etnicidade e mudanca p - repositorio.ufc.br · reovolíor os teorias do contato, paro pensar ......

7
A R T I G O ETNICIDADE E MUDANCA CULTURAL , P resenciamos hoje, no mundo todo, o enga- jamento crescente de grupos étnicos em proces- sos de auto-afirmação e ne- gociação de identidades, nos quais a valorização das tra- dições e das diferenças cul- turais expressam a luta de interesses e a organização política. A compreensão dos mo- vimentos étnicos contempo- râneos apresenta grandes desafios e é notável a pro- dução de trabalhos recentes sobre a cultura e as novas formas de sociabilidade. Noções como "pós- colonialismo", "multiculturalidade", "fronteiras étnicas", "política da diferença", "transculturação", "hibridisrno cultural", "comunicação dialógica" e outras que demarcam novos horizontes na antro- pologia, acham-se colados a processos de etni- cidade e mudança em contextos e experiências concretas cujas realidades são ainda pouco co- nhecidas, difíceis de serem demarcadas e mesmo percebidas com clareza. Ao estudar os grupos étnicos no começo do século xx, Weber (1944) observava que eles não representam uma comunidade em si mesma, mas sim um momento, uma situação, que facilita a emer- gência de um associação de natureza política. A comunidade organizada em termos da diferencia- ção étnica fundamenta-se no sentimento subjeti- vo de uma origem comum que subsiste para além das circunstâncias e do momento em que a cren- ça de um elo comum emergiu, criando afinidades coletivas que subsistem e são sentidas como étni- cas com o desenrolar do tempo. Na perspectiva de Weber são os contextos históricos e a dinâmica cultural que permitem en- tender como a consciência étnica é antes o resultado da ação política organizada do que a sua determinante. O termo "etnicidade" tem sido usado na literatura antropológica nos mais va- riados sentidos, muitas vezes de forma vaga e genérica para se referir a identidades locais, características cultu- rais específicas, particulares constituídas pela proximida- de territorial ou de parentes- co, ou mesmo diferenças ra- ciais e fenotípicas. Nos ter- mos apontados por Weber, a etnicidade tem um significadoespecificamente político porque o sen- timento de uma origem comum é a base para a ação coletiva e converte-se em elemento de soli- dariedade dos membros do grupo, que pode se tornar manifesta ou permanecer latente. Na prá- tica, os laços de identificação permanecem laten- tes nas tradições e só costumam se manifestar de forma organizada se os membros do grupo constituirem um movimento em prol dos inte- resses comuns compartilhados. Quando a etnicidade se manifesta, as diferen- ças externas demarcadoras da condição étnica cos- tumam ser acentuadas e teatralizadas.Weber con- siderava-as esteticamente impressionantes e mes- mo artificiosas (1944:320)e, embora tenham, apa- rentemente, pouca importância política por estarem referidas a pequenos aspectos da conduta e da vida cotidiana, ao habitas, à lingua, às cren- ças religiosas e à memória, costumam se revestir de um valor simbólico insuspeitado como estra- tégia na consecução dos fins almejados. Se Weber já percebia o caráter político da mobi- MARIA SVLVIA PORTO ALEGRE* RESUMO Este trabalho tem por objetivo discutir o emer· gência político de grupos étnicos no contexto dos mudanças culturais contemporâneos. Ire- to, especificamente, do problemática dos po- vos indígenas no Brasil e dos novos formos de mobílízocôo e organização no defesa dos seus interesses. A preocupação básico do texto é reovolíor os teorias do contato, paro pensar os formos atuais de etnicidade em situações descritos como" pós-coloniais". : • Professorado Programa de Pós-Graduação em S0- ciologia da UFC. 136 Revista de Ciências Sociais v.27 n.1/2 1996

Upload: trankien

Post on 08-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A R T I G O

ETNICIDADE EMUDANCA CULTURAL,

Presenciamos hoje, nomundo todo, o enga-jamento crescente de

grupos étnicos em proces-sos de auto-afirmação e ne-gociação de identidades, nosquais a valorização das tra-dições e das diferenças cul-turais expressam a luta deinteresses e a organizaçãopolítica.

