etnomatica e educação matemática crítica
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Etnomatica e Educação Matemática CríticaTRANSCRIPT
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Caroline Mendes dos Passos
ETNOMATEMTICA E
EDUCAO MATEMTICA CRTICA:
CONEXES TERICAS E PRTICAS
Belo Horizonte
Faculdade de Educao da UFMG
2008
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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Educao
Programa de Ps-Graduao em Educao: Conhecimento e Incluso Social
Caroline Mendes dos Passos
ETNOMATEMTICA E EDUCAO MATEMTICA CRTICA:
CONEXES TERICAS E PRTICAS
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. rea de concentrao: Educao Matemtica Orientadora: Prof. Dra. Jussara de Loiola Arajo
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Passos, Caroline Mendes. P289e Etnomatemtica e educao matemtica crtica: conexes tericas e prticas / Caroline Mendes dos Passos. - Belo Horizonte: UFMG / FaE, 2008. 150 f. , enc. Dissertao Mestrado em Educao. Orientador: Jussara de Loiola Arajo. 1.Etnomatemtica. 2. Matmatica estudo e ensino. 3.Prticas
pedaggica. II. Titulo. III. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educao.
CDD 510.7
Catalogao da Fonte : Biblioteca da FaE/UFMG
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Dissertao intitulada Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica: conexes tericas e
prticas, de autoria da mestranda Caroline Mendes dos Passos, aprovada pela banca
examinadora constituda pelos seguintes professores:
________________________________________________________ Profa. Dra. Jussara de Loiola Arajo FAE/UFMG Orientadora
________________________________________________________ Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba UNESP RIO CLARO
________________________________________________________ Profa. Dra. Roseli de Alvarenga Correa UFOP
________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Laura Magalhes Gomes FAE/UFMG
________________________________________________________ Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Educao:
Conhecimento e Incluso Social - FAE/UFMG
Belo Horizonte, 19 de junho de 2008.
Av. Antnio Carlos, 6627 Belo Horizonte, MG 31270-901 Brasil tel.: (031) 3409-5309 fax (031) 3409-5309
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Dedico este trabalho ao meu sobrinho, Caio, que, com sua vontade incessante de descobrir a vida, mostrou-me a ingenuidade como uma das virtudes mais importantes que uma pessoa pode ter. E, por ter sido ingnuo o bastante em suas buscas, suscitou reflexes profundamente complexas.
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AGRADECIMENTOS
No momento em que se entra no mestrado, muitas pessoas passam a fazer parte da
nossa vida. Alm dessas, tambm no podemos nos esquecer daquelas pessoas que estiveram
sempre ao nosso lado, dando fora, compartilhando alegrias e dividindo angstias.
Antes de mencionar alguns nomes, quero agradecer, antecipadamente, a todos que
se fizeram presentes, direta ou indiretamente, durante a realizao deste trabalho.
Um agradecimento especial ao Marcelo (Maraca), companheiro incansvel e
grande incentivador naqueles momentos em que a gente quase deixa a peteca cair. Te amo
por isso e por tudo que vivemos (e ainda temos a viver) juntos!!! Obrigada mesmo!!!
Aos meus pais, Clio e Lalia, pelo incentivo de sempre. s minhas irms, Carla
Marina e Camila e minha amiga (quase irm) de hoje e sempre, Cyntia, por compreenderem
as ausncias e por deixarem claro que eu podia sempre contar com vocs.
Aos meus cunhados, Eduardo e Leonardo, por deixarem que eu falasse, quase
sempre entusiasmada, de assuntos relacionados a este trabalho. Obrigada Eduardo, pelas
assistncias tcnicas ao computador nas horas de desespero.
Obrigada, Jussara, por estar sempre pronta a incentivar, dizendo o momento certo
de finalizar ou escrever mais sobre um assunto. Muito obrigada, por compartilhar em alguns
de meus devaneios e por contribuir tanto, e to positivamente, para a concretizao deste
trabalho.
Aos professores e mestres, que me ajudaram a transformar dvidas, indagaes e
alguns devaneios em palavras.
Aos professores Marcelo Borba, Maria Laura Gomes, Roseli Corra e Maria da
Conceio Fonseca, obrigada por aceitarem o desafio e por suas contribuies a esta
investigao.
Marlene Vianna, pela cuidadosa reviso ortogrfica.
Aos amigos do mestrado, Diogo, Milene, Flvia(s), rika e aos irmos queridos,
Alex, Diva e caulinha Joicy, que ajudaram a compartilhar as angstias de no conseguir
escrever, mas que tambm comemoraram (e colaboraram para) os trechos escritos depois de
longo esforo.
Aos amigos (Chefinho, Vanessa, Nilson, Damaris, Marcone, Boi, Chefo e
outros) que, inconscientemente, ajudaram-me a escrever sobre alguns temas a partir das
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interminveis discusses relacionadas aos aspectos presentes na realidade, e sobre a prpria
realidade.
A vocs, que estiveram ao meu lado nessas horas, quero agradecer de peito aberto,
numa exploso de alma, porque vocs fizeram, fazem e faro sempre parte de minha histria!
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Onde voc v um obstculo, algum v o trmino da viagem
e o outro v uma chance de crescer. Onde voc v um motivo pra se irritar,
Algum v a tragdia total E o outro v uma prova para sua pacincia.
Onde voc v a morte, Algum v o fim
E o outro v o comeo de uma nova etapa... Onde voc v a fortuna,
Algum v a riqueza material E o outro pode encontrar por trs de tudo, a dor e a misria total.
Onde voc v a teimosia, Algum v a ignorncia,
Um outro compreende as limitaes do companheiro, percebendo que cada qual caminha em seu prprio passo.
E que intil querer apressar o passo do outro, a no ser que ele deseje isso.
Cada qual v o que quer, pode ou consegue enxergar. "Porque eu sou do tamanho do que vejo.
E no do tamanho da minha altura."
Fernando Pessoa
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RESUMO
Buscar uma valorizao das formas de conhecer e interpretar a realidade dos diferentes grupos culturais (DAMBROSIO, 2001) e pretender a insero em um ambiente de sala de aula de discusses relacionadas aos papis desempenhados pela Matemtica na sociedade (SKOVSMOSE, 1994) so, respectivamente, os principais propsitos da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica. Tendo como principal objetivo apontar conexes entre essas duas perspectivas, a presente investigao realizou-se por meio de duas abordagens: um estudo terico de cada uma dessas perspectivas, buscando suas conexes, e um estudo prtico, que se realizou a partir de observaes de aulas de Matemtica em uma escola de Belo Horizonte. Para a realizao do estudo terico, buscou-se as razes histricas de cada uma dessas perspectivas, os seus principais conceitos e as caractersticas que viabilizam prticas pedaggicas segundo essas perspectivas. As conexes apontadas no estudo terico orientaram a anlise das situaes observadas durante a etapa prtica da investigao. Tal anlise se deu por meio da configurao de possveis situaes imaginadas para duas situaes correntes escolhidas para fazerem parte da dissertao. A partir dessa perspectiva de anlise, foi possvel colocar em prtica o que denominado por Skovsmose e Borba (2004) como o ato de pesquisar o que no o caso, ou seja, imaginar outras aes e interaes que podem se fazer presentes no contexto escolar observado e que abordem aspectos tanto da Etnomatemtica quanto da Educao Matemtica Crtica. Os resultados da pesquisa mostraram que possvel desenvolver uma prtica pedaggica que valorize aspectos dessas duas perspectivas. Mais do que isso, os resultados direcionaram para uma melhor compreenso da Perspectiva Pedaggica da Etnomatemtica e da utilizao dos conceitos trazidos pela Educao Matemtica Crtica em sala de aula, entendendo esse processo de compreenso como resultante de uma postura, que encaminhada pelo professor, mas que interfere nas aes (e reaes) de todos os sujeitos envolvidos no processo educacional. Palavras-chave: Educao Matemtica, Etnomatemtica, Educao Matemtica Crtica, Conexes, Prtica Pedaggica, Situaes Imaginadas.
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ABSTRAT
Searching for the true worth of the ways to know and to interpret different cultural groups reality (DAMBROSIO, 2001) and intending to insert the discussions, inside the classroom, related to the roles performed by Mathematics in the society (SKOVSMOSE, 1994), these are, respectively, Ethnomathematics and Critical Mathematics Educations main purposes. This work aims to point out the connections between these two perspectives and it was accomplished by two approaches: theoretical and practical. The practical study took place from observing Mathematics classes in a school in Belo Horizonte. The theoretical study looked for the connections mentioned above, researching these perspectives historic roots, their concepts and the distinguishing attributes that enable to the pedagogical practices. The connections pointed out in the theoretical study guided the analyze of the observed situations during the practical stage. Such analyze happened by the arrangement of feasible imagined situations to the two current situations chosen to take part in the dissertation. From this perspective of analyze, it was possible to put into practice what is named by Skovsmose and Borba (2004) as the act of surveying what is not the case, that is, one can imagine other actions and interplays that may be present in the education context, approaching both Ethnomathematics and Critical Mathematics Education aspects. The outcomes of the research showed that it is possible to develop a pedagogical practice that values the aspects of those two perspectives. Furthermore, the outcomes directed to a better understanding towards the Pedagogical Perspective of Ethnomathematics and toward the utilization of the concepts brought by the Critical Mathematics Education in the classroom, taking in this process as a result of an attitude, set by the teacher, which interferes in the actions (and reactions) of all subjects involved in the educational process.
Key-words: Mathematics Education, Ethnomathematics, Critical Mathematical Education,
Connections, Pedagogical Practice, Imagined Situations.
