eva legrand - fronteiras, americanidade e utopia

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INTERFACES BRASIL/CANADÁ, BELO HORIZONTE, V.1, N.3, 2003 ESTUDOS LITERÁRIOS Sonhar a América: por uma leitura de Frontières ou Tableaux d’Amérique, de Noël Audet* Eva LeGrand Resumo: Este artigo explora Frontières ou Tableaux d’Amérique por meio de diferentes “travessias de fronteiras” (espaciais, narrativas, estruturais, semânticas) do narrador, passeador audetiano (de Noël Audet). Se a dualidade da fronteira sempre problematiza questões identitárias do mesmo e da alteridade, Audet igualmente a designa, articulando-a à idéia da felicidade (que é a própria essência do “mito da América”) como centro irônico de sua arquitetura romanesca. Além disso, marcando- a com a forma plural, já encontrada no título, ele representa a esplêndida heterogeneidade do Continente e inscreve a mudança do paradigma de fronteira em toda a produção romanesca quebequense. Com efeito, Noël Audet é o primeiro romancista cuja “fronteira” não é mais figurada unicamente pelo Oeste (notadamente pela Califórnia), mas, em sua pluralidade, ele esboça a geografia ficcional de uma nova identidade continental, necessariamente impura e dialógica. Résumé: Cet article explore Frontières ou Tableaux d’Amérique à travers les différentes «traversées de frontières» (spatiales, narratives, structurelles, sémantiques) du narrateur-promeneur audetien. Si la dualité de la frontière problématise toujours les questions identitaires du même et de l’altérité, Audet la désigne aussi, en l’articulant à l’idée du bonheur (essence même du «mythe de l’Amérique»), comme centre ironique de son architectonie romanesque. La marquant de surcroît d’un pluriel dés le titre, il représente la superbe hétérogénéité du continent et inscrit le changement du paradigme de frontiêre dans toute la production romanesque québécoise : il est en effet le premier romancier dont la «frontiére» n’est plus figurée uniquement par l’Ouest (notamment par la Californie), mais qui. dans sa pluralité, esquisse la géographie fictive d’une nouvelle identité continentale, nécessairement impure et dialogique. _____________ *Montréal:Éditions Québec/Amérique, 1995.

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    ESTUDOS LITERRIOS

    Sonhar a Amrica: por uma leitura de Frontires ou Tableaux dAmrique, de Nol Audet*

    Eva LeGrand

    Resumo: Este artigo explora Frontires ou Tableaux dAmrique por meio de diferentes travessias de fronteiras (espaciais, narrativas, estruturais, semnticas) do narrador, passeador audetiano (de Nol Audet). Se a dualidade da fronteira sempre problematiza questes identitrias do mesmo e da alteridade, Audet igualmente a designa, articulando-a idia da felicidade (que a prpria essncia do mito da Amrica) como centro irnico de sua arquitetura romanesca. Alm disso, marcando-a com a forma plural, j encontrada no ttulo, ele representa a esplndida heterogeneidade do Continente e inscreve a mudana do paradigma de fronteira em toda a produo romanesca quebequense. Com efeito, Nol Audet o primeiro romancista cuja fronteira no mais figurada unicamente pelo Oeste (notadamente pela Califrnia), mas, em sua pluralidade, ele esboa a geografia ficcional de uma nova identidade continental, necessariamente impura e dialgica. Rsum: Cet article explore Frontires ou Tableaux dAmrique travers les diffrentes traverses de frontires (spatiales, narratives, structurelles, smantiques) du narrateur-promeneur audetien. Si la dualit de la frontire problmatise toujours les questions identitaires du mme et de laltrit, Audet la dsigne aussi, en larticulant lide du bonheur (essence mme du mythe de lAmrique), comme centre ironique de son architectonie romanesque. La marquant de surcrot dun pluriel ds le titre, il reprsente la superbe htrognit du continent et inscrit le changement du paradigme de frontire dans toute la production romanesque qubcoise : il est en effet le premier romancier dont la frontire nest plus figure uniquement par lOuest (notamment par la Californie), mais qui. dans sa pluralit, esquisse la gographie fictive dune nouvelle identit continentale, ncessairement impure et dialogique. _____________ *Montral:ditions Qubec/Amrique, 1995.

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    Nous avons t fonds comme Utopie; lUtopie est notre destin.1

    Nous habitons tous 1Amrique

    comme des enfants qui rvent.

