febre de sangue (bloodfever) - sÉrie darkfever

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DURANTE SÉCULOS O REINO SOMBRIO DOS FAE COEXISTE COM O DOS HUMANOS. AGORA A BARREIRA ENTRE OS DOIS ESTÁ CAINDO, E MAC É A ÚNICA “COISA” ENTRE ELES. A vida comum de MacKayla Lane passou por uma transformação completa quando ela aterrissou na Irlanda e foi arrastada para um terrível mundo de feitiçaria e segredos ancestrais. Em sua luta para continuar viva, Mac precisa encontrar o Sinsar Dubh – um livro de um milhão de anos, contendo a magia mais negra imaginável, a chave para o controle total dos mundos dos Fae e dos Homens. Perseguida por Fae assassinos e cercada por figuras misteriosas nas quais ela sabe que não pode confiar, Mac encontra-se dividida entre dois pretendentes letais e irresistíveis: V’Lane, um Fae insaciável que pode transformar a excitação sexual de qualquer mulher em uma obsessão, e o sempre inescrutável Jericho Barrons, um homem tão sedutor quanto misterioso.

TRANSCRIPT

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Capítulo 1

– Você é uma mulher difícil de se encontrar, Srta. Lane – disse o inspetor O’Duffy enquanto eu abria a porta da frente, envidraçada em for-mato de diamante, da Barrons Livros e Miudezas.

A livraria majestosa do Velho Mundo era meu lar distante de casa, gostasse ou não disso, e, apesar da mobília suntuosa, dos tapetes inestimá-veis e de uma seleção sem fim de material para leitura de alta qualidade, eu não gostava. A jaula mais confortável ainda é uma jaula.

Ele olhou repentinamente para mim quando contornei a porta e me tornei visível, notando meu braço e dedos quebrados, os pontos em meu lábio e os machucados roxos e amarelos desbotados, que começavam perto do meu olho direito e seguiam até a base do meu queixo. Embora tenha levantado uma sobrancelha, ele não fez nenhum comentário.

O tempo lá fora estava horrível, e, enquanto a porta estava aberta, eu me sentia perto demais dele. Vinha chovendo há dias, uma torrente implacável e depressiva que me incomodava com gotinhas frias trazidas pelo vento mesmo onde eu estava, encolhida debaixo da arcada ladeada de colunas da grande entrada da livraria. Às onze horas da manhã de domingo, estava tão nublado e escuro que as luzes da rua já estavam liga-das. Apesar de seu brilho amarelo e sombrio, eu mal conseguia ver os contornos das lojas do outro lado da rua através do nevoeiro espesso e parecido com uma sopa.

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Recuei para deixar o inspetor entrar. Rajadas de ar gelado vieram junto com ele.

Fechei a porta e retornei para a sala perto do fogo, onde estava lendo no sofá, enrolada em um xale. Meu quarto emprestado fica no andar de cima, mas, nos finais de semana, quando a livraria está fechada, eu faço do primeiro piso, com seus recantos aconchegantes para leitura e lareiras esmaltadas, minha sala de estar pessoal. Meu gosto para a leitura se tornou um tanto excêntrico recentemente. Bem atenta à pre-sença de O’Duffy logo atrás de mim, empurrei com os pés, secretamente, alguns dos títulos mais bizarros que estava folheando para baixo de um belo gabinete de curiosidades. O povo minúsculo: conto de fadas ou fato?, Vampiros para tolos e Poder divino: uma história de relíquias sagradas.

– Tempo horroroso – ele observou, caminhando para a lareira e esquentando suas mãos nas chamas de gás que assobiavam levemente.

Concordei talvez com mais entusiasmo do que o fato justificava; o dilúvio interminável lá fora estava me perturbando. Mais alguns dias assim e eu ia começar a construir uma arca. Tinha ouvido que chovia muito na Irlanda, mas “constantemente” era um pouquinho mais do que muito, para mim. Transplantada contra a minha vontade, uma turista relutante e com saudades de casa, tinha cometido o erro de conferir o tempo lá em Ashford essa manhã. Fazia tórridos 35 graus na Geórgia, acompanhados de céu azul, apenas outro perfeito dia ensolarado e florido no Sul Profundo. Em algumas horas, minhas amigas seguiriam para algum de nossos lagos favo-ritos, onde se saturariam de sol, examinariam garotos paqueráveis e folhea-riam as últimas revistas de moda.