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SUMRIO
INTRODUO 14
1 INICIANDO O PROCESSO 17
1.1 O PROCESSO DE CONSTRUO DA PERGUNTA DIRETRIZ.......................................................... 17 1.1.1 ANTES DE INICIAR O MESTRADO... 18 1.1.2 ...J CURSANDO O MESTRADO 22 1.2 JUSTIFICANDO O ESTUDO............................................................................................................ 26
2 PANORAMA HISTRICO DA ETNOMATEMTICA E DA EDUCAO
MATEMTICA CRTICA 32
2.1 RAZES HISTRICAS DA ETNOMATEMTICA E DA EDUCAO MATEMTICA CRTICA........ 33 2.2 PRIMEIRA CONEXO A PARTIR DO PANORAMA APRESENTADO................................................ 43
3 PRINCIPAIS CONCEITOS DA ETNOMATEMTICA E DA EDUCAO
MATEMTICA CRTICA 46
3.1 PRINCIPAIS CONCEITOS DA ETNOMATEMTICA....................................................................... 47 3.1.1 DIFERENTES FORMAS DE ENTENDER O CONHECIMENTO MATEMTICO: OS TERMOS E EXPRESSES UTILIZADAS 47 3.1.2 OS DIFERENTES SIGNIFICADOS ATRIBUDOS AO TERMO 52 3.2 PRINCIPAIS CONCEITOS DA EDUCAO MATEMTICA CRTICA............................................. 60 3.2.1 O PODER FORMATADOR DA MATEMTICA 64 3.2.2 COMPETNCIA DEMOCRTICA E IDEOLOGIA DA CERTEZA 68 3.3 CONEXES ENTRE ETNOMATEMTICA E EDUCAO MATEMTICA CRTICA A PARTIR DE SEUS CONCEITOS.................................................................................................................................... 72 3.3.1 CONSONNCIAS 73 3.3.2 COMPLEMENTARIDADES 74
4 ETNOMATEMTICA E EDUCAO MATEMTICA CRTICA NO CONTEXTO
ESCOLAR 77
4.1 ALGUNS ESCLARECIMENTOS....................................................................................................... 80 4.2 CARACTERSTICAS GERAIS DE UMA PRTICA PEDAGGICA SEGUNDO AS PERSPECTIVAS DA ETNOMATEMTICA E DA EDUCAO MATEMTICA CRTICA.......................................................... 83 4.3 ASPECTOS QUE VIABILIZAM A EFETIVAO DE TAL PRTICA................................................. 86
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5 EM DIREO AO CONTEXTO ESCOLAR INVESTIGADO: PERSPECTIVAS
METODOLGICAS 94
5.1 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS UTILIZADOS PARA A COLETA DE DADOS......................... 96 5.1.1 EM BUSCA DE LACUNAS NO AMBIENTE OBSERVADO 98 5.2 PROCEDIMENTO METODOLGICO UTILIZADO PARA A ANLISE DOS DADOS: SITUAO CORRENTE E SITUAO IMAGINADA.................................................................................................. 102
6 O CONTEXTO ESCOLAR INVESTIGADO 107
6.1 O CONTEXTO EM QUE SE INSEREM OS AMBIENTES ESCOLHIDOS PARA SEREM OBSERVADOS .....................................................................................................................................................108 6.2 OS AMBIENTES ESCOLHIDOS PARA SEREM OBSERVADOS....................................................... 111 6.3 AS SITUAES ESCOLHIDAS PARA SEREM ANALISADAS............................................................ 113 6.3.1 SITUAO CORRENTE 1: CLCULO COM NMEROS DECIMAIS 114 6.3.1.1 ANLISE DA SITUAO CORRENTE 1 116 6.3.1.2 SITUAO IMAGINADA 1 121 6.3.2 SITUAO CORRENTE 2: CLCULO COM PORCENTAGENS 123 6.3.2.1 ANLISE DA SITUAO CORRENTE 2 127 6.3.2.2 SITUAO IMAGINADA 2 132 6.4 ANLISE GERAL DO CONTEXTO ESCOLAR INVESTIGADO........................................................134
CONSIDERAES FINAIS 138
REFERNCIAS 147
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LISTA DE ESQUEMAS
Esquema 01 Influncias sobre a Etnomatemtica e a Educao Matemtica
Crtica.............................................................................................................................
42
Esquema 02 Representao da primeira conexo entre Etnomatemtica e
Educao Matemtica Crtica........................................................................................
45
Esquema 03 Inter-relaes entre os diferentes significados para a
Etnomatemtica..............................................................................................................
59
Esquema 04 Principais conceitos da Educao Matemtica
Crtica.............................................................................................................................
71
Esquema 05 Sistema de articulao entre as situaes corrente, imaginada e
arranjada.........................................................................................................................
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INTRODUO
O campo de pesquisa da Educao Matemtica est contando, cada vez mais, com a
contribuio de perspectivas tericas que analisam aspectos diferenciados para as questes
relacionadas ao ensino e aprendizagem da Matemtica. Dentre essas, encontram-se as
perspectivas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica. Esta dissertao apresenta os
resultados de uma pesquisa que teve essas duas perspectivas como principais objetos de estudo.
Buscou-se apontar conexes entre elas, tendo em vista aspectos tericos e prticos. A
utilizao desses termos (teoria e prtica) no significa uma forma de enfatizar a dicotomia entre
eles, mas, sim, de caracterizar as diferentes abordagens que sero direcionadas s perspectivas da
Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica. Entendo, como aspecto terico, o estudo
sistematizado dessas perspectivas com base em trabalhos publicados e apresentados por
pesquisadores da rea, tomando-os como ponto de partida para a anlise que conduzir a escrita
da investigao. Mesmo tendo conscincia de que os aspectos tericos investigados podem ser
fazer presentes no ambiente escolar, mostrando que a separao entre teoria e prtica consiste em
uma tarefa impossvel, nesta investigao, estou considerando como aspecto prtico a abordagem
dessas perspectivas em um contexto de sala de aula.
No mbito terico, o alcance deste objetivo principal partiu de uma anlise decorrente
das leituras relacionadas tanto Etnomatemtica quanto Educao Matemtica Crtica. A busca
por conexes entre essas perspectivas orientou esta etapa da investigao.
Com relao ao aspecto prtico, a procura pelas conexes entre essas duas
perspectivas teve origem nas observaes de aulas de Matemtica e, a partir delas, da descrio
de algumas situaes observadas. A anlise dessas situaes orientou-se na busca por lacunas
(SKOVSMOSE, 2007a) que permitiam uma abordagem conectada da Etnomatemtica e da
Educao Matemtica Crtica.
Por meio disso, outro objetivo foi alcanado: verificar que contribuies esse tipo de
abordagem poderia fornecer para o contexto de sala de aula. Tais contribuies foram decorrentes
da incorporao de algumas imaginaes pedaggicas (SKOVSMOSE & BORBA, 2004) s
situaes observadas durante a coleta de dados desse contexto, levando configurao de
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situaes imaginadas (SKOVSMOSE & BORBA, 2004), que utilizem como pressuposto terico
a abordagem conectada da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica.
A justificativa que pretende uma aproximao entre as idias da Etnomatemtica e as
da Educao Matemtica Crtica foi descrita no primeiro captulo desta dissertao. Essa
justificativa esteve, primeiramente, associada minha trajetria pessoal e profissional, em que
apresento o tema e os objetivos desta investigao, para, em seguida, direcionar-me
explicitao das contribuies que esta investigao pode trazer ao abordar aspectos que no
foram pontuados por outros trabalhos quando se tem como foco o campo de pesquisa da
Educao Matemtica.
No segundo captulo, numa tentativa de apontar as primeiras conexes entre
Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica, trao uma linha histrica dessas perspectivas de
uma maneira articulada com alguns acontecimentos histricos do contexto em que se inseriam os
tericos responsveis pela estruturao de suas idias. Pontos comuns entre os histricos dessas
duas perspectivas foram encontrados. Tanto a Etnomatemtica quanto a Educao Matemtica
Crtica possuem, como uma de suas fontes, aspectos oriundos da Teoria Crtica e, mais
especificamente, da Educao Crtica.
Numa abordagem mais especfica e diferenciada para cada uma das perspectivas que
esto sendo focalizadas neste trabalho, apresento, no terceiro captulo, alguns de seus conceitos
com base em um estudo terico. Ao final desse captulo, foram feitas novas tentativas de
apresentar conexes entre a Etnomatemtica e a Educao Matemtica Crtica. A apresentao
dessas conexes esteve de acordo com os sentidos de consonncia e complementaridade, que
orientaram os processos de seleo dos conceitos que fariam parte desta dissertao.
Ainda no mbito essencialmente terico, mas numa tentativa de realizar um
movimento em direo prtica, no quarto captulo foram discutidos os conceitos da
Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica, quando o contexto de referncia consiste em
uma instituio escolar. Tambm no contexto escolar, aspectos que mostraram conexes entre
Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica foram pontuados. Muitos estudos tericos
discutem os aspectos que devem se fazer presentes em uma Perspectiva Pedaggica da
Etnomatemtica, apesar das dificuldades apontadas para a introduo das idias Etnomatemticas
nesse contexto. Tais aspectos tm suas possibilidades ampliadas quando associados queles
assinalados e defendidos pela Educao Matemtica Crtica.
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O movimento em direo prtica mais evidente no captulo cinco, onde esto
apresentados os procedimentos metodolgicos de anlise. nesse captulo que so explicitados
os conceitos de aparato da razo e lacunas (SKOVSMOSE, 2007a), que orientaram as
observaes de aula, assim como os conceitos de situao corrente e situao imaginada
(SKOVSMOSE & BORBA, 2004), que, por sua vez, orientaram a anlise dos dados resultantes
das observaes de aula.
A insero na prtica realizou-se no captulo seis, em que descrevi o contexto escolar
em que estavam inseridos os ambientes que foram escolhidos para serem observados. Alm dessa
descrio, tambm explicitei alguns momentos das aulas que, aps observados, foram
selecionados para anlise. Esses momentos so estudados, seguindo as orientaes apresentadas
no captulo metodolgico e, tambm, utilizando, como fundamento terico, a procura realizada
nos captulos anteriores. Para cada uma das situaes escolhidas para serem analisadas, foi
pensada uma (dentre as tantas possveis) situao imaginada cujo eixo central tivesse uma
abordagem conectada das perspectivas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica.
O enfoque de alguns dos momentos observados durante a pesquisa de campo na sala
de aula mostrou que, a partir desse contexto, mesmo com suas regras e estrutura mais rgidas,
possvel identificar lacunas que permitem uma abordagem conectada da Etnomatemtica e da
Educao Matemtica Crtica. Assim, o aproveitamento de tais lacunas pode representar um
ponto de partida, no somente para um melhor entendimento da incorporao da Perspectiva
Pedaggica da Etnomatemtica e das discusses propiciadas pela Educao Matemtica Crtica
no contexto escolar, mas tambm para um processo de transformao da prtica pela prpria
prtica.
Assim, como se discutiu ao longo desta dissertao, tornou-se possvel um
movimento no sentido contrrio quele que normalmente pensado para o contexto escolar.
Em vez de se propor prticas, e/ou estruturaes de uma maneira supostamente correta de fazer
uso dos conceitos abordados nesta investigao, foi pensado um processo que emergisse das
possibilidades que um contexto prtico de sala de aula apresenta.