    Nol Audet, Frontires ou Tableaux dAmrique

    Esta reflexo no visa anlise detalhada de Frontires ou Tableaux dAmrique, mas, sim, a explorao de algumas fronteiras que esse romance ao mesmo tempo atravessa e transgride. Da sua apresentao deliberadamente reduzida a um esboo:

    O romance que segue constitudo de sete representaes narrativas a respeito da Amrica e da idia de felicidade. Inspirei-me na estrutura de Tableaux dune exposition, de Moussorgski, no qual cada pea seguida de um passeio musical.

    o que escreve Nol Audet no incipit de seu sexto romance, revelando

    de sada ao leitor seu posicionamento composicional como temtica e, por conseguinte, o carter ficcional, ldico, dos passeios que seu narrador alter-ego do romancista, se assim o considerarmos desenvolve, voltando aos seus sete quadros-narrativos de mltiplas maneiras e sem cessar. Coletnea de contos, ento? De forma alguma. Pois os nove passeios do narrador-romancista (aquele que inicia o romance, os sete que seguem cada uma das narrativas e o passeio final) so bem mais do que uma simples travessia de fronteiras, que unem mais do que separam o conto e o romance, a fico e a reflexo, ou ainda, o sonho e a realidade. Exploram igualmente o pas de origem do narrador, bem como outras terras da Amrica continental, o que lhe permite viver encontros grotescos com um aduaneiro-leitor sob sua mscara narrativa de passeador, assim como tecer uma filiao nominal entre as heronas desses sete quadros-narrativos.

    A estruturao de Frontires ou Tableaux dAmrique muito diferente dos romances precedentes de Audet, especialmente de

    ____________________ 1 FUENTES, Carlos. Le miroir enterr: rflexion sur 1Espagne et Ie Nouveau Monde. Paris: Gallimard, 1994. p. 127.

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    Lombre de lpervier, uma saga baseada na estrutura dramtica e temporal que abrange, aproximadamente, 80 anos da vida na regio da Gaspsie, terra natal do romancista. Em Frontires..., o espao do Quebec, tradicionalmente fechado, abre-se sobre o continente, o que permite ler cada um dos sete quadros como se lem as tantas variaes sobre o tema da felicidade, do tempo circular e mtico (como os quadros de uma exposio), bem mais do que uma seqncia cronolgica. Procurar-se-ia, alis em vo, uma intriga clssica nesse romance, substituda por sete semi-intrigas ou linhas narrativas, todas focalizando uma mesma busca da felicidade. Trata-se, ento, de uma estrutura rememorativa, cuja coerneia temtica com seus ecos semnticos entre os diferentes quadros sublinhada pelas voltas do passeador aos seus prprios esquecimentos e esquecimentos de seus personagens. Unico depo-sitrio da memria romanesca e nico operador semitico, o narrador sabe, no entanto, que suas prprias lembranas so apenas vestgios dispersos, elipses de uma memria que s pode existir em pedaos, como o caso da felicidade de Marie-Agnelle, uma de suas heronas. Mas, por ocasio de suas nove travessias e de seus nove encontros com o aduaneiro, guarda de todas as fronteiras, ele esboa um espao fronteirio no qual se desenvolve o verdadeiro centro irnico do romance, que assegura sua unidade semntica e semitica.

    Li, antes de mais nada, o romance de Audet como uma magistral travessia de fronteiras (espaciais, temticas, genricas, composicionais, nominais, culturais e assim por diante), fronteiras cuja essncia feita de ambigidade, questionamento e dvida une, nesse caso, a prpria identidade da Amrica e a arte do romance, mais do que outro tema ou motivo. Afinal, como j salientou por mais de uma vez a crtica2, a identidade da Amrica no seria concebida, a exemplo do romance, como um encontro de dois mundos heterogneos, como um espao fronteirio essencialmente impuro, que provm da polifonia (quer cultural, narrativa ou discursiva), da mestiagem e da hibridao? Ora, se essas so _______________________ 2 Ver sobre esse assunto, entre outros, o excelente estudo de Jean-Franois Ct, Le renouveau du grand rcit des Amriques: polyphonie des identits culturelles dans le contexte de la continentalisation. In: CUCCIOLETTA, Donald; CT, Jean-Franois; LESEMANN, Frdric (dir.). Le grand rcit des Amriques: polyphonie des identits culturelles dans le contexte de la continentalisation. Les ditions de ILQRC, 2001. p. 9-37.

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    as caractersticas que fazem com que a Amrica e o romance tenham ambos mais inveno do que uma simples descoberta, elas participam, de forma perfeitamente original, em Frontires ou Tableaux dAmrique (especialmente na maneira como Audet mistura fico e reflexo), do novo questionamento da identidade continental americana do Quebec (de sua americanidade), questionamento que marca de modo particular, h vrias dcadas, o pensamento crtico e a fico romanesca quebequense3.