Aqui em Dublin estava fazendo altíssimos dez graus, e tão terrivel-mente úmidos, que a sensação era a metade disso.

Sem sol. Sem garotos paqueráveis. E a minha única preocupação com moda era assegurar que minhas roupas fossem grandes o suficiente para acomodar armas escondidas sob elas. Mesmo na segurança relativa da livraria, estava carregando duas lanternas, um par de tesouras e um pedaço de lança letal, de 30 centímetros, com a ponta habilmente embrulhada em uma bola de papel metálico. Tinha espalhado mais dezenas de lanternas e itens variados que poderiam ajudar como arsenal por toda a livraria de

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quatro pisos. Ainda havia escondidos crucifixos e garrafas de água benta em vários cantos. Barrons riria de mim se soubesse.

Você pode perguntar se estou esperando um exército do Inferno.Eu estou!– Como você me achou? – perguntei ao inspetor. Quando tinha

conversado com Garda pela última vez, uma semana atrás, ele tinha exi-gido uma maneira de me encontrar. Dei-lhe meu velho endereço na The Clarin House, onde me hospedei por pouco tempo logo depois de ter che-gado a Dublin. Não sei por quê. Acho que eu já não confio em ninguém. Nem mesmo na polícia. Aqui os bonzinhos e os malvados parecem iguais. É só perguntar para minha irmã morta Alina, vítima de um dos homens mais bonitos que eu já vi – o Senhor Mestre –, que por acaso também é um dos mais malignos.

– Eu sou um detetive, Srta. Lane – O’Duffy me disse com um sor-riso seco, e eu percebi que ele não tinha intenção de me contar. O sorriso desapareceu e seus olhos se estreitaram com um aviso sutil: Não minta para mim; eu vou saber.

Não estava preocupada. Barrons me dissera a mesma coisa uma vez, e ele realmente tem sentidos sobrenaturais. Se nem Barrons conseguia ver através de mim, não era O’Duffy que iria consegui-lo. Esperei, imaginando o que o tinha trazido ali. Ele havia deixado claro que considerava o caso da minha irmã sem solução e encerrado. Permanentemente.

Ele moveu-se para longe do fogo e jogou a mochila pendurada em seu ombro na mesa entre nós. Mapas se espalharam pela madeira brilhante.

Embora eu não tenha demonstrado nada, a lâmina gélida de um calafrio passou por minha espinha. Não consigo mais ver os mapas como antes: guias de viagem inofensivos, para um viajante desorientado ou um turista confuso. Agora, quando abro um, meio que espero encontrar espa-ços chamuscados nele, onde as Dark Zones estão – aqueles pedaços de nossas cidades que sumiram de nossos mapas, perdidos para as Sombras mortais. Não é mais o que os mapas mostram que me preocupa, mas o que eles falham em mostrar.

Uma semana atrás, tinha pedido para O’Duffy me contar tudo que ele sabia a respeito da pista que minha irmã deixara no cenário de seu assassinato, palavras que ela tinha marcado na pedra arredondada do beco

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enquanto morria: 1247 LaRuhe. Ele havia me respondido que eles tinham sido incapazes de achar qualquer endereço parecido.

Eu conseguira. Tinha precisado pensar bastante “fora da caixa”,1 mas isso é algo em que estou ficando melhor a cada dia – embora não deva levar muito crédito, na verdade, pelo avanço. É fácil pensar “fora da caixa” quando a vida jogou um elefante de duas toneladas em cima de você. Afinal, o que é essa caixa senão as crenças sobre o mundo que nós escolhe-mos seguir e que nos dão sensação de segurança? Minha caixa era tão rasa e tão útil como uma sombrinha de papel em toda essa chuva.

O’Duffy sentou-se no sofá próximo a mim, de uma maneira gentil para um homem tão acima do peso. – Eu sei o que você pensa de mim – disse.

