em-bora na minha casa também sentia um certo olhar diferenciado. Isso se dava porque o meu irmão tem a pele clara. As pessoas diziam que o menino tinha nascido com o cabelo bom, mas, a menina tinha o cabelo ruim. Eu me lembro que quando ia para a mercearia os meni-nos me jogavam pedras e diziam: “olha aquela negrinha”. Com isso eu fui despertando para a valorização da minha condição de negra. (41 anos, casada, não tem religião, curso superior incompleto).

Para a entrevistada, a valorização da sua condição de “negra” se constituiu através de um processo reflexivo sobre as maneiras como ela era, muitas ve-zes, tratada. O tom das conversas que ouvia fazia de sua “cor” um fator sobre o qual pensava a sua própria dignidade como ser humano. Como ela destaca, até na sua casa, ouvia conversas com tons racistas, referente à sua pessoa. Po-rém, foi justamente tal vivência com a estigmatização que a fez se valorizar e se assumir como “negra”. O relato da entrevistada serve, de certa forma, para se pensar na conflitante luta subjetiva, envolvendo os processos identitários. Ademais, é interessante notar o destaque dado ao tipo de classificação racial que recebia, de acordo com a natureza das relações sociais em que ela estava envolvida. Era chamada de “morena” nos momentos amistosos e era chama-da de “negra”, quando se envolvia em conflitos. Esta oscilação classificatória reflete um pouco da natureza política dessas categorias classificatórias de “cor” e “raça”. A pluralidade de termos referentes à auto-identificação racial das pessoas implica numa maior flexibilidade ou numa maior rede de possi-bilidades de auto-classificação e de ser classificada de acordo com o contexto das relações sociais (SHERIFF, 2001). Durante a pesquisa, outros militantes também enfatizaram fatores relacio-nados aos preconceitos raciais como constituintes dos seus processos de au-to-afirmação. Nos relatos seguintes, estão colocados mais elementos associa-dos à questão da auto-percepção como “negros”. Pode se observar que, em todos eles, foi destacado o processo de reflexividade diante dos atos racistas, advindos tanto dos próprios familiares como da sociedade em geral. A ver-gonha e a humilhação, sofridas por quem é estigmatizado, podem se reverter numa fonte de força e de resistência contra o estigma (GOFFMAN, 1978).

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Quando eu era pequena mamãe nunca deixava sair com o cabelo sol-to. Ela sempre botava óleo de coco e amarrava porque achava feio. Ai você vai crescendo como uma pessoa feia e negra. E o cabelo é pixaim. Não pode soltar. O bonito é o cabelo solto e liso. Isso foi acontecendo comigo. Mas com o tempo fui mudando. A primeiro vez que eu fui desfilar no pelotão do 7 de setembro de Mossoró, e a minha turma me escolheu para ser a representante do pelotão, foi frustrante para mim. Porque quando eu passei na rua as pessoas disseram: “ah! Uma negra”. Com isso fiquei morta de vergonha, e não fui desfilar. Depois fui entendendo e pensando assim: será que negro não pode andar na frente nunca? Até que um dia fui entender que eu era gente mesmo. E quando entrei para o teatro foi que eu me assumi como negra. E comecei a achar que negro também é bonito. Eu hoje já entendo que sou negra. Que tenho cabelo de negra. Que tenho nariz de negra. Pé de negra e orelha de negra. (41 anos, solteira, umbandista, graduada. Grifos do pesquisador).

Eu sempre me reconheci como negro. Eu me lembro que na minha infância alguns colegas diziam brincadeiras, que me fazia pensar na questão da cor da minha pele. Por exemplo, naquela época tinham músicas que eu ouvia que eram racistas e deturpadoras da identida-de negra. Eu não vou cantar para você esta música porque seria eu querer perpetuar o preconceito racial. Eu acho que você se olhar no espelho e perceber que é negro, não significam nada para sua identi-ficação. Mas, o que é importante para a afirmação da identidade ne-gra é quando percebemos o olhar diferenciado do outro. Dos nossos colegas. E que esse olhar fere, e a palavra fere. Então, eu me identifi-quei e me assumir pela dor, pelo olhar de rejeição dos outros que es-tavam ao meu redor. (44 anos, solteiro, não tem religião, graduado).

Um ponto interessante nestas falas se refere ao fato da família constituir um espaço no qual os estereótipos negativos, relacionados ao “negro”, são também reproduzidos. Isso até mesmo entre as famílias “negras”, tal como relatado nas falas acima. As atitudes racistas presenciadas na esfera familiar devem configurar obstáculos à formação de “identidades negras” (GUI-MARÃES 1999). Mas, os processos de construção de “identidades negras” não se limitam apenas à esfera familiar. Como as falas acima evidenciam, as “identidades negras” são elaboradas através das experiências pessoais vividas nos variados espaços sociais de interação. Outro ponto importante

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evidenciado nas falas diz respeito à resistência e ao repúdio contra a ima-gem negativa do “negro”, construída e reproduzida socialmente. Para estes entrevistados, as suas “identidades negras” foram se constituindo mais pela percepção do olhar diferenciado, do que pela constatação da própria “cor” da pele. É relevante destacar as idéias de sofrimento e humilhação devido ao estigma da “cor”, evidenciadas nos relatos. Por mais que as falas tenham alguns aspectos semelhantes, o significado de ser “negro” é influenciado pela trajetória biográfica dos militantes, tornando-se relativamente parti-cular para cada um deles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por se tratar de um estudo de caso, os apontamentos acerca da formação das “identidades negras” dos militantes não possuem nenhuma pretensão generalizadora. Apesar de suas falas vislumbrarem elementos encontrados em outros contextos etnográficos de pesquisa sobre “identidade negra” no Brasil, elas configuram, de certa forma, a cristalização das experiências biográficas dessas pessoas, referentes à questão do estigma racial. De fato, o que propus articular, desde o início do artigo, foi uma discussão sobre “identidade negra” afastada de essencialismos, dando ênfase ao contexto da pesquisa, e as subjetividades dos militantes. Além do mais, as suas falas de-vem ser entendidas como socialmente posicionadas, implicando, com isso, que elas estão inseridas num campo mais abrangente de relações. Melhor dizendo, a própria vivência deles na militância é uma fator importante no sentido da construção de uma performance dos seus discursos de auto-afir-mação. No decorrer do artigo, pode-se perceber que os militantes preferem usar exclusivamente a categoria “negro” como forma de auto-afirmação. Ape-sar do significado de tal categoria ter um caráter subjetivo, existem alguns aspectos comuns na forma como os militantes se reportaram às suas “iden-tidades negras”. Um deles diz respeito ao valor que a África possui para o significado de ser “negro”. De modo geral, a África apresenta-se, para os militantes, como um banco de referenciais simbólicos, norteadores do significado das suas auto-afirmações. Isso se apresentava de modo prático através também de práticas e eventos rituais, que nem a Louvação ao Baobá, mas também na organização do bloco de carnaval e da boneca negra Maria Espáia Brasa. Um outro elemento colocado refere-se à ênfase na mistura racial e cultural. Para os militantes, a mistura das “raças” expressa às especi-

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ficidades do racismo brasileiro, e os constituem como “negros misturados”. Ser “negro misturado” não enfraquece as suas “identidades negras”, mas revela, sobretudo, particularidades de tais formas de auto-afirmação. Isso porque, mesmo colocando que não existe “negro puro” no Brasil, eles não deixaram de evidenciar o orgulho e o valor de suas “identidades negras”. Também os aspectos fenotípicos foram destacados como importantes para suas auto-afirmações, principalmente o cabelo, o formato do nariz e a “cor” da pele. Ademais, percebi que entre os militantes o significado da categoria “negro” foi colocado de forma a expressar um sentido de resistência contra o preconceito racial sofrido em suas vidas. Portanto, esses são aspectos que foram recorrentes nas maneiras dos militantes afirmarem as suas “identi-dades negras”.

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CAPITULO XIIMEMÓRIA, FAMÍLIA E COR: TEMPOS DA CUNHÃ VELHA E DE ACAUÃ.

Carlos Guilherme Octaviano do Valle

Os agentes envolvidos com as dinâmicas étnicas, sobretudo os antro-pólogos, devem ser capazes de considerar as múltiplas interpretações que os próprios grupos sociais elaboram de seu passado e, inclusive, a respeito de sua origem étnica ou “racial”. De outro modo, eles correm o risco de privilegiar uma única versão discursiva sobre o passado e, o que seria muito pior, transpor sua própria interpretação como se fosse a do próprio grupo que ele ou ela estuda. Nesse trabalho, apresento as interpretações do passado e do tempo histórico que se produziram em um determinado contexto de formação social e mobilização política do quilombo ou comunidade quilombola de Acauã, cujos significados orien-taram a compreensão interna e, ainda, as externas sobre essa figuração social1, particularmente ao longo de etapa crucial do processo de regula-rização fundiária que estavam passando. De início, faço a reconstrução do relato que trata da formação da comunidade como uma figuração social específica, recuperando certas figuras e personagens citados por meus interlocutores para falar da origem de Acauã. Diversos elementos de memória genealógica serão apresentados para se entender o relato operante para a definição cultural da comunidade quilombola2.

1. Entendo “figuração social” nos termos de Norbert Elias: “apenas os seres humanos formam figurações uns com os outros. O modo de sua vida conjunta em grupos grandes e pequenos é, de certa maneira, singular e sempre co-determinado pela transmissão de conhecimentos de uma geração a outra, portanto por meio do ingresso do singular no mundo simbólico específico de uma figuração já existente de seres humanos (ELIAS, 2006: 25)”. Percebe-se que uso aspas (“”) para relativizar ou destacar certos termos usados livremente em nossa disciplina acadêmica.2. Uso itálico para destacar os termos e categorias usadas no contexto de pesquisa, que pode ser tanto a própria comunidade de Acauã, o município de Poço Branco e demais planos de socialidade

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Parte significativa do texto aborda a construção da diferenciação social através de recortes raciais e étnicos, que possibilitam os contrastes entre as pessoas de Acauã e os ‘de fora’, sobretudo os moradores de Poço Branco, o município onde a comunidade de Acauã se localiza no agreste do estado do Rio Grande do Norte. No caso de Acauã, a construção da etnicidade de-fine-se em termos das concepções narrativas do passado, da reconstrução da memória social e também considerando as relações sociais de diferenciação entre os membros da comunidade e dos demais grupos sociais do município de Poço Branco e, mais amplamente, da região da ribeira do Ceará Mirim. Teremos que abordar, assim, idéias específicas sobre família, memória, cor e ‘raça’ a fim de compreender a construção da etnicidade e de uma identidade étnica singular. Em primeiro lugar, pretendo situar e contextualizar as ques-tões que envolviam a comunidade quilombola de Acauã.

CUNHÃ VELHA, ACAUÃ: QUILOMBO/COMUNIDADEQUILOMBOLA.

A comunidade de Acauã situa-se hoje no município de Poço Branco, emanci-pado em 1963 do antigo município de Taipú3. Essa região faz parte da bacia hidrográfica do rio Ceará Mirim. As famílias de Acauã foram atingidas pela construção de uma barragem, iniciada no fim da década de 1950 e inaugu-rada em 1969. Promovido pelo Departamento Nacional de Obras de Sane-amento (DNOS), o empreendimento buscava perenizar o rio Ceará Mirim. Situada a 60 quilômetros de Natal, a antiga vila de Poço Branco teve que ser reconstruída a um quilômetro de seu lugar original. Desse modo, comuni-dades rurais situadas em áreas próximas do rio Ceará Mirim foram atingi-das pela barragem e transferidas, o que provocou graves mudanças sociais. Através de negociação com o prefeito de Poço Branco e os construtores da

e prática social pelos quais minha pesquisa foi desenvolvida.Vale dizer que incluo aqui as instâncias administrativas do INCRA e demais agências governamentais de ação social e de implementação de políticas públicas. É importante explicar que uso a categoria comunidade quilombola para designar uma figuração social que historicamente se configurou através de limites espaciais variados ao longo do tempo e reúne uma população com forte densidade genealógica. Essa categoria depende dos significados de nomeação e classificação gerados através da emergência política da categoria de comunidades remanescentes de quilombo (ARRUTI, 2006; 2008). Não estou aqui seguindo a discussão sociológica sobre a definição de comunidade, que se encontra em Max Weber e Ferdinand Tönnies, muito menos as questões costumeiramente identificadas aos chamados “estudos de comunidade”. 3. Criado pela lei 2899 em 26 de julho de 1963, o município de Poço Branco está situado na Zona do Litoral Norte, subzona de Touros. Possui uma área de 168, 6 km², limitando-se com os municípios de Pureza, Bento Fernandes, Taipu, João Câmara e Bento Fernandes.