    Mito da felicidade

    ...il flottait sur ses lvres et autour de ses yeux un perptuel sourire de bonheur qui semblait

    s adresser lui-mme, son interlocuteur et au monde entier.4

    Depois de minha primeira leitura de Frontires ou Tableaux

    dAmrique, romance construdo em torno da idia da felicidade esse famoso sonho americano , continuo obcecada pela primeira e magistral viso romanesca desse sonho, viso desenvolvida por Kafka, h, aproximadamente, cem anos, em Amerika ou Le disparu5. Obcecada, principalmente, pelo fim desse romance, em que o trem leva, em uma longa viagem, o exilado Karl Rosmann para o Grande Teatro de Oklahoma imagem pardica de um Eden americano situado alm de uma fronteira imaginria, na qual, sem exceo, todos so bem-vindos6 , momento em que esse _________ 3H uma enorme literatura crtica sobre esse assunto. Contento-me em Citar uma nica referncia, oriunda de uma colaborao entre o Quebec e o Brasil: ANDRS, Bernard; BERND, Zil (dir.). Lidentitaire et le littraire dans les Amriques. Qucbec: Nota bene, 1999. 4Franz Kafka, Amerika ou Le disparu. Paris: GF-Flamrnarion, 1988 ano da traduo francesa de Bernard Lotholary, p. 59. 5O romance foi escrito por Kafka entre 1912 e 1915, sem que, de fato, jamais o autor tenha posto os ps na Amrica, o que ressalta o fato de que no uma Amrica real que seu romance explora, mas, sim, sua imagem mtica, invenao europia, se assim o quisermos. (Ver a esse respeito, entre outros, o Prefcio do tradutor, nessa mesma edio; o artigo de Franois Ricard, LAmrique ou la rupture: mditation sur un roman de Kafla, em Le Messager Europen, Paris: P.O.L., n. 2, p. 133-148, 1988; e, tambm, Les testaments trahis, de Milan Kundera, Paris: Gallimard, 1993. 6Franz Kafka, Amerika ou le disparu, p. 308.

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    sonho com seu imaginrio utpico de felicidade parece, ainda, possvel. Fora dessa possibilidade, no a encontramos mais, nem na concluso do romance de Audet, nem naquelas dos romances quebequenses precedentes, o sonho da felicidade sendo sempre pago com fracasso.

    Evidentemente, continuando ainda com Kafka, abre, de certa forma, a longa linhagem de romances americanos do sculo XX, para tomar emprestada a expresso que ele prprio utilizava, o mito da Amrica , a priori, essa inveno europia e no o continente real que o romancista explora, fazendo assim de sua viso da Amrica (j reduzida unicamente aos Estados Unidos7) uma esplndida metfora da Modernidade. Representados, na viso kafkiana, de maneira pardica, como um pas de possibilidades ilimitadas (land ofopportunily), onde toda a viagem rumo felicidade tem origem na imaginao, no desejo e no sonho, mais do que na razo, os reais Estados Unidos inscrevem, paradoxalmente, a busca da felicidade noo mais imprecisa e mais indefinvel do que se pode imaginar , nos prprios estatutos da Declarao de Independncia Americana (em 1776), como um dos direitos humanos inalienveis!8

    Visivelmente, sonhar a Amrica e viver a Amrica representam duas faces de um processo dos mais complexos e dos mais diversificados, que, alis, compartilho h muito tempo graas s minhas leituras e muito antes de escolher l viver com as personagens de meus romances prediletos, iniciando justamente com Kafka, terminando com Audet, passando por Volkswagen blues, de Jacques Poulin, Kamouraska, de Anne Hbert, Une histoire amricaine [Uma histria americana], de Jacques Godbout, ou ainda Les ponts, de JeanFranois Chassay, e continuando, sem obviamente esquecer os Cent ans de solitude [Cem anos de solido]9, de Gabriel Garca Mrquez, ____________ 7A usurpao dos termos Amrica e americanos na realidade poltica e econmica, com o nico proveito dos Estados Unidos, algo to conhecido quanto inaceitvel e, h alguns anos, muito contestado. Disso testemunha, entre outros, o Colquio Internacional a respeito do tema Lamricanit partage, organizado em novembro de 2000, na Universidade Federal Fluminense, Niteri, pela professora Eurdice Figueiredo. 8BRUCKNER, Pascal. Leuphorie perptuelle: essai sur le devoir du bonheur. Paris: Grasset et Fasquelle. 2000. p. 46. 9N. da T. Os ttulos entre parnteses significam que as obras existem traduzidas para o portugus.