Quando eu ia protestar educadamente – boas maneiras sulistas são difíceis de se perder, se é que isso é possível –, ele fez o que a minha mãe chama de “aceno de silêncio”.

– Tenho trabalhado nesse negócio por 22 anos, Srta. Lane. Eu sei o que as famílias de casos de assassinato encerrados sentem quando olham para mim. Dor. Raiva. – Ele deu uma risada seca. – A certeza de que eu sou um maldito idiota que passa mais tempo nos pubs do que no serviço, caso contrário seu ente querido estaria descansando em paz merecida-mente, enquanto seu matador apodreceria na cadeia.

Apodrecer na cadeia seria um destino muito bondoso para o assas-sino de minha irmã. Além do mais, duvido que qualquer cela de prisão conseguisse segurá-lo. O líder de manto carmesim dos Unseelie pode-ria desenhar símbolos no chão, bater seu bastão e desaparecer através de algum portal conveniente. Embora Barrons tivesse me prevenido contra suposições, eu não via razão para duvidar de que o Senhor Mestre era o responsável pela morte da minha irmã.

O’Duffy parou, talvez para me dar uma chance de negar suas pala-vras. Não o fiz. Ele estava certo. Eu tinha sentido tudo aquilo e mais. Porém, considerando as manchas de geleia em sua gravata e a circunfe-rência de sua barriga como evidências circunstanciais, eu o condenaria por passar tempo demais em padarias e cafés, não pubs.

1 Outside of the box, expressão que em português pode ser traduzida como “fora do normal” ou “além do bom senso”. Como a autora utiliza, na sequência, metáforas sobre a caixa, a expressão original foi mantida. (N.T.)

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Ele selecionou dois mapas de Dublin da mesa e os entregou para mim. Dei-lhe um olhar de interrogação.

– O que está em cima é do ano passado. O outro, embaixo dele, foi publicado há sete anos.

Eu dei de ombros. – E? – Algumas semanas atrás, eu teria ficado muito feliz por qualquer ajuda da Garda que conseguisse obter. Agora que eu sabia tudo o que eu sabia sobre a Dark Zone nas vizinhanças da Barrons Livros e Miudezas – aquela região abandonada e terrível onde eu tinha encontrado 1247 LaRuhe, tido um confronto violento com o Senhor Mestre e quase sido morta –, eu queria que a polícia ficasse o mais longe possível da minha vida. Não queria mais mortes na minha consciência. Não havia nada que a Garda pudesse fazer para me ajudar, de qualquer maneira. Somente uma vidente sidhe podia ver os monstros que tinham se apossado da vizinhança abandonada e a transformado numa armadilha mortal. Um humano comum não perceberia o perigo até estar praticamente morto.

– Eu encontrei sua 1247 LaRuhe, Srta. Lane. Está no mapa publi-cado sete anos atrás. Estranhamente, não está no publicado ano passado. A Avenida Grand, a um quarteirão de distância desta livraria, também não está no mapa novo. Nem a rua Connelly, um quarteirão depois dela. Eu sei. Eu passei por lá antes de vir vê-la.

Meu Deus! Ele tinha entrado na Dark Zone hoje de manhã? O dia mal tinha luz suficiente para manter as Sombras longe, seja onde for que essas coisas horríveis se escondam! Se a tempestade tivesse trazido ape-nas mais uma nuvem densa que tapasse o céu, a mais corajosa daquelas sugadoras de vida poderia ter ousado sair de dia para uma alegre refeição humana. O’Duffy tinha estado dançando de rosto colado com a Morte e nem tinha percebido isso!

O inspetor, que não desconfiava de nada disso, balançou a mão sobre a pilha de mapas. Eles pareciam ter sido bem examinados. Um deles parecia ter sido amassado em forma de bola, por espanto ou tal-vez descrença furiosa, e depois alisado novamente. Eu conhecia essas emoções. – Na verdade, Srta. Lane – O’Duffy continuou –, nenhuma das ruas que eu acabei de mencionar estão em qualquer mapa recente-mente publicado.