A compreensão dos mo-vimentos étnicos contempo-râneos apresenta grandesdesafios e é notável a pro-dução de trabalhos recentessobre a cultura e as novasformas de sociabilidade. Noções como "pós-colonialismo", "multiculturalidade", "fronteirasétnicas", "política da diferença", "transculturação","hibridisrno cultural", "comunicação dialógica" eoutras que demarcam novos horizontes na antro-pologia, acham-se colados a processos de etni-cidade e mudança em contextos e experiênciasconcretas cujas realidades são ainda pouco co-nhecidas, difíceis de serem demarcadas e mesmopercebidas com clareza.

Ao estudar os grupos étnicos no começo doséculo xx, Weber (1944) observava que eles nãorepresentam uma comunidade em si mesma, massim um momento, uma situação, que facilita a emer-gência de um associação de natureza política. Acomunidade organizada em termos da diferencia-ção étnica fundamenta-se no sentimento subjeti-vo de uma origem comum que subsiste para alémdas circunstâncias e do momento em que a cren-ça de um elo comum emergiu, criando afinidadescoletivas que subsistem e são sentidas como étni-cas com o desenrolar do tempo. Na perspectivade Weber são os contextos históricos e a dinâmica

cultural que permitem en-tender como a consciênciaétnica é antes o resultado daação política organizada doque a sua determinante.

O termo "etnicidade"tem sido usado na literaturaantropológica nos mais va-riados sentidos, muitas vezesde forma vaga e genéricapara se referir a identidadeslocais, características cultu-rais específicas, particularesconstituídas pela proximida-de territorial ou de parentes-co, ou mesmo diferenças ra-ciais e fenotípicas. Nos ter-

mos apontados por Weber, a etnicidade tem umsignificadoespecificamente político porque o sen-timento de uma origem comum é a base para aação coletiva e converte-se em elemento de soli-dariedade dos membros do grupo, que pode setornar manifesta ou permanecer latente. Na prá-tica, os laços de identificação permanecem laten-tes nas tradições e só costumam se manifestar deforma organizada se os membros do grupoconstituirem um movimento em prol dos inte-resses comuns compartilhados.

Quando a etnicidade se manifesta, as diferen-ças externas demarcadoras da condição étnica cos-tumam ser acentuadas e teatralizadas.Weber con-siderava-as esteticamente impressionantes e mes-mo artificiosas (1944:320)e, embora tenham, apa-rentemente, pouca importância política porestarem referidas a pequenos aspectos da condutae da vida cotidiana, ao habitas, à lingua, às cren-ças religiosas e à memória, costumam se revestirde um valor simbólico insuspeitado como estra-tégia na consecução dos fins almejados.

SeWeber já percebia o caráter político da mobi-

MARIA SVLVIA PORTO ALEGRE*

RESUMOEste trabalho tem por objetivo discutir o emer·gência político de grupos étnicos no contextodos mudanças culturais contemporâneos. Ire-to, especificamente, do problemática dos po-vos indígenas no Brasil e dos novos formos demobílízocôo e organização no defesa dos seusinteresses. A preocupação básico do texto éreovolíor os teorias do contato, paro pensaros formos atuais de etnicidade em situaçõesdescritos como" pós-coloniais". :

• Professorado Programade Pós-Graduaçãoem S0-ciologia da UFC.

136 Revista de Ciências Sociais v.27 n.1/2 1996

lização em torno da etnicidade nas primeiras déca-das do nosso século, esse fenômeno se exacerboude tal forma depois duas grandes guerras mundiaisque o empenho em entender a manipulação dasdiferenças culturais e as táticas de auto-afirmaçãotem levado inúmeros autores contemporâneos apensar mais detidamente nessa questão. Critican-do o pressuposto de que a etnicidade representaum movimento de retorno ao passado, Cohen(1969), por exemplo, estudou algumas situaçõesocorridas na África nos anos de 1960, em que di-versos movimentos inovadores de articulação po-lítica se organizaram em torno do que o autor cha-ma de idiomas étnicos tradicionais.