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    Terra nostra, de Carlos Fuentes, La rpublique des rves10 de Nlida Pion, e assim por diante. Contudo, observando que, diferentemente do romance de Kafka e da maioria dos romances quebequenses dos anos 60-80 do sculo XX, mas de acordo com a particularidade de Frontires ou Tableaux dAmrique, de Audet, os grandes romances latino-americanos no reduzem a significao da palavra Amrica ao espao dos Estados Unidos. No entanto, a despeito dessa importante diferena, todos esses romances me fascinaram pela analogia entre suas diferentes encenaes da Amrica, iluminada por uma aura mtica, encenao que no pra de projetar o desejo de seus personagens alm de uma fronteira, cujo espao se faz sonho de felicidade, mesmo que esta seja, com muita freqncia, recompensada em seus destinos, para no dizer sempre, por uma cruel desiluso, marcando, assim, uma diferena com relao ao destino de Karl Rosmann, cujo final da viagem Kafka abstm-se de mostrar... Resumindo, em todos esses romances, para usar uma citao de Volkswagen blues, de Poulin, h, muito tempo: O grande sonho da Amrica esfacelou-se.11

    Dessa maneira, o mito da Amrica, compartilhado h muito com romancistas que a sonham a partir de Intrieurs du Nouveau Monde, se ouso dizer, retomando o ttulo do magnfico ensaio de Perre Nepveu12, testemunha fortemente que a Amrica, objeto sonhado, indissocivel de toda nossa Modernidade, que no cessa de acusar a distncia entre sonho e realidade, especialmente ao longo do sculo XX. No seria, de fato, na brecha entre mito e realidade que se debatem, sem exceo, todas as personagens ro-manescas, de Kafka a Pion ou Audet?

    Nenhum outro pas no mundo lhe oferecia tantas possibilidades de aventura, diz a sua futura mulher, a quem Madruga personagem exilado no Rio de Janeiro no romance da brasileira Nlida Pion pede que venha com ele Amrica13. Certamente, enquanto Karl Rossman, de Kafka, enviado Amrica contra sua vontade, o personagem de Pion prefere ir para l, e os egos imaginrios de Audet, e de outros romancistas quebequenses ou latino-americanos, j nasceram no Continente. No entanto, alm dessa importante diferena (e certamente h outras), suas similitudes _____________ 10A repblica dos sonhos. 11POULIN, Jacques. Volkswagen blues. Paris; Montral: Qubec/Amrique, 1984. 12 NEPVEU, Pierre. Intrieurs du Nouveau Monde. Montral: Boral, 1998. 13 P1ON, Nlida. La rpublique de rves. Paris: dition des Femmes, 1990 ano da traduo francesa. p. 83.

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    impressionam ainda mais. Efetivamente, semelhana do narrador audetiano esse passeador que explora de modo improvisado o Continente Americano do Quebec at o Brasil, e traz, de sua longa viagem, um manuscrito intitulado Busca da felicidade , todos os personagens perseguem, da maneira mais irnica possvel, seu sonho de felicidade alm de uma fronteira que, to real e concreta quanto possa parecer (fronteira geogrfica, por exemplo), tem fi-nalmente relao com o imaginrio e o sonho.

    Por outro lado, compreender-se- que, ao evocar o romance de Kafka nesta reflexo a respeito de um romance quebequense (arriscando desagradar a alguns crticos que ainda limitam o territrio dessa arte s fronteiras nacionais), examino o romance americano como alis todo romance ocidental no mbito da concepo do romance europeu no sentido espiritual e no geogrfico do termo, tal como foi definido, entre outros, por Milan Kundera14, arte cujas razes remontam a Rabelais e Cervantes e que, no sculo XX, engloba tanto o romance estadunidense quanto o antilhano, o brasileiro, o hispano-americano ou quebequense, na medida em que todos participam de uma interrogao da existncia mais do que do real. Como, ento, compreender a obra de um gnio da arte romanesca tal como Fuentes, tomando, apenas, como exemplo o mais clebre, como escrutar sua americanidade ou sua mexicanidade destituindo-o da sua herana romanesca europia, que ele no deixa de reivindicar abertamente na figura de Cervantes? Dito isso, no seria interessante relembrar aqui Zil Bernd, para quem o denominador comum das literaturas das Amncas, inclusive a quebequense, reside no fato de que, desde seu nascimento, elas se nutrem [...] da cultura europia?15

    Fronteira

    il y aura toujours une nouvelle frontire conqurir nous la recherchons joyeusement lintrieur du continent

    amricain, tristement au-dehors, et terroriss quand il nen a plus ni l n il...16

    __________________ 14KUNDERA, Milan. Lart du roman. Paris: Gallimard, 1986; e Les testaments trahis. Paris: Gallimard, 1993. 15BERND, Zil. 16FUENTES, Carlos. Christophe et son oeuf. Paris: Gallimard/Folio, 1993. p. 302.