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Olhei para ele com a minha melhor expressão vazia. – O que você está dizendo, inspetor? A cidade renomeou as ruas desta parte de Dublin? É por isso que elas não estão nos mapas novos?

O rosto dele contraiu-se e seu olhar desviou-se. – Ninguém reno-meou as ruas – murmurou. – A não ser que tenham feito isso sem noti-ficar nenhuma autoridade. – Ele voltou a olhar para mim, de forma dura. – Achei que poderia haver alguma coisa a mais que você iria querer me con-tar, Srta. Lane. Alguma coisa que pode soar, bem..., um tanto... incomum?

Vi então, em seus olhos. Alguma coisa tinha acontecido com o ins-petor recentemente que mudara de modo drástico seu paradigma. Eu não tinha ideia do que tinha afastado o detetive severo, trabalhador e que bus-cava sempre os fatos de sua visão pragmática do mundo. Mas ele também estava agora pensando “fora da caixa”.

Eu precisava que ele voltasse para sua caixa, o mais cedo possível. Fora da caixa nesta cidade era um lugar muito perigoso para se ficar.

Pensei rápido. Não tinha muito sobre o que refletir. – Inspetor – eu disse, suavizando e adocicando minha fala arrastada da Geórgia, “colo-cando o sulista”, como nós chamamos isso lá em casa, um tipo de mel verbal que disfarça o gosto insuportável de qualquer coisa na qual nós o passemos –, sei que você deve me considerar uma completa idiota, vindo até aqui e questionando suas técnicas investigativas, quando qualquer um pode ver que você é um especialista na matéria e eu não tenho nada de treinamento em trabalhos de detetive, e eu aprecio como você tem sido paciente comigo, mas não tenho mais nenhum interesse em sua investigação da morte da minha irmã. Vejo agora que você fez tudo o que podia para resolver o caso dela. Eu pretendia dar uma passada e falar com você antes de ir embora, mas... bem, a verdade é que estou me sentindo bastante envergonhada por causa de nossos encontros anteriores. Voltei ao beco outro dia e dei uma boa olhada em volta, sem chorar ou deixar minhas emoções me domina-rem, e percebi que a minha irmã não me deixou nenhuma pista. Foi luto, raiva e uma carga enorme de pensamento positivo da minha parte. Seja o que for que esteja marcado naquele beco, foi feito anos atrás.

– Seja o que for que está marcado naquele beco? – O’Duffy repetiu cuidadosamente, e eu sabia que ele estava lembrando como, semana passada ainda, fui exigente sobre o que exatamente tinha sido marcado naquele beco.

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– Realmente, eu quase não consegui entender aquilo. Podia ser qualquer coisa.

– É verdade, Srta. Lane?– Sim. E eu queria dizer para você também que não era a bolsa de

maquiagem dela. Eu entendi errado essa parte, também. Mamãe disse que deu para Alina a bolsa prateada e ela não era acolchoada. Mamãe queria que nós fôssemos capazes de distinguir uma bolsa da outra. Nós vivíamos discutindo sobre de quem era cada uma delas. O fato é que eu estava ten-tando desesperadamente achar alguma coisa, e peço desculpas por ter feito você perder seu tempo. Você estava certo quando disse que eu devia fazer minhas malas, voltar para casa e ajudar a minha família a superar esses tempos difíceis.

– Estou vendo – ele disse lentamente, e eu fiquei com medo de que ele realmente visse através de mim.

Funcionários civis mal pagos e cheios de trabalho não deviam faci-litar as coisas? Eu não estava pressionando mais, então por que ele não captava a mensagem e desistia? O caso de Alina tinha sido encerrado antes que eu chegasse; ele tinha se recusado a reabri-lo; e agora eu estaria per-dida se ele o reabrisse. Ele seria morto!

Abandonei o falar arrastado e adocicado. – Olhe, inspetor, o que eu estou dizendo é que eu desisti. Não estou pedindo para você nem para mais ninguém que continue a investigação. Sei que o seu departamento está sobrecarregado. Sei que não há pistas. Sei que o caso da minha irmã não foi solucionado e aceito que ele está encerrado.

