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FERNANDO HÉLIO TAVARES DE BARROS
TALIAN, DO SUL PARA AMAZÔNIA: A COMUNIDADE ÍTALO-GAÚCHA-
NORTE-MATO-GROSSENSE E SEUS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO COM A
LÍNGUA DE ORIGEM, O VÊNETO SUL-RIO-GRANDENSE
SINOP
2012
FERNANDO HÉLIO TAVARES DE BARROS
TALIAN, DO SUL PARA AMAZÔNIA: A COMUNIDADE ÍTALO-GAÚCHA-
NORTE-MATO-GROSSENSE E SEUS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO COM A
LÍNGUA DE ORIGEM, O VÊNETO SUL-RIO-GRANDENSE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
à Banca Examinadora do curso de Letras, da
Universidade do Estado de Mato Grosso –
UNEMAT, Campus de Sinop, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Licenciatura Plena em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Tânia Pitombo de
Oliveira
SINOP
2012
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Dedico em memória da minha bisnona Purcina Ortencia e nona Mariana, grandes
vitoriosas, com os filhos migraram corajosamente para o Paraná e de lá ao Norte de
Mato Grosso, que de farta polenta aos filhos e netos, com muito amor e carinho, nunca
deixaram faltar. Também à comunidade ítalo-brasileira, onde está incluída a ítalo-
gaúcha-norte-mato-grossense.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a minha família, em especial meu irmão Cássio e minha mãe Luzia,
a minha madrinha Zélia pela força e dedicação para me ver hoje, um linguista.
A minha cara orientadora Tânia Pitombo de Oliveira, pela dedicação, atenção, apoio e paixão
pelos estudos linguísticos discursivos em defesa da diversidade linguística deste país.
Agradeço a amizade que construímos durante minha passagem por esta universidade e
durante esta esplêndida orientação.
À Marli Arboito, pela amizade construída neste tempo de pesquisa em que o apoio, a
companhia e a força foram divididas em talian: muitas risadas, sorrisos, sustos, tristezas,
alegrias, histórias e cantorias pelas estradas [...] “cosa sarà questa mérica. Mérica, mérica,
mérica. Cosa sarà questa mérica, l‟è un bel massolin de fior”. Obrigado por ter acreditado
nesse projeto.
Ao Profº Honório Tonial de Erechim – RS, pela dedicação em manter o talian presente na
diversidade linguística brasileira, agradeço-o pelo reconhecimento do valor desta pesquisa.
Aos meus irmãos Fernando Vargas e Rodrigo Vargas, que sempre torceram por mim.
Ao clube da terceira idade onde eu, o jovem guri da turma, fui muito bem recebido e fiz
inúmeras amizades que por mim serão sempre preservadas.
À Profa Dra. Rosa Belli de Londrina – PR, pela amizade, apoio e interesse em ajudar no
desenvolvimento dos meus estudos geo e sociolinguísticos.
Às professoras Ma. Neusa Inês Philippsen, Dra. Cristinne Leus Tomé e Ma. Marilda Fátima
Dias Pereira, pelo companherismo, carinho, apoio, amizade e paixão pelos estudos
linguísticos.
À professora de Língua Italiana da UNEMAT – Campus Sinop, Dra. Adriana Lins Precioso,
pelo belo e honroso trabalho. Agradeço a oportunidade por proporcionar a nós acadêmicos
conviver valorosos momentos com a língua e cultura italiana.
A todos os colegas de Letras – UNEMAT – Campus Sinop, a quem guardo no coração a
lembrança de cada um, diálogo, reflexão, riso e sorriso, indignação, vitória. Obrigado por
fazer este curso, o melhor do estado.
À Universidade do Estado de Mato Grosso, por proporcionar esta área de estudos aos sujeitos
norte mato-grossenses.
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Fenòmeno dea umanità
El nostro imigrante talian
Resoluto a viaiar lontan
Na vera aventura el fará.
Al bosco ignoto e bruto,
Na granda speransa el fruto
De na necessità natural
Oci ben verti el bon segnal.
“H”Na letra muta del ABC
El incalmo, no só mia parché
La marca dea so identità?
I perìcoli dea strania natura
O le bestie che le fà paura ?
Taiar quele piante grosse
A sfidar le fiache forse
Viver isolà, sensa recursi
A passar tanta paura, fursi
Ricamo del laoro penoso
El sifolar scuro misterioso!
Saludar un novo e bel stato
Dirghe adio a ndove son nato
E ndar abitar al Mato Grosso
Bela tera, deventar comosso!
A mostrar la nostra talianità
Reunir na granda comunità
Registrar novi paesi e bele cità
Orassion de um zóvine studiante
Sempre drio vardar distante!!!
Erechim - RS, abril de 2012
Honório Tonial
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BARROS, Fernando Hélio Tavares. O talian, do sul para Amazônia: a comunidade ítalo-
gaúcha-norte-mato-grossense e seus processos de identificação com sua língua de
origem, o Vêneto Sul-rio-grandense. 2012. 95f. Trabalho de Conclusão de Curso. –
UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso. Campus Universitário de Sinop.
RESUMO: Este estudo se inscreve no espaço de pesquisas linguísticas, na linha dos estudos
discursivos e sociolinguísticos referentes às línguas minoritárias de imigração no espaço
geográfico brasileiro, em particular na Região Norte do Estado de Mato Grosso (RNEMT).
Para a análise do corpus recolhido por meio de entrevistas gravadas em áudio, utilizamos a
metodologia da Análise de Discurso de linha francesa filiada aos estudos de Michel Pêcheux,
com o objetivo de compreender o funcionamento discursivo da comunidade ítalo-gaúcha-
norte-mato-grossense (composta por sujeitos que migraram da Região Sul do Brasil para a
Amazônia norte mato-grossense e descendentes) acerca da representação da língua de origem,
o vêneto sul-rio-grandense (ou talian), e os outros lugares construídos por uma memória e
estruturados num contexto entre-línguas. Esse estudo é de grande importância no sentido de
contribuir nos estudos de processos de identificação num contexto de região de fronteira
agrícola na Amazônia norte mato-grossense frente ao multiculturalismo, além de se inscrever
nas reflexões sobre as políticas de inclusão linguística e cultural deste país, uma vez que este
trabalho busca compreender como o sujeito é marcado por uma memória construída por sua
língua de origem familiar.
PALAVRAS-CHAVE: Língua de imigração, vêneto sul-rio-grandense / talian, ítalo-gaúcho-
norte-mato-grossense, Sociolinguística, Análise de Discurso.
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BARROS, Fernando Hélio Tavares. El talian, del sul par la Amazonia: la comunità ítalo-
gaúcha-norte-mato-grossense e suie processi de identificassion con la so língua de
origene, el Veneto Sul rio grandense. 2012. 95f. Laoro de Conclusion de Curso. –
UNEMAT – Università del Stato de Mato Grosso. Campus Universitário de Sinop - MT.