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    A dualidade da fronteira, que separa e, ao mesmo tempo, une, , pois, engendrada pela cultura, ela prpria sempre dividida em dois, a nossa e a dos outros, como pertinentemente ressalta Lotman17. A fronteira problematiza, de uma nova maneira, as questes do mesmo e da alteridade, figurando, assim, no centro de toda pesquisa identitria. Ora, sonhar a Amrica de forma especificamente romanesca, torn-la indissocivel do mito da felicidade, significa, por sua vez, articul-la ao mito da fronteira, que parece relacionar-se diretamente com a prpria histria da Amrica18, tanto quanto com os diferentes questionamentos nacionais de pertena identitria ao continente, mesmo se tais questionamentos se inscrevessem, at bem recentemente (especialmente na produo romanesca quebequense) em um imaginrio estadunidense19. Neste momento, em Frontires ou Tableaux dAmrique, romance que considero o melhor de toda a produo de Nol Audet, somos interpelados, desde o tftulo, pelo plural do termo fronteiras. Com esse plural, Audet interioriza o mito da fronteira no conjunto do Continente Americano, examinando-o por meio de quadros das sete diferentes regies da Amrica, do Quebec ao Brasil, bem como pelas sete variaes do sonho da felicidade. Representando dessa maneira a esplndida _____________ 17LOTMAN, Yuri M. Universe of the mind: a semiotic Theory of Culture. Indiana University Press, 1990. Todo o captulo nove consagrado A noo da fronteira. 18Ver, sobre esse assunto, um dos primeiros ensaios de importncia do sculo XIX, escrito, mais precisamente, em 1893, por Frederick Jackson Turner (1861-1932): The significance of the frontier in American history, disponvel na Internet em http:///xroads.viryinia.edul-DRBR:turner:htlm documento citado por Marco Modenesi, Va donc dans lOuest, jeune homme: prsence et signification de la frontire dans le roman qubcois contemporain. Intersections, n. 38, dir. par Lina Nissim et Carlos Pagetti/Universit degli Studi di Milano: Instituto di Lingua e Letteratura Francese e dei Paesi Francofoni & Instituto Anglistica; CISALPINO. Instituto Editorale Universatario, 1999, p. 137-169. Insisto em ressaltar que minha reflexo a respeito da fronteira, em Nol Audet, deve muito a esse excelente estudo de Marco Modenesi, consagrado mais amplamente ao romance qucbequense contemporneo. 19Ver a esse respeito o ensaio de Jean-Franois Chassay, Lambigt amricaine. Le roman qubcois face aux tats-Unis. Montral: XYZ, 1995. Alm disso, ser interessante comparar Frontires ou Tableaux dA mrique, de Nol Audet, e La frontire de verre, roman en neuf rcits, de Carlos Fuentes, escrito, igualmente, em 1995 (1999 para a traduo francesa, Paris, Gallimard). Tenho a salientar suas dimenses abertamente mticas da noo de fronteira, mesmo que se trate, em Fuentes, unicamente daquela entre o Mxico e os Estados Unidos.

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    heterogeneidade do Continente, tanto cultural quanto lingstica, o romancista questiona, da maneira mais clara possvel, a relao, at ento sinnima, entre a idia de fronteira e de uma Amrica reduzida apenas aos Estados Unidos.

    Alm disso, quando o narrador-romancista de Frontires ou Tableaux dAmrique volta para casa, o manuscrito que ele traz de sua viagem pelo Continente Americano, intitulado, de maneira to significativa quanto irnica, a busca da felicidade20, no promete nenhum happy end alm de um carnaval do imaginrio. Por outro lado, na medida em que Audet explora o Continente Americano, seu romance marca a mudana do paradigma de fron-teira em toda a produo romanesca quebequense. Efetivamente, do que sei, Audet o primeiro romancista cuja fronteira promissora de felicidade no mais representada pelo Oeste (notadamente pela Califrnia), mas que, em sua pluralidade e sua ubiqidade continental, esboa claramente a geografia de uma nova identidade.

    Sem dvida, motivo privilegiado da amencanidade a partir da descoberta do continente em 1492, a fronteira permanece desde ento, a forma literria mais apropriada da interrogao identitria e da apreenso de uma outra identidade, tanto quanto o elemento constitutivo do mito da Amrica, cujo imaginrio remete efetivamente, j se viu, ao arqutipo do paraso, sinnimo de toda a busca da felicidade. Ora, em Audet, principalmente na busca do amor das sete heronas e do inevitvel fracasso de seus sonhos que a Amrica mostrada como uma implacvel assassina do real21, para retomar a instigante imagem de Baudrillard: assassina de uma realidade substituda pelos sinais do real e pelo simulacro, para no dizer pelo kitsch, fazendo de toda a busca da felicidade o clich central da vida americana.