– Muito... maduro repentinamente da sua parte, Srta. Lane.– A morte de uma irmã pode fazer uma garota amadurecer rapida-

mente. – Isso era verdade.– Suponho que isso signifique que você voltará para casa logo, então.– Amanhã – menti.– Por qual companhia aérea?– Continental.– Qual voo?– Nunca consigo me lembrar disso. Eu tenho escrito em algum

lugar. Lá em cima.– Que horas?

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– Onze e trinta e cinco.– Quem bateu em você?Pisquei, buscando uma resposta. Dificilmente eu poderia dizer que

perfurei um vampiro e que ele tentou me matar. – Eu caí. Nas escadas.– Precisa tomar cuidado. Escadas podem ser traiçoeiras. – Ele olhou

por toda a sala. – Que escadas?– Elas ficam nos fundos.– Como você machucou seu rosto? Bateu no corrimão?– Um-hum.– Quem é Barrons?– Hein?– Esta loja é chamada Barrons Livros e Miudezas. Eu não consegui

achar nada em registros públicos sobre um proprietário, datas de venda da construção ou mesmo uma licença de negócios. De fato, embora este endereço apareça em meus mapas, para todos os efeitos a construção não existe. Então, quem é Barrons?

– Eu sou o proprietário desta livraria. Por quê?Estremeci, abafando um suspiro. Que homem sorrateiro! Ele estava em

pé logo atrás de nós, a personificação da imobilidade, uma das mãos nas costas do sofá, cabelo escuro alisado para trás do rosto, sua expressão arrogante e fria. Nenhuma surpresa aqui. Barrons é arrogante e frio. Ele também é rico, forte, brilhante e um enigma ambulante. Muitas mulheres parecem achá-lo imen-samente sexy, também. Felizmente, eu não sou igual a muitas mulheres. Não gosto de perigo. Gosto de um homem com forte fibra moral. O mais perto que Barrons chega de fibra é quando anda pela alameda de cereais na mercearia.

Fiquei pensando há quanto tempo ele estava lá. Com ele, nunca é possível saber.

O inspetor levantou-se, parecendo ligeiramente confuso. Ele obser-vou o tamanho de Barrons, suas botas com biqueira de aço, o chão de madeira dura. Jericho Barrons é um homem alto e de constituição pode-rosa. Eu sabia que O’Duffy estava imaginando como poderia não ter ouvido sua aproximação, e já não perco tempo me preocupando com esse tipo de coisa. Para dizer a verdade, enquanto ele continuar me protegendo, vou continuar ignorando o fato de que Barrons não parece ser governado pelas leis naturais da física.

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– Eu gostaria de ver algum documento seu – resmungou o inspetor.Eu esperava com certeza que Barrons fosse jogar O’Duffy para fora

da loja. Ele não tinha obrigação legal nenhuma para cumprir e Barrons não tem muita tolerância com tolos. Na verdade, ele não tem tolerância nenhuma com eles, exceto comigo, e isso apenas porque ele precisa de mim para ajudá-lo a achar o Sinsar Dubh. Não que eu seja uma tola. Se tenho culpa de alguma coisa, é de ter o humor alegre e ensolarado de alguém que teve uma infância feliz, pais amorosos e longos verões com ventiladores de teto girando preguiçosamente e dramas de uma cidade pequena no Sul Profundo, coisas que – embora sejam ótimas – não preparam em nada alguém para uma vida fora disso.

Barrons deu ao inspetor um sorriso de lobo. – Certamente. – Tirou uma carteira do bolso interior de seu terno. Mostrou-a, mas não a soltou. – E o seu, inspetor?

O queixo do inspetor contraiu-se, mas ele cedeu.Enquanto os homens trocavam documentos, deslizei para mais

perto de O’Duffy para conseguir espiar a carteira de Barrons.As surpresas nunca iriam terminar? Ele tinha uma carteira de moto-

rista, como uma pessoa verdadeira. Cabelo: escuro. Olhos: castanhos. Altura: 1,92m. Peso: 111 kg. Seu aniversário – ele estava brincando? – é no Dia das Bruxas! Tinha 31 anos e sua inicial do meio era Z. Eu duvidava que ele fosse doador de órgãos.