SOMARIO: Questa analise la sucede ntel ressinto dele risserche linguìstiche ntel sforso del
studio discursivo e sociolinguístico riferente a la lingua minoritaria de imigrassion ntel spasso
geográfico brasilian, particolarmente a la Region Norte del Stato de Mato
Grosso(RNEMT).Par el studio del corpus racolto par meso de interviste gravade in audio
gavemo doparà la metodologia dea Analise del Discorso, de origine francesa sotomessa ai
studii de Michel Pêcheux, ogetivando la compreension del foncionamento discorsivo dea
comunità Ítalo-gaucha-norte-matogrossense (composta de persone imigrade de region Sul
del Brasíl al destino dea Amazônia norte matogrosense e i so dessendenti), a rispeto dea
lingua familiar, el Veneto Sul Riograndense, denominà talian, e altri posti construti a partir de
na memória e struturadi ntel contesto interlingue.Questa risserca la deventa de granda
importansa par iutar ntel studio del processo de identificassion ntel contesto de frontiera
agrícola ntea Amazônia norte matogrossense intra el culturalismo sicome sotoscriverse ntele
reflession a rispeto dea política de inclusion linguística e cultural del nostro paese, visto che
questo laoro el risserca capir come el sugeto l‟è marca par na memoria edificada par la so
lingua familiar.
PAROLE-CIAVE: Língue de imigrasson, Veneto Sul Riograndense / talian, ítalo-gaúcho-
norte-mato-grossense, Sóciolinguística, Analise del Discorso.
Tradução: Honório Tonial,
Erechim - RS, Junho de 2012
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BARROS, Fernando Hélio Tavares de. Le talian, du sud à l'Amazonie: la communauté
italien-gaúcho-nord-mato-grossense et ses processus d'identification avec leur langue
maternelle, le Vénétien Sud-rio-grandense. En 2012. 95f. Travail de terminaison de cours. -
UNEMAT - Université de l'État du Mato Grosso. Campus de Sinop.
RÉSUMÉ: Cette étude s'inscrit dans le domaine de la recherche linguistique, en ligne avec
les études discursives et sociolinguistique concernant les langues minoritaires de
l'immigration dans l'espace géographique du Brésil, en particulier dans le nord du Mato
Grosso (RNEMT). Pour l'analyse du corpus recueilli au moyen d'entrevues enregistrées en
audio, nous utilisons la méthodologie de l'Analyse du Discours française affilié à des études
de Michel Pêcheux, afin de comprendre le fonctionnement du discours de la communauté
italien-gaúcho-nord-mato-grossense (composée d'individus qui ont migré du sud du Brésil
vers l‟Amazonie au nord du Mato Grosso et les descendents) au sujet de la représentation de
la langue source, le Vénétien Sud-riograndense (ou talian), et d'autres lieux construits par une
mémoire et entre un contexte des langues-structurés. Cette étude est d'une grande importance
en aidant l'étude des processus d'identification dans le contexte des frontières agricoles au
long de l'Amazonie dans le nord du Mato Grosso en face du multiculturalisme, et de s'inscrire
dans les réflexions sur la politique de l'inclusion et la langue culturelle de ce pays, un depuis
ce travail vise à comprendre comment le sujet est marquée par une mémoire intégrée dans leur
langue d'origine familiale.
MOTS-CLÉS: Langue d'immigration, Vénétien Sud-rio-grandense / talian, italien-gaúcho-
nord-mato-grossense, la Sociolinguistique, l'Analyse du Discours.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01: Áreas de colonização italiana no Rio Grande do Sul
Figura 02: Do sul para a Amazônia, a partida em direção ao Mato Grosso
Figura 03: Identidade gaúcha-norte-mato-grossense
Figura 04: Região Norte do Estado de Mato Grosso
Figura 05: Corrente migratória
Figura 06: Coral Bello Vivere, ACIVE, Vera - MT
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LISTA DE TABELAS
Tabela 01: características dos informantes migrantes
Tabela 02: características dos informantes descendentes
Tabela 03: enfrentamento discursivo
Tabela 04: imaginário entre-línguas
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AD: Análise de Discurso
ACIVE: Associação Italiana de Vera - MT
CONOMALI: Colonizadora Noroeste Mato-grossense S/A
FD: Formação discursiva
FI: Formação imaginária
MT: Mato Grosso
PR: Paraná
RCI : Região de Colonização Italiana do Nordeste do Rio Grande do Sul
RNEMT : Região Norte do Estado de Mato Grosso
RS: Rio Grande do Sul
SC: Santa Catarina
SD: Sequência discursiva
SIM : Sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense migrante
SID : Sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense descendente
UNEMAT: Universidade do Estado de Mato Grosso
UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas - São Paulo.
LABEURB : Laboratório de Estudos Urbanos – UNICAMP.
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LISTA DE SÍMBOLOS DAS TRANSCRIÇÕES
... – pausa curta
[ ] – Comentário do pesquisador
[...] – supressão de determinado trecho da fala do sujeito entrevistado
AA – (maiúscula) – entoação enfática
(inquiridor) – Documentador / pesquisador
(informante) – sujeito entrevistado
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15
1. CAPÍTULO I: CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA .................................................... 18
1.1 Breve apresentação da Análise de discurso (AD) .......................................................... 18
1.2 Memória discursiva, condições de produção, formação discursiva, posição-sujeito,
formação imaginária e esquecimento ................................................................................... 19
1.3 Língua de madeira e língua de vento: uma reflexão de Pêcheux e Gadet ................... 20
1.4 O imaginário atuando numa relação entre-línguas e entre-sujeitos ............................ 21
1.5 Processos de identificação: o imaginário sobre língua e sujeito-identidade................ 22
2.CAPÍTULO II: O TALIAN TECENDO SEU FIO HISTÓRICO: DO SUL PARA A
AMAZÔNIA. .......................................................................................................................... 23
2.2 Língua, dialeto e variedade .............................................................................................. 23
2.3 Língua oficial, língua minoritária e língua de imigração ............................................. 24
2.4 O percurso do talian: língua, sujeito, memória e interdição linguística ...................... 24
2.5 Do sul para a Amazônia, a migração sulista para a RNEMT ...................................... 29
2.6 A composição identitária norte mato-grossense ............................................................ 32
2.7 O elemento ítalo-gaúcho na RNEMT ............................................................................. 35
3. CAPÍTULO III: CORPUS, METODOLOGIA E ANÁLISE ......................................... 37
3.1 A constituição do corpus e a metodologia de análise ..................................................... 37
3.2 As análises ......................................................................................................................... 39
3.2.1 PLANO DISCURSIVO 1 – Imaginário entre-línguas................................................ 39
3.2.1.1 RECORTE 1 – Imaginário de Língua Vêneta Sul-rio-grandense (ou talian) ....... 39
3.2.1.1.1 Geração migrante .................................................................................................... 40
3.2.1.1.2 Geração descendente ............................................................................................... 44
3.2.1.1.3 Sub-recorte 1 – O futuro da língua ........................................................................ 47
3.2.1.1.3.1 Geração migrante ................................................................................................. 47
3.2.1.1.3.2 Geração descendente ............................................................................................ 49
3.2.1.2 RECORTE 2 : Imaginário da Língua Portuguesa / Brasileira .............................. 50
3.2.1.2.1 Geração migrante .................................................................................................... 50
3.2.1.2.2 Geração descendente ............................................................................................... 51
3.2.2 PLANO DISCURSIVO 2 - Imaginário entre-sujeitos ............................................... 52
3.2.2.1 RECORTE 1 - Imaginário de sujeito ítalo-gaúcho ................................................. 52
3.2.2.1.1 Geração migrante .................................................................................................... 52
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3.2.2.1.2 Geração descendente ............................................................................................... 56
3.2.2.2 RECORTE 2: Imaginário de sujeito brasileiro ...................................................... 57
3.2.2.2.1 Geração migrante .................................................................................................... 57
3.2.2.2.2 Geração Descendente .............................................................................................. 62
3.2.3 PLANO DISCURSIVO 3 - Lugares da língua de origem e memória ....................... 62
3.2.3.1 RECORTE 1 - Família ............................................................................................... 63
3.2.3.1.1 Geração migrante .................................................................................................... 63
3.2.3.1.2 Geração descendente ............................................................................................... 64
3.2.3.2 RECORTE 2 - Culinária ............................................................................................ 65
3.2.3.3 RECORTE 3 - Religião .............................................................................................. 66
3.2.3.3.1 Geração migrante .................................................................................................... 66
3.2.3.3.2 Geração descendente ............................................................................................... 68
3.2.3.4 RECORTE 4 – Escola ................................................................................................ 69
3.2.3.5 RECORTE 5 - Ditadura e interdição linguística ..................................................... 71
3.2.3.6 RECORTE 6 - Povo migrante ................................................................................... 75
3.2.3.7 RECORTE 7 - Mato Grosso ...................................................................................... 76
3.2.3.7.1 Geração migrante .................................................................................................... 76
3.2.3.7.2 Geração descendente ............................................................................................... 78
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 82
APÊNDICE A – Material fotográfico recolhido nas entrevistas ........................................ 86
APÊNDICE B – Guia de entrevistas ..................................................................................... 90
ANEXOS..................................................................................................................................85
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INTRODUÇÃO
Esta pesquisa constitui uma análise crítica dos processos de identificação do sujeito
ítalo-gaúcho migrante, radicado na Região Norte do Estado de Mato Grosso (doravante
RNEMT1), e descendente com sua língua de origem, o vêneto sul-riograndense (ou talian).