Acredito que tal processo permitir, por parte dos sujeitos envolvidos (professores e
alunos), novas posturas com relao Educao Matemtica e, principalmente, com os usos que
so feitos dos conceitos trazidos por essa disciplina no cotidiano e na sociedade como um todo.
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1 INICIANDO O PROCESSO
Iniciar um processo de investigao exige reflexo e planejamento. Reflexo sobre o
que se pretende investigar, que tambm pode ser considerada como um processo de
problematizao da pesquisa; e planejamento da maneira pela qual se dar a procura por
respostas ao problema de pesquisa. A partir desse processo, busquei referncias para refletir e
planejar em duas fontes distintas: as minhas experincias pessoais e profissionais e a literatura
que aborda as perspectivas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica de uma
maneira aproximada.
Nessa busca, foram estruturados os objetivos propostos para esta investigao, que
sero explicitados ao longo da seo que aborda o processo de construo da pergunta diretriz.
Por meio do estudo de autores que mencionam uma aproximao entre essas duas perspectivas,
sero elaboradas algumas justificativas para esta investigao na segunda seo deste captulo.
1.1 O processo de construo da pergunta diretriz
No de maneira repentina que definimos a pergunta que orientar uma pesquisa.
Existe, por trs dessa tarefa, todo um processo de construo e delimitao que, segundo Arajo e
Borba (2004), faz parte da prpria pergunta.
Considero esse processo como uma etapa difcil e que deve ser cuidadosamente
orientada. Arajo e Borba (2004), ao discutirem o processo de construo de uma pergunta de
pesquisa, expressam essa dificuldade:
Um dos momentos cruciais no desenvolvimento de uma pesquisa o estabelecimento de sua pergunta diretriz. ela que, como o prprio nome sugere, ir dirigir o desenrolar de todo o processo. Entretanto, como diversos pesquisadores devem saber, esse momento constitui-se, muitas vezes, como um dos mais difceis em sua empreitada de pesquisar. (p. 27)
Concordo com os autores e julgo pertinente a utilizao da expresso pergunta
diretriz, uma vez que essa pergunta orientar e fornecer diretrizes para a realizao de uma
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pesquisa acadmica. Foi pensando nesse processo que resolvi refletir acerca do termo pesquisa e
da sua relao com a pergunta diretriz.
Frente aos diferentes significados atribudos a esse termo, talvez devido sua
utilizao em diferentes contextos, DAmbrosio (2004a) concebe pesquisa como algo inerente
ao e vida. Acredito, como DAmbrosio, que fazer pesquisa consiste em concretizar um
conjunto de aes que visa busca por respostas aos questionamentos oriundos das experincias
de cada um.
Em uma pesquisa acadmica, tal busca deve acontecer de maneira cuidadosa,
minuciosa e bem planejada, seguindo os parmetros exigidos pela comunidade acadmica:
fundamentao terica pertinente, rigor metodolgico, coerncia entre a fundamentao terica e
a metodologia de anlise etc. Nesse mbito, existe uma relao mtua entre pesquisa e pergunta
diretriz. Assim como a pesquisa depende de uma pergunta - pois pretende, se no responder,
chegar o mais perto possvel de uma resposta -, uma pergunta exige um processo de pesquisa
minucioso, procura de possveis respostas. Todo esse processo est intimamente ligado s
experincias do pesquisador.
Pesquisa, pergunta e experincias do pesquisador consistem, seguindo essa linha de
argumentao, em processos relacionados. Tendo essa relao em mente, foram organizadas as
subsees desta seo. Num primeiro momento, relatarei como os processos de pesquisa e de
construo da pergunta diretriz estiveram relacionados s minhas experincias antes de iniciar o
curso de mestrado. Em seguida, os mesmos processos foram descritos aps o ingresso na UFMG.
1.1.1 Antes de iniciar o mestrado...
Cursei a Licenciatura em Matemtica na Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), entre 1999 e 2003. Nesse perodo, a vivncia de algumas experincias relacionadas
tanto ao ensino de Matemtica quanto sua aprendizagem fez com que minhas preocupaes se
direcionassem para a sala de aula.
Um ano aps meu ingresso na UFOP, comecei a participar, como bolsista, em
atividades de extenso, em que eram oferecidos cursos para professores de Matemtica das
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cidades de Ouro Preto e Mariana, e a dar aulas em uma escola municipal da primeira cidade.
Estava diante de uma experincia interessante, pois, de um lado em algumas aulas do curso e
nas atividades de extenso , a Matemtica era vista como uma disciplina prtica e permitia
trabalhos diferenciados, contando com a ajuda dos colegas de curso e dos professores da regio
que participavam das atividades. Por outro lado, na turma de 5 srie em que lecionava
Matemtica, deparava-me com dificuldades relacionadas ao interesse dos alunos, disciplina da
turma e, principalmente, s regras impostas pela instituio. Em alguns momentos, essas regras
no permitiam a continuidade de um trabalho que se distanciasse das atividades j previstas para
o ambiente da sala de aula, tais como as prticas que utilizam quadro, giz, livro didtico e
propostas de trabalhos individuais e em grupo.
Na tentativa de implementar atividades diferenciadas em sala de aula, propus novas
experincias em turmas de Ensino Fundamental e Mdio que fizessem desse espao um local em
que os alunos pudessem aprender diversos conceitos, que no estivessem relacionados somente
com os contedos (em geral, abstratos) da disciplina Matemtica, mas tambm com atividades
voltadas para as suas realidades. Algumas dessas tentativas foram bem sucedidas, mas muitas no
alcanaram os resultados que almejava.
Em 2001, cursei uma disciplina denominada Etnomatemtica, e seus pressupostos
tericos chamaram minha ateno. Um dos principais pesquisadores dessa perspectiva, Ubiratan
DAmbrosio1, destaca a constante busca de uma definio para o termo Etnomatemtica, o que o
leva a referir-se a essa perspectiva como um programa. A Etnomatemtica, vista como um
programa, pretende compreender o ciclo do conhecimento em todas as suas dimenses e ...teve
origem na busca de entender o fazer e o saber matemtico de culturas marginalizadas
(DAMBROSIO, 2004b, p. 44).
Nesse mesmo ano, realizei um trabalho com os ndios Ticuna, no Curso de Formao
de Professores Ticuna Bilnge2, na cidade de Benjamim Constant, Amazonas. Esse curso
possibilitou-me perceber como a discusso terica sobre a Etnomatemtica poderia se fazer
presente, de uma maneira prtica, em um contexto de ensino. Essa experincia teve grande
influncia na definio da Etnomatemtica como linha de pesquisa para meus trabalhos futuros.
1O educador matemtico Ubiratan DAmbrosio, responsvel pela consolidao do termo Etnomatemtica no mbito acadmico no Brasil e no mundo, brasileiro e sua obra ser tratada exaustivamente nesta dissertao. 2Esse trabalho foi coordenado pela professora Roseli de Alvarenga Corra, do Departamento de Matemtica da UFOP.
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Desde ento, intensificou-se minha procura por trabalhos desenvolvidos na rea de
Etnomatemtica, principalmente aqueles que utilizassem seus pressupostos tericos no contexto
escolar. Isso aconteceu devido a uma inteno pessoal de encontrar uma forma de implementar,
nas aulas de Matemtica, atividades diferenciadas e que pudessem ser relacionadas com aspectos
vivenciados no cotidiano dos alunos. No trabalho terico que desenvolvi na monografia de final
de curso3, tratei mais detalhadamente dessa busca, que me levou a constatar que havia poucas
pesquisas cujo objetivo principal fosse a utilizao do programa Etnomatemtica na sala de aula
(PASSOS, 2003).
A partir desse trabalho, constatei que a insero das idias defendidas pelo programa
Etnomatemtica nas escolas poderia auxiliar em um ensino de Matemtica que, alm de se valer
da simbologia matemtica, tambm mostrasse como essa simbologia poderia ter uma aplicao
prtica no contexto cultural dos alunos.
Aps a concluso do curso de Licenciatura em Matemtica, ingressei no curso de
Especializao em Educao Matemtica, tambm da UFOP, j com um tema de pesquisa
definido O programa Etnomatemtica em uma perspectiva pedaggica (PASSOS, 2004) e que
tinha como objetivos: investigar o pensamento etnomatemtico dos alunos, expresso no ambiente
escolar, e o modo pelo qual os professores incorporavam esse pensamento sua prtica
pedaggica; elaborar e desenvolver uma proposta pedaggica para a escola pesquisada, com base
nos resultados da investigao realizada.
Por meio dessa investigao, foi elaborado um projeto pedaggico para a escola
pesquisada que,
a princpio, objetivava enfatizar a Matemtica [mas que] passou ento a englobar questes relacionadas s demais disciplinas, ocasionando uma outra perspectiva de ao que envolveu outros sujeitos inseridos na escola. Tambm, as demais turmas de alunos da escola interessaram-se pelo trabalho que estava sendo desenvolvido (PASSOS, 2004, p. 103).
O educador matemtico Ubiratan DAmbrosio (2001) discute a necessidade de uma
estruturao curricular que aproxime as diferentes disciplinas a fim de possibilitar a
concretizao das idias etnomatemticas no contexto escolar. Assim, a proposta pedaggica, que
teve como pressuposto terico a Etnomatemtica, necessitou de outras disciplinas, como
3 Monografia intitulada Etnomatemtica: sua trajetria, seus obstculos, sua histria, concluda em maro de 2002 e orientada pela professora Roseli de Alvarenga Corra.
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Portugus, Histria, Geografia e Educao Artstica, fazendo parte dela para que seus objetivos
fossem atingidos.
Vivenciar uma tentativa de insero das idias relacionadas ao Programa
Etnomatemtica no ambiente escolar foi gratificante e mostrou que, naquele momento, um
conhecimento que emergiu do saber e fazer cotidianos dos alunos poderia ser utilizado no
somente para enriquecer as aulas de Matemtica, mas tambm para despertar um maior
envolvimento e interesse dos alunos pela disciplina.
Posteriormente, em busca de uma proposta de pesquisa para ser desenvolvida no
mestrado, cursei duas disciplinas oferecidas pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da
Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Uma delas, a
disciplina Educao Matemtica Crtica (EMC), apresentou-se, para mim, como uma
possibilidade de auxiliar na insero dos pressupostos tericos defendidos pelo programa
Etnomatemtica no ambiente de sala de aula.