– Você colocou um cubículo em Galway como seu endereço, Sr. Barrons. Você nasceu lá?

Eu tinha perguntado uma vez para Barrons sobre sua linhagem; ele tinha me dito pictos2 e bascos. Galway fica na Irlanda, algumas horas a oeste de Dublin.

– Não.– Onde?– Escócia.– Você não soa como um escocês.

2 Antigos habitantes da Escócia que estabeleceram seu próprio reino e lutaram contra os romanos na Britânia (Inglaterra). (N.T.)

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– Você não soa como um irlandês. No entanto, aqui está você, poli-ciando a Irlanda. Mas não é verdade que os ingleses têm tentado enfiar suas leis pelas goelas dos seus vizinhos por séculos, inspetor?

O’Duffy tinha um tique no olho. Não havia notado antes. – Há quanto tempo está em Dublin?

– Alguns anos. Você?– Sou eu quem está fazendo as perguntas.– Apenas porque eu estou aqui deixando que você as faça.– Eu posso levá-lo para a delegacia. Prefere isso?– Tente. – Uma única palavra que desafiava a Garda a tentar, seja

de maneira legal ou não. O sorriso que a acompanhava garantia fracasso. Imaginei o que ele faria se o inspetor tentasse, mesmo. Meu anfitrião ines-crutável parece possuir um saco de truques sem fundo.

O’Duffy sustentou o olhar de Barrons por mais tempo do que eu espe-rava que conseguisse. Queria dizer-lhe que não era vergonha desviar o olhar. Barrons tem alguma coisa que o resto de nós não tem. Não sei o que é, mas eu a sinto o tempo todo, especialmente quando estamos próximos. Por trás das roupas caras, do sotaque impossível de se localizar e do verniz refinado, existe algo que nunca emergiu completamente, pois não quer, gosta de ficar lá.

O inspetor aparentemente considerou mais sábio, ou talvez mais fácil, trocar informações. – Vivo em Dublin desde que tinha doze anos. Quando meu pai morreu, minha mãe casou-se de novo com um irlandês. Existe um homem lá em Chester que diz que o conhece, Sr. Barrons. O nome é Ryodan. Parece familiar?

– Srta. Lane, vá para o andar de cima – Barrons disse instantânea e suavemente.

– Estou perfeitamente bem aqui. – Quem era Ryodan e o que Barrons não queria que eu soubesse?

– Para cima. Escadas. Agora.Eu fechei meu rosto. Não precisava olhar para O’Duffy para saber

que ele estava me observando com um interesse agudo – e com pena. Ele estava pensando que Barrons era o nome do lance de escadas no qual caí. Eu odeio pena. Simpatia não é tão ruim. Simpatia significa “eu sei como você se sente, não é uma porcaria?” Já pena significa que pensam que você está derrotada.

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– Ele não me bateu – disse irritada. – Eu o teria matado se ele tivesse feito isso.

– Ela teria mesmo. Ela tem um temperamento! E é teimosa, também. Mas estamos trabalhando nisso, não é mesmo, Srta. Lane? – Barrons vol-tou seu sorriso de lobo para mim e indicou com a cabeça a direção do teto.

Algum dia eu vou pressionar Jericho Barrons o máximo que puder e verei o que acontece. Mas vou esperar um pouco, até estar mais forte. Até ter plena certeza de que terei um trunfo.

Posso ter vindo forçada para esta guerra, mas estou aprendendo a escolher as minhas batalhas.

Eu não vi Barrons no resto do dia.Soldado obediente, retirei-me para as trincheiras, como foi orde-

nado, e fiquei lá agachada. Nessas trincheiras, tive uma epifania. As pes-soas tratam você tão mal quanto você lhes permite fazê-lo.