Tal estudo orienta-se por meio dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso (doravante
AD) de linha francesa e da Sociolinguística.
O interesse em desenvolver este estudo deu-se por meio do contato com a comunidade
e pelo afeto com minha memória familiar materna, na qual o elemento ítalo-brasileiro
constituiu a imagem já silenciada pelo tempo.
Investigando sobre a constituição identitária da colonização da região em questão,
constatamos a existência de contextos plurilíngues no que tange à existência de línguas
minoritárias de imigração. Observamos, até o momento, que as línguas de imigração presentes
na região norte mato-grossense têm origem na Região Sul do país, sendo que uma delas é o
talian, falado pela comunidade ítalo-gaúcha.
No sentido de dar início aos estudos da linguagem na temática da diversidade
linguística e línguas minoritárias de imigração, buscamos compreender o que habita no
discurso da comunidade escolhida, a ítalo-gaúcha-norte-mato-gronsense, no que se refere a
seus processos de identificação com a língua de origem.
Acreditamos na relevância deste trabalho no que tange na contribuição aos estudos
relacionados aos processos de identificação e identidade num contexto de região de fronteira
agrícola Amazônica norte mato-grossense frente multiculturalismo, além disso, segundo
Pertile (2009, p.36) a pesquisa “[...] sobre línguas de imigração configura-se [...] emergente e
necessária, tendo em vista que seus estudos são ainda escassos e ocupam um papel marginal”.
Ao observar a comunidade ítalo-gaúcha na RNEMT se estruturaram as seguintes
problemáticas: Como e com quais condições de vitalidade se encontra a língua talian nessa
comunidade? O que habita no imaginário desta comunidade a respeito de sua língua de
origem? Há diferença na discursividade da geração ítalo-gaúcha migrante para a descendente
no que se refere aos processos de identificação com a sua língua de origem?
Diante disso e cientes de que “[...] o sujeito se constitui na e pela linguagem e que não
há como separar o sujeito de sua história, nem da sua memória” (ROVERSI, 2011, p.14),
ensejamos, com este estudo, fazer uma análise do discurso do sujeito ítalo-gaúcho migrante e
1 Sigla de nossa autoria
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seu descendente nascidos na RNEMT, marcados por uma história de migração, colonização e
elo com a origem identitária e linguística. Nosso objetivo é através das análises levantar a
discursividade dos sujeitos das gerações correspondentes, apontando suas re-significações e
imaginários de língua e sujeito.
Organizamos neste trabalho três capítulos. No primeiro apresentamos alguns
pressupostos da AD, necessário para a tessitura de nossas análises. Nesse capítulo
desenvolvemos uma breve apresentação da Análise de Discurso. Em seguida, trabalhamos as
noções teóricas de memória discursiva, condições de produção, posição-sujeito e formação
imaginária. Logo após, apresentamos a dicotomia entre língua de madeira e língua de vento,
trata-se de uma reflexão de Françoise Gadet e Michel Pêcheux (2004), e conceituamos o papel
do imaginário numa relação entre-línguas e entre-sujeitos, e contextualizamos os processos de
identificação inseridos no papel do imaginário sobre língua e sujeito-identidade.
O segundo capítulo situa conceitos relacionados aos estudos sociolinguísticos, e que
são de suma importância para contextualizar o objeto de pesquisa: a língua. Em seguida, há
uma breve contextualização da origem e percurso do talian como língua minoritária de
imigração no Brasil, além de importantes informações sócio-históricas da constituição do
espaço da pesquisa.
O terceiro capítulo apresenta a metodologia utilizada para a coleta do material
discursivo, a materialidade do corpus e discorre a análise refletindo os pressupostos teóricos
apresentados anteriormente.
Nossas análises estão divididas em três recortes: Recorte 1: Imaginário entre-línguas,
este é subdividido em: Imaginário da língua vêneta sul-riograndense (talian), onde se inclui o
futuro da língua, e o Imaginário da Língua Portuguesa / Brasileira; Recorte 2: Imaginário
entre-sujeitos: Imaginário do sujeito ítalo-gaúcho e, em seguida, Imaginário do sujeito
brasileiro2. O recorte 3 é reservado para outros lugares relacionados à língua que apareceram
no discurso dos entrevistados, portanto foram divididos em sete sub-recortes: família,
culinária, religião, escola, ditadura e interdição linguística, povo migrante e Mato Grosso.
Ao refletir as análises propostas, compreendemos que a geração ítalo-gaúcha migrante
possui processos de identificação com maior proximidade à língua de origem, o talian, sendo
que a geração descendente se afasta, pois itens como a não transmissão linguística do talian, a
2 O termo sujeito brasileiro é pensado pelo viés discursivo-imagético do ítalo-gaúcho. Ao pensarmos
juridicamente, todos os sujeitos da pesquisa se inscrevem como brasileiros, mas discursivamente e refletindo
sobre os processos de identificação, o sujeito brasileiro utilizado neste trabalho refere-se àquele construído pelo
imaginário do sujeito ítalo-gaúcho falante do talian, e se distancia da noção de cidadania jurídica construída pelo
Estado, de direitos e deveres.
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urbanização, a migração para um espaço próximo a multiculturalidade e o desprestígio da
língua de origem contribuem para este afastamento.