Para elaborar melhor essa idia, apresento algumas consideraes sobre essa
perspectiva da Educao Matemtica. A Educao Matemtica Crtica inicia sua discusso
fazendo uma crtica s atuais crises sociais, mesmo diante da gama de possibilidades que a
tecnologia proporciona.
Essa perspectiva da Educao Matemtica pretende levar para a sala de aula
questionamentos sobre o papel da Matemtica na sociedade. Em seu livro intitulado Towards a
Philosophy of Critical Mathematics Educacion, Skovsmose (1994), usando exemplos de projetos
desenvolvidos em escolas, mostra caminhos de como possibilitar essa discusso em sala de aula,
auxiliando na adoo de uma postura crtica dos alunos diante dos papis que os contedos
matemticos desempenham na sociedade.
Acredito que uma aproximao dessas idias s defendidas pelo programa
Etnomatemtica pode beneficiar tanto alunos quanto professores, porque, diferentemente da
Etnomatemtica, que foi estruturada a partir de uma valorizao dos conhecimentos matemticos
no-acadmicos4, as questes trazidas pela perspectiva da Educao Matemtica Crtica foram
pensadas para se fazerem presentes dentro do contexto de sala de aula, onde o conhecimento
matemtico que prevalece o acadmico.
4 A explicitao dos significados dos termos conhecimento matemtico acadmico e conhecimento matemtico no acadmico ser feita no captulo 3.
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Portanto, a incorporao dos aspectos pontuados pela Educao Matemtica Crtica,
com seu carter poltico em maior evidncia, queles levantados pela Etnomatemtica, pode
despertar nos alunos, alm de uma postura diferenciada e mais consciente com relao aos
conhecimentos matemticos, uma melhor identificao de como esses conhecimentos se fazem
presentes no contexto em que esto inseridos, utilizando-os como aliados na resoluo de
problemas cotidianos. Para os professores, novas possibilidades de abordar os conceitos
matemticos, em geral muito abstratos, seriam evidenciadas por meio de uma aproximao entre
o saber que o aluno leva para a escola e o saber matemtico escolar (BONFIM, 2000). Elas, por
sua vez, contribuiro para a formao de uma conscincia crtica acerca da utilizao desses
conhecimentos no cotidiano dos alunos e na sociedade como um todo.
Todas essas experincias, destacando, no incio de minha experincia docente, a
dificuldade em desenvolver atividades diferenciadas em sala de aula e, posteriormente, a
vivncia, em um contexto indgena, de atividades pedaggicas que tomavam como ponto de
partida os conhecimentos culturais dos alunos, orientaram a construo da primeira pergunta
diretriz para a pesquisa apresentada na seleo para o mestrado na Faculdade de Educao da
UFMG.
Quais so as possveis confluncias da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica
quando se tem como foco a ao pedaggica em sala de aula?
Influenciada pelo desenvolvimento e dificuldade de implementao do projeto
pedaggico com embasamento terico na Etnomatemtica durante o curso de Especializao, por
meio dessa pergunta, levanto a possibilidade de associar Etnomatemtica e Educao Matemtica
Crtica tendo em vista a ao pedaggica do professor de Matemtica.
1.1.2 ...j cursando o mestrado
Assim que fui selecionada para cursar o mestrado na Faculdade de Educao da
UFMG, foi marcada uma reunio com a orientadora. Nesse encontro, tive cincia da estrutura
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diferenciada de orientao utilizada por ela: que todos os seus orientandos participam ao mesmo
tempo, contribuindo com questionamentos e sugestes. Tive, portanto, de enviar meu projeto de
pesquisa para que fosse avaliado pelo grupo no encontro seguinte.
A par das sugestes de esclarecimento do texto, clareamento de tpicos e melhor
definio da metodologia a ser utilizada na pesquisa, outras sugestes foram dadas com relao
pergunta diretriz, pois, na pergunta inicial, no estava claramente definido o foco da investigao:
estaria esse foco na confluncia da Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica? Ou seria a
ao pedaggica do professor de Matemtica?
Reconhecida essa limitao na pergunta diretriz inicial, um processo de
reestruturao da mesma se iniciou, de modo a eliminar a ambigidade nela presente. O resultado
dessa reestruturao ficou evidenciado na seguinte pergunta:
Quais as possibilidades de articulao entre Etnomatemtica e Educao Matemtica
Crtica?
Assim, ficaria evidente, como objetivo principal da investigao, a articulao entre
essas duas perspectivas, que deveriam ser analisadas sob dois aspectos: o terico e o prtico. O
primeiro deveria ser encaminhado em uma pesquisa, focando as perspectivas mencionadas e
buscando articulaes entre elas; o segundo aspecto seria examinado observando-se as aulas de
Matemtica, a fim de encontrar lacunas nesse ambiente que permitissem uma abordagem
articulada de tais perspectivas.
No entanto, ao apresentar essa pergunta diretriz em uma comunicao cientfica no III
Seminrio Internacional de Pesquisa em Educao Matemtica (III SIPEM), (PASSOS, 2006), o
termo articulao foi interpretado por alguns ouvintes como o desenvolvimento de uma nova
teoria, trazendo para este trabalho um objetivo que no estava presente nele e que exigia um
complexo, e talvez impossvel, estudo terico. Como no pretendia substituir uma ou outra
perspectiva, nem, tampouco, fundi-las em uma outra, uma das sugestes dos ouvintes foi
encontrar outro termo para ser utilizado na pergunta diretriz.
Em reunies posteriores do grupo de orientao, discutimos os significados dos
termos j utilizados. No caso dos termos mencionados, a palavra juntar, implcita no significado
de confluncias (identificao de lugares onde duas ou mais coisas se juntam, segundo
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FERREIRA, 1986), pode significar o surgimento de algo novo, resultante dessa juno. De
maneira anloga, o termo articulao (que se refere unio, ao fato de juntar coisas, segundo
FERREIRA, 1986), no mostra o verdadeiro intuito desta investigao, pois no se tem a
pretenso de unir Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica.
O fato de identificar pontos convergentes em duas perspectivas diferentes no implica
o surgimento de uma nova perspectiva, mas sim uma maneira de identificar relaes e ligaes
entre elas. A partir disso, poderia ser possvel realizar um trabalho em sala de aula que abordasse
aspectos de uma e de outra perspectiva e, por isso, o termo conexo pareceu mais adequado, uma
vez que destaca ligaes e relaes entre duas ou mais coisas (FERREIRA, 1986).
Sendo assim, na pergunta diretriz, houve uma substituio da palavra articulao pela
palavra conexo:
Quais as conexes entre Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica?
Objetivando responder a essa pergunta, como j foi mencionado, foi realizado um
estudo terico sobre ambas as perspectivas, seguido de uma pesquisa de campo em sala de aula.
No entanto, em vista do grande nmero de pesquisas, em especial daquelas relacionadas
Etnomatemtica, foi necessrio delimitar quais trabalhos seriam alvo do estudo terico desta
investigao.
Um nmero expressivo de trabalhos, tanto nos congressos nacionais5 e
internacionais6, quanto nos cursos de Ps-Graduao do Brasil, tem relacionado a
Etnomatemtica com diversos setores e inserido essa perspectiva em diferentes ambientes. Para
identificar um grupo de estudos que estivessem relacionados ao objeto de pesquisa da presente
investigao, utilizei como base cinco temticas que foram institudas para premiar trabalhos
apresentados no Segundo Congresso Internacional de Etnomatemtica.
5Foram trs os congressos brasileiros de Etnomatemtica. O primeiro Congresso Brasileiro de Etnomatemtica (CBEm1) aconteceu em So Paulo, na Universidade de So Paulo, no perodo de 1 a 4 de novembro de 2000. O segundo (CBEm2) teve lugar em Natal, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no perodo de 4 a 7 de abril de 2004. O terceiro (CBEm3) aconteceu em Niteri, na Universidade Federal Fluminense, no perodo de 26 a 29 de maro de 2008. No primeiro evento, fizeram-se 45 comunicaes cientficas, no segundo, 38 trabalhos foram apresentados e, no terceiro, foram inscritas 69 comunicaes cientficas. 6Foram trs os Congressos Internacionais de Etnomatemtica j realizados (CIEm), sendo que o primeiro aconteceu em 1998, entre os dias 2 e 5 de setembro, na Universidade de Granada, na Espanha; o segundo ocorreu em 2002, na Universidade Federal de Ouro Preto, entre os dias 5 e 7 de agosto; e o terceiro sucedeu-se na Universidade de Auckland, entre os dias 12 e 16 de fevereiro de 2006, na Nova Zelndia.
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Essas temticas Etnomatemtica e Educao Indgena, Etnomatemtica e
Educao Urbana, Etnomatemtica e Educao Rural, Etnomatemtica, epistemologia e
histria da Matemtica e Etnomatemtica e formao de professores no se constituram de
modo isolado, mas foram sendo naturalmente configuradas, a partir do exame da produo
contempornea do campo da Etnomatemtica (KNIJNIK, 2004, p. 20).
Para justificar a escolha de trabalhos relacionados a uma ou outra temtica, retomo o
contexto que suscitou as primeiras indagaes referentes a esta investigao: as experincias
como professora de Matemtica atuando em sala de aula. Assim, ser na temtica
Etnomatemtica e Educao Urbana que encontrarei um ambiente de sala de aula que possa
indicar momentos em sua dinmica em que Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica se
fazem presentes de maneira conectada.
A escolha por trabalhos pertencentes a essa temtica se explica devido a uma maior
possibilidade oferecida pelo contexto urbano para desenvolver aspectos relacionados Educao
Matemtica Crtica. Os conceitos trazidos por essa perspectiva possibilitam uma discusso acerca
da tecnologia, e justamente no contexto urbano que o aparato tecnolgico se faz presente de
maneira mais forte.
Foi dentro desse contexto da educao urbana que a etapa seguinte da pesquisa se
concretizou. Essa etapa, caracterizada por uma pesquisa de campo, foi encaminhada pela
observao de aula, em busca de situaes7 de uma aula de Matemtica que apontassem
possibilidades de concretizao das conexes identificadas no estudo terico. Essa insero em
uma sala de aula objetivou apontar as contribuies que o estudo terico realizado poderia
fornecer para esse ambiente.
Assim, ficaram definidos os objetivos da presente investigao:
- Apontar conexes entre Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica;
- Detectar e descrever situaes oriundas de aulas de Matemtica que revelem possibilidades de
concretizao de tais conexes;
- Sugerir, tendo em vista os resultados encontrados no estudo terico, situaes que apresentem
essas conexes inseridas no contexto prtico e como podem contribuir para o ambiente de sala de
aula.