Palavra-chave aqui: permite.Algumas pessoas são exceção, principalmente pais, melhores ami-

gos ou esposos, embora, durante meu trabalho como garçonete no The Brickyard, eu tenha visto casais fazerem coisas piores um com o outro em público do que eu faria privadamente com alguém que eu não conseguisse suportar. A conclusão é que a maior parte do mundo irá forçar você até onde você deixar. Barrons podia ter me mandado para o meu quarto, mas a idiota que saiu fui eu. Do que estava com medo? De que ele me machu-casse, me matasse? Dificilmente. Ele salvou minha vida semana passada. Ele precisa de mim. Por que eu tinha deixado ele me intimidar?

Estava desgostosa comigo. Ainda estava me comportando como MacKayla Lane, garçonete durante meio expediente, adoradora do sol no resto do dia e garota glamour o tempo todo. Minha luta recente com a morte tinha deixado claro que aquela garota não iria sobreviver aqui, afirmação evidenciada enfaticamente por dez unhas da mão quebradas e por fazer. Infelizmente, quando eu tive minha epifania e desci as escadas correndo de volta, Barrons e o inspetor tinham sumido.

Para piorar meu humor já bem ruim, a mulher que administra a livraria e ama loucamente Barrons sem ser correspondida tinha chegado. Muito bonita, voluptuosa, com pouco mais de cinquenta anos, Fiona não

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gosta nem um pouco de mim. Suspeito que se ela soubesse que Barrons me beijou semana passada ela ainda gostaria menos. Eu estava quase inconsciente quando ele o fez, mas eu me lembro. Tem sido impossível de esquecer.

Quando ela olhou para mim, depois de bater uns números no celu-lar, decidi que talvez ela soubesse. Seus olhos estavam venenosos, sua boca amuada destacando rugas delicadas. A cada inspirada rápida e curta, sua blusa rendilhada tremia sobre seu busto cheio, como se ela tivesse aca-bado de correr para algum lugar com muita pressa ou estivesse com muita aflição. – O que Jericho estava fazendo aqui hoje? – ela perguntou em um tom preocupado. – É domingo. Ele não é esperado aqui nos domin-gos. Não consigo imaginar nenhuma razão para ele passar por aqui. – Ela me examinou da cabeça aos pés, procurando, imagino, por sinais de um recente encontro amoroso: cabelo despenteado, talvez um botão faltando na minha blusa ou a calcinha negligenciada na pressa de se vestir, amontoada na perna do meu jeans. Eu fiz isso uma vez. Alina me salvou antes que mamãe me pegasse.

Quase gargalhei. Um encontro amoroso com Barrons? Caia na real!– O que você está fazendo aqui? – retruquei. Nada mais do bom

soldadinho. A livraria estava fechada e nenhum dos dois deveria estar aqui, atrapalhando ainda mais o meu descanso já chuvoso.

– Eu estava indo para o açougue quando vi Jericho saindo – ela disse com os dentes cerrados. – Quanto tempo ele ficou aqui? Onde você estava agora mesmo? O que vocês dois estavam fazendo antes de eu chegar? – O ciúme coloria de modo tão vibrante suas palavras que eu esperava que sua respiração fosse sair em pequenos sopros verdes. Como se conjurada pela acusação não dita de que estávamos fazendo sujeiras, uma visão de Jericho Barrons nu – escuro, despótico e provavelmente feroz ao extremo na cama – apareceu de repente na minha mente.

Achei a imagem surpreendentemente erótica. Perturbada, fiz uma rápida contagem mental do calendário. Eu estava ovulando. Isso explicava, pois eu fico totalmente excitada por três dias quando estou assim: no dia anterior, no próprio dia e no dia seguinte; um pequeno modo sorrateiro da Mãe Natureza assegurar a sobrevivência da raça humana, suponho. Eu observo garotos para os quais normalmente não olharia, especialmente os

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que usam jeans apertados, e me percebo tentando descobrir se eles são canhotos ou destros. Alina costumava rir e dizer: – Se você não consegue dizer, Junior, você não quer saber.

Alina. Deus, como eu sinto saudade dela.– Nada, Fiona – respondi. – Eu estava lá em cima.Ela apontou um dedo para mim, seus olhos perigosamente brilhan-

tes, e de repente tive medo de que ela fosse chorar. Se ela chorasse, eu iria perder toda a minha determinação. Não consigo aguentar mulheres mais velhas chorando. Vejo a minha mãe em todas elas.