18
1. CAPÍTULO I: CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA
A Análise de Discurso não pretende se instituir em especialista da
interpretação, dominando „o‟ sentido dos textos, mas somente
construir procedimentos expondo o olhar-leitor a níveis opacos à
ação estratégica de um sujeito (...).
Michel Pêcheux 3
Neste capítulo contextualizamos a historicidade e conceitos teóricos dos estudos da
Análise de Discurso.
1.1 Breve apresentação da Análise de discurso (AD)
Reformulando pesquisas anteriores4, é a partir de 1960 que surgem os estudos que
tomam o discurso como objeto reflexão, trata-se da Análise de Discurso (doravante
denominada AD) de linha francesa iniciada pelos trabalhos científicos do filósofo Michel
Pêcheux. Segundo Orlandi (2000, p.19), a AD “se constitui no espaço de questões criadas
pela relação entre três domínios disciplinares que são ao mesmo tempo uma ruptura com o
século XIX: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise”.
Para Roversi (2011, p.23), as filiações da AD se deram pela releitura feita por Lacan
da Psicanálise pensada por Freud, do qual se “[...] herdou a idéia de sujeito afetado pelo
inconsciente”; logo após a Linguística desenvolvida por Saussure, em que apresenta “[...] o
conceito de língua enquanto sistema e a reformula, afirmando que a língua não é transparente,
por isso passível de diversas interpretações”, e, por último, o Marxismo que contribui com a
ideia de social. No entanto, segundo Orlandi (2000, p.20), a AD:
[...] não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pela Teoria
Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a
Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo
perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como,
considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada
ao inconsciente sem ser absovida por ele.
A Análise de Discurso trata exclusivamente do discurso. Segundo Orlandi (2000,
p.15), a língua e a gramática se constituem como interessantes para os estudos discursivos,
porém o objeto da AD é o discurso, que, para autora, é a “[...] palavra em movimento, prática
da linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando”. Entendemos o homem
falando, como um ser que se inscreve na história para produzir discurso.
3 Apud Pitombo-Oliveira (2007, p.07)
4 Parágrafo baseado na reflexão de Roversi (2011, p.22)
19
1.2 Memória discursiva, condições de produção, formação discursiva, posição-
sujeito, formação imaginária e esquecimento
Para compreendermos como ocorrem os processos de identificação no discurso do
ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense migrante e descendente pertencente à geração nascida no
norte de Mato Grosso, é necessário entender os conceitos de condições de produção, formação
discursiva, interdiscurso, posição sujeito e formação imaginária.
Entendemos memória discursiva como “[...] o saber discursivo que torna possível todo
dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,
sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2000, p. 31).
Segundo Pêcheux (1997 apud ROVERSI, 2011, p.31), “[...] um discurso é sempre
pronunciado a partir de condições de produção dadas”. Sendo que, para Orlandi (2000, p.30),
as condições de produção “[...] compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação.”
Ainda segundo a autora (idem, p.30), a memória também deve ser considerada parte da
produção discursiva, uma vez que essa produção se faz valer por meio da maneira como é
acionado o interdiscurso. Segundo Roversi (2011, p. 32), “[...] a memória discursiva intervém
e seleciona os já-ditos que deixam rastros no discurso”, considerando que neste estudo temos
como objeto de análise o discurso do sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense.
Para Orlandi (2000, p.30), pode-se considerar as condições de produção de maneira
estrita, onde “[...] as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato”, como também o
contexto amplo, onde se “[...] incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.”
Também vamos de encontro com a definição feita por Helena Brandão (1997 apud
ROVERSI, 2011, p.31) de condições de produção, segundo as quais “[...] constituem a
instância verbal de produção do discurso: o contexto histórico-social, os interlocutores, o
lugar de onde falam, a imagem que fazem de si e do outro e do referente”. No caso dos
sujeitos da pesquisa, os ítalo-gaúcho-norte-mato-grossenses falam da posição sujeitos
migrante ou descendente para um interlocutor pesquisador bilíngue em língua talian e
portuguesa, no espaço e contexto de comunidade ítalo-gaúcha no norte mato-grossense, como
habitantes desta região, cujas famílias têm memória interligada à região de origem (Região
Sul) e com a língua de origem, o talian.
Para conceituar formação discursiva (doravante FD), temos a designação feita por
Ferreira (2005 apud ROVERSI, 2011, p. 28) na qual FD é
[...] matriz de sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que
não pode e não deve ser dito (COURTINE, 1994), funcionando como um lugar de
articulação entre língua e discurso. Uma FD é definida a partir de seu interdiscurso
20
e, entre formações discursivas distintas, podem ser estabelecidas tanto relações de
conflito quanto de aliança. Esta noção de FD deriva do conceito foucaulteano (1987)
que diz que sempre que se puder definir, entre um certo número de enunciados, uma
regularidade, se estará diante de uma formação discursiva. Na AD este conceito é
reformulado e aparece associado à noção de formação imaginária.
Portanto, para o sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense, seu discurso enquanto
posição-sujeito migrante será baseado nas FDs que gravitam sua posição como migrante.
Caso esse sujeito estiver na posição descendente (nascido na RNEMT) e enunciar da posição
enquanto ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense descendente, a FD que cerca essa posição
determinará o que pode e o que não pode ser dito enquanto posição-sujeito descendente.
O esquecimento, segundo Orlandi (2000, p.36),
[...] é parte da constituição dos sujeitos e na produção de sentidos. Os sujeitos
„esquecem‟ que já foi dito – e este não é um esquecimento voluntário – para, ao se
identificarem com o que dizem, se construírem em sujeitos. É assim que suas
palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam retomando palavras já
existentes como se elas se originassem neles e é assim que sentidos e sujeitos estão
sempre em movimento, significando sempre de muitas e variadas maneiras. Sempre
as mesmas, mas ao mesmo tempo, sempre outras.
No que se refere às formações imaginárias (doravante FI), entender o mecanismo
produtor de imagens se constitui como fundamental. De acordo com Orlandi (2000, p.40),
este mecanismo é o responsável por produzir “[...] imagens dos sujeitos, assim como do
objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica.” Ainda segundo a autora (idem,
p.40), “[...] são as imagens que constituem as diferentes posições”. Portanto, nas palavras da
autora, a produção de imagens se faz de tal maneira que o que funciona no discurso não é o
ítalo-gaúcho ou o sujeito brasileiro visto empiricamente, mas um ou outro “[...] enquanto
posição discursiva produzida pelas formações imaginárias.” É neste contexto analítico que
podemos encontrar um sujeito ítalo-gaúcho falando do lugar de um brasileiro/ gaúcho/ norte
mato-grossense num contexto de RNEMT ou de Brasil, ou do lugar de descendente de
imigrantes italianos, com estima a sua origem e língua.
1.3 Língua de madeira e língua de vento: uma reflexão de Pêcheux e Gadet
Neste estudo tomamos de Gadet e Pêcheux (2004, p.24) os conceitos de língua para
refletirmos o discurso do sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense em sua relação entre-
línguas, ou seja, na sua relação entre o talian e o português brasileiro na RNEMT.