    Finalmente, em Frontires ou Tableaux dAmrique, o manuscrito a busca da felicidade, do qual s se conhece o ttulo na ltima pgina do romance, pode ser visto como um ponto de fuga de todas as fronteiras heterogneas que o narrador-romancista alcana por ocasio da sua viagem, um ponto de fuga do territrio movedio de sua prpria escritura. Pois, se me permitem extrapolar essa idia a partir das palavras crticas de Guy Scarpetta, no se poderia justamente definir a escritura como uma travessia de fron-teiras?22 _____________ 20AUDET, NoeI. Frontires..., p. 206. 21BAIJDRILLARD, Jean. Amerika: simulation et simulacra. Paris: Galile, 1981, p. 16. 22SCARPETTA, Guy. loge du cosmopolitisme. Paris: Grasset, 1981, p. 183. Citado em Simon Harel, Le

    voleur de parcours: identit et cosmopolitisme dans la littrature

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    Fico nominal

    ...cache au fond de son nom, la fe se transforme... Marcel Proust, la recherche du temps perdu23

    Sete quadros, sete regies de desejo, sete sonhos de felicidade, sete mulheres da Amrica. Todas elas se chamam Maria. Mas esse nome traduzido em cada uma das travessias da fronteira24, segundo a lei lingstica de seus respectivos pases. Da mesma maneira, mudam os detalhes que cobrem suas vidas e sonhos, ao bel-prazer das viagens do passeador s regies em que elas desejam e morrem. Conforme anuncia a carta que o narrador escreve a essas mulheres imaginrias, cartas que o aduaneiro retira de sua mala e l sem constrangimento, Maria escreve-se aqui em cinco lnguas em francs, ingls, portugus, espanhol e em lngua inuit , tomando-se assim, sucessivamente Mary Two-Tals, de Kuujjuaq, no Grande Norte; Marie-Agnelle, de Montral; Mary Smith, das plancies de Saskatchewan; Mary Virtuelle, de Nova Iorque; Mary Ann, de Nova Orleans; Maria Moreno, do Mxico; e, finalmente, Maria Cristobal, do Rio de Janeiro. Nomes de mulheres em sete variaes, parecidas e diferentes ao mesmo tempo, sem, no entanto, serem intercambiveis. Pois, conforme deixa claro o passeador, como explorador do Continente Americano e inventor de vidas virtuais, se elas tm a mesma alma, o seu destino que as toma diferentes25. Ora, so precisamente as variaes desses destinos, condicionadas pelo tipo de sociedade na qual as mulheres vivem, que explicam as diferenas em sua trgica deriva e, igualmente, colocam em relevo sua semelhana essencial: a de viver e a de morrer de Amrica, visto como o Continente de uma impossvel coincidncia entre a idia da felicidade e a realidade. __________________ qubcoise contemporaine. Montral: Prambule, 1989, p. 266, nota 24. 23PROUST, Marcel. la recherche du temps perdu, Paris: Gallimard, 1987-89. v. 2. p. 311. 24A respeito da problemtica do nome e da fronteira, ver, principalmente, o excelente artigo de Jacques Cardinal, Traduire son nom en passant la frontire: la qute identitaire dans Rsident Alien, de Clark Blaise, in: LONARD, Martine; NARDOUT-LAFARGE, Elisabeth (dir.). Le texte et le nom. Montral: XYZ, 1996. p. 181-194. 25Frontires..., p. 16.

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    isto talvez, afinal de contas, viver na Amrica, pensa Marie Agnelle: um sonho mais forte do que a idiota realidade. Uma recusa em aceitar as condies ordinrias da existncia, como se esse continente devesse fornecer ao ser humano pedaos inteiros do Paraso.26

    Efetivamente, estranho paraso esse Continente, ao mesmo tempo

    mstico e mtico, do qual Nol Audet revela a face escondida por meio de uma contnua aposio de contrrios: um imenso desejo de amor e de felicidade de seus personagens choca-se cruelmente contra a violncia do real, quer essa violncia se manifeste sob uma forma velada, quer ela ostente orgulhosamente seu poder sobre a vida e a morte. Pois Audet ousa mostrar o lado embelezador das imagens cercadas de uma aura mtica (e miditica do suposto Paraso do Novo Mundo, imagens-kitsch, pelas quais todas as suas heronas se deixaram seduzir. a essncia antropolgica de toda a Amrica que o romancista designa, uma Amrica to violenta quanto sentimental e moralizadora, em vertiginosa aproximao, sete vezes repetida, entre a simples realidade, em que no h nenhum lugar para os happy ends, e seus constantes sonhos.

    O prprio nome Maria, em sete variaes, e a filiao continental que ele desenha no cruzamento das lnguas da Amrica, remete igualmente a uma outra funo: a travessia das fronteiras geogrficas (que, detalhe importante, nem sempre coincidem com os limites de um Estado!), tanto quanto a viagem do nome, realizam juntas a funo potica dessa fico onomstica. Alm disso, quantos leitores de Audet tentaro descobrir se o romancista, por meio de sua viagem imaginria, lhes faz um divertido aceno quando sada do Rio Maria? Pois, como se sabe, este o nome das suas sete heronas fictcias, mas tambm da sua cidade natal, topnimo que ele, assim, inscreve na geografia heterognea do Continente Americano, cujo romance se torna a metfora existencial, mesmo que sua cidade gaspesiana no figure como lugar explorado em um dos sete quadros narrativos.