Ressalta nessa perspectiva que nos processosde reelaboração da identidade étnica os velhoscostumes tendem a persistir e serem reforçados,porém no interior de um sistema cultural modi-ficado, que poderíamos chamar de emergente, nosentido de que os símbolos tradicionais são rea-propriados, assumindo novos significados e no-vas funções. Assim, as "invenções das tradições",atualmente tão enfatizadas nos estudos antropo-lógicos, são reelaborações culturais efetivadas ge-ralmente através do rearranjo de itens tradicionaisda própria cultura do grupo e não pela adoção depadrões, modelos e costumes inteiramente novos,aleatoriamente" criados" por alguns indivíduos eadotados arbitrariamente pelos demais, como sesupõe a partir de uma má leitura de Hobsbawn.

Pensar a relação dinâmica entre etnicidade emudança cultural implica em trabalhar com umateoria dinâmica da cultura e descartar, de uma vezpor todas, as abordagens que tratam as chamadas"sociedades tradicionais" (entre as quais são incluí-das as comunidades étnicas) como portadoras deum sistema resistente e rígido, estruturas acaba-das, fechadas e homogêneas onde não haveria lu-gar para regras sociais mal formuladas, vagas e atémesmo incoerentes e contraditórias, regras quepodem ser e são, freqüentemente, manipuladas,redefinidas e contestadas, sobretudo quando refe-ridas a situações de contato inter-étnico.

Além disso é preciso centrar o foco da análisenas situações vividas pelos movimentos étnicos.As teorias situacionais apresentam o grande mé-rito de mostrar que os limites entre dois ou maisgrupos étnicos só podem ser percebidos quandose utiliza o critério da auto definição como fator

crítico da identidade étnica, proposição hoje con-sensual no estudo das fronteiras étnicas. Uma vezque a identidade étnica está associada a um con-junto de normas de valor especificamente cultu-rais, existem circunstâncias em que a etnicidadepode se expressar mais facilmente, ao mesmo tem-po que existem limites que não podem ser ultra-passados, sob pena de descaracterização do gru-po. Na problemática das fronteiras étnicas duasperguntas se colocam: primeiro, como se dá a de-marcação de tais fronteiras em termos da escolhados elementos da cultura usados como marcas esinais diacríticos? segundo, de que modo o grupoacentua as diferenças e as utiliza na organizaçãodas relações sociais em situações emergentes?

O estudo das diferenças em lutas políticas, ouda política da diferença, conduz a reflexão tantopara o presente e o futuro dos grupos étnicos comopara a o estudo das antigas estruturas sociais e dahistoricidade. Isso porque a compreensão dos pro-cessos emergentes não podem encontrar um ter-reno seguro sem pensarmos, em contrapartida,nos fatores responsáveis pela persistência do gru-po, ou seja, sem que procuremos entender comose mantém e se reproduz o sentido de sua conti-nuidade interna na memória e na consciência deuma origem comum compartilhada.

As relações interétnicas realizam-se na tensãoentre dois movimentos complementares: um in-terno, relacionado à dinâmica da organização so-cial do grupo; outro externo, levando em conta aheterogeneidade das culturas em presença, o cará-ter assimétrico do contato e a dominação de umasociedade sobre a outra. O jogo complexo de re-lações sociais desse tipo envolve dimensões hori-zontais e verticais, sincrônicas e diacrônicas, quese entrecruzam e agem umas sobre as outras, in-terferindo na continuidade e na mudança dos gru-pos étnicos.

Os modelos de relações interétnicas onde povosclaramente diferenciados, com uma diversidadehistórica e cultural bem definidas, associam-se ouenfrentam-se uns aos outros, geralmente em ummeio colonial não se aplica mais. Hoje há umagrande variedade de situações em que as circuns-tancias históricas e os fatores críticos na distinçãoou manutenção dos limites étnicos não são maisdesse tipo. Situações que poderiam ser definidascomo de natureza "pós-colonial", onde a questão

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Etnicidade e mudança cultural. pp. 136 a 142 137

do poder e da dominação assume novas feições.Do ponto de vista teórico a questão ainda consis-te, em grande parte, em dar conta dos "encontrosculturais" para além dos parâmetros do evolu-cionismo e do marco da aculturação .