Os conceitos propostos por esses dois teóricos franceses em A língua inatingível
(2004,p.38), segundo Roversi (2011, p.47), “[...] trazem o conceito de língua de direito e
língua de vida, ou „figura jurídica do Direito‟ e „figura biológica da vida”
21
Para Gadet e Pêcheux (2004, p.24), a língua de direito é “[...] maneira política de
denegar política: espaço do artifício e da dupla linguagem, linguagem de classe dotada de
senha e na qual para „bom entendedor‟ meia palavra basta. A língua de direito é uma língua
de madeira (grifo nosso)”. Na nossa concepção trata-se da língua oficial, “[...] a língua
nacional, uma vez que faz parte das políticas do Estado”(ROVERSI, 2011, p.47), no contexto
desta pesquisa, a língua portuguesa, embora outras línguas também dividam esse posto com o
português, como é o caso do Inglês, no status de língua do comércio. Do outro lado deste
dualismo conceitual, encontramos a língua de vida, que os autores também denominam de
“língua de vento”.
A língua de vento está “do lado da vida” (grifo nosso), é a língua do “fluxo natural
das palavras” (GADET; PÊCHEUX, 2004, p.51) onde “[...] as múltiplas práticas
fragmentárias, indefinidamente reelaboradas e aperfeiçoadas pelas quais a divisão estratégica
burguesa encontra o caminho de seu exercício” (GADET; PÊCHEUX, 2004, p.38). A língua
de vida e/ou vento é compreendida nesta pesquisa como a língua que está assujeitada à
condição de minoritária, ou seja, é a língua do âmbito social, da origem familiar, a língua do
lar e do afeto, porém, concordando com Roversi (2011, p.47), também é a língua que “falha”,
que produz o “equívoco”, que funciona no silenciamento. Entendemos que o talian está na
condição de língua de vida e/ou “língua de vento”, pois ela se encontra numa posição
linguística de maior restrição à espaços como a escola, o serviço público e a mídia, sendo
ainda reservada ao lar, à informalidade familiar e comunitária.
1.4 O imaginário atuando numa relação entre-línguas e entre-sujeitos
Encontramos nesta pesquisa sujeitos que mantêm uma relação entre-línguas (entre-
culturas) e entre-sujeitos, ou seja, processos de identificação que podem se aproximar ou se
distanciar de práticas da origem sociocultural. Considerando que língua é sujeito, entendemos
que este estudo compreende a memória de descendentes de imigrantes que tem como língua
de origem familiar o talian (ou vêneto sul-rio-grandense), no entanto nascidos num país onde
a língua portuguesa é a oficial.
Em nossa pesquisa a relação entre-línguas é vista como uma relação produzida pelo
dual percurso dialético de imbricação da língua minoritária talian com a língua oficial, o
português, onde os sujeitos da nossa pesquisa, que vivem em um contexto de comunidade
ítalo-gaúcha na RNEMT, sejam atravessados e constituídos por ambas as línguas, mesmo um
sujeito que se considere monlíngue, pois sua memória é estruturada por uma historicidade
familiar marcada pelo bilinguismo.
22
1.5 Processos de identificação: o imaginário sobre língua e sujeito-identidade.
Segundo Chnaiderman (1998 apud ROVERSI, 2011, p.38), identidade é “a pessoa
total de um indivíduo na realidade, inclusive o próprio corpo e a própria organização psíquica;
a „própria pessoa‟ de alguém, em contraste com „outras pessoas‟ ou objetos situados fora
desse alguém”.
Para Mittman (2004 apud ROVERSI, 2011, p.38), as palavras identidade, idêntico e
identificação têm como origem comum o termo idem, que do latim significa “o mesmo, ou
identicus, semelhante”, e, ainda, se baseando nas noções de identidade utilizadas por
Aristóteles e Hall (2004 apud ROVERSI, 2011, p.38), a constituição da identidade do sujeito
não é apenas “[...] pela relação com o idêntico, aquele que repete (Formação discursiva). Ela
se constitui pela relação com o Outro, isto é, com o interdiscurso”.
Portanto, para que o processo de identificação aconteça, de acordo com Roversi (2011,
p.39), é necessário que haja algo que “[...] cause um atravessamento ideológico”, trata-se do
interdiscurso que nos constitui “[...] inconscientemente, no âmbito do simbólico, e o outro,
que faz parte do nosso imaginário.” A inscrição à uma ou outra identificação, a uma formação
discursiva se dá por meio da prática discursiva, esta, para Foucault (1969 apud Maingueneau,
1976, p.142), é definida como “[...] ensemble de règles anonymes, historiques, toujours
déterminées dans le temps et l‟espace qui ont défini à une époque donnée, et pour une aire
sociale, économique, géographique ou linguistique donnée, les conditions d‟exercice de la
fonction énonciative”.5
Assim, no contexto de nossa pesquisa os sujeitos entrevistados são atravessados
ideologicamente por uma história de vida constituída por um contexto entre línguas e entre
sujeitos proporcionando imaginários que recorrem a essa temporalidade.
5 “[...] conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e espaço que se define a uma
época dada, e por uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da
função enunciativa”. (tradução nossa)
23
2. CAPÍTULO II: O TALIAN TECENDO SEU FIO HISTÓRICO: DO SUL PARA A
AMAZÔNIA
Uma língua significa muito mais do que uma lista de palavras ou regras gramaticais. É
também um sinal de identidade, e atrás de cada palavra esconde-se uma história inteira
e, principalmente, seres humanos com pensamentos e vontades próprios e uma maneira
toda de observar o mundo.
Altenhofen (2006, p.43).
Neste capítulo, pretendemos contextualizar o espaço de pesquisa e apresentar algumas
noções de língua e seu status social e político na perspectiva da linguística, além de fazer um
breve resgate histórico do percurso da língua talian até a RNEMT.
2.1 Contextualizando o espaço da pesquisa
Os sujeitos entrevistados nesta pesquisa residem atualmente no município de Sinop –
MT. A cidade foi escolhida, pois atualmente representa o polo educacional e econômico da
região norte mato-grossense. Dos informantes consultados da geração migrante, todos
nasceram no estado do Rio Grande do Sul, no entanto alguns antes de se radicarem no Mato
Grosso, no percurso migratório, estiveram em regiões de fronteira agrícola anteriores, como o
oeste de Santa Catarina e o sudoeste paranaense. Por esta condição de frequente migração,
muitos se autodenominam “gaúchos cansados”.
2.2 Língua, dialeto e variedade
Quando, num contexto linguístico, uma língua divide espaço com outras línguas de
maior abrangência ou não, surge a necessidade de se considerar alguns conceitos
fundamentais que a geo- e sociolinguística apresentam, trata-se de língua, dialeto e variedade.
Segundo Meyer (2009, p.8) as definições relacionadas a esses três conceitos ainda
proporcionam extensas discussões na área dos estudos linguísticos. De acordo com a autora
(idem, p.8), tal conflito conceitual
[...] advém da dificuldade de traçar diferenças e delimitações entre um termo e outro,
a saber, até que ponto se considera determinada variedade de uma língua um dialeto
da mesma, havendo ainda o questionamento se um dialeto pode ser considerado,
também, uma língua. Nota-se, popularmente, uma tendência ao uso do termo dialeto
para designar tudo o que não é padrão. Seria um subsistema unitário falado em uma
área geográfica por determinada comunidade linguística, muitas vezes julgado
preconceituosamente como a língua errada ou feia, com status inferior.