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barragem, as famílias de Acauã adquiriram uma área de terra de quatro hec-tares onde vivem ainda hoje. Dezesseis famílias passaram a residir no lugar, apenas uma parte das que habitavam a antiga Acauã ou Cunhã Velha, catego-ria espacial que continua a ser empregada para se referir ao lugar de origem comum (VALLE, 2006). Quando as antigas famílias foram realocadas para o lugar que atualmente vivem, perderam o acesso que tinham às águas, onde pescavam, e às margens do rio, onde plantavam e produziam cerâmica em uma olaria. Passaram a depender de negociações com os proprietários para chegar ao rio. Além disso, água potável seria apenas disponível na década de 1990, quando um cano foi instalado. Desse modo, a água e a terra passaram a ser recursos de difícil acesso, apesar da proximidade com a barragem, o que evidentemente afetou a reprodução social das famílias de Acauã, forçando até a saída de algumas delas da pequena área em que passaram a viver.Desde meados da década de 2000, a organização política interna vem se con-figurando e fortalecendo através da Associação dos Moradores do Quilombo de Acauã (AMQA), que reúne a grande maioria dos chefes das unidades fa-miliares de Acauã. Além disso, as lideranças locais (homens e mulheres) per-fazem práticas de intermediação com entidades públicas e governamentais, sem contar a vinculação com organizações não-governamentais (ONGs) e entidades ligadas às instituições de ensino público superior do Rio Grande do Norte4. Essas práticas de intermediação com agências e entidades exter-nas precisam ser consideradas para que possamos entender a formação de Acauã como comunidade quilombola. De fato, elas foram potencializadas a partir da atuação da ONG Amigos de Poço Branco, criada por estudantes da Universidade Estadual de Londrina que estavam realizando, desde março de 1996, atividades de extensão no município potiguar a partir do Projeto Uni-versidade Solidária (PUSOL)5. Reunindo professores e alunos de graduação,

4. Estou entendendo práticas de intermediação como um conjunto de relações que se fazem entre diferentes níveis sociais, que podem ser locais e extra-locais. Seriam práticas mobilizadas por alguns agentes sociais da comunidade de Acauã e não todos seus membros, sem supor, a princípio, um controle restrito de aspectos cruciais ou críticos do contato com outros níveis sociais. Dependem, sobretudo, da posição política interna, se era liderança ou não, se possuía recursos e instrumentos que facilitavam ou garantiam as relações, contatos e vinculações com esferas exteriores e instituições de caráter governamental, burocrático e nacional. Estou me apoiando fortemente na discussão antropológica sobre mediação e intermediação, brokerage, que foi desenvolvida a partir dos meados de 1950 por autores que estudaram sociedades camponesas, tais como Eric Wolf, Michael Kenny, Sydel Silverman, Jeremy Boissevain e Alex Weingrod. 5. O PUSOL foi resultado de um convênio do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) com o Programa Comunidade Solidária do Governo Federal, coordenado pela então Primeira Dama, a antropóloga Ruth Cardoso, antiga professora da USP.

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o projeto visava estabelecer contatos mais estreitos do meio universitário com a sociedade. A criação da ONG permitiu a continuidade dos objetivos iniciais do PUSOL, mas, então, com o sentido de “promover a melhoria da qualidade de vida através do desenvolvimento comunitário, auto-sustentá-vel, dentro do espírito da multi e interdisciplinaridade, cooperação e soli-dariedade” (AMIGOS DE POÇO BRANCO, 1997: 8). A ONG era sediada em Londrina (Paraná) e criou uma “sub-sede” na cidade de Poço Branco em junho de 1997. Esta estrutura institucional acabou por ser transferida para Natal e transformada no Núcleo de Estudos Brasileiros (NEB) em setembro do mesmo ano (SOUZA, 1999). Em diversos momentos, os membros da ONG e depois do NEB promoveram atividades educacionais, além de ações de caráter comunitário e organizativo em Poço Branco. As atividades envol-vendo mutirão eram incentivadas e estiveram presentes em diversos projetos comunitários. Em Acauã, o mutirão mais lembrado foi aquele voltado para a instalação de um sistema de canos, que permitia que água chegasse à comu-nidade. Isso resolveu, em parte, o problema de acesso à água que acometia as famílias de Acauã desde a época de construção da barragem.Segundo um de seus diretores, ex-aluno da UEL, a ONG acabou por priori-zar Acauã como foco de suas ações no município de Poço Branco, facilitan-do a criação de parcerias da comunidade com outras instituições (SOUZA, 1999). A idéia de parceria é central para entender as práticas de interme-diação que passaram a se configurar entre Acauã e as entidades não go-vernamentais e governamentais. Essa intervenção estimulou a organização política interna de Acauã, o que suscitou a criação da Associação dos Mo-radores de Acauã em janeiro de 1998. De fato, se tinha um caráter associa-tivo genérico, pautado em um modelo de associação de moradores, a enti-dade foi, aos poucos, sendo identificada como quilombola, o que mostra a singularização que ela passa a ter na década de 2000. Desse modo, a remo-delação da AMA em AMQA, no ano de 2004, precisa ser contextualizada a partir dos processos históricos recentes de fortalecimento e mobilização de demandas quilombolas. Através da AMQA, a comunidade de Acauã passou a pleitear direitos territoriais em razão de sua origem comum e dos valores em torno de uma identidade étnica específica. Em 24 de agosto de 2004, os membros da comunidade de Acauã reconheceram-se como quilombolas através de requerimento enviado à Fundação Cultural Palmares, iniciando o processo de regularização das terras tradicionais da comunidade. No Rio Grande do Norte, o caso de Acauã foi um dos primeiros a se tornar público no estado.

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Minha interpretação junta-se à de outros antropólogos (ALMEIDA, 2002; O´DWYER, 2002; ARRUTI, 2008) que entendem a mobilização de comu-nidades quilombolas em relação direta com os efeitos sociais e políticos da Constituição Federal de 1988, determinante para o estabelecimento e orga-nização mais recente do “movimento quilombola”, em sua abrangência na-cional, após ter sido reconhecido o direito às terras tradicionais aos remanes-centes de quilombos. Esses fatos afinam-se, portanto, à normatização políti-co-administrativa viabilizada através do processo de regularização fundiária das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos pelo INCRA/MDA (decreto n. 4887, de 20 de novembro de 2003). Considero que a comunidade quilombola de Acauã passou a se singularizar como uma figu-ração social específica em um processo formativo de caráter social, político e cultural, cujas dinâmicas interseccionam múltiplos agenciamentos, nem todos totalmente externos ou exclusivamente internos, mas cruzados entre si através das relações entre agentes da comunidade, seus apoiadores, cujas práticas de intervenção foram produtivas, e, ainda mais, seus oponentes, que engendram, por seu lado, todo um conjunto de modos de pensar e rejeitar os investimentos quilombolas que os membros da comunidade de Acauã vêm produzindo desde a última década. Estamos aqui considerando o alcance positivo e particular do conflito, tal como proposto por Simmel (1964) e Gluckman (1987), para se entender as dinâmicas societárias. Certamente, a mobilização quilombola de Acauã precisa ser pensada a partir dos conflitos, nos últimos anos, com os proprietários que cercam a pequena área onde a comunidade se encontra. Ao ser estabelecido, em 2006, um convênio entre o INCRA-MDA, a UFRN e a FUNPEC para a realização de pesquisa e relatório antropológico de três co-munidades quilombolas do Rio Grande do Norte, Acauã foi considerado um dos casos prioritários no estado. Em razão disso, conheci Acauã e conduzi pesquisa etnográfica que resultou em relatório antropológico (VALLE, 2006) com uma proposta circunstanciada de regularização da terra da comunidade de Acauã6.

6. Essa proposta incluiu o local de moradia atual das famílias da comunidade, as propriedades Gameleira, o Sítio São Luiz, a Fazenda Amarelona; a Fazenda Maringá e seções da fazenda Santa Terezinha e do Sítio São Sebastião. Com essa proposta, o território de Acauã totaliza uma área de 540,51 hectares (VALLE, 2006). Depois do processo de delimitação, do cadastramento das famílias quilombolas e do trabalho cartográfico e cartorial, desenvolvidos por técnicos do INCRA/RN, foi encerrado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) que continha a proposta de área. Assim, o relatório foi publicado no Diário Oficial da União em 23 de janeiro de 2007. A partir

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Esse relatório deve ser contextualizado junto de mais outros cinco, que fo-ram conduzidos por docentes do Departamento de Antropologia (UFRN), que estiveram envolvidos diretamente nos dois convênios assinados entre FUNPEC-DAN-UFRN-INCRA. Esses estudos referem-se a casos especí-ficos que, por sua vez, se remetem a processos históricos de formação de grupos étnicos quilombolas em sua ampla diversidade, cujos antecedentes históricos expõem, igualmente, uma pluralidade de caminhos e vias de or-ganização sócio-política que precisam ser associados, conforme cada caso, a historicidades variadas em termos do sistema escravista que perdurou no Brasil, tanto no período colonial como no imperial até 1888. As fugas de escravos, a formação de quilombos, as possibilidades societárias decor-rentes da alforria e do estatuto de homem ‘liberto’, dentre outras formas de reprodução social, tiveram efeitos particulares na formação de figurações sociais étnico-racialmente diferenciadas, inclusive em termos do acesso e manutenção da terra e de organização sócio-política. O caso de Acauã su-gere, portanto, uma das historicidades possíveis que vêm acompanhar a formação de unidades étnicas quilombolas no contexto atual do Rio Gran-de do Norte. Após essa apresentação, farei uma discussão mais apurada sobre as concep-ções históricas, a memória social e a semântica da etnicidade que constitu-íram um dos eixos centrais de minha pesquisa. Poderemos entender como os modos de compreensão do passado se articularam com um plano de agenciamentos e investimentos étnicos que deram sentido à mobilização quilombola da comunidade de Acauã. Seria necessário pensar, então, que um campo semântico da etnicidade seria a matriz específica de reconstru-ções históricas criativas e de enquadramentos de memória, que tornava possível as significações positivas de uma mobilização quilombola mais recente. Estou recuperando idéias formuladas em minha dissertação de mestrado sobre os índios Tremembé do Ceará (VALLE, 1993; 2004), que definia o campo semântico da etnicidade como:

um horizonte discursivo e simbólico no qual os diversos atores so-ciais conseguem entender, descrever e interpretar, por processos es-

dessa data, iniciou-se o período aberto de contestação da proposta de área, o que viria aumentar substancialmente a tensão social local. Alguns dos proprietários vizinhos passaram a impedir que as famílias de Acauã continuassem arrendando as áreas de terras em que vinham mantendo seus cultivos, tornando a situação bastante dramática.

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truturados ao nível consciente e inconsciente, a vida social, os fatos e fenômenos sociais, como também as suas próprias ações e as práticas de outros atores e agentes, todos dotados de conteúdos originados na dinâmica das relações interétnicas. Esse campo semântico não se estrutura por si só, pois requer operações sintéticas de apreensão dos fatos e questões de perfil étnico por parte dos mais diversos atores sociais. Nesse sentido, o campo semântico está “aberto” a produzir interpretações étnicas díspares e até mesmo antagônicas, tomando em consideração os atores e grupos sociais que as fazem, afinal eles o aproveitam de maneira diferencial, conforme as posições sociais que ocupam e as ideologias que investem (VALLE, 2004: 309).

BOTANDO O NOME DA CUNHÃ: FUGINDO DA ESCRAVIDÃOE CRIANDO UM LUGAR.

Ao fazer a pesquisa, realizei entrevistas com pessoas da comunidade de Acauã e também com moradores de Poço Branco. Em parte, as entrevistas tinham o propósito de reconstruir o passado através da memória social7 e de elementos que pudessem ajudar na compreensão da figuração social que foi constituída em Poço Branco e Acauã. Algumas pessoas de Acauã e um historiador autodidata de Poço Branco foram indicados como as pes-soas mais apropriadas para falar do passado da região e da comunidade. Em Acauã, elas eram, sobretudo, membros da família Catarino (os irmãos João e Eloi, além do filho de João, Marino Catarino). Eram identificados como os mais velhos para muitos de meus informantes, inclusive as jovens lideranças da AMQA. Através de seus relatos, elas seriam as pessoas que apresentariam de modo mais eficaz e abrangente a memória do grupo, da comunidade, o que seria, de certo modo, também uma memória étni-ca (LE GOFF, 1984). Minhas primeiras entrevistas foram realizadas com esses “especialistas” da memória, cuja influência era dada por sua idade e também por suas posições familiares. Contudo, pude complementar a trama histórica relatada em suas entrevistas com outras pessoas que eu conversava depois, inclusive jovens de 20 a 30 anos. Foi possível notar um entendimento bem amplo sobre a origem e o passado da comunidade, que era até corroborado pelo saber e relatos do historiador de Poço Branco, o

7. Para a discussão sobre memória e história, estou me apoiando em autores diversos, tais como Le Goff (1984), Balandier (1976), Leach (1996) e Candau (1998).

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que mostra a complexidade do campo de compreensão do mito e das nar-rativas orais tradicionais. Além disso, a pesquisa estimulava a reflexividade dos membros da comunidade que passavam a se interrogar sobre questões e temas que eram de interesse do pesquisador, o que caracteriza um plano de comunicação “para fazer tudo para dominar os efeitos (sem pretender anulá-los); quer dizer, mais precisamente, para reduzir no máximo a vio-lência simbólica que se pode exercer através dele” (BOURDIEU, 2003: 695; grifos do autor). Contando o passado de Acauã, as pessoas da comunidade remontavam a um contexto impreciso de tempo que envolveu a chegada de um homem, chamado José Acauã, ao mesmo lugar onde passou a existir depois a co-munidade de Acauã, no lado direito do rio Ceará Mirim. José Acauã não apenas descobriu o lugar como acabou tornando-se o personagem a no-meá-lo. Essa nomeação do lugar, o topônimo, seria essencial para a defi-nição de uma identidade, que tem sido atualizada por diversas formas, as duas principais indicando sentidos distintos: 1) os “negros de Acauã” ou “da Cunhã” e 2) a “comunidade de Acauã”. Essas categorias identitárias têm importância porque referem-se a lugares precisos que marcam formas de diferenciação étnica em Poço Branco.Sem ser exatamente um enquadramento de memória, a imprecisão tempo-ral tingia boa parte da narrativa que explicava a origem de Acauã, o que se aproximava das narrativas míticas de grupos que não contam com um pas-sado ‘objetivado’ sob a forma de monumentos, testemunhos materiais, ar-quivos e livros (BALANDIER, 1976: 207). Nesse caso, as pessoas de Acauã dependem de uma elaboração criativa e narrativa do tempo, historicizando de modo peculiar a existência da comunidade como figuração social. Essa narrativização oral de uma origem e de uma história coletiva era, aos pou-cos, entranhada nos próprios enquadramentos de memória que algumas pessoas faziam e seriam, assim, oralmente transmitidos, difundindo-se através das relações sociais, sobretudo salientando uma memória genealó-gica (CANDAU, 1998). Ao contrário de outros casos de comunidades re-manescentes de quilombo, onde foi possível precisar datas e fatos com mais certeza (por exemplo, LEITE, 2004), havia muita imprecisão temporal, que não pode ser considerada um real impeditivo para se entender a histori-cidade elaborada pelas pessoas da comunidade de Acauã. Essa imprecisão seria aos poucos reorientada e dimensionada através de uma precisão cada vez maior, que se definia através dos laços familiares que eram explorados pela memória genealógica, tal como mostrarei em breve.