Em outro trabalho (Porto Alegre, 1992) abor-damos essa questão para situar como a problemá-tica do poder e da dominação presentes no conta-to interétnico chega até nós na trilha aberta porBalandier (1955) acerca da "situação colonial". Asteorias processuais da Escola de Manchester, espe-cialmente a noção de "situação social" de MaxGluckman, (1940), deram uma contribuição deci-siva para pensar como os processos de mudançanos quais os indivíduos e os grupos redefinem assuas culturas, que em momento algum podem sertratadas como sistemas fechados, inflexíveis e ho-mogêneos, como pensavam os funcionalistas e osteóricos da aculturação.

No caso dos povos indígenas, a recente mobili-zação em prol dos direitos constitucionais, sobre-tudo no que diz respeito à demarcação das terrasindígenas, deu-lhes uma nova visibilidade e deixoudefinitivamente para trás a maneira de pensar osíndios como remanescentes de um passado distan-te e congelado no tempo e no espaço, os últimossobreviventes dos "vencidos da história", à esperado momento final de sair de cena. Mas, não obs-tante esse avanço, as perspectivas sobre o futurodos povos indígenas ainda são bastante sombrias,eivada de prognósticos pessimistas sobre as possi-bilidades de sobrevivência dos grupos em contatointensivo com o "mundo dos brancos".

Do ponto de vista antropológico, para enten-der os processos de emergência dos povos indíge-nas contemporâneos torna-se necessário ampliaros quadros de interpretação. A questão da identi-dade é, sem dúvida, um elemento central da te-mática indígena, tornando-se cada vez mais claraa inadequação das abordagens essencialistas, queinsistem na busca de uma suposta substância daetnicidade Cunha (1994) o que nos conduz devolta a Weber e ao caráter político dos gruposétnicos. No caso brasileiro está mais clara, hoje, aviolência gerada, primeiro pelo colonialismo edepois pela sociedade nacional, sobre as socieda-des indígenas. Violência que se manifestou, aolongo da história, no avanço predatório das fron-teiras econômicas, no poder avassalador do Esta-

138 Revistode Ciências Sociais v.27 n.1/2 1996

do, no papel ambigüo da Igreja, nos confrontos econflitos com os diversos segmentos da popula-ção local e regional, enfim, na complexidade deinteresses dos numerosos atores e interlocutoresdo campo indígena e do indigenismo, apontandopara os enormes efeitos desagregadores desses pro-cessos sobre as organizações tribais.

Porém é importante notar que, para além dassingularidades dos casos e apesar das lacunas ain-da grandes no conhecimento histórico dos po-vos indígenas no Brasil, a situação de cada etniaatualmente existente é a expressão local de umadinâmica histórica mais ampla, marcada por dis-putas acirradas que, usando diferentes estratégiase com resultados diferenciados, acompanha, aolongo do tempo, a vida dos índios em nosso país.Por outro lado, vemos também que as possibili-dades de persistência, continuidade, desagrega-ção ou desaparecimento não estão nunca dadasde antemão. Os caminhos trilhados por cada gru-po étnico é sempre a expressão de um drama par-ticular vivido pelos povos indígenas que .enfren-tam, cada uma à sua maneira, nas condições quelhe são propostas e com diferentes soluções, odesafio da sobrevivência.

Quando falamos na emergência dos povos indí-genas no Brasil contemporâneo estamos pensandonos movimentos de organização política que sur-giram a partir da década de 1970, com a criaçãodas Assembléias de Lideranças Indígenas e daUnião das Nações Indígenas - UNI Nacional, em1979, entidades que reuniram pela primeira vez arnultiplicidade dos povos indígenas do país, porta-dores de distinções Iinguísticas e costumes diferen-ciados, fazendo aflorar uma unidade pan-indígenaaté então inesxistente.

Nos anos de 1980a presença indígena no campopolítico nacional tornou-se mais forte, culminan-do com a intensa mobilização em torno dos direi-tos indígenas, na formulação da nova Constituiçãobrasileira de 1988. Na atualidade, o fenômeno daorganização política indígena se multiplica em vá-rias regiões do país, com o surgimento de numero-sas entidades locais e regionais e a entrada em cenade organizações não-governamentais de apoio po-lítico e profissional aos índios, colocando a ques-tão da emergência dos grupos indígenas na ordemdo dia. Ganham visibilidades as entidades locais eregionais como a Coordenação das Organizações

·Indígenas da Amazônia - COIAB, a Federação dasOrganizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN ecresce a atuação de associações que prestam apoiopolítico e profissional aos povos indígenas, como oConselho Indigenista Missionário - CIMI, a Asso-ciação Brasileira de Antropologia - ABA, as Co-missões Estaduais Pró-Índio, bem como grupos deação religiosa, educacional e artística nas áreas indí-genas. (Ricardo, 1996).