Ainda continuando a reflexão (idem, p. 8), em critérios mais políticos do que
linguísticos a diferença substancial entre língua e dialeto está relacionada ao cunho
24
institucional; onde uma variedade de língua é tratada como língua quando esta é “[...]
reconhecida oficialmente pelo Estado e mantém forte tradição cultural e literária”, já dialeto é
visto como um subsistema linguístico, que não tem reconhecimento pelo Estado “e, de modo
geral, sem tradição escrita”. Variedade, de acordo com Calvet (2002, p.170), é um “[...]
sistema de expressão linguística que pode ser identificado pelo cruzamento de variáveis
linguísticas (fonéticas, morfológicas, sintáticas etc.) e de variáveis sociais (idade, sexo, região
de origem, grau de escolarização etc).” Portanto, entendemos que uma variedade de língua
pode ter prestígio ou não, pois tal atribuição é tecida pelo encontro da história com a língua, o
qual determina o status linguístico de uma variedade classificando-a como dialeto/falar (à
margem) ou língua (instituicionada, reconhecida como oficial no ambito político).
Todavia, em um patamar de discussão inserida aos estudos linguísticos, a diferença
entre língua e dialeto não existe, uma vez que a língua é posta como oficial e padrão quando
for tomada como “[...] um sistema cujas variações resultam em dialetos”, portanto é, (idem, p.
8), um paradoxo delimitar uma distinção entre língua e dialeto. Logo, uma língua é um
dialeto que goza de poder.
2.3 Língua oficial, língua minoritária e língua de imigração
Segundo Oliveira (2000, p.127), no “[...] Brasil de hoje são falados por volta de 200
idiomas.” Dentro deles está a língua portuguesa, entendida como língua „nacional‟ na
perspectiva jurídica, como representante de um Estado, ou seja, a língua oficial, e as línguas
minoritárias.
As minoritárias são línguas faladas num espaço geográfico onde dividem espaço com
a língua oficial, são classificadas entre autóctones (línguas indígenas) e alóctones (línguas de
imigrantes). O talian, objeto em questão, se constitui como uma língua de imigração, portanto
uma língua alóctone.
2.4 O percurso do talian: língua, sujeito, memória e interdição linguística
A constituição da coiné/ koiné 6(fala comum) chamada talian deu-se pela convivência
de famílias de imigrantes de origem italiana instaladas na Região de Colonização Italiana no
6 Coiné. S.f. Língua comum, língua geral num país que tenha muitos dialetos. Foi a língua geral da Grécia, tendo
por base o dialeto ático, com contribuições de outros falares gregos.
BUENO, Francisco da Silva. Dicionário escolar da língua portuguesa. 8º edição. São Paulo: Editora Primor,
1973.
25
Nordeste do Rio Grande do Sul, (doravante denomindada RCI7), como também em outras
regiões do mesmo estado. Desde a fundação das primeiras colônias na RCI, no período
imperial brasileiro, entre 1875 e 1884, até as novas e novíssimas colônias, as diferentes
variedades dialetais do italiano entraram em contato entre si e com o português de variedade
gaúcha constituindo a coiné (PERTILE, 2009, p.110), que, segundo Frosi (1975, p.69),
começou a se caracterizar a partir de 1950.
Frosi (1996, p.158) caracteriza o elemento linguístico pertencente aos imigrantes
italianos instalados na RCI e seus descendentes pela linguagem oral, sendo por esta
linguagem que o grupo étnico italiano “[...] edificou sua vida e construiu sua história, na Itália
e nesta região do Rio Grande do Sul.”
A respeito das províncias de origem dos imigrantes, Luzzatto (1994, p.21) diz que
entre os italianos que colonizaram o Estado do Rio Grande do Sul, “[...] aproximadamente
95% eram provenientes do Vêneto, do Trentino-Alto Ádige, do Friuli-Venezia Giulia, isto é,
do Trivêneto, e da Lombardia. Desses mais de 60% tinham língua e cultura vênetas. Tinham
falares diferentes [...], mas a língua mãe era a mesma: o vêneto.”
Ainda segundo o autor (LUZZATTO, 1994, p. 21), com a convivência de famílias de
origem de vários lugares do norte italiano em um espaço de contexto de imigração, resultou o
surgimento de uma koiné (fala comum) “[...] muito mais vêneta do que lombarda, ou friulana,
ou trentina”. Esta koiné é por Luzzatto (1994, p.13) denominada “Vêneto Sul-Rio-
Grandense ou Talian”, porém esse último termo, segundo Paulo Massolin (2009 apud
Pertile, 2009, p.162) foi o nome oficialmente escolhido para a língua, junto ao termo Vêneto-
Brasileiro, durante a terceira reunião da unificação da grafia do talian em Caxias do Sul – RS,
em 21 de abril de 2004. Segundo Julio Posenato (apud8 Luzzatto, 1994), do Conselho
Estadual de Cultura do RS, o talian, “[...] depois do português, é a língua mais falada no
Brasil.”
Em relação ao número aproximado de falantes do talian no Brasil, há algumas
menções de pesquisadores como a de Mioranza (1996), no entanto não há dados precisos.
Segundo Mioranza (1996, p.57), “alguns defensores deste linguajar vêneto-brasileiro ou [...]
Talian calculam que sejam de 10 a 12 milhões os falantes desse idioma. Minha opinião é que
não superem a casa dos cinco milhões [posso estar enganado] os usuários dessa koiné ítalo-
brasileira.”
7 A definição de Região de Colonização Italiana é uma definição de origem histórica, adotada na linguagem
comum e oficial que, com propriedade, diria respeito somente às áreas das ex-colônias de natureza pública
fundadas entre 1875 e 1892 no território da Encosta Superior do Nordeste [...]” (ARMILIATO, 2010, p.22) 8 Informação presente na descrição da obra de Luzzatto (1994)
26
Na Enciclopédia das Línguas9 produzida pelo Laboratório de Estudos Urbanos
(LABEURB) – UNICAMP, a linguista Rosangela Morello resume as situações em que a
língua talian10
é praticada:
Em sua configuração atual, o talian é um amálgama de formas e expressões
vinculadas tanto às línguas dos imigrantes como à portuguesa. No entanto, é
reconhecida como uma língua que conta com regras próprias, gramaticalmente
definidas e com uma ortografia unificada. Nela se têm produzido textos em prosa e
verso (cf. Luzzatto, 1994) e em seu nome têm sido realizados encontros, como o “I
Encontro dos Escritores em Talian”, Porto Alegre, 1989, e a “3a. Reunião de
unificação da Grafia do Talian”, Caxias do Sul, 1994. Sobre o talian há ainda um
dicionário - Dicionário Vèneto Sul-Rio-Grandense/Português – e uma gramática -
TALIAN (Vêneto Brasileiro) Noções de Gramática, História e Cultura. Segundo
Luzzatto (1994), o semanário Correio Riograndense mantém uma página dedicada
ao talian e emissoras de rádio o divulgam em todo o interior da Região Sul. O talian
não é ensinado em escolas. (ENCICLOPÉDIA DAS LÍNGUAS - LABEURB)
No entanto, sabemos que o número de dicionários e gramáticas dessa língua alóctone
já ultrapassa de um, e, além da Região Sul, há emissoras de rádio que divulgam o talian11
no
Mato Grosso e Espírito Santo (ARMILIATO, 2010, p.45).