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Em seu alcance temporal mais antigo, a trama narrativa comum sobre a origem de Acauã abordava a chegada em uma área encontrada por José Acauã, que Eloi Catarino, um de meus interlocutores, chegou a dizer que foi: “o primeiro que chegou. Esse foi o primeiro que fundou mesmo, que fundou mesmo”. Desse modo, dizia-se que José Acauã chegou naquele de-terminado lugar às margens do rio Ceará Mirim, duzentos ou cem anos atrás, antigamente, a significar um tempo que ultrapassava a regressão dos testemunhos e da memória genealógica. Nos relatos orais, José Acauã era definido como um fugitivo do cativeiro, um cativo, um escravo, que escapou dos engenhos do baixo vale do Ceará Mirim. Nesse caso, a origem escrava de José Acauã era bastante realçada e igualmente difundida. Não se chegou a falar da família de José Acauã, se ela existiu ou não. Ele é a figura, sobretudo, que nomeia o lugar onde a comunidade foi formada. No desenrolar da trama, outras pessoas foram mencionadas em referência à Cunhã/Acauã como tendo vivido no lugar. Cunhã era outro termo usado difusamente para designar o lugar de origem. Eram esses os antepassados dos atuais componentes da comunidade: as três irmãs Santana (Ana, Benedita e Catarina), Joaquim Gomes e Sebastião Rodrigues. Aqui, a imprecisão recai sobre a origem dessas pessoas e suas famílias, de onde elas chegaram. Alguns relatos referem-se ao baixo Cea-rá Mirim. Outros foram ainda mais vagos, não especificando lugar algum, apenas explicando que eles chegaram em Acauã. Essa origem desconhe-cida indica a existência de outro momento de ‘fundação’ da comunidade, agora mais preciso, o da chegada e permanência desses antepassados no lugar Acauã. Essa chegada determinou a transformação do lugar e de sua paisagem pelas famílias que ainda hoje lá vivem. Adentrava, assim, o tema da terra a ser cultivada e da atividade agrícola como ocupação central da existência e continuidade histórica da comunidade. Podemos compreender melhor através de relatos que registrei e ajudam a descrever os pontos que estou apresentando de forma mais sintética:

Pesquisador: Como era Acauã no início?João Catarino: Acauã? Parece para que foi uns 200 e poucos anos que Acauã criou nome. Mas já vivia gente velha, já morria de velho lá. Eu conheci do lado de lá: Joaquim Santana morou lá foi pro Inhandu. João Mulatinho, morava lá na Cunhã pelo lado de baixo. Eu conheci uns poucos de velhos de lá. [...]

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P: Mas o que o senhor sabe da história da Cunhã velha? Dessas pes-soas que o senhor está falando, eles eram de onde?JC: A Cunhã botaram o nome. Nesse tempo era um povo bruto, criado no mato! Criou o nome por modo de um tal de Zé Cauã. Não sei de onde ele veio! Ele era foragido dos escravos. Vivia escravo numa fazenda ou num canto, né. O dono judiava com ele. E ele pegou uma fuga e [assobia forte] veio pra beira do rio. Morava aí! Acabou-se ali. Aí, era Zé Cauã e botaram o nome da Cunhã.P: Ele vivia aqui?JC: Escondido pro modo dos patrões, lá de onde era, não saber!P: o Zé Acauã, ele ...JC: Era Zé Acauã. Ele morou aqui. Morreu de velho. Aí, botaram o nome da Cunhã pro modo de Zé Cauã. Mas não tinha nome não por certo.P: E ele deixou família aqui?JC: Não, não, aí dele eu não conto não! Já é muito longe!P: Como é essa história, ele fugiu?JC: Ele vivia num lugar ai, né. Agora, era escravo no tempo da escra-vidão. Ele era escravo! Agora, onde ele vivia judiavam com ele. Ele deu uma fugida. [assobia novamente forte] Aí, veio aqui pra beira do rio. Isso aqui tudo era mato! Não tinha limpo não. Hoje em dia, é tudo arrancado os tocos. É o fim do mundo.P: E como chegou a sua família aqui? A família do senhor, dos San-tana aqui?JC: Não! Os nossos já eram nascidos e criados aqui. Os mais velhos morriam de velho às vezes. Desaparecia aquele que morria, aí ficava outro. Vai produzindo a família toda aqui.P: Mas aí eu não estou entendendo. O Zé Acauã veio pra cá e vocês já estavam aqui?JC: Já nós estávamos aqui, quando o Zé Acauã veio. Quer dizer, eu não estava, mas os mais velhos moravam aqui tudo. Aí na Acauã, de um lado e do outro. [...] (Entrevista com João Catarino, 86 anos, 11/04/2006, grifos do pesquisador)8.

Esse longo trecho de entrevista expõe uma das reconstruções mais elabo-radas sobre a origem de Acauã. Junto de outras poucas pessoas, o relato de

8. Certos trechos, expressões e categorias foram grifados com o propósito de destaque.

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João Catarino era legitimado internamente na comunidade, contribuindo na orientação de outras pessoas sobre o passado. Havia versões mais sim-ples, mas elas apresentavam aspectos muito semelhantes aos expostos na entrevista que realizei. Assim, pretendo agora explorar os elementos nar-rativos que mais me chamaram atenção a fim de resgatar os significados e referências simbólicas contidas na reconstrução.Como apontei, havia imprecisão temporal sobre a origem de Acauã. Os eventos de chegada de José Acauã e dos antepassados, os mais velhos, das pessoas da comunidade presente referiam-se a tempo que pode ser de du-zentos anos, tempo muito longe do qual o narrador não sabe identificar. Como uma vez me disse Eloi Catarino: isso ai já faz muitos anos. Tem até ali no livro quantos anos faz. Além de um tempo sem datação definida, essa frase ainda acrescenta o elemento da documentação textual que po-deria precisar e confirmar a origem do lugar e da comunidade. Esse texto é o livro do historiador de Poço Branco, que inclui uma descrição bastante próxima sobre a origem e história de Acauã (SILVA, 2003:49). Seria tempo de gente bruta, nascida e criada no mato, descrição que sugere um lugar desabitado, que não era limpo, e foi sendo pouco a pouco ocupado pelos ascendentes diretos das famílias de Acauã, que se produziam, pegando ou aumentando também enquanto famílias, tal como Eloi Catarino explicou: “Aqui firmou e foi se bulindo e foi pegando família, e foi aumentando família e foi crescendo. Aí, foi pegando família” (grifos meus). Se não eram vistos como parentes de José Acauã, seus antepassados eram, por seu turno, asso-ciados diretamente ao lugar que foi por ele nomeado. Não se sabe precisar, porém, se José Acauã chegou antes ou depois de seus antepassados. Se João Catarino chegava a dizer que seus antepassados já viviam no lugar que de-pois foi nomeado por José Acauã, seu irmão, Eloi Catarino, expôs outra versão, pois seus antigo familiares chegaram após José Acauã: “Nessa área ai quem morava aqui primeiro era um Zé Cauã, que chegou aqui. Foi um tal de Zé Cauã. Daqui foi onde formou-se essa família. Foi se chegando outras famílias” (grifos meus). De fato, as duas versões não são tão diferentes, pois o que mais importava nos relatos era afirmar a chegada ao lugar, que não era controlado por fazendeiros, um espaço livre, cuja paisagem se definia pelo sentido de mato, vegetação também solta9.

9. Compreendo aqui “paisagem” como espaços que são culturalmente construídos através de percepções e valores que permitem a produção, enquadramento e reelaboração contínua de memórias

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O fato da nomeação do lugar como Acauã em razão da chegada de uma pessoa de fora, um escravo foragido, fugitivo do cativeiro, tem significa-ção especial para se entender como as pessoas de Acauã compreendem a historicidade da atual comunidade. Foram os escravos que imprimiram a característica central da origem de Acauã. A idéia de fuga é central nos relatos, pois é uma fuga de um sistema de relações e práticas diferenciais cujo poder estava na própria subordinação diante dos donos, patrões ou senhores de engenho que judiavam deles em cativeiro, algo que se asseme-lha muito ao que Luiz Eduardo Soares descreveu em sua pesquisa com o povo de Bom Jesus (1981). Eloi Catarino explicou isso de um modo bem contundente:

Lá [em Ceará Mirim] tinha uns escravos que trabalhava três, quatro, dez anos. Trabalhava a vida toda de graça pra aqueles fazendeiros, engenheiros. Engenheiro não! Como é? Senhores de engenho, cha-mava senhores de engenho. Aí, esse pessoal trabalhava, esses negro trabalhava lá de graça! Aí, quando acertavam uma fuga. De fugir, fugia e embarcava em qualquer um canto. (Eloi Catarino, 72 anos, 11/04/2006; grifos meus).

Eram fugas para lugares escondidos, desconhecidos e de difícil acesso, um lugar a ser ocupado sem o antigo dono conhecer: as margens do rio Ceará Mirim naquela exata posição que seria chamada de Acauã. Desse modo, a idéia de um antigo quilombo acaba sendo associada diretamente pelas pessoas da comunidade com esse relato de fuga de escravos velhos para lu-gar desconhecido e isolado no tempo da escravidão. Podemos aqui pensar no modo como os membros da comunidade pensavam a associação entre lugar, memória e família, concebendo, então, um sentido próprio e proces-sual da paisagem, tal como veremos no item a seguir10.

ORIGEM, FAMÍLIA E NOMINAÇÃO

Para entender o campo semântico de onde se produz a diferenciação étnica e racial em Acauã deve-se analisar tanto as idéias sobre a origem do lugar

associadas a lugares que têm significado crucial para a formação de identidades sociais. Ver Stewart e Strathern (2003).10. As idéias de fuga e de isolamento geográfico consubstanciam a versão mais clássica de ‘quilombo’, tal como aponta Almeida (2002).

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e da própria comunidade como as concepções que envolvem família e os sentidos da cor. Assim, foi preciso entender o conjunto de relatos e idéias que tratavam dos nomes de família de Acauã. Todas essas idéias, concep-ções e categorias, se não se apresentam em si mesmas como referências de ordem histórica, têm sentido simbólico que harmonizava e substanciava a visão do passado e da origem de Acauã. Para uma abordagem do campo semântico, temos que considerar que as categorias e idéias culturais de um determinado grupo constituem o passado a partir de uma perspectiva dos agentes sobre o tempo presente no qual também atuam, além de se posicio-narem diante de outros agentes com quem se relacionam e, muitas vezes, antagonizam (BOURDIEU, 1989). Entendo que a memória é “muito mais uma reconstrução continuamente atualizada do passado do que mesmo um restabelecimento fiel dele” (CANDAU, 1998:1; minha tradução). Quando as pessoas de Acauã falavam ao pesquisador, que também indagava, sobre suas famílias, elas podiam reconstruir a sua história e ainda explicitar os valores que constituíam singularmente uma família de Acauã diante das outras, por exemplo, de Poço Branco.Desse modo, discutirei aqui família e descendência, menos em termos de princípios e estratégias de parentesco e aliança e mais sobre os significados que substancializam a reconstrução atualizada do passado, o que permitiria pensar em uma ideologia étnica em operação. A reconstrução genealógi-ca das famílias de Acauã partiu, sobretudo, de algumas pessoas da família Catarino, o que sugere uma forma particular de conceber a história local a partir dos laços de parentesco. Dessa forma, havia elementos de apropriação diferenciada da historicidade de Acauã através da memória genealógica de determinadas famílias e não de todas. Estou me apoiando aqui nas idéias de Edmund Leach que mostrou que a mesma matriz de concepções culturais e ideológicas pode ter aproveitamentos e usos variados, conforme o grupo social que se investiga11: Em Acauã, falar sobre os mais velhos implicava se referir aos antepassados das famílias da comunidade bem como de moradores de Poço Branco. As-

11. Segundo Leach: “As histórias sagradas – isto é, as histórias sobre seres divinos que são largamente conhecidas – não têm uma característica especial que as diferencie das histórias sobre acontecimentos locais de vinte anos atrás. Ambos os tipos de história têm a mesma função – o ato de contá-las é um ato ritual ... que justifica a atitude particular adotada pelo narrador no momento de contá-la” (LEACH, 1996: 319). A reflexão de Leach se aproxima das que desenvolvi de modo mais sistemático sobre o “campo semântico da etnicidade” e a constituição de ideologias étnicas em trabalhos anteriores (VALLE, 1993; 2004).