O recorte da etnicidade enquanto fenômeno po-lítico torna-se particularmente relevante quandovemos que a emergência de movimentos de rea-firmação e recuperação étnica estão associados àreivindicação dos direitos indígenas, atestando acapacidade de reação de grupos que vivem há sé-culos em situações limite de pressão integracio-nista. O processo de organização por que passaminúmeros grupos em contato intensivo e poucodiferenciados exteriormente da população regio-nal quanto à sua identidade, muitos dos quais eramconsiderados extintos até recentemente, represen-ta um caso particularmente importante nessa pro-blemática.

No Nordeste por exemplo, na região em quetrabalhamos, estão identificados atualmente 28 po-vos indígenas. Com exceção dos Fulni-ô, que con-servam sua língua original, todos os demais falamapenas o português. A maior parte mora em áreasdiminutas, em meio à população local de grandedensidade demográfica da qual pouco se distingueexternamente. Os costumes e tradições que for-mam a base de suas identidades étnicas são emgrande parte ocultados e por vezes tornam-se prá-ticas semi-secretas, de tal forma estão eles habitua-dos a fecharem-se internamente para evitar discri-minações mais insuportáveis do que as que nor-malmente enfrentam.

Cerca de metade dos 206 povos indígenas noBrasil hoje ainda não são oficialmente reconheci-dos e mesmo os que o são, vivem em tensão perma-nente e disputas infindáveis pela demarcação e con-servação das terras que habitam e que são constan-temente invadidas e usurpadas. Tal situação se agra-vou com a intervenção do governo federal que,através do decreto 1.775, de janeiro de 1996 esta-beleceu a possibilidade de revisão das terras indí-genas já demarcadas, gerando uma avalanche decontestações, atingindo 70 áreas indígenas do País,algumas inclusive já homologadas pela União co-

mo sendo de domínio indígena.Não obstante condições tão adversas, é notória

a capacidade de sobrevivência de inúmeras etnias,num contexto em que os interesses econômicos, adominação política, o contato intenso e a imposi-ção dos padrões culturais do branco apontava parauma inevitável perda da identidade indígena. Pen-samos que a capacidade de resistência desses gru-pos talvez seja decorrente, em grande parte, da plas-ticidade adquirida na longa interação dos grupossociais em presença e sua capacidade de adaptaçãoà mudança.

A população indígena no Brasil contemporâ-neo é de cerca de 300 mil indivíduos. A maiorparte dos povos indígenas está organizada emmicro-sociedades de menos de 200 até 1.000 indi-víduos. 60% dessa população vive na Amazônia eno cerrado (região Norte e Centro Oeste) e ocupa98% das terras indígenas. Os restantes 40% vivemem regiões densamente habitadas do Nordeste,Leste e Sul, confinadas em 2% das terras indíge-nas. (Ricardo, 1996).

A maior parte dos povos indígenas atuais so-breviveram aprendendo a viver situações diferen-ciadas de negociação e acomodação, refazendo seusmodos de vida, recompondo sua identidade, rein-ventando suas tradições, abandonando antigos cos-tumes e incorporando as "novidades" dos bran-cos, para permanecer em seus locais de origem edar continuidade aos seus modos de ser e de viver.São estes o grupos que estão agora emergindo, ga-nhando visibilidade e obtendo o reconhecimentode sua diferença.

Alguns estudos que tratam da construção dapessoa nas sociedades indígenas (Seeger et al., 1979;Novais, 1993) chamam atenção para uma questãofundamental no estudo da etnicidade, que tem aver com o deslocamento do problema da represen-tação do outro para o problema da representaçãoem si. Do mesmo modo, são de especial interesseas discussões atuais que fazem uma reavaliaçãodas relações entre mito e história (Hill, 1988; Tur-ner, 1988) e consideram o papel das narrativas, darepresentação cultural das interações e dos modosde manifestação da consciência.