    Por outro lado, poderamos dizer que a busca da felicidade pelas sete heronas de Audet, seu desejo do Eden, parece, de alguma forma duplicado no nome dos homens que se desviam, de uma ____________ 26 Frontires ou Tableaux dAmrique., p. 61.

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    maneira ou outra, de seus respectivos destinos: Idua em lngua inuit que Audet prefere escrever Idoua pela sua pronncia correta em francs), toma-se Ed ou Eddy em ingls, Duardo ou Eduardo, em espanhol e em portugus27. Sem dvida, outra maneira de alimentar a busca da felicidade dessas mulheres, seu desejo de atravessar das as fronteiras da existncia (as do incesto, dos malefcios da natureza, da doena e da morte...), um desejo que se assemelha o do narrador: o da possibilidade de inventar um outro destino para recomear sua vida... Em suma, por intermdio do sonho onomstico de homens e mulheres, so as biografias do desejo da Amrica que Audet esboa nos quadros de sua exposio romanesca.

    Romance-fronteira

    Oui, quand on afranchi la frontire, le rire retentit, fatidique. Mais quand on va encore plus loin, encore

    au del du rire?28

    Por ocasio das suas nove travessias, o narrador-romancista ios guia durante o prprio processo de sua composio, de maneira to ldica quanto improvisada, revelando, desde o incio, sua fasciIao diante de cada fronteira entre a realidade e a fico, vida e romance, designando-a, dessa forma, como o centro irnico de toda tua arquitetnica romanesca. Alm disso, ao escrever seus pas;eios na primeira pessoa contrariamente a seus nove quadros narrativos que so descritos na terceira , o tempo da fronteira abre-se, tambm, s questes da leitura, da crtica e da censura. Alis, desde seu passeio inicial, ele admite experimentar uma estranha angstia diante de um aduaneiro que, visivelmente, se interessa __________ 27Apenas o stimo quadro faz exce5o a esse respeito: nenhum dos homens que atravessam a vida de Maria Cristobal, do Rio, chama-se Eddy. Entretanto o Buffalo Bill, que poderamos considerar um lendrio heri das fronteiras, apelido que Maria d ao rico turista estadunidense, na verdade, revela sua busca desesperada de um novo mito da felicidade, que, em seus sonhos (como no da mexicana Maria Moreno), s pode justamente existir ao Norte, alm da fronteira mtica dos Estados Unidos. Esse sonho confirmado, alis, pela foto do filho de Buffalo Bill, jovem que ela nunca ver, mas cuja foto, encontrada na carteira que ela roubou do turista rico, traz, no verso, a inscrio desse nome to significativo no romance: Eddy... (Fronties..., p. 184). 28KUNDERA, Milan. Le livre du rire et de loubli. Paris: Gallimard, 1979, p. 248.

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    mais pelos objetivos literrios de sua viagem do que por passaporte, passagem area e outros ttulos de transporte. Sua angstia, sem dvida anloga quela que sentimos cada vez que devemos declinar claramente nossa identidade diante de um aduaneiro, aparenta-se do personagem kafkiano, diante do guarda, no clebre texto Devant la loi, lei representada, em Audet, pelas fronteiras que surgem continuamente em nossas vidas29. Sem dvida, seu aduaneiro poderia ser visto ironicamente como o guarda desse Paraso que buscam todas as Marias de Audet na imagem da Amrica, guarda desse espao delimitado por fronteiras por todos os lados, como se definia outrora, no velho iranian, o Pairadaeza30... Afinal, no tambm ele quem, igualmente, convoca, em seus nove passeios e ao sabor da sua fantasia, os egos imaginrios de mulheres que animam seus quadros narrativos escritos na terceira pessoa?