7Chamarei de situaes a descrio de alguns momentos de uma aula de Matemtica, em que os questionamentos e os dilogos estabelecidos entre o professor e os alunos sero relatados.
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1.2 Justificando o estudo
Na seo anterior, foram levantadas justificativas para a escolha do tema e para a
configurao da pergunta diretriz e dos objetivos que orientaram esta investigao. Nesta seo,
sero explicitadas justificativas para o presente estudo, que consistem em identificar as
contribuies que o mesmo pode trazer no sentido de abordar aspectos que no foram pontuados
por outros trabalhos quando se tem como foco o campo de pesquisa da Educao Matemtica.
Utilizando como metodologia uma reviso inicial da literatura pertinente e buscando
encontrar brechas ou inconsistncias que podero ser preenchidas ao longo do processo de
pesquisa (ALVES-MAZZOTTI, 1998), sero abordados alguns trabalhos que j fizeram uma
aproximao entre essas duas perspectivas. Tal abordagem ser encaminhada na tentativa de
detectar aspectos que no foram pontuados e que podem ser levantados pela presente
investigao, destacando sua contribuio para o campo de pesquisa da Educao Matemtica.
Algumas reflexes acerca de uma aproximao entre essas duas perspectivas foram
feitas desenvolvendo-se atividades pedaggicas em sala de aula. Aps a implementao de
propostas pedaggicas que tiveram como embasamento terico a Etnomatemtica, aspectos da
Educao Matemtica Crtica se fizeram presentes, segundo a interpretao dos autores.
O primeiro trabalho que relaciono a essa perspectiva foi realizado por Correa e
Moretti (2005), a partir de uma releitura da dissertao de mestrado intitulada Rede de pesca:
um elemento mediador para o ensino de geometria (CORREA, 2000). Nele, os autores mostram
uma nova abordagem para um trabalho desenvolvido na perspectiva etnomatemtica. Segundo
eles, nessa releitura tambm estiveram presentes aspectos da Educao Matemtica Crtica.
Para a pesquisa de mestrado, os pesquisadores desenvolveram atividades pedaggicas
na Casa Familiar do Mar Luiz Carlos Perin, situada no municpio de So Francisco do Sul, SC,
em que foram estudados conceitos elementares de geometria atravs de uma rede de pesca
(CORREA & MORETTI, 2005, p. 249).
No entanto, a existncia de pontos indicativos que propiciaram algumas discusses
sobre a relao da escola com o mundo do trabalho levou-os a estabelecer dilogos com
educadores matemticos que acreditam ser possvel pensar a educao como um processo
democrtico (p.249). Por meio desse dilogo, que foi encaminhado por reflexes que suscitam
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os temas humanismo e sociedade procurando entender as relaes entre estes dois segmentos (p.
249), os pesquisadores encontraram [...] subsdios para romper com o paradigma que mostra o
pescador artesanal como um sujeito destitudo de conhecimentos cientficos (CORREA &
MORETTI, 2005, p. 259).
A partir disso, Correa e Moretti (2005) afirmam que as caractersticas do projeto
pedaggico mencionado possibilitavam uma aproximao com os pressupostos tericos da
Educao Matemtica Crtica. Nesse sentido, apesar de a sua proposta de investigao no
detectar conexes entre Etnomatemtica e EMC, na abordagem de aspectos prticos e
metodolgicos do ensino de Matemtica (CORREA & MORETTI, 2005, p. 250) tendo como
aporte terico a Etnomatemtica, discusses relacionadas EMC tambm foram encontradas.
De modo anlogo, aps desenvolver uma proposta pedaggica com alunos de 5 srie
em uma escola municipal de Ouro Preto, observei que, apesar de estar ciente de que a
elaborao da proposta pedaggica mencionada pretendia abordar questes relacionadas apenas
ao Programa Etnomatemtica, [...] aspectos defendidos pela EMC tambm foram abordados,
mesmo que no intencionalmente (PASSOS, 2007, p. 95).
Essa proposta destacou as relaes entre msica e Matemtica e para o seu
desenvolvimento foram realizadas diferentes etapas: aps a seleo do tema da proposta (relaes
entre msica e Matemtica), foram escolhidos o nome, o slogan e a logomarca numa eleio que
contou com a participao dos alunos e professores envolvidos. Finalizada essa parte de
estruturao do projeto, foram desenvolvidas algumas atividades com os alunos que visavam
tanto abordagem de contedos matemticos quanto ao estudo prtico de aspectos relacionados
msica (sons, ritmos) (PASSOS, 2007).
Ao analisar a etapa de estruturao do projeto segundo os pressupostos tericos da
Educao Matemtica Crtica, percebi uma possibilidade de ter seus propsitos ampliados ao
notar que algumas questes relacionadas a essa perspectiva tambm estiveram presentes. Uma
dessas questes se direciona ao desenvolvimento de uma Competncia Democrtica8 nos alunos,
uma vez que uma reflexo sobre o que estava acontecendo, destacando sua importncia para a
vida desses alunos e associada noo de participao, contribuem para a democracia. To
importante quanto votar participar da coletividade, construindo-a e, conseqentemente,
colaborando com sua cultura (PASSOS, 2007, p. 91).
8 Uma discusso desse conceito ser encaminhada no terceiro captulo desta dissertao.
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Os trabalhos desenvolvidos por Correa e Moretti (2005) e por mim (PASSOS, 2007)
indicam uma possibilidade de fazer com que, por meio do desenvolvimento de atividades
pedaggicas, os pressupostos tericos da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica se
faam presentes de uma maneira conectada em uma sala de aula. Alm disso, esse tipo de
ocorrncia vem fortalecer a tese de que EMC e Etnomatemtica podem se articular de forma que,
dessa articulao, surjam novos propsitos e fundamentos ampliados (PASSOS, 2007, p. 95).
Essas experincias no campo de pesquisa da Educao Matemtica indicam que
possvel aproximar tais perspectivas pelo desenvolvimento de prticas pedaggicas. Outros
trabalhos, como os que citarei a seguir, mostram essa possibilidade a partir de estudos e reflexes
tericas realizadas pelos autores.
Alexandre Pais, juntamente com Helena Geraldo e Valria Lima, pontuam as
caractersticas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica destacando os aspectos que
no so abordados por uma perspectiva e que podem ser contemplados pela outra:
Se a etnomatemtica no contempla a dimenso crtica, com todas as crticas que da surgiram, tambm legitimo afirmar que a educao matemtica crtica perde fora, e pode at comprometer a sua ambio democrtica, se no valorizar a dimenso cultural. (PAIS, GERALDO & LIMA, 2003, p. 7)
Tais aspectos, caracterizados por eles como crticos e culturais, se trabalhados de
maneira articulada em sala de aula, permitiro aos estudantes reflectirem sobre a realidade em
que vivem e [...] lhes [daro] o poder de desenvolver e usar a matemtica de uma maneira
emancipatria (PAIS, GERALDO & LIMA, 2003, p. 2).
Os autores destacam pontos fracos tanto na abordagem da Etnomatemtica quanto
naquela feita pela Educao Matemtica Crtica, indicando que obteremos ganhos para o campo
de pesquisa da Educao Matemtica ao conectar essas duas perspectivas.
Em outro trabalho da rea da Educao Matemtica, ao fazer uma crtica sobre a
utilizao do termo Etnomatemtica sem uma reflexo mais profunda sobre ele, Vithal e
Skovsmose (1997) ...concebem etnomatemtica e educao matemtica crtica como duas
posies educacionais importantes na tentativa de desenvolver uma educao matemtica
alternativa que expresse conscincia social e responsabilidade poltica.9 (p. 131).
9conceive of ethnomathematics and critical mathematics education as two important educational positions in the attempt to develop an alternative mathematics education which expresses social awareness and political responsibility. (VITHAL & SKOVSMOSE, 1997, p. 131). Traduo minha. (OBS: a partir dessa citao, todas as
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Os autores reconhecem a diferena de foco de cada uma dessas perspectivas, sendo a
Etnomatemtica centrada nos campos culturais e sociais, e a Educao Matemtica Crtica, nos
aspectos sociais e polticos.
No entanto, apesar de no se referirem caracterstica poltica que pode ter o enfoque
etnomatemtico, eles destacam que existe um conceito politizado do termo cultura e que este
pode ser utilizado para interpretar, organizar e estruturar a sociedade. Segundo os autores, apesar
de a pesquisa em etnomatemtica normalmente no [especificar] muito sobre as relaes entre
cultura e poder10 (VITHAL & SKOVSMOSE, 1997, p. 139), os trabalhos de Gelsa Knijnik se
aproximam desse conceito politizado de cultura.
Como se pode notar, mesmo destacando uma fraqueza conceitual na abordagem
cultural da Etnomatemtica, ainda assim, os pesquisadores encontram trabalhos que se
aproximam de uma abordagem poltica dessa perspectiva. Para mim, esta postura refora a idia
de que possvel e at mesmo benfica uma aproximao entre ambas.
Para Vithal e Skovsmose (1997), a principal competncia na formao de um cidado
crtico est relacionada capacidade de detectar em quais lugares a Matemtica poderia estar
formatando a sua realidade. Alm de um conhecimento da realidade na qual est inserido,
importante que esse cidado direcione um olhar reflexivo e crtico para esta realidade, o que leva
os autores a destacarem que o conceito de Etnomatemtica pode ser analisado juntamente com o
conceito de cidado crtico.
Em outras palavras, acredito que Vithal e Skovsmose (1997) estejam querendo
mostrar que, para conseguir visualizar as aplicaes da Matemtica na realidade em que se vive,
deve-se ter em mente, e de forma bastante esclarecida, as diferentes maneiras pelas quais a
Matemtica pode aparecer nessa realidade, e essa capacidade ser fornecida pela
Etnomatemtica.
Poderia, ento a Etnomatemtica fornecer elementos para identificar as diferentes
formas pelas quais a Matemtica atua na sociedade?
tradues de lngua estrangeira para a lngua portuguesa sero de minha autoria. Os textos originais estaro disponveis em nota de rodap). 10the research in ethnomathematics usually does not specify much about the relation between culture and power. (VITHAL & SKOVSMOSE, 1997, p. 139)
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Segundo os autores, a Etnomatemtica pode, atravs da interpretao das prticas
encontradas em diferentes grupos culturais, identificar onde o poder formatador da Matemtica11
apia tais prticas. Mas, para eles, nos trabalhos da rea de Etnomatemtica no existe uma
anlise crtica das conseqncias dessa presena da Matemtica no cotidiano, pois,
na literatura de etnomatemtica no somos capazes de observar qualquer atitude em direo ao poder formatador da matemtica, nem qualquer interesse em desenvolver uma competncia que reaja criticamente s aplicaes da matemtica. 12 (VITHAL & SKOVSMOSE, 1997, p. 144)
Nesta citao, os autores expressam de maneira evidente uma ausncia de anlise
crtica voltada para as aplicaes da Matemtica nos trabalhos relacionados Etnomatemtica.