O que esses estudos nos dizem é que devemosatentar para as formas de expressão e não apenaspara seus conteúdos, se quizermos dar conta dasnovas realidades. Eles nos conduzem ao interesse

PORTO ALEGRE, Mario Sylvia. Etnicidade e mudança cultural. pp. 136 o 142 139

renovado da antropologia pela questão da lingua-gem, ou das linguagens: a palavra, a imagem, o som,a música, as vozes, as possibilidades de expressãoem diferentes gêneros, as práticas discursivas desti-nadas a comunicação interna e aquelas voltadas apara comunicação externa. (Ramos, 1988).

Sabemos que os índios estão e sempre estive-ram engajados em interpretações e reinterpre-tações do contato mas hoje vemos surgir um pan-indigenismo (Ramos, 1995), cujos atores políti-cos reconhecem a limitação da oralidade comoeficácia política, apropriam-se de novos canais deexpressão, da escrita, do gravador, da câmara devídeo, interage com a mídia a fim de obter modosmais eficazes de luta pelo reconhecimento. É aresistência à incorporação que, mais uma vez, dávisibilidade ao índio, fazendo com que a socieda-de como um todo se dê conta de sua existênciaconcreta.

Retomando as preocupações mais gerais com aquestão da etnicidade julgamos importante con-siderar que não vivemos mais "situações coloni-ais", mas parece que ainda não nos demos contadisso suficientemente. Mudou o mundo, muda-ram os contextos. Como tratar as novas formasde etnicidade? Como pensar a diferença culturalnas situações atuais de contato e mudança?

Nas sociedades como a nossa, em que os indi-víduos e os grupos vivem sob a ameaça constanteda arbitrariedade e da violência, muitas formasde convívio na diferença se vêem bloqueadas,perdem as possibilidades de desenvolvimento. Asdiferenças históricas entre as culturas tendem a seperpetuar sem que se concretize uma base orga-nizacional positiva da identidade. A insegurançae a instabilidade atuam de forma repressiva sobrea interação e a sociabilidade, mesmo quando setenta conseguir uma complementaridade poten-cial de interesses, em condições de aceitação dapluralidade e diversidade que efetivamente consti-tuem o povo brasileiro.

Como falar em diálogo cultural nessas condi-ções? como pensar em alteridade, respeito à dife-rença, reconhecimento do outro? Até que pontoos processos de etnicidade e a afirmação da iden-tidade podem ser afetados pelas circunstânciasmais amplas de instabilidade social? As respostasa tais perguntas não são fáceis.

As novas "situações mundiais", chamadas com

140 Revisto de Ciências Sociais v.27 n.1j2 1996

muito acerto, no caso brasileiro, de pós-coloniais,de um lado revelam indícios de tolerância e inten-ções de convívio na diferença. De outro, tornamdifícil estimar os efeitos da mobilização da identi-dade étnica e as conseqüências dos movimentosemergentes, diante da escalada da violência e doacirramento dos conflitos de interesse. Tudo o quesabemos é que as perspectivas globais do nosso tem-pos são de grande relevância para os grupos étni-cos. Se grande parte do conteúdo cultural associa-do a uma comunidade humana não está restringi-do por suas condições internas mas por seus limi-tes e fronteiras com o mundo exterior, nos dias dehoje a mundialização da cultura potenciou ao má-ximo a comunicação e a troca de experiências. Issoquer dizer que, cada vez mais, as condições de exis-tência de uma dada comunidade local podem mu-dar dramaticamente devido a fatores que não guar-dam nenhuma relação crítica direta com a sua pró-pria vontade mas sim com as circunstâncias políti-cas mais amplas do momento.

Por essas razões, nunca foi tão evidente consta-tar que, quando se traça no tempo e no espaço acondição de um grupo étnico, não se está falandode uma cultura apenas, mas de um conjunto deelementos muito mais genérico. Os elementos,interiores e exteriores, constitutivos da existênciaorganizada de um grupo dentro de certos limitesque, apesar das modificações, a assinalam comouma unidade integrada e diferenciada são cada vezmais complexos e multifacetados.