O quadro montado abaixo baseado nos dados apresentados por Frosi (1975, p. 53),
retrata num espaço histórico-cronológico a configuração das colônias italianas no território
gaúcho e as migrações ocorridas posteriormente.
Tabela 01: Configuração das colônias e as migrações.
Configuração das colônias na região Colonização Italiana do Rio Grande do Sul, e as
migrações posteriores
Imigração da Itália para o Nordeste do
Rio Grande do Sul
Colônias: Nova Milano, Caxias,
Dona Isabel, Conde D‟Eu
1875 -1884
Imigração da Itália para o Planalto
Médio do Rio Grande do Sul
Colônia Silveira Martins12
1877
Imigração da Itália para o Nordeste do
Rio Grande do Sul
Colônias: Antônio Prado e
Alfredo Chaves
1884 -1894
Imigração da Itália para o Nordeste do
Rio Grande do Sul
Colônia Guaporé 1892 -1900
9Disponível em : http://www.labeurb.unicamp.br/elb/europeias/talian_situacoes_praticado.html Acessado dia 27 de maio de
2012.
10
Constitui-se interessante a leitura do ofício elaborado pelo Presidente da Federação de Associações Ítalo-
Brasileiras do Rio Grande do Sul (FIBRA), Paulo Massolin, direcionado à comunidade taliana, o qual explica
por meio de datas o processo histórico da constituição da escrita e também da denominação da língua pelo termo
“Talian”, dando caráter institucional à língua. Texto presente em Pertile (2009, p.162) 11
Segundo Armiliato (2010, p.44), o inventário da língua talian inserido nas propostas do Inventário Nacional da
Diversidade Linguística foi finalizado em 2010 por meio da parceria do Instituto Vêneto e Universidade de
Caxias do Sul (UCS), até aquele momento o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
analisava os dados levantados. Ver mais em Armiliato (2010). 12
Essa colônia se situa nas proximidades de Santa Maria – RS na Região do Planalto Médio do Rio Grande do
Sul, trata-se da quarta colônia italiana no RS, portanto ela está a parte da RCI. (FROSI, 1975, p.10)
27
Migrações internas na RCI Expansões das diversas colônias
anteriores
1880 -1920
Migrações para outras regiões do Rio
Grande do sul e outros estados
Região do Alto Uruguai – RS,
Oeste Catarinense e Sudoeste
Paranaense etc.
1910 – em
diante.
Fonte: Frosi (1975, p. 53)
Este mapa apresentado por Luzzatto (1994, p.22) retrata a distribuição geográfica dos
italianos de radicados no Rio Grande do Sul e descendentes, onde destacamos as regiões das
antigas colônias citadas na tabela 01 e áreas colonizadas por meio das migrações.
Figura 01: Áreas de colonização italiana no Rio Grande do Sul
Fonte: Luzzatto (1994, p.22) (mapa com sinalizações elaboradas por nós)
De acordo com a tabela 01, pode-se afirmar que as gerações dos descendentes dos
ítalo-gaúchos foram as que participaram de fronteiras agrícolas iniciadas no Rio Grande do
Sul e atravessaram o país em direção ao norte saindo da Região Sul e chegando às regiões
28
centro-oeste e norte do país, como estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Mato
Grosso e Pará.
O talian e sua gama de falantes se inscrevem numa memória comum, a da interdição
linguística realizada no período de ditadura brasileira, onde os sentidos propagados, de certa
forma, ainda funcionam no interdiscurso da comunidade ítalo-gaúcha e de descendentes de
outros contingentes de imigrantes.
A implantação e o regimento da política de nacionalização partiram do então
“Presidente Getúlio Vargas, que implantava, em 1937, o Estado Novo” (ARMILIATO, 2010,
p.27).
O processo político de nacionalização foi sustentado por decretos e leis aprovadas,
durante esse período, que interditavam e silenciavam as línguas alóctones, com o objetivo de
apagá-las em sua completude, além de barrarem a participação dos imigrantes na vida política
brasileira. Decretos-lei como o n°383 de 18/04/1938, segundo Armiliato (2010, p.28),
proibiam “[...] os estrangeiros à atividade política no Brasil”, ou o n°1545, de 25 de agosto de
1939, assinado pelo presidente Vargas com as seguintes determinações:
Art. 1º Todos os órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e as entidades
paraestatais são obrigados, na esfera de sua competência e nos termos desta lei, a
concorrer para a perfeita adaptação, ao meio nacional, dos brasileiros descendentes de
estrangeiros. Essa adaptação far-se-á pelo ensino e pelo uso da língua nacional, pelo
cultivo da história do Brasil, pela incorporação em associações de caráter patriótico e
por todos os meios que possam contribuir para a formação de uma consciência
comum. [...]
Art. 4º Incumbe ao Ministério da Educação e da Saúde: [...]
b) subvencionar as escolas primárias de núcleos coloniais, criadas por sua iniciativa
nos Estados e Municípios; favorecer as escolas primárias e secundárias fundadas por
brasileiros [...]
e) exercer vigilância sobre o ensino de línguas e da história e geografia do Brasil; [...]
Art. 8º Incumbe ao Conselho de Imigração e Colonização, diretamente ou pelos
órgãos que coordena:
a) evitar aglomeração de imigrantes da mesma origem num só Estado ou numa só
região; [...]
d) fiscalizar as zonas de colonização estrangeira, efetuando, se necessário, inspeções
secretas; exercer vigilância sobre os agentes estrangeiros em visita às zonas de
colonização; [...]
Art.11º Nenhuma escola poderá ser dirigida por estrangeiros, salvo os casos
expressamente permitidos em lei e excetuadas as congregações religiosas
especializadas que mantêm institutos em todos os países, sem relação alguma com
qualquer nacionalidade. [...]
Parágrafo único. Aos professores e instrutores de qualquer espécie, bem como a todos
os que se consagrarem à tarefa de cuidar da infância e juventude, cumpre esforçarem-
se por difundir o sentimento da nacionalidade e o amor da pátria.
Art. 15º. É proibido o uso de línguas estrangeiras nas repartições públicas, no recinto
das casernas e durante o serviço militar. [...]
Art. 16º. Sem prejuízo do exercício público e livre do culto, as prédicas religiosas
deverão ser feitas na língua nacional ( ROVERSI, 2011, p.52)
29
A rede de sentidos produzidos por esse acontecimento linguístico, sustentado por
decretos que institucionam a ordem simbólica que atravessa o sujeito e sua língua, permite a
inscrição do descendente do imigrante a uma formação discursiva marcada pelo
silenciamento.
2.5 Do sul para a Amazônia, a migração sulista para a RNEMT
A colonização do Norte de Mato Grosso é fruto da expansão agrícola executada
durante o período militar no país, dentro de um processo que começou mais cedo, na década
de 30, sob o governo Vargas.
Segundo Souza (2008, p.63) é a partir do golpe dde Estado de 1964 que a Amazônia se
transformou “[...] num intenso cenário de ocupação territorial massiva, violenta e rápida.”