Apesar de no concordar com esta opinio, visto que alguns pesquisadores etnomatemticos
incorporam tal dimenso em suas investigaes, o presente trabalho pretende, tambm,
incorporar tal anlise, no sentido de atribuir novos propsitos tanto Etnomatemtica quanto
Educao Matemtica Crtica, ampliando suas possibilidades quando aproximadas e trabalhadas
de uma maneira conectada em sala de aula.
Aps indicar algumas contribuies e possibilidades j pontuadas por pesquisadores
acerca da aproximao entre essas duas perspectivas, destaco que a presente investigao pode
responder a alguns questionamentos feitos por outros pesquisadores, assim como foi mencionado
nos pargrafos anteriores. No decorrer do texto, tentei mostrar como a presente investigao
procura abordar aspectos que no foram enfatizados pelos textos aqui tratados, mostrando, assim,
que um profundo estudo terico dessas perspectivas, assim como uma associao s reais
possibilidades de como as conexes resultantes deste estudo podem se fazer presentes em um
contexto de sala de aula, contribuindo para o campo de pesquisa da Educao Matemtica,
passando tanto a Etnomatemtica quanto a Educao Matemtica Crtica a valorizarem aspectos
que no ficavam evidentes quando analisadas separadamente.
Tendo em vista os argumentos mencionados, no sentido de abordar aspectos que no
foram destacados por outros trabalhos, contribuies puderam ser elaboradas por meio de uma
aproximao entre as perspectivas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica, quando
11 Uma discusso desse conceito ser encaminhada no terceiro captulo desta dissertao. 12Within the ethnomathematics literature we are unable to observe any attitude towards the formatting power of mathematics, nor any concern for developing a competence which reacts critically to applications of mathematics. (VITHAL & SKOVSMOSE, 1997, p. 144)
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se teve como foco no s a sala de aula mas tambm o campo da Educao Matemtica. No
decorrer da investigao, outras contribuies sero explicitadas a partir do estudo terico dessas
perspectivas e, tambm das observaes de aula.
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2 PANORAMA HISTRICO DA ETNOMATEMTICA E DA EDUCAO MATEMTICA CRTICA
Um conjunto de conhecimentos sofre influncias diversas, uma vez que, em seu
processo de estruturao, ocorre desde a gerao e sistematizao, at a organizao social e
compartilhamento de novos conhecimentos. Essa dinmica caracterizada por DAmbrosio
(1993a) como abordagens13 cognitiva, epistemolgica, histrica e poltica.
Considerando-se que o conhecimento no acontece de maneira isolada, pode-se dizer
que todo conhecimento est inserido em um contexto e, fazendo parte dele, o modifica e ,
tambm, modificado por ele.
Desse modo, as perspectivas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica,
que so compostas por um conjunto de conhecimentos, tambm foram influenciadas
modificando e, ao mesmo tempo, sendo modificadas pelo contexto histrico em que estavam
imersas.
com o intuito de mergulhar em alguns acontecimentos desse contexto e,
principalmente, de destacar como eles podem ter influenciado tais perspectivas, que o presente
captulo se configura. Analisando alguns momentos histricos que inspiraram a sistematizao de
cada uma dessas perspectivas, procurarei, nas entrelinhas desses momentos, indcios de
interligao entre Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica (EMC).
A primeira tarefa consiste em identificar as razes histricas da Etnomatemtica e da
EMC. Ao mesmo tempo em que ser feito um relato de acontecimentos anteriores queles cujas
perspectivas mencionadas comearam a ser divulgadas e estruturadas, tentarei identificar as
influncias que esses acontecimentos exerceram sobre essas idias.
No entanto considero importante destacar que houve uma necessidade de atribuir um
eixo central ao texto. Esse eixo se voltou para um relato linear desses acontecimentos. Isso no
significa que tal linearidade tenha, de fato, acontecido. Na verdade, sabido que, ao relatar
momentos histricos, muito daquilo que se fez presente na dinmica real dos fatos se perde na
transcrio para um texto cientfico.
13As caractersticas de cada uma dessas abordagens sero explicitadas no captulo 4.
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Aps fazer esse apanhado histrico, ser apresentada uma possvel conexo entre
Etnomatemtica e Educao Matemtica Crtica.
2.1 Razes histricas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica
Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo se v ameaado por um conflito
nuclear que poderia destruir completamente o planeta (FARIA, MARQUES & BERUTTI, 1989).
Apesar dessa ameaa, que tomou maiores propores pelo armamento nuclear de alguns pases,
preocupaes com a paz mundial se manifestaram. Uma dessas manifestaes se evidenciou com
a criao da Organizao das Naes Unidas (ONU), cujo lema era a luta pela igualdade
educacional para todos, independentemente da classe econmica e social14 (DAMBROSIO,
2007b, p. 176).
Alm de se bater por uma igualdade educacional, o perodo ps-guerra foi
caracterizado, igualmente, pelas marcas deixadas pelas idias nazistas e pela vontade de que as
barbaridades cometidas nesse perodo nunca mais acontecessem.
Foi nesse contexto que ganhou fora a Teoria Crtica, que vinha sendo estruturada por
alguns filsofos e socilogos alemes, desde a criao do Instituto de Pesquisa Social, em 1923,
na cidade de Frankfurt, na Alemanha. Matos (1993) confirma essa informao ao dizer que
momentos como a ascenso do nazismo, a Segunda Guerra, o milagre econmico no ps-
guerra e o stalinismo [...] marcaram a Teoria Crtica da Sociedade, tal como esta se desenvolveu
dos anos 20 at meados dos anos 70 (MATOS, 1993, p. 06).
Antunes e Ramos (2000) destacam quatro fases da Teoria Crtica aps a criao desse
instituto. Uma primeira fase, que caracterizada pelo pensamento terico e pelas convices
polticas de Max Horkheimer, em busca de uma captao da dinmica social dentro de uma
perspectiva materialista fundada na sociologia e na psicologia. A segunda fase, que ocorreu entre
1933 e 1950, quando houve uma migrao do Instituto de Pesquisa Social para os Estados
Unidos. Nesse perodo, os frankfurtianos voltam-se para a solidariedade entre os membros do
grupo e para a solidificao da identidade do instituto (ANTUNES & RAMOS, 2000, p. 06). A
14equal education for all, independent of social and economic class (DAMBROSIO, 2007b, p. 176)
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terceira fase marcada pelo retorno do instituto cidade de Frankfurt, em 1950, e tem, como
principais produes, os textos escritos por Theodor Adorno e Jrgen Habermas. Antunes e
Ramos (2000) destacam Habermas como principal terico da quarta fase, em busca de uma
superao do negativismo de Adorno e Horkheimer a partir da proposio da Razo
Comunicativa.
Dessas fases, Peukert (1996) aponta dois momentos para a Teoria Crtica: um
primeiro que, sob as influncias de Horkheimer e Adorno, objetivava, apoiando-se na Dialtica
do Esclarecimento, um conceito mais abrangente de razo e visava formulao de uma
concepo de uma prxis transformadora; e um outro em que Habermas, principal terico desta
gerao, prope a linguagem como um modo de ao.
Mesmo sendo uma reao modernidade que vigorava aps a Segunda Guerra, a
Teoria Crtica pretende resgatar certas caractersticas do Iluminismo, valorizando uma
racionalidade que aparece, nesta poca, como a possibilidade de libertao e de conscientizao.
Ao mesmo tempo em que essa valorizao do lado racional acontece, a Teoria Crtica
tambm se ope ao que os frankfurtianos denominavam Teoria Tradicional. Esta era representada
por todo pensamento da identidade, da no-contradio, tpico da filosofia desde Descartes
(MATOS, 1993, p. 12). Nesse sentido, objetiva-se um conceito mais amplo de razo, enfatizando
o papel que a linguagem desempenha na sociedade. Essas caractersticas foram fundamentais nas
influncias exercidas por essa teoria nos movimentos estudantis e puderam ser observadas nas
instituies escolares, sobretudo da Alemanha e dos Estados Unidos, nos fins da dcada de 60.
A repercusso da Teoria Crtica no mbito educacional se deu de uma forma indireta.
As discusses trazidas por essa corrente terica abriram espao para o surgimento de novos
paradigmas na educao. Nesse perodo, evidenciaram-se diferentes tendncias relacionadas
Educao e, tambm, Educao Matemtica. Uma dessas tendncias surge como um
movimento em resposta constatao de uma defasagem entre o progresso cientifico e
tecnolgico da nova sociedade industrial do perodo ps-Segunda Guerra Mundial
(FIORENTINI, 1995). Denominado Movimento da Matemtica Moderna (MMM), esse
movimento teve forte repercusso internacional e, conseqentemente, no Brasil.
Desencadeado no Brasil nos anos 60, o MMM pretendia revolucionar o ensino de
Matemtica com base em mudanas das propostas curriculares de Matemtica (PINTO, 2007, p.
4058). Este movimento trouxe novas coordenadas ao currculo de Matemtica do ento ensino
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primrio e secundrio e tinha, como principal ideal, a reestruturao do ensino de Matemtica
frente s grandes e rpidas transformaes da cincia (PINTO, 2007). Elevar o nvel cientfico da
populao escolarizada era uma das intenes desse movimento de dimenso intercontinental,
que inseriu a linguagem de conjuntos, com sua simbologia prpria, em todos os nveis de ensino.
Pouco depois da insero da Matemtica Moderna nas prticas escolares do Brasil,
surge uma tendncia tecnicista de ensino, que procura reduzir a Matemtica a um conjunto de
tcnicas, regras e algoritmos, sem grande preocupao em fundament-los ou justific-los
(FIORENTINI, 1995, p. 17).