A critica cultural contemporânea , com suatendência a enfatizar os termos espaciais da dinâ-mica transcultural, privilegia certas metáforas deoposição como "centro x margem", "posição efronteira". Os olhares se voltam para a inverçãodos mapeamentos, o questionamento das distri-buições convencionais de poder, demorando-seagora em tentar compreender tudo que tem sidodeixado "de fora". Essas metáforas falam da ten-tativa dos indivíduos e dos grupos que estão nasmargens de recuperar o controle daquilo que lhesfugiu, que os engolfou, "reterritorializar" para usaruma expressão da moda.

O debate se concentra nas representações-em-si enquanto poder, ou no funcionamento de um"poder-em-representação". Trata-se de atingir e cri-ticar não somente o poder concreto, materializa-dos nas instituições, mas as linguagens do poder,

concebidas para silenciar o "outro" a quem perso-nificam na representação dominante. Assim, ima-gem e representação explodem em significados ines-perados, em meio à cultura visual contemporânea.

As teorias da mudança cultural contemporâ-nea tendem a afirmar que o contato inevitável en-tre as culturas, em nível planetário, pode levar àacentuação das diferenças, dentro da proposiçãode que o mundo atual vê surgir o primado daconvivência globalizada ou melhor dizendo glo-balizadora. Dessa perspectiva, fica mais fácil en-tender as novas formas de expressão da etnicidadee a eclosão dos movimentos étnicos nas mais varia-das situações, o que só surpreende aos que acredi-tam que a interação conduz necessariamente àhomogeinização e à perda das identidades. Nun-ca é demais uma releitura de Lévy-Strauss (1950)para entender que a diversidade das culturas nãoé função do isolamento e sim do contato entre associedades humanas.

Homi Bhabha (1994), um dos mais importan-tes representantes do novo pensamento teóricosobre a mudança cultural considera que a culturada modernidade ocidental está sendo "relocali-zada". Recorrendo à história, à literatura e à psi-canálise, Bhabha analisa as narrativas legi-timadoras da dominação cultural, retomando-aspara mostrar como as formas mais criativas daidentidade são produzidas exatamente nas frontei-ras da diferença, nas intersecções e superposiçõesde diversas esferas como classe, gênero, ração, na-ção, geração, localização. Encontrariamos aí o queele chama os "hibridismos" da cultura, que ul-trapassam as polaridades consagradas do "nós" edo "outro".

O que é teoricamente inovador e politicamen-te crucial nas novas perspectivas do pensamentocrítico de um autor como Bhabha é a necessidadede pensar para além das narrativas das subjetivi-dades originárias e focalizar os momentos ou pro-cessos que são produzidos na articulação das dife-rentes culturas. Isso porque são esses espaços me-diadores que fornecem a base para a elaboraçãode estratégias individuais ou coletivas que dãoinício a novos signos de identidade, estratégiasinovadoras de colaboração, negociação e contes-tação presentes no ato de definir a própria idéiade sociedade.

A força dessas questões pode ser medida pelas

crises sociais recentes derivadas do antagonismoe da diferença étnica irreconciliável entre certassociedades e culturas. Na perspectiva das minori-as, a articulação social da diferença é uma negoci-ação complexa e contínua, que busca legitimar-se em momentos de transformação histórica. Odireito de falar a partir da periferia do poder nãodepende da persistência da tradição. Embora essedireito seja fundamentado na tradição ele é reins-crito através das condições de contingência e con-tradição que presidem as vidas dos que estão "nasminorias". O reconhecimento que a tradição ofe-rece é uma forma parcial de identificação. Ao res-taurar o passado, ela introduz outras temporali-dades culturais, o que leva à constatação de queos compromissos fronteiriços da diferença cultu-ral podem ser consensuais ou conflituosos e ten-dem a confundir nossas definições de tradição emodernidade. (Bhabha, 1994).

Coincidindo com as abordagens situacionais daantropologia do contato, para Bhabha as dife-renças sociais não estão simplesmente dadas naexperiência, por uma tradição cultural autênti-ca, elas são os sinais da emergência de uma co-munidade, vista como um projeto, uma possibi-lidade - ao mesmo tempo uma visão e uma cons-trução - que transporta os indivíduos para alémde si mesmos, a fim de retornarem, com um es-pírito de revisão e reconstrução, às condições po-líticas do presente.