    Desde a publicao de seu romance Lombre de 1pervier, alguns crticos de Audet dizem experimentar alguma dificuldade diante de seu narrador, que se dirige diretamente ao leitor e que (cmulo da impertinncia) at vai visitar seus personagens ficcionais. Felizmente, para os amantes da liberdade do imaginrio romanesco, Audet reincide! No apenas ignora as crticas, mas tambm trai as expectativas dos seus leitores que, se nos fiamos nos crticos, esperavam v-lo novamente cantar o amor pela sua Gaspsie na-tal, que, j se viu, ele se contenta em cumprimentar com humor, de uma regio longnqua. Audet reincide, dizia eu, mas da maneira mais genial possvel: ele insere, s escondidas, as repreenses de seus crticos (aqueles que o impelem para o espao fechado e restrito da sua regio natal) na prpria estrutura de seu romance, encarnando-os justamente na figura do famoso aduaneiro, que no cessa de obcec-lo literariamente, em cada uma das suas travessias de fronteira, e, evidentemente, at mesmo l onde elas no existem (entre o Grande Norte, Montreal e Saskatchewan...). Pois sim, e fao questo de sublinhar, por meio desse aduaneiro (espcie de mistura de guarda e censor, perfeito retrato de um guarda severo de todas as fronteiras do mundo e de todas as identidades puras!), figura da qual alguns crticos francamente no gostam

    _____________ 29AUDET, Noel. Frontires..., p. 17. 30Definio dada em Vladimir Macura, Stastny vek. Praga: Prazska imaginace, 1992. p.16.

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    (perguntamo-nos por qu), exatamente para voc, leitor(a), para voc e para mim, que o romancista faz um alegre gesto zombeteiro! Ao sentimentalismo indiscreto e beato do aduaneiro que espera happy ends, mesmo depois de ter lido tantos horrores no manuscrito que nosso narrador traz a Montreal, ao seu sentimentalismo moralizante, Audet ope as alegres impertinncias de seus passeios libertinos, tanto no sentido geogrfico quanto literrio do termo. Se, neles, ele recusa a imposio de suas prprias fices, por que aceitaria a imposio da fico do seu aduaneiro-leitor, essa magnfica figura irnica surgida da busca da ambigidade essencial a todas as fronteiras que se movem, existenciais e romanescas? Pois, conforme sugere Audet em uma de suas entrevistas, o mundo da fico to real, que no se consegue distinguir o real da fico. Ele tem razo, pois onde se encontra de fato a fronteira?

    Realmente, eu diria que em Frontires ou Tableaux dAmrique, Audet conseguiu explorar a escritura como forma de interrogao ontolgica, caracterstica dos maiores romances contemporneos, revelando-se, igualmente, um romancista de reflexo e no apenas, como seu narrador pretende no passeio de abertura, um inventor de vidas virtuais... No passeio que se segue a stima narrativa, seu stimo quadro, ele admite estar apaixo-nado por Maria Cristobal, a herona do Rio de Janeiro, que morre depois de ser violada e estrangulada por um membro do Esquadro da Morte, justamente porque, diferena dos outros, ela sabia que no tinha ainda adquirido o direito de existir31. E, para dar-lhe uma chance, ele faz todas as suas Marias ressurgirem nesse passeio final, deixando-as juntas reinventar uma nova existncia, uma nova identidade. Ele as abandona com pesar, retomando a estrada de volta ao seu pas dos referendos32, levando consigo, na cabea, o eco de um riso carnavalesco de suas sete Marias imaginrias. ___________________ 31Frontires..., p. 198. 32Frontires..., p. 205.

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    Concluso C est um peu cela lAmrique, non?

    la chance tous, et si ce n est pas cela, quest-ce quon

    attend pour te dire?33

    Compreender-se- que a noo de fronteira, sob sua forma plural e heterognea, se torna uma verdadeira metfora existencial em Audet e, por isso mesmo, uma metfora de uma nova34 identidade, que no um estado, mas, sim, um processo contnuo. De fato, o passeador de Audet persiste em busca de uma identidade continental, mostrando alegremente seu prazer com a mistura que lhe oferece cada uma das suas travessias de fronteiras, em busca de uma identidade continental, cujo sentido global se encontra disseminado nos sete quadros e nove passeios de sua arquitetnica romanesca.

    Sem dvida, pode-se arriscar, depois dessa leitura de Frontires ou Tableaux dAmrique, e guisa de concluso, a seguinte definio dessa nova identidade americana. Identidade: mltipla travessia de fronteiras que, to imperceptveis quanto possam ser, no deixam de constituir nossa memria. Em suma, o que o romance de Nol Audet sugere, por meio de seu narrador-passeador-romancista, que, para garantir sua identidade quebequense, para tomar-se soberano, tanto no sentido esttico quanto existencial do termo, ele deve compartilhar sua americanidade, inscrevendo-a na heterogeneidade do Continente inteiro. Dito de outra forma, ele deve assumir sua identidade impura e viver, enfim, a diferena como um fenmeno dialgico, como uma nova maneira de sonhar a Amrica.

    Traduo Nubia Hanciau 33Frontires..., p. 156. 34Parece-me til mencionar, no contexto desta reflexo sobre a fronteira e a identidade, que o romance de Milan Kundera intitulado justamente LIdentit (Paris: Gallimard, 1997) foi traduzido para o islands com o ttulo de Fronteira invisvel, pois, nessa lngua, a palavra identidade simplesmente no existe.