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sim, algumas famílias foram mencionadas para explicar a configuração atu-al de Acauã: os Santana, os Rodrigues, os Gomes e os Quirino. Contudo, a família dos Catarino se origina exatamente da relação entre João Gomes e sua cunhada, Catarina Santana. Dessa relação extraconjugal, nasce José Catarino, cujo sobrenome repete o nome de sua própria mãe, tal como me foi explicado por Eloi Catarino, seu filho mais novo e um de meus interlo-cutores. Como no caso da família dos Arturos, uma comunidade negra de Contagem (MG), cujos membros se identificam (e são identificados) pelo nome próprio de um antepassado comum chamado Artur12, os Catarino de Acauã se percebem como uma comunidade mantida por vínculos estreitos de parentesco, casamento e consangüinidade a partir de um grupo de des-cendência específico: “Aqui é uma família só, Catarino com Catarino” (Eloi Catarino); “Tudo era mesmo uma família ... Tudo misturada medonha” (José Pereira); “Quase tudo de uma família só” (Cícera Catarino da Silva). Essas frases e comentários revelam o valor da união familiar que se evidenciou ao longo da história da comunidade. Pode-se notar, então, como a característica mítica do relato sobre a origem de Acauã, repleto de imprecisões e obscuri-dades temporais e relacionais, vai pouco a pouco se transformando em uma compreensão da trajetória genealógica e familiar, que pode ser acessada atra-vés dos testemunhos e da memória dos atuais componentes da comunidade, especialmente aqueles vistos como mais autorizados a falar dessa trajetória familiar, o que corrobora os pontos teóricos sugeridos por Edmundo Leach. Ainda que eu considere que a cada situação investigada pode-se privilegiar, especificamente, alguma questão ou certo operador diferencial que justifi-que e releve a unidade social em termos étnico-raciais, concordo com Cavig-nac que haveria uma “lógica do ‘sangue’, pois é o pertencimento a uma linha genealógica que dá acesso à terra e que possibilita a contrastividade entre os atores sociais” (2009). Essa concordância permitiria comparar, em parte, casos de emergência ‘quilombola’ onde a consangüinidade e os significados e valores da família mostram relevância, tal como Acauã e Boa Vista dos Negros, comunidade negra do Seridó norte-riograndense13.Quando recuperavam a memória genealógica, meus interlocutores não chegaram a descrever de forma minuciosa sobre seus antepassados mais

12. Sobre os Arturos, ver Assis (1999). Essa autora mostra que o Artur fundador da família negra mineira tinha casado igualmente com duas irmãs, tendo a primeira falecido. 13. No artigo de Pereira (2009), há também referência à “máxima de que ‘aqui é tudo uma família só’ no caso da comunidade quilombola de Macambira (sertão do Seridó).

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diretos. De fato, o que me foi relatado com mais precisão foi o fato ambí-guo de Joaquim Gomes ter sido casado e tido filhos com Benedita Santana, além de sua relação com a cunhada Catarina Santana. Se não havia uma memória densa, ao menos à primeira impressão, sobre esses antepassados, os relatos privilegiavam a pessoalização das famílias de Acauã através de Catarina. Seria por meio dela que se constituiu a descendência de grupos familiares e pessoas de sobrenome Catarino:

Daí, você sabe de uma família nasce. Ou do sobrenome. Nós, né. Se nós fosse o nome de origem, nós era pro modo de ter o nome mesmo certo de Santana. Mas olhe nosso sobrenome já mudou. Só por causa de minha avó nosso nome já mudou. Então, nós era do modo de ter o sobrenome de Santana, porque a minha avó era Catarina Santana! Mas nós num peguemos Santana. Porque peguemos, já botaram, foi o nome dela, Catarina. (Eloi Catarino, 72 anos, 11/04/2006; grifos meus)

Foi por causa dela – Catarina Santana - que uma família se formou e vem se mantendo por um ideal de união familiar. Como uma família só, enten-de-se o significado e o valor das relações pessoais criadas pelo parentesco e pelo sangue. Essas idéias se avizinham a fim de possibilitar um sentido idealizado de uma memória comum, que é, sobretudo, uma memória fami-liar. Através do nome próprio Catarina se pessoaliza um nome de família, os Catarino, cujo rendimento simbólico está na percepção de uma conti-nuidade histórica de relações pessoais pautadas na consangüinidade e no parentesco, cuja objetividade está definida pela existência atual da própria comunidade de Acauã. Caso similar foi descrito no estudo antropológi-co sobre os Lázaros de Macambira, família que recebe seu nome de um antepassado, além de nomear o próprio lugar onde vivem: a “Terra dos Lázaros” (PEREIRA, 2009). Esses dois casos permitem pensar nas conver-gências, ao mesmo tempo, simbólicas e políticas entre os significados de família, terra e historicidade. Evidentemente, essa percepção de união familiar não dava conta de to-das as reconstruções de uma história comum de Acauã. Sem dúvida, ela privilegiava a memória genealógica da família Catarino. Outras pessoas destacavam outras figuras, outros antepassados também comuns, mas que estavam vinculados à outra família. Era o caso, sobretudo, dos antigos Ro-drigues, citados especialmente pelas figuras masculinas: Sebastião Rodri-

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gues e seu filho Joaquim Sebastião Rodrigues. De fato, Sebastião Rodri-gues, identificado também como Pai Bastião ou ainda Bastião Mole, era citado como referência do passado genealógico por lideranças como Mari-no e Eloi Catarino, o que mostra que membros dessa família percebiam um conjunto maior de antepassados a constituírem a atual comunidade. Se-bastião Rodrigues foi, inclusive, o nomeador de um marco geográfico e da paisagem da antiga Cunhã, a pedra do Bastião Mole, que costuma ser citada a fim de indicar a territorialidade que configura Acauã. Nesse sentido, há também uma determinada figura genealógica a nomear a paisagem que foi sendo reivindicada territorialmente, além do citado José Acauã. Isso mos-tra uma relação intrínseca entre memória, lugar e paisagem (STEWART e STRATHERN, 2003), paisagem essa entendida como um processo cultural (HIRSCH, 1995), que veio se formando quando associada à influência de uma ordem familiar específica. Tanto no caso da descoberta do lugar às margens do rio por José Acauã, botando nome, como na identificação de uma rocha em particular, nomeada por conta de um antepassado da famí-lia Rodrigues, entendemos que “o topônimo não pode ser reduzido a um simples sinal geográfico, mas constitui-se em elemento diacrítico no bojo de um sistema de signos que classifica grupos de pessoas” (BENSA, 1997: 83). Desse modo, os Rodrigues eram considerados como outra família ma-triz da comunidade, o que mostra como a memória genealógica pode ser articulada com usos situados ou, talvez melhor, posicionados sobre a ori-gem de Acauã de acordo com o falante, aquele que relata a história, em sua relação posicionada a um determinado grupo familiar. O seguinte trecho de entrevista mostra muito bem como o relato narrativo sobre a origem de Acauã pode apresentar sutis diferenciações para entender a relação da his-tória com o espaço-lugar e com as famílias constituintes da comunidade:

Nazareth [...] E tem os Rodrigues que é a parte da minha mãe. O meu avô chamava Joaquim Sebastião Rodrigues. Ele já era desse pessoal já. Foi porque essas famílias foram crescendo. Mas tem sua origem dessas pessoas, que eram fugitivos. Ninguém sabe se vieram da África. Não sei dizer de onde foi. Eu sei que não eram daqui brasileiras. Essas pessoas chegaram aí e, daí, como eles trabalhavam e eles não tinham nada em troca, só mesmo a comida, e eles foram fugindo de lá e fi-caram à beira da barragem. Do rio! Nesse tempo, era o rio. Daí, foi criando. Foi formando as famílias.Pesquisador: Eles vieram depois do José Acauã?

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Nazareth: Não, o Zé Acauã chegou primeiro. Aí, foi vindo mais. En-tendeu?José Alessandro: O restante veio depois.Nazareth: Exatamente! Foi vindo mais. Quem primeiro chegou foi o José Acauã.José Alessandro: Em seguida, formaram a comunidade com os de-mais, refugiados de lá.Pesquisador: Fugidos de onde?José Alessandro: Do vale! Do vale açucareiro do Ceará Mirim.Nazareth: Fugidos dali do vale açucareiro pra formar a comunidade deles, que dá-se o nome de quilombo. Então, foi isso que aconteceu. Isso é coisa que a gente colheu assim que eles contam, né! Conversan-do, eles vai e contam.José Alessandro: É porque é muito antigo!Nazareth: Muito, muito antigo mesmo!(Entrevista com Nazareth Barbosa da Silva e José Alessandro Apo-linário da Silva, respectivamente mãe e filho; 05/05/2006; grifos meus).

Essa conversa entre o pesquisador e duas lideranças de Acauã apresenta os mesmos elementos apresentados anteriormente sobre a fuga dos escravos do vale do Ceará Mirim em um tempo muito antigo, que se torna difícil precisar objetivamente. Como fugitivos, José Acauã, em primeiro lugar, e depois outras pessoas, que seriam os antepassados das atuais famílias, ori-ginaram um lugar à beira do rio Ceará Mirim que foi sendo criado, for-mado por essas mesmas famílias, que também se criaram e formaram a si próprias. Seria assim que os Rodrigues acabavam incluídos no relato, como fugitivos dessa origem escrava, que poderia ter a África como um lugar de origem ancestral (Não sei dizer de onde foi) esboçado igualmente com im-precisão como os relatos míticos. Contudo, o avô e bisavô das duas lideran-ças, Joaquim Sebastião Rodrigues, representava ele mesmo um nexo desse passado impreciso para outro de maior precisão e objetividade, definido pela memória e reconstrução genealógica14. O quilombo se constituiu a partir das chegadas (as fugas) ao lugar que se nomeou Acauã e deu origem

14. No livro de Raimundo Silva (2003:82-85), há um longo relato sobre Joaquim Sebastião. Parece que o historiador de Poço Branco tingiu de modo mais expressivo sobre ele. De acordo com Silva, Joaquim Sebastião teria nascido em Acauã e teria trabalhado no “vale do Ceará Mirim” nos engenhos de cana de açúcar. Teria uma fama descomunal de lutador, tendo enfrentado e fugido da polícia diversas vezes. Era

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à comunidade atual através do conjunto de famílias citadas: os Catarino, os Rodrigues, os Quirino, etc. Todas essas famílias configuram uma figuração social mais ampla e atual: a comunidade ‘quilombola’ de Acauã.Era evidente que a família envolvia um conjunto de idéias importantes, além de se definir como valor central, para a visão e compreensão de Acauã como comunidade e figuração social. Foram famílias que fundaram ou criaram historicamente aquele lugar determinado e formaram o que exis-te atualmente como uma comunidade. Eram famílias particularizadas pela origem escrava de seus antepassados, fugitivos do cativeiro. Eram famílias que ainda hoje têm sido vistas a formarem uma misturada medonha, tal como foi registrado em conversas e entrevistas, a ponto de se conceber, interna e exteriormente, que se apresentavam como uma família só. Para entender a concepção de família que estava em questão, busquei ouvir, dia-logar e perguntar sobre o que formava uma família, o que a definia. Isso levou a entender ou questionar as idéias de cor, “raça”, sangue e mistura, que podiam se apresentar (ou não) através das práticas discursivas cotidia-nas ou potencializadas pela situação de pesquisa etnográfica. Em breve, o tema da cor e da raça será discutido mais atentamente. Por ora, será preciso entender como a idéia de família era culturalmente construída15.

Pesquisador: Voltando a falar um pouco do quilombo, o que é raça pro senhor?Juvino: Não tenho bem um entendimento desse negócio de raça não. Mas, pra mim, a raça que o povo diz é como uma família que nem a gente aqui. Como uma família só! Aqui, quando o senhor vê um pessoal mais aberto da cor é porque não é daqui de dentro mesmo! É porque vem de fora e se casa com o pessoal daqui. Ou uma moça ou um rapaz se casa com alguém mais aberto. Agora que eu acho que raça é que nem a gente aqui que é tudo moreno! Não sei explicar direito, mas tenho na mente que é assim. (Juvino Catarino; 58 anos, 29/07/2006; grifos meus).

também muito amigo do pai do historiador, Manoel Cacheado, a quem chamava de “meu primo”, o que permite pensar nas relações ambíguas mantidas por pessoas de origens sociais distintas de Poço Branco. 15. Em parte, estou pensando a partir da proposta teórica de David Schneider (1968) para entender os significados de família, sangue e outros elementos semânticos de apreensão cultural e simbólica do parentesco em Acauã. Para outro plano de investigação, mas permitindo considerações teóricas próximas, ver Duarte e Gomes (2008).

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Ao contrário de família, raça não era uma idéia concebida de modo mais amplo e difuso. Na verdade, a distribuição do conhecimento da raça como categoria e idéia era desigual, como aparece no trecho de entrevista cita-do. De fato, apresentava-se nos discursos, mas as perguntas que eu fazia potencializavam a sua abordagem e descrição por parte das pessoas de Acauã. Era mais usada, porém, pelas pessoas que atuavam como lideranças da comunidade, até sem eu perguntar. A economia discursiva da cor e da raça dependia das inserções e trajetórias pessoais em Acauã. Família era, porém, a categoria e idéia mais empregada para definir e compreender a comunidade:

Eu não sei o que é raça. Agora, família é um e raça é outro! A famí-lia? É que tem uma família de galego, gente alva, galega, e tem uma família de negro, moreno, preto! Chega que é azulado! Aí, o branco quer pisar por “riba” (em cima) do negro. E o negro toda a vida o negro é mais atrás. E o povo alvo, bem estudado, e o negro também é bem estudado, mas por modo da cor é mais chegado a um acos-tamento que é pro modo de não se espantar com medo da sombra. (ri). O branco é lá em cima e o negro é no acostamento. [... ] O povo fica olhando pro senhor e eu: é o “bagageiro” dele! Ser um bagageiro, um carregador dele. Sendo eu possuindo dinheiro também, dinhei-ro franco através de negócio. Porque tem negro rico! O camarada pensa que todo negro é pobre, mas não é não! É a cor! Acho que até a população, os grandes aí, os bicho rico parece que tinha uma classe que não queria emendar que pobre, que preto fosse gente também. Não, preto é a mesma gente! Tem o sangue. O branco tem o sangue dele e o preto tem também! (João Catarino; 86 anos; 11/04/2006; grifos meus).