Fiquei aliviada quando, em vez disso, ela gritou comigo. – Você acha que ele curou suas feridas porque você é importante para ele? Acha que ele se preocupa? Você não significa nada para ele! Você nunca poderá entender aquele homem e seus humores. Suas necessidades. Seus desejos. Você é uma criança estúpida, egoísta e ingênua – ela rosnou. – Vá para casa!

– Eu adoraria ir para casa – disparei de volta. – Infelizmente, não tenho essa escolha!

Ela abriu a boca, mas não entendi o que ela estava dizendo, porque já tinha me virado e estava correndo pelas portas que davam para a parte de residência privada da loja, sem nenhuma disposição de ser arrastada ainda mais para a discussão que ela queria tanto ter. Deixei-a gritando alguma coisa sobre o fato de ela também não ter escolhas.

Subi as escadas. Ontem, Barrons tinha me dito para tirar as talas. Eu tinha dito a ele que ossos não se curam tão rápido, mas meu braço estava coçando loucamente de novo, então fui ao banheiro ao lado de meu quarto e tirei-as.

Balancei meu pulso animadamente, então flexionei minha mão. Obviamente, não tinha quebrado meu braço, provavelmente apenas tor-cido. Sentia-o completo, mais forte do que nunca. Tirei as talas dos dedos para descobrir que eles também estavam ótimos. Havia uma pequena marca vermelha e preta em meu antebraço, como uma mancha de tinta. Enquanto a lavava, me olhei, virando de um lado para o outro, no espelho, desejando que meus machucados sarassem igualmente rápido. Eu tinha passado a maior parte da minha vida como uma loira atraente. Agora, uma garota de cabelos escuros e curtos, e bastante danificada, olhava de volta para mim. Parei de olhar.

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Enquanto estava convalescendo, Barrons tinha me dado um daque-les pequenos refrigeradores que jovens estudantes usam em dormitórios, e abastecido o meu estoque de salgadinhos. Abri um refrigerante e me esparramei pela cama. Li e naveguei na net o resto do dia, tentando apren-der sobre toda essa bagunça paranormal, que passei os primeiros 22 anos da minha vida depreciando e ignorando.

Já fazia uma semana que estava esperando pela chegada do exército do Inferno. Não era estúpida o bastante para acreditar que essa pequena calmaria fosse alguma coisa que não a bonança antes da tempestade.

Mallucé estava realmente morto? Embora tivesse perfurado o vam-piro de olhos cor de cidra durante meu confronto abortado com o Senhor Mestre, e a última coisa que tenha visto antes de perder a consciência, por causa dos ferimentos que ele me causou em retaliação, foi Barrons empurrá-lo com força contra uma parede, não estava convencida de seu fim e não iria estar até ouvir alguma coisa dos adoradores de olhar vazio que abarrotavam até transbordar a mansão gótica do vampiro, no lado sul de Dublin. A serviço do Senhor Mestre – ao mesmo tempo em que traía e roubava relíquias poderosas do líder Unseelie –, Mallucé tinha tentado me matar para evitar que eu denunciasse seu segredo sujo. Se ele ainda estava vivo, eu não tinha dúvida de que ele viria atrás de mim outra vez, provavelmente logo.

Mallucé não era a única preocupação em minha mente. O Senhor Mestre era realmente incapaz de passar pelas armadilhas antigas feitas com sangue e pedras em torno da livraria, como Barrons tinha me assegu-rado? Quem estava dirigindo o carro que transportava o mal dominador de mentes do Sinsar Dubh e passou pela livraria semana passada? Onde o pegaram? Por quê? O que estavam fazendo agora todos os Unseelie recen-temente libertados pelo Senhor Mestre? E exatamente quão responsável eu era por eles? Ser uma das poucas pessoas que pode fazer algo a respeito de um problema torna você responsável por consertá-lo?

Era meia-noite antes de eu ir dormir, porta do quarto trancada, jane-las fechadas totalmente e luzes brilhando.

No instante em que abri meus olhos, percebi que alguma coisa estava errada.