O que torna as teorias do autor especialmenteatraentes e renovadoras é a maneira como eledesconstroi e reinterpreta as narrativas já produ-zidas sobre o passado e aponta para um futurofeito de histórias e vozes dissonantes e dissiden-tes, onde as fronteiras tornam-se o lugar de ondealguma coisa começa a se apresentar. Seu empenhoé mostrar que os conceitos de culturas nacionaishomogêneas, transmissão consensual de tradiçõeshistóricas ou comunidades étnicas "orgânicas" -como terreno de comparação cultural - estão emprofundo processo de redefinição.

Por esse caminho Bhabha conclui que o efeitomais significativo dos novos processos por quepassam as minorias não é a proliferação de "his-tórias alternativas dos excluídos" produzindo, co-mo pensam alguns, uma anarquia pluralista. Oque se vê são novas bases para a efetivação do re-conhecimento. Mais uma vez é o desejo de reco-

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Etnicidade e mudança cultural. pp. 136 a 142 141

nhecimento que está em jogo. Mais uma vez é oespaço de intervenção que emerge nos insterstíciosculturais, que introduz a invenção criativa da exis-tência. E ainda uma vez mais, há um retorno dodesempenho da identidade como interação, recri-ação dos sujeitos e reassentamento das comuni-dades de fronteira.

NOTAS1. Este artigo sintetiza resultados de pesquisa com bolsa

do CNPq, em andamento. As idéias iniciais foram sis-tematizadas na conferência "Etnicidade e MudançaCultural", apresentada no Seminário "6'. do Mês", doDepartamento de Antropologia da Universidade deSão Paulo, em 27 de outubro de 1995. Uma segundaversão foi apresentada em abril de 1996 na XX Reu-nião da ABA, em Salvador.

BIBLIOGRAFIABALANDIER, Georges. (1955), Sociologie actuelle de

l'Afrique Noire: dynamique socieale en Afrique Central.Paris, P.U.F, 1955.

BARTH, Fredrik. (1984), "Problems of conceptualizingcultural pluralism, with ilustration from Somar,Oman". In: MAYBURY-LEWIS (Ed.) TheProspectsforPlural Societies. Washington, American EthnologicalSociety.

BHABHA, Homi. (1994), The location of culture, Rout-ledge. London.

COHEN, Abner. (1969), Custom and politics in urbanAfrica, Routledge and Kegan. London.

CUNHA, Manuela Carneiro da. (1994), "O futuro da

142 Revistade Ciências Sociais v.27 n.1j2 1996

questão indígena". EstudosAvançados, Universidade deSão Paulo, n.20, :121-136.

GLUCKMAN, Max. (1940), "Analysis of a social situa-tion in modern Zululand". Bantu Studies, v.XN

HILL, Jonathan D. (1988), Rethinking history and myth:indigenous Soutb A merican perspectives on the pasto Ur-bana and Chicago, Univerversity of lllinois Press.

NOVAIS, Sylvia Caiuby. (1993),jogo de Espelhos: imagensda representação de si através dos outros. São Paulo,Edusp.

PORTO ALEGRE, M. Sylvia. (1992/1993), "Cultura eHistória: sobre o desaparecimento dos povos indígenas".Revista de Ciências Sociais, v. 23/24, n. 1/2, :213-225.

RAMOS, Aleida. (1988), "Indian voices: contact expe-rienced and expressed." In: HILL, J.D. Rethinkinghistory and myth. University o lllinois Press, :214-234.

___ .(1995), "O índio hiper-real" Revista Brasileirade Ciências Sociais, n. 28, :5-14.

RICARDO, Carlos Alberto. (Ed.) (1996), Povos indige-nas no Brasil 1991·1995. São Paulo, Instituto Sócio-ambiental.

SEEGER, Anthony, MATTA, Roberto da, VIVEIROSDE CASTRO, E. B. (1979), "A construção da pessoanas sociedades indígenas brasileiras" In: Boletim doMuseu Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, :2-19. NovaSérie.

TURNER, Terence. (1988), "History, myth and socialconsciousness among the Kayapó of central Brazil".In: HILL J. D. Rethinking history and myth. Universityof Chicago Press :195-214.

WEBER, Max. (1944), "Comunidades étnicas". Economiay Sociedad. México/Buenos Aires, Fondo de CulturaEconômica, v. 1 :315-324.