Houve, portanto, uma combinao entre a Matemtica Moderna e a tendncia
tecnicista durante as dcadas de 60 e 70. Ela foi denominada por Fiorentini (1995) combinao
tecnicismo formalista que, segundo o pesquisador,
traz implcita uma curiosa associao entre duas concepes: uma, referente ao modo de se conceber a Matemtica (a concepo formalista-estrutural); outra, referente ao modo de se conceber a organizao do processo ensino-aprendizagem (a concepo tecnicista). (p. 16)
A partir da dcada de 70, poca em que tem incio a abertura do regime poltico
autoritrio instalado em 1964 (VEIGA, 2004, p. 42), crticas, afirmando que os conceitos
abstratos no deveriam ser explorados no nvel elementar, pois, alm de confundir a cabea dos
alunos estimulavam sua averso pela matemtica (PINTO, 2007, p. 4063), auxiliaram no
declnio das prticas escolares trazidas pelo MMM.
Dentro desse contexto,
o fracasso do Movimento Modernista, bem como as dificuldades apresentadas quanto aprendizagem da Matemtica por alunos das classes economicamente menos favorecidas, fez com que alguns estudiosos, a partir da dcada de 60, voltassem a ateno aos aspectos socioculturais da Educao Matemtica. (FIORENTINI, 1995, p.24)
Uma representao importante da valorizao dos aspectos socioculturais pontuada
por Fiorentini (1995) foi evidenciada no somente na Educao Matemtica, mas tambm na
Educao em geral. Essa evidncia caracterizou-se pela perspectiva crtica da educao, ou
simplesmente Educao Crtica, e representou uma valorizao das relaes entre professor e
alunos em sala de aula.
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Um dos pilares dessa perspectiva o artigo15 intitulado Educao aps
Auschwitz16, escrito por Theodor Adorno. Nele, o pesquisador exprime uma crtica educao
germnica, que no colocava qualquer obstculo educacional ao estrondoso sucesso da ideologia
nazista (SKOVSMOSE, 2007a, p. 19). Para Adorno, a educao, reconhecida por sua fora
social e poltica, no pode permitir novamente que acontea um holocausto (SKOVSMOSE,
1994).
nesse contexto que as principais caractersticas da Educao Crtica so
apresentadas. Skovsmose (2001b) destaca trs pontos-chave de tais caractersticas: o
envolvimento dos estudantes no controle do processo educacional; a considerao crtica de
contedos e outros aspectos; e o destaque dado s relaes entre o processo educacional e os
problemas existentes fora do universo educacional.
Os pontos-chave destacados por Skovsmose estiveram presentes no trabalho do
educador brasileiro Paulo Freire17, principal representante da Educao Crtica em nosso pas.
Inserida em uma sociedade marcada por fortes traos de excluso, a pedagogia freireana enfatiza
que pelo dilogo [...] que os homens e mulheres constroem um mundo mais humano,
refazendo o que j existe e projetando um futuro que est por realizar-se (ZITKOSKI, 2006, p.
22).
Paulo Freire enfatiza que a educao o ato de depositar, de transferir, de transmitir
valores e conhecimentos (FREIRE, 1987, p. 59) e utiliza a expresso educao bancria para
indicar aquela que mantm a contradio educador-educandos. Opondo-se a essa prtica, a
educao libertadora, problematizadora, prope a superao da dicotomia educador-educandos,
modificando, principalmente os papis j determinados aos educandos: Estes, em lugar de serem
recipientes dceis de depsitos, so agora investigadores crticos, em dilogo com o educador,
investigador crtico, tambm. (FREIRE, 1987, p. 69).
Como se pode observar, apesar de no se relacionar especificamente ao contedo
matemtico, a Educao Crtica trazia idias diferentes daquelas defendidas pelo MMM e foi
impulsionada, no Brasil, pelo declnio das prticas impostas pela Matemtica Moderna, que 15Esse artigo foi publicado em 1969 e est disponvel na pgina http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm 16Auschwitz foi o maior e mais terrvel campo de extermnio nazista. (SKOVSMOSE, 1994) 17 Os trabalhos desenvolvidos por Paulo Freire, em mbito mundial, com relao Educao Crtica, so de fundamental importncia para a abordagem desse assunto e embasaram muitas idias de pesquisadores da Educao Matemtica Crtica. No entanto, devido ao objetivo desta investigao de se concentrar nos propsitos trazidos pela Educao Matemtica Crtica, a obra deste pesquisador no ser abordada de uma maneira aprofundada nesta dissertao.
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destacavam o conhecimento matemtico como principal, considerando a trade professor-aluno-
conhecimento matemtico. Assim como os tericos da Educao Crtica, Sebastiani Ferreira e
Victoriano (2007) destacam que esse declnio propiciou a emergncia de novos paradigmas
voltados especificamente para a Educao Matemtica, dentre os quais se inclui a
Etnomatemtica. Segundo os pesquisadores,
logo aps o que poderamos chamar de fracasso da Matemtica Moderna , como era de se prever, apareceram vrios paradigmas educacionais, visando a escola e o ensino, no intuito de educar em matemtica nossos alunos. [...] Estes paradigmas educacionais tinham em comum uma filosofia diferenciada das anteriores, que era o reconhecimento do conhecimento que o educando j trazia para a escola, proveniente do meio social a que pertencia. Destes paradigmas o que teve maior impacto e est tendo melhor repercusso internacional a Etnomatemtica. (s/p)
evidente que os fatos relatados no aconteceram da maneira linear como esto
sendo apresentados, mas nesse perodo que se observaram os primeiros indcios de novas
perspectivas da Educao Matemtica.
Um momento importante relacionado a essas perspectivas aconteceu em 1976, no
Terceiro Congresso Internacional de Educao Matemtica (ICME-3), na cidade de Karlsruhe,
Alemanha, quando o pesquisador brasileiro Ubiratan DAmbrosio exps, pela primeira vez, as
principais idias de um programa que tinha como enfoque a crtica sociocultural da Matemtica
Ocidental (DAMBROSIO, 1997). Esse congresso foi um marco nas discusses entre
Matemtica e Desenvolvimento, visto que contava com a participao de representantes de pases
do Terceiro Mundo. No entanto, segundo DAmbrosio (2007b), isso uma preocupao, no
somente nos ento chamados pases do Terceiro Mundo, mas tambm em pases com
desenvolvimento industrial avanado e uma grande populao de imigrantes18 (p. 175).
Os projetos que influenciaram a exposio de idias desse autor no ICME-3 foram: o
trabalho com minorias enquanto presidente de graduao do Departamento de Matemtica da
S.U.N.Y.19, em Buffalo; o trabalho em Mali, oeste da frica, em um projeto da UNESCO20
denominado CPS Bamako; e a coordenao do Projeto Multinacional Interdisciplinar de
Educao e Cincia da Organizao dos Estados Americanos (DAMBROSIO, 1999a).
18is an issue not only in the so-called Third World countries, but also in countries with advanced industrial development and a large population of immigrants (DAMBROSIO 2007b, p. 175). 19State University of New York. 20United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
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As experincias nos projetos mencionados levaram DAmbrosio a conceber o
conhecimento, inclusive o matemtico, em suas diferentes maneiras de ser gerado, organizado
intelectual e socialmente e difundido.
Na poca em que se realizou o ICME-3, o pesquisador no atentou para o fato de
que etnomatemtica seria um bom nome para a matemtica de outros ambientes culturais21
(DAMBROSIO, 1999a, p. 51), mesmo com sua familiaridade com termos como etnobotnica,
etnomusicologia, etnopsiquiatria, e outros etnoconhecimentos. Alm desses, foi introduzido, na
dcada de 40, o termo etno-histria como uma forma de se referir histria de povos no-
letrados22 (DAMBROSIO, 1999a). Tambm foi fundada, em 1955, a Sociedade Internacional
de Etnomusicologia e, a partir da, outras palavras com o radical etno comearam a ser utilizadas.
Nesse congresso internacional e em outros dois eventos repetiram-se as discusses
anteriores. Tais eventos aconteceram em 1978 no Sudo e na Finlndia. Intitulados,
respectivamente, O Desenvolvimento da Matemtica em Pases do Terceiro Mundo e
Matemtica e o Mundo Real, eles levantaram reflexes acerca das relaes entre Matemtica e
sociedade. Nesse mesmo ano, DAmbrosio utilizou, pela primeira vez, o termo Etnomatemtica,
durante o Encontro Anual da Associao Americana para a Promoo da Cincia23, mas ainda
sem o sentido que hoje lhe atribudo. O pesquisador usou
a palavra Etnomatemtica [...] para designar a matemtica de culturas nativas. Mas o uso da palavra etnomatemtica estava sempre focado na descrio de matemticas de outras culturas, principalmente naquelas sem escrita e naquelas marginalizadas pelo processo colonial24 (DAMBROSIO, 1999a, p. 52).
Os pesquisadores Mrcia Ascher e Robert Ascher tambm utilizaram o termo antes
de conhecer os trabalhos de DAmbrosio. Knijnik (1996) menciona que, para esses autores, a
Etnomatemtica compreendia o estudo das idias matemticas dos povos que no possuam
registro escrito.
21that ethnomathematics would be a good name for the mathematics of other cultural environments. (DAMBROSIO, 1999a, p. 51) 22No-letrados traduo para o termo non-literate (DAMBROSIO, 1999a, p, 51). Essa palavra indica os povos que no possuam registro escrito. 23American Association for the Advancement of Science (AAAS) 24the word ethnomathematics [...] to designate the mathematics of the native cultures. But the use of the word ethnomathematics was always focused on the description of the mathematics of other cultures, mainly those without writing and those marginalized by the colonial process. (DAMBROSIO, 1999a, p. 52)
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Depois dos eventos do Sudo e da Finlndia, consolidou-se uma preocupao voltada
para os papis socioculturais da Educao Matemtica, at que, no Quinto Congresso
Internacional de Educao Matemtica (ICME-5), realizado em Adelaide Austrlia , em 1984,
evidenciou-se
uma tendncia definitiva em direo aos interesses socioculturais na educao matemtica. Questes sobre Matemtica e Sociedade, Matemtica para todos, a crescente nfase na Histria da Matemtica e sua Pedagogia [...] foram marcadas pela emergncia da nova rea da etnomatemtica.25 (DAMBROSIO, 2007b, p. 176)
A comunidade acadmica ouve falar, pela primeira vez, no termo Etnomatemtica e
nas idias bsicas que estruturavam essa nova perspectiva, com o sentido que hoje lhe atribudo.
Influenciada pelas discusses socioculturais da Educao Matemtica, ela recebe essas novas
idias como uma possibilidade de mudana no enfoque dado ao ensino de Matemtica at aquele
momento.