Diz que raça é de bicho, né. De animal, essas coisas. Mas tá certo. A origem das indescendência. Nós somos da indescendência do negro, do índio. O índio foi o primeiro brasileiro. É aonde tá a origem. Que chamam a raça, mas chamam de indescendência, né. Esse nome de origem, da indescendência de Cunhã devido ao Cunhã que se intocou aí, formou uma família e tá nesse lugar. Três fugitivos. Um formou o Contador. Outro formou o Poço Branco velho. [....] (Miguel Gomes da Silva; 48 anos; 29/07/2006; grifos meus).

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Em Acauã, a idéia de família compreendia certamente um sentido de con-tinuidade através da transmissão de traços físicos e corporais ao longo das gerações, de pais para filhos. Parecia aproximar-se, à primeira vista, de uma concepção “racialista”, conforme as concepções mais amplamente conhecidas de raça no Brasil. No entanto, os termos usados eram outros e seus significados precisam ser particularizados. A categoria indescendência envolve um significado de transmissão físico-corporal pela continuidade das famílias. O sangue é uma das substâncias de transmissão dos traços e elementos familiares. Ao contrário de outras situações, porém, a idéia de sangue, se foi usada, não teve tanto emprego como as idéias de cor. De algum modo, ela também simbolizava o sentido de continuidade das famí-lias. A diferenciação por meio de critérios de classe social (rico/pobre) era importante e será trabalhada no próximo item bem como a concepção da raça como uma categoria marcadamente de diferenciação de animais. O lugar-espaço da origem estava associado como se percebe nos trechos de entrevistas, à continuidade das famílias. Elas fundam o lugar, quando se in-tocam, e são de dentro também, referindo-se outra vez à origem. Nesse sen-tido, podia ser tanto Acauã-Cunhã, mas até Contador e Poço Branco, que se originaram através de antigas famílias. O passado do lugar era explicado através da continuidade das famílias ao longo de suas gerações no tempo, que se formam, que foram crescendo, aumentando: “Nessa parte aqui, che-gou aqui e baixou. Aqui firmou e foi se bulindo e foi pegando família, e foi aumentando família e foi crescendo (Eloi Catarino; grifos meus).Na pesquisa, pude perceber que os significados do parentesco contribuíam como elemento vinculador do direito à terra. Certamente, isso não impe-diu a incorporação de pessoas de ‘fora’, de outras origens e trajetórias so-ciais, tal como explicou-me Marino Catarino: “casou está dentro da famí-lia, já é da família. ... Quem tem de fora [de Acauã] é dentro da família”. A classificação espacial binária dentro-fora era tanto usada para explicar dife-renciações de origem entre as pessoas que pertenciam à comunidade como se empregava a fim de explicitar as fronteiras da comunidade de Acauã. Quando alguém de fora se casava com uma pessoa de dentro, ela passava a fazer parte da família e, portanto, da comunidade de Acauã. Assim, o termo família tinha operacionalidade interna, para designar e estabelecer uma vinculação objetiva comum, ou seja, supunha uma comunidade de pessoas interligadas por laços consangüíneos, engendrados pela mesma origem, mas ainda pessoas ligadas por laços de afinidade/casamento. Em-pregava-se a idéia de mistura, de uma família misturada a fim de considerar

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os casos de casamentos com pessoas de fora, que seriam, assim, incorpo-radas socialmente. Em termos simbólicos, a mistura de famílias explicava a diferença de tonalidades de cor e traços físicos em uma mesma comu-nidade. Como no trecho citado de entrevista de Juvino Catarino, ser mais aberto ou não, ser mais escuro ou não, as gradações de cor referiam-se às disposições maiores ou menores de pureza e mistura familiar, se a pessoa originava-se de pais que eram de dentro, de fora ou, então, misturados de dentro/fora. Assim, lugar-espaço, família e cor eram pensados de modo sig-nificativamente articulados a fim de se perceber as diferenças internas, na comunidade, e as externas, sobretudo diante das pessoas de Poço Branco. Em Acauã, a ‘racialização’ era concebida muito mais nessa articulação sim-bólica de concepções e valores de lugar e família. Isso pode ser percebido nos trechos de duas entrevistas que realizei, uma com um homem de fora e outra com um homem de dentro de Acauã16:

Os quilombos é sobre isso por causa da escravidão. Porque esse qui-lombo só tem onde é negro. Branco não é quilombo! Agora, eu assim que tenho a cor mais aberta, estou aqui porque eu moro com uma mulher do quilombo. Eu achei até bom que eu estou dentro da qui-lombagem aqui. (Miguel Gomes da Silva; 48 anos; 29/07/2006; grifos meus).

Eloi Catarino: Eu quase não sei nem dizer o que é raça. Não sei quase dizer o que é raça não. Mas tem a raça negra, né! Quer dizer que o cabra nasceu escuro, parece que é raciado, parece que é negro. Aí, já é uma raça. É, nasceu escuro, ele tem uma raça.Pesquisador: E os Catarino? A família de vocês?EC: Tem muitos nêgo, tem muito raciado. De toda qualidade tem. Se misturou-se. Aí, o cabra é escuro e aí casa com uma mais clara né. E dali sai uns mais moreno, outros mais escuro, outros mais claros né. De toda qualidade.

16. Em termos da semântica da etnicidade, o binarismo dentro-fora, a concepção de indescendência e de mistura, dentre outras, podem ser encontradas também em outros contextos sociais até mesmo distantes da figuração social investigada (VALLE, 1993, 2004). Por outro foco, a problemática da “mistura” foi abordada por Oliveira Filho (1999) sobre os índios do Nordeste. Além de uma perspectiva ideológica familialista, cujo sentido seria em certo grau “racializante”, a referência usual a tribo, à aldeia, aos índios pode ser interessante para pensarmos intercessões e afinidades entre situações étnicas quilombolas e indígenas no Nordeste brasileiro e, talvez, em outras regiões do país.

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Pesquisador: E aqui em Acauã tem muita gente misturada, como é que é isso?EC: Tem umas misturazinha, mas é pouca. Mas é mais é escuro mes-mo. Tem umas misturazinhas, mas pinta pouco. Escuro tem bastante. Que é a família de Acauã, pois é. (Eloi Catarino; 72 anos; 11/04/2006; grifos meus).

Para as pessoas de Acauã, essas idéias e o tipo de argumentação decorrente ajudavam a compreender e relevar a diferença de tonalidades de cor através da mistura entre famílias. Tratava-se de uma reflexão até mais abrangente, apropriada de modo particular pelos grupos sociais da região investigada. Ao considerar a historicidade das relações sociais mantidas entre grupos distintos em Poço Branco, pode-se explicar o que foi relatado pelo histo-riador da cidade: “ai ficou só uma equipezinha e começou a misturar. Por-que eles não se misturavam com ninguém, casavam eles com eles mesmo. Viviam tipo uma tribo, uma aldeia, mas depois que veio pra aí, o negócio mudou muito” (Raimundo Rodrigues da Silva; entrevista 05/05/2006; Poço Branco; grifos meus). Nesse caso, a idéia de ‘família’ e as outras concepções e categorias próximas, inclusive as de aldeia e tribo, tinham operacionali-dade também externa à medida que eram empregadas e aceitas pelos mo-radores de Poço Branco, servindo, assim, para compreender Acauã como uma figuração de pessoas interligadas por laços consangüíneos e afins17.Contudo, o principal ponto que gostaria de colocar, no momento, é que se existe alguma “racialidade”, alguma “racialização” ou algum “racialismo”, elas não supõem categorias abstratas de sentido exclusivamente biológi-co, muito menos definidos em termos de um significado único, absoluto e universal de “raça”. Se há algo parecido na comunidade de Acauã, isso apenas acontece se consideramos as modalidades, culturalmente específi-cas, de interpretação das pessoas e grupos a partir da interseção complexa de valores como família, sangue e cor, muito pouco como “raça” enquanto categoria biológica, que se sustenta muito mais por critérios científicos de hierarquização do humano, tal como se encontra em diversos discursos racistas. Não acho possível, portanto, admitir um único sentido de “raça”.

17. De qualquer modo, o problema da “mistura” étnico-racial é também central aqui para compreender a discussão da etnicidade quilombola de Acauã, o que vem sendo notado em muitas outras situações étnicas no Nordeste brasileiro (OLIVEIRA, 1999; ARRUTI, 2006). É uma questão ideológica abrangente que costuma contrastar, sobretudo, idéias de pureza e mistura.

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Concordo muito mais com Robin Sheriff (2002: 217), que “o português falado no Brasil sempre teve um vocabulário rico, ambíguo e politicamente eloquente para referir-se à cor e à raça”. Para essa autora, precisamos dar mais atenção e compreender analiticamente aos modos e “maneiras como os significados raciais e de cor são construídos nos contextos múltiplos e mutáveis de discurso” (SHERIFF, ibid: 219) Assim, raça como categoria era usada de modo bem circunstancial em Acauã, referindo-se aos animais, sobretudo. Mas havia certo sentido físico-corpóreo, em parte ‘naturalizante’, que envolvia e se associava ao termo. Contudo, não se confundia com o sentido que a biologia, enquanto saber específico, por muito tempo usou e difundiu, ao menos em tempos passa-dos (BANTON, 1979; SEYFERTH, 1993)18. Na verdade, as preocupações que eu tinha sobre o tema, que se apresentaram por meio das perguntas que eu fazia, no ato das entrevistas, nas conversas sistemáticas que realizei, mostra o problema que alertou Pierre Bourdieu (2003) sobre as perguntas que são feitas, justificadas (e impostas) muito mais em termos de nossos próprios parâmetros. Contudo, foi, de fato, porque fiz tais perguntas, em parte equivocadas, que foi possível também compreendê-las como insa-tisfatórias a fim de alcançar um nível maior de compreensão das idéias, critérios e valores da cor, da família, do sangue e, porque não dizer, de uma forma especial de “racialização” que se apresentava em Acauã. Elas ajudam tanto a entender a especificidade da comunidade de Acauã diante de outras pessoas e grupos sociais de Poço Branco como a tornar os relatos sobre a origem e o passado mais complexos. Essa dimensão especialmente simbó-lica deve ser registrada aqui.

COR, RAÇA, DIFERENCIAÇÃO

Era através da cor que a diferenciação das pessoas de Acauã se apresentava de modo mais explícito, objetivado nas práticas discursivas (relatos, co-

18. Para Seyferth (1993), a ideia de raça teve igualmente sua incorporação e aproveitamento no Brasil no século XIX, servindo tanto para os interesses da ciência, da ideologia bem como das construções do senso comum, o que justifica sua força avassaladora nas mais diversas esferas e planos sociais. Mas, de fato, a ideia de raça foi sendo apropriada e, segundo a autora, inventada de modo muito particular no país. Assim, o tema da mestiçagem foi crucial junto de uma preocupação sócio-politica com a escravidão e com a imigração européia para a disseminação específica de concepções culturais sobre raça e racismo. Além disso, a ideia de mestiçagem era acoplada às ideias de “branqueamento” da sociedade brasileira.

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mentários, conversas). A cor indicava também um sentido diferencial de definição da pessoa que vivia em Acauã diante das outras, se bem que de uma forma não dualista, porque pessoas da mesma cor ou de cor diferente podiam estar presentes dentro ou fora da comunidade. A cor da pele era o fenótipo corporal mais citado, cujo registro podia ser variado, sendo refe-rido o preto e o negro, mas a cor morena era referida habitualmente para se entender os membros da comunidade. Definir-se como moreno permitia uma auto-atribuição através da cor que contrabalançava a apreensão do estigma de ser negro, quando chamados por moradores de Poço Branco, como veremos mais adiante. Ainda assim, as pessoas de Acauã se enten-diam como originadas de famílias morenas, negras ao contrário das alvas, galegas, brancas, o que justificava para elas seu passado escravo. Essa pola-rização podia ser acentuada ou não de acordo com as idéias em questão e a diferenciação que se pretendia imprimir através das relações sociais:

... nós somos humanos. O senhor é alvo. É um galego. Tem estudo. Eu sou bem pretin, moreninho da cor desse sapato. Eu sou dessa cor. E o senhor da cor que é. É mais alvo, da cor que o senhor é. E eu sou dessa cor. Minha pele é dessa cor, mas nós somos humanos. Sou uma pessoa preta. Eu tenho sangue e o senhor tem. Tenho bofe. Tenho fí-gado. Tenho tudo que um e o outro tem. E porque não são humanos? Tudo não é gente? Agora, pra nós se entender, pra nós conversar, pra nós prosar , tudo na conversa. Porque nós estamos conversando aqui, ofende nós conversarmos? Não! (João Catarino; 86 anos; 11/04/2006; grifos meus).

... raça pra mim, que sou negro, raça pra mim é em geral. Acho que é uma nação geral. Acho que o Brasil é uma raça. O Japão é uma raça. Do meu ponto de vista é isso que eu vejo. Pra mim, o Brasil é uma raça só. Só que tem gente que gosta de excluir os outros. Gosta de pre-conceito, de racismo. Eu não acho isso. Acho totalmente o contrário. Acham que o negro é uma raça. Acha que índio é uma raça, que o branco é uma raça, que o mulato é uma raça. Pra mim, eu acho que o Brasil é uma raça só. Mas já tem gente que distingue raça dessa forma. Por cor. Acha que o rico é uma raça. Acha que o pobre é outra raça. Tem gente que distingue assim. Mas eu distingo o país todo como uma raça... É uma nação em geral onde se vive todo mundo junto (José Alessandro Apolinário; 24 anos; secretário da AMQA; 05/05/2006; grifos meus).

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Através das relações sociais, a cor se apresentava como marcador de diferen-ças, que podiam ser bem variadas. O corpo é aproveitado por um princípio de diferenciação, dado, por exemplo, pela cor, que, no trecho da entrevista, mostra-se como elemento essencial para se particularizar a humanidade comum em seu próprio interior. Essa natureza comum não deixava de ser entendida e percebida através de elementos e órgãos corporais, comparti-lhados por todos os humanos: sangue, fígado e demais órgãos vitais. Como aspectos naturais que se apresentam pelo corpo humano, o contraste entre a cor preta e a alva definia, porém, signos estruturantes de diferenciação física que eram operados, além disso, por outras formas de diferenciação. Assim, o registro natural da cor podia indexar também as diferenças so-ciais, como a de ter estudo ou não, de ser ou não do mato. Contudo, o que estava presente nos depoimentos das pessoas de Acauã era a apreensão de uma desigualdade social que não devia existir. Se as falas enfatizavam uma forma específica de “racialização” das relações sociais, havia um princípio ético de não diferenciação suposto pela concepção de uma humanidade comum que deveria equiparar pessoas das mais diversas origens, o que foi evidenciado de modo claro tanto na fala de João Catarino como na de José Alessandro Apolinário, uma jovem liderança de Acauã. Aliás, a correlação desse último entre raça e nação explicita um tema muito importante, nem tão abrangente como o da humanidade, indicado por João Catarino, mas igualmente universalista, o do pertencimento ao país, à nação em geral, que opera conjuntamente à auto-identificação pela cor da pele, cujo recorte se-ria, então, “racializado” (raça pra mim, que sou negro). Está implícita talvez uma idéia específica de direito e justiça em sua fala, que pode refletir sua posição política na comunidade19. Foi possível notar, contudo, que havia a compreensão do alcance dos di-reitos específicos em outras conversas, sobretudo com lideranças, sejam as antigas como as jovens. Essa percepção dos direitos sociais chocava-se com outra percepção, a do estigma de cor e do preconceito que se apresentavam

19. Michael Banton (1979) mostra que idéia de raça não pode ser pensada sem considerar também as idéias de classe e nação, ambas geradas e operadas nos mesmos contextos culturais e históricos tanto como a primeira (p. 13). A idéia de nação implica um conjunto de cidadãos – mas eles não poderiam se diferenciar entre si dentro de uma nação ou são todos iguais? Aqui, entra o problema das minorias étnicas e também dos significados dados às diferenças raciais. Os problemas étnicos podem se confundir com os da raça, porque envolvem grupos vistos como minoritários ou subordinados. Hoje, o problema das minorias étnicas envolve a inter-relação entre a idéia de raça (origem e semelhança), a de nação (unidade comum) e a de classe (estratificação e hierarquia).

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em Poço Branco e outros lugares. Esse preconceito da cor podia conjugar tanto o valor objetivo da ‘marca’ como o de ‘origem’, conforme sugerido por Oracy Nogueira que distinguiu o “preconceito racial de marca” e o de “ori-gem” como “dois conceitos ideais que indicam situações ‘puras’, abstratas, para as quais propendem as situações ou casos concretos, sem que se es-pere uma coincidência ponto por ponto, de qualquer caso real com um ou outro dos tipos ideais” (1985: 78). A situacionalidade da ‘marca’, operada pela apreensão sempre socialmente relativa da cor, parecia coincidir com a visão da ‘raça’ como uma origem, uma natureza intransponível, que dis-tinguia as pessoas de acordo com os grupos que pertenciam. No próximo trecho de entrevista, esses aspectos são elaborados de modo sistemático:

Marino Catarino: ... Raça, sabe o que é? Essa raça negra é uma raça quase dispensada. Você não vê isso no seu ponto de vista, não? Que a raça negra é uma raça meio esquecida? Você vê. Eu já fui lá no cam-pus universitário umas vezes. É onde a raça negra é distinta. Agora, hoje está tendo apoio. Hoje, depois do presidente Lula, tá tendo todo o apoio a raça negra. É universidade, escola. [ ... ] Agora, eu digo as-sim, a raça negra que a gente fala é porque a raça negra é castigada! Basta ver aqui dentro de Poço Branco ... Basta ter uma corzinha pro modo de querer ser alguma coisa, mas não é.Pesquisador: Não entendi muito bem, lá em Poço Branco?Marino: Sim, aqui em Poço Branco! Tem gente que basta ter uma cor pra se enojar de mim e de outras pessoas morenas.Pesquisador: Com o senhor já aconteceu isso? Lá em Poço Branco, passaram por uma experiência dessa?Marino: A gente se sente orgulhoso, porque nós somos de raça negra, mas somos livres, nós andamos de pé no chão de cabeça erguida, nós não temos sujeira com a gente, as pessoas que não se orgulham da gente são mais seboso que poleiro de galinha!Pesquisador: Como é isso? Quem é esse pessoal?Marino Catarino: Esse pessoal é esse povo que vão pra o poder. Pega o que não é deles. O que vem pra gente eles pegam. São eles que eu estou dizendo que são sebosos que nem poleiro de galinha! (Entrevista com Marino Catarino; 20/04/2006; grifos meus).

Cor e raça são aqui associados de modo mais claro. Elabora-se, porém, com contundência a apreensão das hierarquizações raciais que dificul-tam e obstruem a garantia dos direitos sociais em uma situação concreta,

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o município de Poço Branco, inclusive através das ações das autoridades públicas. As benfeitorias, as verbas e o atendimento que não eram ofere-cidos aos pobres ou aqueles de raça negra, que seriam os dispensados, os esquecidos, os castigados, uma expressão que pode sugerir a própria idéia do ‘cativo’, do ‘escravizado’. Ao notarem as formas de exclusão e preconceito que passam, os líderes da comunidade contrapõem com o valor moral e a ética do orgulho próprio como andar de pé no chão de cabeça erguida, de serem livres, outra categoria de uma imaginação cultural da escravidão e do cativeiro. Considerando o impacto da construção da barragem de Poço Branco, que recebeu total apoio das autoridades municipais, entende-se o grau de desconfiança e animosidade que as pessoas de Acauã podiam ter para com os políticos locais, sujos,mais sebosos que poleiro de galinha. Essa atitude foi bastante notada na pesquisa. Dependia das impressões que as pessoas de Acauã extraíam das relações e práticas mantidas com os mo-radores e autoridades de Poço Branco. Eles reconheciam que bastava ter uma cor para que a hierarquização sócio-racial fosse mostrada e acionada, quando se enojava, por exemplo, das pessoas morenas. Apoiando-me em Norbert Elias e John Scotson (2000), pode-se dizer que as pessoas de Acauã seriam colocadas como outsiders por parte dos que estão estabelecidos, os que exercem a diferenciação físico-racial através dos inúmeros diferenciais objetivos de poder. As modalidades de “racialização” não deixam de ser, porém, operadas pelos diversos grupos sociais, tanto os estabelecidos como os outsiders, que podem também incorporar e se apropriar dos mesmos valores de estigmatização, cujos efeitos ajudam a conformar as identidades de cada um dos diversos grupos em questão20.Se raça podia ser mais entendida em termos da cor, da ‘marca’, ela podia ser também compreendida a partir de concepções culturais próprias do mundo rural. Pude reconhecer como a idéia de raça era pensada de modo bastante comum, por exemplo, em termos da criação de animais. Nesse caso, a raça animal podia ser diferenciada também em termos de cor, tal como a pele humana: “Desde quando eu era criança eu vejo chamar raça de porco. Tem raça branca. Tem raça preta. Tem de todo jeito raça de porco” (Enedina Catarina). Esse mesmo tipo de associação simbólica foi notado

20. “Foi em decorrência desse longo processo de interpenetração, no qual grupos com diferentes características físicas tornaram-se interdependentes como senhores e escravos, ou ocupando outras posições com grandes diferenciais de poder, que as diferenças na aparência física passaram a ser sinais da pertença das pessoas em grupos como diferenças de poder, com pertenças diferentes e com normas distintas” (ELIAS e SCOTSON, 2000: 46).

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no depoimento de Marino Catarino sobre os galegos como sebosos que nem poleiro de galinha, citado um pouco antes. Se a raça tinha essa característica animal, ela estava mais próxima de um mundo selvagem, bruto, não do-mesticado, não civilizado ou manso. Várias vezes, a imagem e representa-ção dos índios na mata foram citadas nas conversas, fazendo corresponder raça e animalidade. Cheguei a ouvir relatos sobre pessoas pegadas a casco de cavalo, o que tem sido uma explicação bastante usada para falar do com-portamento dos índios no Nordeste e em outras partes do Brasil (VALLE, 2004). Os seguintes trechos de duas entrevistas expõem um pouco mais sobre essa concepção da raça como um atributo selvagem, mais natural do que propriamente civilizado:

Milton Catarino: Hoje em dia não está existindo mais isso não, esse negócio de raça. Mas de primeiro era raça mesmo! Era um povo tipo uns animal. Eu conheço ali também perto de Mataraca. Ainda tem uma parte de índio ali pertinho! [...] Só víamos aquele povo passar, meninos desse tamanhozinho dentro do mato, ainda tem raça aí.Pesquisador: Quando você fala raça como tipo animal, como assim?Milton: Porque é um povo que quando vê gente até tem medo! Aí, com os tempos o povo vai chegando e quando pensa que não esta um povo manso, mas deixa que é tipo uns bichos (Milton Catarino da Silva; 56 anos; 30/07/2006; grifos meus)

Enedina Catarino: Tem raça de todo tipo! Olhe, porque raça que se conhece é raça de porco, raça de cachorro, né? É isso que tem raça! Mas o povo chama: “Olha, a raça de fulano é isso, assim, assim!” Mas não pode ser! É a família de fulano, porque mesmo que seja moreno, mas é a família, não é raça não!Pesquisador: Então a família é que é o certo?Enedina: É, a família é que é certo, eu acho! No meu conhecimento é a família. Raça é de bicho bruto! (ri). Raça é de bicho bruto! (Enedina Catarina da Silva; UF 10; 62 anos; 29/07/2006; grifos meus)

Essa associação cultural e simbólica da raça com animais, brutalidade e sujeira não deve ser ressaltada apenas em termos analíticos. Essas idéias têm importância direta para as pessoas de Acauã à medida que revelam os graus e as modalidades de estigmatização e preconceito por eles enfrenta-dos no município de Poço Branco. Não foi possível evidenciar a apresen-tação objetiva de discriminação racial na pesquisa etnográfica. Contudo,

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as pessoas de Acauã com quem conversei puderam relatar uma série de impressões e apreensões de preconceito e estigmatização, que precisam ser avaliadas a fim de entender a diferenciação de cor e “raça” no município. Contadas através das práticas discursivas, essas perspectivas elucidam o modo que as pessoas de Acauã se percebem socialmente. Essa discussão envolve o tema da estigmatização étnica, tão bem reportada por Eidheim (1969). As relações sociais podem ser compreendidas a partir das expec-tativas e impressões que os agentes têm de sua própria inserção no mundo social. Além disso, os significados tanto positivos como negativos, histori-camente engendrados, de Acauã como uma figuração social específica têm sido mantidos por meio da diferenciação com outros grupos e comunida-des locais no município de Poço Branco. As formas de estigmatização de cor e de teor racial mostram sem dúvida um dos meios de diferenciação so-cial na região. Não se tratava de uma forma extremada de estigmatização e segregação, mas produzida de modo sutil, ajustado a contextos específicos.De modo geral, meus interlocutores reconheciam que eram identificados por sua cor e por sua origem social, o lugar e a comunidade a que perten-ciam. De fato, a expressão os “negros de Acauã” (Cunhã) pode ser enten-dida como uma identidade coletiva de atribuição étnica. Isso mostra como a diferença étnica é construída socialmente, visando definição de uma fi-guração social específica cujo elemento diferencial pode ser a cor da pele e um recorte “racializado”. Em uma das entrevistas, Marino Catarino se referiu, por exemplo, aos “negros de Coqueiro” e aos “negros da Pousa”. Es-tamos aqui diante da problemática da etnicidade e da diferenciação étnica. Associa-se a cor ao lugar de uma origem comum, o que corresponde aos elementos definidores da etnicidade no contexto estudado. O lugar-espaço (Acauã, Cauã, Cunhã) e a cor da pele (negra) são articulados com o sentido de constituir social e discursivamente uma unidade social e, assim, uma identidade social:

Pesquisador: Como eles chamavam o pessoal de Acauã?João Catarino: Os negros, os negros de Cauã!P: Quem chamava vocês assim?Marino Catarino: O redondo todo! Eu estou dizendo assim, quase geral: Poço Branco, Contador. É “os negros da Cunhã”. Era os ne-gros da Cunhã e os de Coqueiros, já perto da praia. Os negros do Coqueiro, os negros da Cunhã e os negros da Pousa, parece que é negro também. Onde, nesses lugares, talvez aqui dentro da Cunhã

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tenha gente que nem chegue a cor deles, mas só é conhecido como negro aqui.P: Mas o senhor ouvia isso quando era criança, como assim?MC: Ouvia, ouvia, ouvia! Desde criança. É os negros da Cunhã! “Lá vem os negros da Cunhã”.JC: Às vezes, um nêgo mais preto do que eu: “Mas olhe os negros da Cunhã”. Ele preto que só o satanás!P: De onde que ele era?MC: De Poço Branco, ContadorJC: Ia procurar uma bondade que o negro não é gente.Marino: Você sabe quando é que negro é gente? Quando está dentro de uma parede de defecar.João Catarino: Quando está no banheiro, se servindo lá.Marino: É só quando negro é gente!João Catarino: Quando o camarada fala. O negro está dentro e diz: “Aqui tem gente!”Marino: Quando o cabra abre a porta e sai: “Pra mim era gente e é um danado de um negro!” (Risos). (Entrevista com João e Marino Catarino; 20/4/2006; grifos meus).