Nesse evento, DAmbrosio percebeu a oportunidade de estabelecer a Etnomatemtica
como um campo de pesquisa legtimo, que tem como foco central entender e explicar como o
conhecimento gerado, organizado, social e intelectualmente, e difundido. Para ele, o termo
expressava que
cada cultura desenvolveu sua prpria maneira, estilos e tcnicas de fazer, e respostas procura por explicaes, entendimentos e aprendizagem. Estes so os sistemas de conhecimento. Todos esses sistemas usam inferncia, quantificao, comparao, classificao, representao, medida. claro que a matemtica ocidental um desses sistemas de conhecimento, como nos mostra uma viso ampla de sua histria. Mas outras culturas desenvolveram, tambm, outros sistemas de conhecimento com os mesmos objetivos. Isto , so outras matemticas, usando diferentes maneiras de inferir, quantificar, comparar, classificar, representar, medir. Todos esses sistemas de conhecimento poderiam ser chamados etnomatemticas. Eles so as matemticas de diferentes ambientes naturais e culturais, todos motivados pela busca por sobrevivncia e transcendncia.26 (DAMBROSIO, 1999a, p. 52)
25 a definitive tendency toward socio-cultural interests in mathematics education. Questions about Mathematics and Society, Mathematics for All, the increasing emphasis on the History of Mathematics and its Pedagogy [...] was marked by the emergence of the new area of ethnomathematics. (DAMBROSIO, 2007b, p. 176) 26each culture developed its own ways, styles and techniques of doing, and responses to the search of explanations, understanding and learning. These are the systems of knowledge. All these systems use inference, quantification, comparison, classification, representation, measuring. Of course, Western mathematics is such a system of knowledge, as a broad view of its history shows. But other cultures developed, also, other systems of knowledge with the same aims. That is, other mathematics, using different ways of inferring, quantifying, comparing, classifying, representing, measuring. All these systems of knowledge might well be called ethnomathematics. They
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Essas palavras traduzem o sentimento de igualdade que se instaurou em diferentes
pases aps a Segunda Guerra Mundial. No entanto, bater-se por esse reconhecimento igualitrio
das diferentes maneiras de conhecer o mundo matematicamente, exigiria opor-se a um sistema
de conhecimento estabelecido e com determinado valor para a maioria das comunidades.
Assim como o ICME-3, outro momento histrico foi fundamental para a estruturao
de outra perspectiva da Educao Matemtica: a Educao Matemtica Crtica. Ele foi
representado pelos trabalhos desenvolvidos pela pesquisadora americana Marilyn Frankenstein,
que, em seu artigo de um livro que teve a primeira edio publicada em 1985, re-contextualiza a
teoria de Educao Crtica de Paulo Freire para um currculo de Matemtica para a classe
trabalhadora adulta urbana, aplicando-a para o ensino de Matemtica e Estatstica bsicas
(FRANKENSTEIN, 2005).
O desenvolvimento da Teoria Crtica, incluindo as discusses que ela suscitava a
respeito do papel da linguagem e da sua adoo como um modo de ao, assim como as
preocupaes com as relaes entre Matemtica e Desenvolvimento, que comearam a aparecer
durante a realizao dos Congressos Internacionais de Educao Matemtica (ICME),
propiciaram a efervescncia de novas idias no campo da Educao Matemtica.
Alm disso, o trabalho desenvolvido por Frankenstein na dcada de 80 indicava uma
necessidade de lutar contra as ideologias hegemnicas existentes na sociedade que so
sustentadas pelos conhecimentos matemticos. Sobre esse assunto, a pesquisadora afirma:
Aplicar a teoria de Freire para a Educao Matemtica direciona nossa ateno para como os mais correntes usos da Matemtica apiam ideologias hegemnicas, como educao matemtica tambm refora ideologias hegemnicas e como educao matemtica crtica pode desenvolver compreenso crtica e levar ateno crtica. (FRANKENSTEIN, 2005, p. 122)
Tambm com uma perspectiva de trabalho semelhante, e tendo como suporte o
desenvolvimento de um projeto intitulado Educao Matemtica e Democracia em Sociedades
Altamente Tecnolgicas, implementado na Dinamarca, mais algumas idias que estruturam a
Educao Matemtica Crtica comearam a ser configuradas.
are mathematics of different natural and cultural environments, all motivated by the drives for survival and transcendence. (DAMBROSIO, 1999a, p. 52)
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Esse projeto foi implantado no ano de 1988 e, financiado pelo Conselho Dinamarqus
de Pesquisa em Cincias Humanas, tinha como inteno final discutir Educao Matemtica
como parte de uma tentativa democrtica em uma sociedade altamente tecnolgica. O educador
matemtico Ole Skovsmose foi convidado a participar desse projeto, iniciando os estudos na rea
da Educao Matemtica Crtica (SKOVSMOSE, 1994):
A educao crtica emergiu durante os anos de 1960, com muita inspirao da teoria crtica. A educao matemtica crtica se originou durante os anos de 1970 em um ambiente europeu, e durante os anos de 1980 surgiu uma verso nos Estados Unidos. A noo de etnomatemtica desenvolveu-se no Brasil, e [...] aquela noo ganhou destaque e iniciou-se uma tendncia forte em direo educao matemtica crtica. (SKOVSMOSE, 2007a, p. 20)
Essa perspectiva vem, portanto, sendo influenciada por diferentes frentes tericas da
poca e, por isso, sustentada por diferentes fontes. Tal influncia destacada por Arajo (2007),
que faz a indicao de tais fontes em seu texto:
As idias de Paulo Freire, e a Teoria Crtica da Educao (sic.) so fontes de inspirao para Skovsmose (1994), que afirma que outra fonte so os estudos da Etnomatemtica, como proposta por Ubiratan DAmbrosio. Portanto, apesar de uma das razes da EMC ser a Teoria Crtica, que bebe nas guas do Iluminismo, as idias da EMC so elaboradas quando as discusses de Paulo Freire e da Etnomatemtica so a ela incorporadas. Se, por um lado, h o foco na Matemtica acadmica, que utilizada na construo de nossa realidade social, por outro, h o foco na Matemtica de povos socialmente oprimidos, como defendido pela Etnomatemtica. (p. 34)
Como se pode notar, a estruturao das idias que compem a Educao Matemtica
Crtica sofre influncias de diferentes momentos citados neste captulo, trazendo tona o tema de
uma discusso que j vinha sendo feita por alguns pesquisadores: a preocupao com os aspectos
polticos da Educao Matemtica, com os papis exercidos pelos contedos matemticos na
sociedade e, principalmente, com os posicionamentos das pessoas frente a esses papis.
Segundo Borba (2001), pesquisadores como Marilyn Frankenstein e Arthur Powell,
nos Estados Unidos, Paulus Gerdes e John Volmink, na frica, Munir Fasheh, na Palestina,
Ubiratan DAmbrosio, no Brasil, e Ole Skovsmose e Stieg Mellin-Olsen, na Europa, apesar de
no utilizarem a denominao Educao Matemtica Crtica, representam essa nova tendncia na
rea da Educao Matemtica.
A Teoria Crtica foi uma das fontes de inspirao para o desenvolvimento da
Educao Matemtica Crtica, e, dentro desse contexto, a Educao Crtica forneceu novos
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subsdios para Skovsmose fundamentar suas idias. Segundo o pesquisador, a Educao Crtica
defende que, em vez de representar uma adaptao s prioridades polticas e econmicas
(quaisquer que sejam) [...] a educao deve engajar-se no processo poltico, incluindo uma
preocupao com a democracia (SKOVSMOSE, 2007a, p. 19).
Tambm para a Educao Matemtica Crtica, questes relacionadas democracia
so fundamentais, objetivando uma atitude democrtica, visando a uma
formao matemtica dos alunos no apenas para instrumentaliz-los matematicamente, mas tambm para faz-los refletir sobre a presena da Matemtica na sociedade, seja em benfeitorias ou em problemas sociais, e reagir contra as situaes crticas que a Matemtica tambm ajudou a construir. (ARAJO, 2007, p. 34)
O desenvolvimento de novas posturas com relao aos papis desempenhados pelos
conhecimentos matemticos na sociedade um dos principais objetivos da Educao Matemtica
Crtica.
Assim, inmeros pesquisadores, adeptos dos propsitos defendidos pela
Etnomatemtica e pela Educao Matemtica Crtica, tm desenvolvido suas pesquisas e
contribudo em muito para seus embasamentos tericos.
Tendo em vista a linha histrica adotada para a escrita do presente captulo, as influncias
exercidas sobre essas perspectivas podem ser sintetizadas pelo esquema a seguir:
Esquema 1: Influncias sobre a Etnomatemtica e a Educao Matemtica Crtica
Teoria Crtica
Educao Crtica
Etnomatemtica
Educao Matemtica
Crtica
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Esse esquema indica que a Etnomatemtica e a Educao Matemtica Crtica tiveram
um contexto histrico semelhante e, a partir dele, algumas conexes sero encaminhadas. Isso
ser discutido na seo que vem a seguir.
2.2 Primeira conexo a partir do panorama apresentado
Tomando como referncia o Esquema 1, pontos ou influncias comuns entre as
perspectivas da Etnomatemtica e da Educao Matemtica Crtica ficaram em evidncia.
Neste momento, considero importante enfatizar que a escolha dos fatos histricos
relatados no texto propiciou que a emergncia de tais pontos acontecesse. Nesse sentido, pode-se
afirmar que outras escolhas, bem como outras perspectivas de anlise acerca das mesmas,
poderiam levar a interpretaes diferentes da que ser apresentada a seguir.
Voltando, portanto, anlise das conexes entre as perspectivas da Etnomatemtica e
da Educao Matemtica Crtica, pode-se afirmar que, a partir do relato de suas razes histricas,
dois processos ficaram em evidncia. No primeiro, que teve como contexto de origem os pases
que sofreram com os processos de colonizao, destaca-se a crtica sociocultural da Matemtica
Ocidental. No segundo, localizado em pases desenvolvidos como Estados Unidos e Dinamarca e
tendo como suporte o conhecimento matemtico, priorizada uma postura democrtica em uma
sociedade altamente tecnolgica. Ambos se relacionavam, respectivamente, a progressos
cientficos e tecnolgicos.
Os dois processos histricos mencionados foram caracterizados por Vithal e
Skovsmose (1997) como a teoria da Modernizao, em que o conceito de modernizao
associado diretamente aos conceitos de progresso cientfico e tecnolgico. No entanto,
a suposio de Modernidade esconde qualquer posio na qual se faz importante ser crtico