Entre meus interlocutores, havia sutis variações quanto à apreensão da diferença de cor, se ela era apresentada como um estigma ou não. Es-sas experiências eram contadas junto de outros relatos que assinalavam valores e idéias de raça e de preconceito racial, tais como nos casos das piadas, que ajudavam a ilustrar o argumento. Nas conversas com pes-soas de idades variadas, tanto jovens como adultos e idosos mostraram a recorrência da apreensão de estigma e de preconceito por parte dos moradores de Poço Branco. De acordo com suas palavras, o preconceito não era algo novo, mas existiu no passado, mesmo se entendemos que os significados das apreensões e impressões sociais estejam associados ao tempo atual:

Enedina Catarino da Silva: [...] O povo tem uns apelidos que bo-tam: os negros da Cunhã. O povo gosta de chamar o povo da Cunhã, mas tem o mal costume de chamar os negros. Mas a gente não gosta desse apelido não! A gente é negro, mas não é obrigado ninguém estar explorando chamando os outros de negro. Isso aí é uma coisa, né! Porque a pessoa é morena não é obrigado estar esculhambando a pessoa.

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Pesquisador: A senhora ouvia isso há muito tempo?Enedina: Chamar nêgo? Mas eles não chamam negro na frente da gente não! Chamam assim... A pessoa sabe que eles chamam os negros da Cunhã.Pesquisador: Como sabe?Enedina: Porque sabe! Porque, às vezes, a pessoa não vai assim: “Lá vai os negros da Cunha!” A gente não escuta às vezes? Vai num carro. “Ali é os negros da Cauã!” A pessoa não acha bem bom, mas escuta eles chamar. [...] (Enedina Catarino da Silva; 62 anos; 29/07/2006; grifos meus).

Os elementos apresentados nas entrevistas convergem entre si. Por um lado, foi possível compreender que o preconceito de cor e a estigmatiza-ção social não envolviam uma reação contrária. Meus interlocutores res-saltavam que ouviam calados os termos, as atribuições, os comentários, os gritos sobre eles, que explicitavam uma definição negativa ou pejora-tiva. Certa vez, Juvino Catarino explicou que “não achava bom, mas não era de brigar”. Pelos relatos, a impressão que se tem é que o preconceito se manifestava quase sempre como uma espécie de fala dominante do senso comum, cujo alto custo não era o da confrontação, mas sim o da humilhação, da chateação, da esculhambação, conforme os termos usa-dos nas falas. Contudo, parece-me que a confrontação do estigma e do preconceito estava se tornando uma questão importante, que merecia atenção e circulava como uma ação positiva e necessária. Isso aconteceu com a jovem Iranilda Catarino, de 17 anos, que disse ter reagido quando foi chamada de “porca preta” por um colega de escola, o que mostra, aliás, outra vez a violência simbólica do recurso à animalidade quando associada à cor. Mesmo longo, o seguinte trecho de entrevista em grupo merece atenção:

Pesquisador: Você falou de discriminação no ônibus, como assim?Iranilda Catarino: Antes, quando a gente pegava, gritavam: “Ne-gros da Cunhã! Negros da Cunhã!” Quando a gente ia no ônibus. Só que agora quando eu vou e disser. Até com gente aqui mesmo ... agora, não sou mais besta não. Quando o povo ia dizer, eu ficava muito triste, mas agora eu também digo pra trás. Um dia, eu pe-guei uma briga lá no colégio. Me chamou de porca. Eu disse: “Você é um porco branco. Eu sou uma porca preta, mas sou com orgulho. Você é porco branco sem orgulho”. A gente briga.

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Pesquisador: Chamou você de porca preta?Iranilda: Porca preta,é. Aí, eu chamei também ele. A gente briga-va. Aí, a professora ficava olhando. Até do Contador. Ela ficava olhando. Não dizia nada. Quando foi outra vez, a gente brigava de novo, mas eu também dizia as coisas. Aí, ela foi reclamar na secre-taria. “Iranilda tá quieta, mas o menino fica dizendo as coisas. Ela também vai dizer”. Ela dizia as coisas, mas.Pesquisador: Você estava com quantos anos? Iranilda: Foi o ano passado!Marino Catarino: Essa discriminação já é antiga!Francisca Catarina da Silva: Há muito tempo. Passava até por mo-torista de carro. Era tanto nome que passava aí: “Negros da Cunhã! Isso é África!” De noite, dez horas, quando eu vinha da escola. Era isso! Nós sofremos, ai Jesus!Pesquisador: E na Cunhã velha?Marino: Lá na Cunhã velha, o povo era mais velho e tinha mais vergonha. Hoje, o povo virou quase sem vergonha. No tempo dos mais velhos, os de Contador vinha pra Cunhã e dizia: “Vamos pra Cunhã!” Até batendo uma lata. Cansou da gente amanhecer o dia dançando. Batendo uma lata ou outra pessoa cantando. Eu um dia toquei uma noite todinha mais um compadre meu! Com uma gaita daquela, que chama realejo, né! O dia amanheceu. O cabra com pandeiro, nós tocando e a turma dançando! Às vezes, até baten-do numa lata amanhecia o dia. Mas no tempo dos mais velhos: “Vamos pra Cunhã”. Eles não discriminavam tanto os negros da Cunhã. Mas já os de Poço Branco discriminava!Iranilda: Os mais velhos conheciam mais uns aos outros, mas na nossa época agora! ...Marino: Já chegou época, agora há pouco, de, às vezes, eu estar em um canto e escutar pessoas falando sobre os negros da Cunhã. E vejo outras pessoas dizer: “Olha, aqueles são uns negros, mas são de coração tão bom que talvez seja mais limpo que o teu. Aqui, nin-guém vem falar daquele pessoal! Aqui, ninguém vem falar de rou-bo! Ninguém vem falar de briga. Ninguém ouvi falar que matou ninguém. Ninguém ouve falar que anda roubando. Que anda as-saltando. Aquilo é um povo limpo”. (Entrevista coletiva com Mari-no Catarino, 65 anos; Francisca Catarina da Silva, 36 anos, Iranilda Catarino, 17 anos; 21/04/2006; grifos meus).

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O ato de discriminar era notado, sobretudo na escola e nos caminhos e estradas que atravessavam Acauã. Desse modo, os chamamentos ‘racistas’ eram bastante notados e esperados em contextos públicos. Como explicou Goffman (1988), o estigma envolve uma discrepância entre a identidade social real e aquela identidade social virtual, imputada pelos outros à pes-soa estigmatizada. O estigma envolve um atributo profundamente depre-ciativo produzido, sobretudo, através de uma linguagem de relações. Pro-duzida socialmente, a estigmatização étnica e ‘racial’ esboça objetivamente as modalidades de interação social entre grupos, tais como as pessoas da comunidade de Acauã e da cidade de Poço Branco. Seria isso igualmente o que Norbert Elias sugere ao abordar o tipo de figuração social entre esta-belecidos-outsiders, que envolve diferenciais de poder entre grupos que se relacionam socialmente. Enedina Catarino expõe muito bem a questão da discrepância identitária quando afirma não gostar de ser chamada pejora-tivamente de negra, quando se identifica como uma pessoa morena. Está em questão certamente o valor simbólico da cor negra, que culturalmente pode ser associada à sujeira. A piada sobre o negro no banheiro – só quan-do ele é gente – ou o próprio xingamento da jovem Iranilda como “porca preta” mostram os significados estigmatizantes, desacreditados da cor ne-gra nos universos sociais do município de Poço Branco. Percebe-se que a cor pode ser equiparada às idéias e valores de animalidade (porca) e sujeira. Em sua entrevista, foi Enedina Catarino quem expressou isso mais forte-mente, pois raça é: “raça de porco, raça de cachorro, né? É isso que tem raça! (....) Raça é de bicho bruto!” (grifos meus). Quando Iranilda foi chamada de porca preta, apresentou-se o modo de “racialização” mais eloquente e forte, além de culturalmente expressivo, do contexto de pesquisa, a associação de uma pessoa à raça como atributo animal e não humano, ao porco em sua sujeira, sua brutalidade “natural”. Ao invés de se pensar raça como biologia, pensava-se mais em raça como animalização. Além disso, ser chamado de “negro” ou “preto” por alguém desconhecido ou ‘de fora’ pode ter conota-ção negativa. Elas têm consciência do poder de ferir pelos chamamentos e pelas identidades que lhes são atribuídas porque eles são termos de estig-matização, ao menos enquanto os valores simbólicos embutidos nesses ter-mos não são mudados. Mesmo se algumas pessoas, sobretudo lideranças, falaram para mim do orgulho da raça negra havia a incorporação do valor negativo do estigma de ser negro. Era, assim, que a identidade de moreno podia ser afirmada e privilegiada para evitar o preconceito racial de marca (NOGUEIRA, ibid). É necessário dizer que um dos pontos importantes de Norbert Elias sobre a figuração estabelecidos-outsiders é que os outsiders

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estão colocados em uma situação anômica, que, inclusive, inibe o ataque e crítica aos estabelecidos, mas esta situação pode também mudar, tal como aconteceu com a jovem Iranilda, opondo-se diretamente à fala racista de seu colega de escola:

(...) em todas as outras sociedades humanas, a maioria das pessoas dispõe de uma gama de termos que estigmatizam outros grupos, e que só fazem sentido no contexto de relações específicas entre es-tabelecidos e ousiders. ‘Crioulo’, ‘gringo’, ‘carcamano’, ‘sapatão’ e pa-pa-hóstia são exemplos. Seu poder de ferir depende da consciência que tenham o usuário e o destinatário de que a humilhação almejada por seu emprego tem o aval de um poderoso grupo estabelecido, em relação ao qual o do destinatário é um grupo outsider, com menores fontes de poder. Todos esses termos simbolizam o fato de que é pos-sível envergonhar o membro de um grupo outsider, por ele não ficar à altura das normas do grupo superior, por ser anômico em termos dessas normas. Nada é mais característico do equilíbrio de poder extremamente desigual, nesses casos, do que a impossibilidade de os grupos outsiders retaliarem com termos estigmatizantes equivalen-tes para se referirem ao grupo estabelecido. Mesmo quando dispõem de termos desse tipo para que seus membros se comuniquem entre si ... , estes são inúteis como armas numa disputa de insultos, porque um grupo de outsiders não tem como envergonhar os membros de um grupo estabelecido: enquanto o equilíbrio de poder entre eles é muito desigual, seus termos estigmatizantes não significam nada, não tem poder de feri-los. Quando eles começam a ser insultuosos, é sinal de que a relação de forças está mudando (ELIAS E SCOTSON, 2000: 27).

A diferenciação de cor e o estigma que lhes era embutido eram interpreta-dos como sinal de ignorância e falta de vergonha. Dessa forma, as pessoas de Acauã não tinham uma perspectiva totalmente dualista da estigmatiza-ção de cor. Elas reconheciam que outras pessoas podiam ter mais vergonha e não discriminar, tal como o povo mais velho de Contador, descritos no trecho de entrevista por Marino Catarino. Ele chegou mesmo a ouvir pes-soas afirmando como os negros da Cunhã eram um povo limpo de coração bom. Esses termos opõem-se simbolicamente às idéias do negro associado à sujeira, que se apresentavam através dos xingamentos e chamamentos. Podemos ainda notar como essa discussão sobre preconceito de cor, de

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marca, segundo Nogueira, possibilitou uma reflexão sobre o passado, que contribuía para enquadrar a memória social, enovelando e diferenciando tempos entre si, o presente e o passado, testemunhado por Marino Catari-no em situações de festa e diversão, quando até se podia dizer, “no tempo dos mais velhos: “Vamos pra Cunhã”. Havia, assim, um contra-discurso à estigmatização de cor com forte sentido moral que ressaltava a experiência de continuidade que a própria história da comunidade de Acauã refletia, sobretudo em termos das questões e situações do tempo presente. Mas isso não seria uma discussão exclusiva dos meus interlocutores de Acauã. Ao fazer pequenas entrevistas na feira de Poço Branco, pude per-ceber, comparativamente, como as pessoas que viviam ou transitavam pela cidade descreviam e caracterizavam a comunidade. Em muitas falas, foi apresentada uma visão moral positiva de Acauã, tal como foi ouvido e des-crito por Marino Catarino. Nas conversas, reportou-se muitas vezes sobre a honestidade, a pobreza e a capacidade de trabalho das pessoas de Acauã. Reconheço a limitação da representatividade desse conjunto aleatório de informantes. Contudo, seus depoimentos permitem observar algumas apreensões mais gerais sobre a comunidade que não envolviam apenas es-tigmatização, permitindo nuançá-la e ajudando a entender a complexidade das relações sociais na região. Acredito que a linguagem de relações que o estigma supõe, conforme diz Goffman, deve ser contrabalançada com ou-tras afirmações e idéias não estigmatizantes que eram dispostas em termos das dinâmicas societárias do município de Poço Branco. De fato, a pesquisa etnográfica evidenciou a linguagem do estigma da cor em situações que en-volviam mais diretamente a questão da terra e o trabalho de regularização fundiária da área de Acauã, sobretudo entre os proprietários de terra en-volvidos, além dos relatos apontados de discriminação por parte de meus interlocutores. Contudo, elas não foram as únicas existentes. Como exem-plo disso, convém ilustrar com algumas falas e idéias sobre a comunidade de Acauã coligidas entre freqüentadores da feira de Poço Branco21:

O que eu sei lá é que o pessoal são tudo bem lá, bem unidos eles lá. São tipo assim uma família só. Eles. Ali tudo que eles vão fazer se reú-ne tudinho. E e ai vão fazer alguma coisa. É o que eu sei que tudo que eles faz ali é tudo reunido. Sei que ali já faz muito tempo que eles mora

21. As entrevistas foram realizadas pela assistente de pesquisa, a bolsista Fabíola Araújo na feira de Poço Branco no dia 30/07/2006. Os trechos de entrevista foram grifados pelo pesquisador.

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ali. É uma família só. E lá quase tudo só. Casa primo com primo, tipo assim que nem uns índios. Eles lá. É tipo uma tribozinha. Lá eles. (fei-rante; morador do Xavier, interior do município de Poço Branco).

São um povo sofrido, os de lá. Com certeza, são um povo sofrido. Lá tem água, lá tem luz, mas é um pessoal que são humilde, pobre. Só vivem, uns vivem de pesca. Outros vivem de trabalhar pagando já renda de terra, porque num tem terra pra trabalharem. (homem 1; sorveteria de Poço Branco).

Ouvi, não por gente de lá dentro, mas por gente que circula, você sabe que circula os boatos né, os cara boatando eu já ouvi que eles eram uma comunidade quilombola. ... Eu acredito que seja, pelo jeito deles, pelo povo que é eu acredito que eles tenham algum parentesco alguma coisa, eu acredito que sim, ali tem noventa e nove virgula nove por cento de ser, com certeza. (homem 3; sorveteria de Poço Branco; grifos meus).

Ao abordar as entrevistas com moradores de Poço Branco e da região, mui-tos aspectos discursivos permitem comparação com as idéias que nortea-vam as falas, relatos e entrevistas em Acauã. Seria possível perceber que a comunidade tem sido entendida como diferenciada através dos traços de pobreza, de uma vida humilde e sofrida. O caráter endogâmico dos casa-mentos, a idéia de constituírem uma família só que mostra união (tudo reunido) e a constatação de que dependem de arrendamento de terra para trabalhar foram alguns dos aspectos relevados a definir cultural e social-mente Acauã para muitos moradores do município. Essa apreensão da sin-gularidade social da comunidade precisa ser salientada para que possamos entender as dinâmicas societárias de diferenciação no município de Poço Branco. De fato, a importância da cor, morena, foi apontada por alguns para identificar as pessoas da comunidade, o que se ajusta com os termos de identificação vistos como apropriados pelas pessoas de Acauã, tal como se viu em suas falas. Apoiando-se nos argumentos de Nogueira (ibid) sobre a dinâmica racial no Brasil, o preconceito de marca pode ser atenuado de acordo com as situações e relações pessoais. Quando as pessoas de Acauã lembravam os xingamentos que sofriam, eles falavam dos agentes de estig-matização de modo geral, dificilmente identificando-os. Além disso, acre-dito ser mais difícil a explicitação de preconceito da cor e da discriminação racial em contextos públicos de pesquisa, quando graus de moderação aca-

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bam por se impor. Explicaria, assim, até o comentário do último homem entrevistado que aludiu aos boatos, rumores e mexericos em Poço Branco sobre a origem quilombola das pessoas de Acauã22. Certos relatos e descrições sobre Acauã eram abertamente falados, en-quanto outros apareciam em contextos distintos, mais socialmente con-trolados. Se a imagem pública da comunidade de Acauã estava em questão, alguns aspectos seriam relevados e outros minimizados. Deve-se salientar que o fato da maioria das pessoas entrevistadas ser composta de agriculto-res da região supõe certamente uma definição posicionada da comunida-de, quando os valores e concepções de união, trabalho e pobreza acabavam sendo destacados, exatamente por aqueles agentes que teriam relações de similaridade e convergência social. Como Eloi Catarino chegou uma vez a me dizer: “Mas o pessoal mesmo de bom entender num tem, não marca diferença. Não marca diferença não!” (grifos meus). Nesse caso, a diferen-ciação sócio-racial em Poço Branco dependia das relações mantidas entre pessoas e grupos sociais. Para as pessoas de Acauã, seria possível entrever uma dinâmica de estigmatização bastante perturbadora e, por outro lado, a convivência com tolerância e aceitação social23.Em resumo, eu tive a intenção de apresentar um conjunto de categorias, idéias e narrativas que estruturam e ajudam a definir o campo semântico da etnicidade, da cor e da racialidade na figuração social que articulava a comunidade de Acauã e os moradores da cidade de Poço Branco. A re-construção do passado e a definição de uma origem comum envolviam representações sobre o cativeiro dos escravos fundadores e dos antepas-sados de Acauã/Cunhã. Além disso, eram elementos discursivos que per-mitiam consubstanciar a memória genealógica dos membros da comuni-dade atual. Desse modo, o entendimento de Acauã como um ‘quilombo’ dependia, então, das referências culturais e simbólicas de um passado co-mum e do pertencimento a um determinado lugar, antigo esconderijo de escravos fugidos à margem do rio Ceará Mirim. Mas esse entendimento também dependia, sobretudo, das concepções de família, cor e racialidade,

22. Norbert Elias observa a importância da fofoca ou do mexerico, tanto depreciativo como elogioso, para se entender as dinâmicas entre grupos sociais (2000: 121-133). 23. O historiador de Poço Branco, Raimundo Rodrigues da Silva, que mantinha boas relações com as pessoas de Acauã explicou também como elas eram chamadas em Poço Branco: “Aqui chamavam os negros da Cauã. Só isso. Era respeitado. Lá ninguém bagunçava. A polícia de lá era eles mesmo. Eles que resolviam. O cabra lá tem que respeitar”.

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cuja positividade se expressava em nítida contrariedade aos argumentos de estigmatização enfrentados pelas pessoas da comunidade. Assim, as formas de diferenciação étnica e de coloração da pele foram apresentadas através das práticas discursivas e dos modos efetivos de percepção social entre os diversos agentes e grupos que a pesquisa investigou, sejam os membros da comunidade de Acauã como moradores de Poço Branco. Em oposição à categoria social de negros da Cunhã, cujo teor podia ser muito estigma-tizante para os membros da comunidade, foi possível notar que havia a sua re-significação como uma coletividade de pertença identificada como a gente, o povo e, sobretudo, as famílias de Acauã. Seriam categorias iden-titárias, cujos significados positivos possibilitavam definir um etnônimo mais preciso, o de constituir uma “comunidade negra rural remanescente de quilombo”. Nesse caso, Acauã podia ser definida como uma comunidade e, ultimamente de modo mais e mais politizado como um “quilombo”, tal qual se verificava pelo próprio nome da sua forma de associação política mais recente.

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SOBRE OS AUTORES

Antonio Carlos de Souza Lima é graduado em História (UFF) e obteve os graus de Mestre e Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/Mu-seu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. É atualmente pro-fessor Titular de Etnologia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, onde ministra cursos e orienta pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia. É co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etni-cidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED – www.laced.etc.br), tendo publicado diversos livros e artigos dedicados ao estudo da política indige-nista no Brasil e mais amplamente à antropologia do Estado, estudos sobre a administração pública e a cooperação técnica internacional. É bolsista de Produtividade em Pesquisa 1B do CNPq e bolsista Cientistas do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa (2004-2006; 2007-2009; 2011-2014).

Carlos Guilherme do Valle tem graduação em Ciências Sociais pela Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional (UFRJ) e doutorado na Universidade de Londres, realizado no Departamento de Antropologia (University College, 2000). Foi professor da UFPB de 2002 a 2004. Atualmente, é professor associado III da Universidade Federal do Rio Grande do Norte onde atua no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, onde orienta alunos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Antropologia, com interesse nas seguintes linhas de pesquisa: Etnicida-de e etnologia indígena no Nordeste brasileiro; Antropologia do Corpo, da Saúde e Doença. Realizou laudos periciais e relatórios antropológicos.

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Cláudia Maria Moreira da Silva Hofmann é graduada em Serviço Social pela UFRN (2004). É Mestre em Antropologia Social (2007) pelo Progra-ma de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde defendeu a dissertação “Em busca da realidade”: a experiência da etnicidade dos Eleotérios (Catu/RN). Mantém interesse nos seguintes temas: juventude, participação política, avaliação de políticas públicas, etnicidade, indigenismo etc. É pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos - LEME/UFCG/CNPQ.

Cyro Almeida Lins possui graduação em Ciências Sociais (2006) e mestra-do em Antropologia Social (2009) pela Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte (2006). Atualmente exerce o cargo de técnico em Antropologia no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). É dou-torando nos quadros do laboratório CITERES (CItés, TERritoires, Envi-ronnement et Sociétés) da Université François Rabelais, em Tours (França). Desenvolve projetos e pesquisas principalmente nos seguintes temas: patri-mônio e processos de patrimonialização, memória, oralidade e etnicidade.

Edmundo Mendes Pereira é Antropólogo e etnomusicólogo. Obteve o Mestrado (1999) e o doutorado (2005) em Antropologia Social pelo PP-GAS-Museu Nacional (UFRJ). Entre 2006-2014, foi professor adjunto do DAN/PPGAS/UFRN. Atualmente, é professor adjunto do PPGAS/MN/UFRJ. Pesquisador vinculado ao Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED-MN/UFRJ) e ao Grupo de Estudos Sobre Cultura Popular (GECP/UFRN). Vice-líder do Laboratório de Es-tudos em Movimentos Étnicos (LEME/UFCG). É co-editor da Coleção Documentos Sonoros do Museu Nacional. Vencedor do II Prêmio ABA/GIZ (2012). Atua principalmente nos seguintes campos de investigação: etnologia indígena, etnicidade, etnomusicologia, cultura popular e patri-monialização.

Francisco Carlos Lucena possui graduação em Ciências Sociais (bachare-lado) pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); gra-duação em Sociologia (licenciatura) pela Universidade Regional do Noro-este do Estado do Rio Grande do Sul e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007). Atualmente é professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-nologia de Alagoas - IFAL. Lecionou no Instituto Superior de Educação de Salgueiro. Atuou também como extensionista social do Instituto Agro-

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nômico de Pernanmbuco. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das Populações Afro-brasileiras. Desenvolve atual-mente pesquisa com jovens rurais no semiárido nordestino.

Giralda Seyferth Possui graduação em História pela Universidade Fede-ral de Santa Catarina, mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Ciências Humanas (Ciência Po-lítica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora associada IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lotada no Museu Nacional. Tem experiência na área de Antropologia, atuando principalmente nos se-guintes temas: colonização, imigração, imigração alemã, nacionalismo e racismo. É professora permanente do Programa de Pós-Graduação em An-tropologia Social, Museu Nacional e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (UFRJ). É autora dos livros: A coloni-zação alemã no Vale do Itajaí (Porto Alegre, Ed. Movimento, 2ª. ed. 1999), Nacionalismo e Identidade Étnica (Florianópolis, FCC, 1982), Imigração e cultura no Brasil (Brasília, Ed. UnB, 1990)

João Pacheco de Oliveira é antropólogo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez pesquisa de campo com os índios Tikuna (Alto Solimões, Amazônia), da qual resultou sua dissertação de mestrado (UnB) e sua tese de doutorado (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ). Realizou pesquisas sobre políticas públicas, coordenando projeto de monitoramento das terras indígenas no Brasil (1986-1994), com apoio da Fundação Ford. Orientou teses e dissertações no Programa de Pós-Graduação em Antropo-logia Social (UFRJ), voltadas sobretudo para povos indígenas da Amazônia e do Nordeste. É pesquisador 1A do CNPq e bolsista FAPERJ do Programa Cientista do Nosso Estado. Nos últimos anos, vem se dedicando ao estudo de questões ligadas a antropologia do colonialismo e a antropologia histó-rica, desenvolvendo trabalhos relacionados ao processo de formação nacio-nal, historiografia, bem como a museus e coleções etnográficas.

Luis Augusto Sousa do Nascimento é Doutorando em Antropologia So-cial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Mestre em Antro-pologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão. É pesquisa-dor associado ao Centro de Trabalho Indigenista; membro do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais, Trabalho e Identidade da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área de antropologia, com ênfase

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em etnologia, atuando nos seguintes temas: território, etnografia rionegri-na e memória coletiva. Atua com os seguintes grupos indígenas: Timbira, Migueleno/Huanyam, Puroborá e Arawak do rio Negro.

Maíra Samara de Lima Freire é doutoranda em Antropologia Social no PPGAS/Museu Nacional (UFRJ). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Seu traba-lho final de conclusão de curso versou sobre práticas associativas e paren-tesco em uma comunidade quilombola. É Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRN, com a dissertação: “É a luta da gente!”: Juventude e Etnicidade na Comunidade Quilombola de Capoeiras (RN), onde abor-dou sobre construções identitárias, juventude, disputas políticas e culturais no contexto de formação quilombola no Rio Grande do Norte. Suas áreas de interesses de pesquisa são: Antropologia das Populações Tradicionais; Antropologia das Populações Afro-brasileiras e colombianas; Antropologia Política; Juventude; etnicidade e gênero.

Rodolpho Rodrigues de Sá cursou a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão. É Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sua dis-sertação faz uma análise da dinâmica da migração de estudantes indígenas (Ramkokamekrá-Kanela - Timbira - Jê) para centros urbanos (Barra do Corda - Maranhão) e dos significados que este processo adquire para os agentes envolvidos. Atua na área das relações interétnicas, principalmente nos seguintes temas: educação escolar e sociedades indígenas, índios em centros urbanos, índios no ensino médio, capacitação de professores indios e não-indios para atuar em aldeias, politicas publicas e politicas indigenis-tas, etnologia indígena; etc.

Wellington de Jesus Bomfim possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Sergipe e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Cursa o doutorado em So-ciologia na Universidade Federal de Sergipe (2012). Foi professor substitu-to na Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área da Educa-ção Física, Educação, Filosofia Geral e do Direito, e Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: cor-po, etnicidade, memórias e narrativas, comunidades tradicionais, cultura popular e folclore.