Tratava-se de uma nova fronteira agricula em marcha. Entendendo o termo fronteira como
frente pioneira, Martins (1997 apud Souza, 2008, p.63) afirma que
“[...] fronteira é o espaço próprio de encontro de sociedades e culturas entre si
diferentes, como as sociedades indígenas e a chamada sociedade civilizada; lugar da
pretensa epopéia da frente pioneira e dos chamados „pioneiros‟ e „civilizadores‟. É o
lugar da busca desenfreada de oportunidades, mas também do genocídio dos povos
indígenas, do massacre dos camponeses pobres, da subjugação dos frágeis e
desvalidos.”
Para que ocorresse o aceleramento da ocupação dessa região, primeiramente se
propiciou a expansão das empresas capitalistas na Amazônia, fomentadas, segundo Souza
(2006, p.119), por órgãos federais responsáveis pela política agrária do país. A transferência
de povos indígenas para o Parque Nacional do Xingú, como o caso do povo Kaiaby (idem,
2006, p.119), marcou o início da ocupação dessa área considerada pelo plano político-
governamental como „vazia‟.
Segundo o Projeto “Migração, trabalho e política de identidade no Médio-Norte-Mato-
Grossense”13
(2007, p.4):
No século XX, o Mato Grosso passa por um novo processo de ocupação que se orienta
em dois momentos históricos: o primeiro, na década de 30, sob o regime de Vargas,
movido pela expansão da atividade agrícola e em decorrência do declínio do cultivo
do café e da produção leiteira do Sudeste, em grande parte responsáveis pela crise
econômica e agrária vividas pelas regiões Sul e Sudeste; o segundo, sob Regime
Militar que, por meio da Política de Ocupação da Amazônia, influenciou e
incentivou fortemente a ocupação da Região, mas, desta vez, com forte expansão
13
Projeto de Pesquisa MIGRAÇÃO, TRABALHO E POLÍTICA DE IDENTIDADE NO MÉDIO-NORTE -
MATO-GROSSENSE: um estudo de caso do município de Tangará da Serra (2000-
2007):http://www.unemat.br/prppg/educacao/docs/projetos_docentes/cecilia_migracao_trabalho_politica_de_ide
ntidade2008.pdf
30
agrícola e pecuária. Essa política fomentou, por meio de incentivos fiscais e
financeiros e da promessa de terras fartas e produtivas, o surgimento dos grandes
latifúndios, em parte da região Centro-Oeste e Norte. A maior parte dos proprietários
desses latifúndios era proveniente das regiões Sul e Sudeste.
Segundo Silva (2005) a escolha do povo sulista era proposital, uma vez que os
Presidentes Médici e Geisel, além de seus vários ministros, como Arnaldo da Costa Prieto do
Ministério do Trabalho e Previdência Social, e Dirceu Nogueira dos Transportes e Obras
Públicas “[...], eram gaúchos; isto nos permite pensar que a prioridade aos gaúchos, na
expansão de fronteiras, não foi apenas por falta de terras ou por ser este um povo mais
trabalhador e „competente‟ que o nordestino, mas porque seus olhares estavam realmente mais
voltados para este estado.”
Em 1956 tem-se o primeiro relato de migração sulista para a RNEMT, trata-se do
empreendimento, com início em 1955, feito pela Colonizadora Noroeste Mato-grossense
(CONOMALI), dos irmãos Mayer de Santa Rosa – RS. Segundo Alves (2001, p.22) com a
compra das terras localizadas à margem direita do Rio Arinos
“[...] estava consolidado para Guilherme Mayer e seus irmãos, um desejo
acalentado desde as plagas sulinas de abrir novos espaços em plena selva amazônica.
A „Marcha para o Oeste‟. Pregada por Getúlio Vargas, abraçada e assumida pelos
pioneiros do Rio Grande do Sul, que de maneira decidida e com firmeza lançaram
suas raízes, cultura e costumes [...]”
Figura 02 - Do sul para a Amazônia, a partida em direção ao Mato Grosso: Caravana dos
Irmãos Mayer parte de Santa Rosa – RS, 1956.
Fonte: Colonizadora Conomali
31
Então é fundada a Gleba Arinos, às margens do rio Arinos, ocupada e colonizada
pela primeira migração gaúcha que veio em direção à Amazônia norte mato-grossense.
Segundo Oliveira (2011, p.22), é em “[...] 19 de março de 1956, que oito famílias, somando
83 pessoas, partiram de Santa Rosa (RS) com destino à então Gleba Arinos que, mais tarde,
viria a ser Porto dos Gaúchos.” Segundo Alves (2001, p.24) é somente após um mês de
viagem, que as famílias desembarcam no atracadouro à margem esquerda do Rio Arinos à
aproximadamente 700 km de distancia da capital Cuiabá, “[...] iniciava efetivamente, a
colonização da Gleba Arinos”(idem, 2001, p.24).
Portos dos Gaúchos representa o primeiro relato da identidade gaúcha no norte
mato-grossense.
Figura 03 - Identidade gaúcha-norte-mato-grossense: Família Abegg recém chegada à
Gleba Arinos, Porto dos Gaúchos – MT, 1956.
Fonte: Colonizadora Conomali
De acordo com Oliveira (2011, p.26), a colonização de Porto dos Gaúchos representou
“[...] um dos trampolins para o impulso de integração da Amazônia mato-grossense,
destacando a criação e o desenvolvimento de municípios como Sinop, Alta Floresta, Colíder,
Juína e Aripuanã”. Para a história mato-grossense, representou o início da migração sulista
para a RNEMT e da construção da identidade colonizadora norte mato-grossense.
32
Para entendermos a atual configuração dos municípios da RNEMT, apresentamos o
mapa14
abaixo:
Figura 04: Região Norte do Estado de Mato Grosso
Fonte: Elaborado pelo autor
2.6 A composição identitária norte mato-grossense
Considerando os dados históricos existentes sobre a composição da população norte
mato-grossense, verifica-se que é massivamente composta pelo povo sulista, trata-se dos
paranaenses, catarinenses e gaúchos, sendo uma pequena quantidade proveniente de São
Paulo e outros estados.
As empresas colonizadoras particulares que levavam os colonos do sul do país para o
RNEMT faziam exigências para a aceitação dos candidatos a migrantes, Schaefer (1985,
p.25). No caso do Paraná, estas colonizadoras preferiam agricultores que tinham “[...] uma
propriedade de terra (estando excluídos os arrendatários, meeiros, volantes ou posseiros) e de
preferência entre 20 e 40 alqueires de extensão.” (Idem, 1985, p.25).
14
O mapa apresentado ilustra somente alguns municípios e distritos norte-matogrossenses.
33
Em geral, era privilegiada a vinda de “[...] colonos gaúchos e catarinenses donos de
técnicas e tradição no cultivo da terra, mais apuradas e com condições financeiras melhores,
comparados aos seus irmãos nordestinos”. (Idem, 1985, p.25)
Figura 05: Corrente migratória
Fonte: Shaefer (1985, p.29)
Dos catarinenses migrados para a RNEMT, há uma forte migração vinda do oeste
daquele estado, esta região, por sua vez, segundo os economistas Alves e Mattei (2006, p.06),
foi colonizada “[...] por migrantes provindos principalmente do Rio Grande do Sul
(descendentes de alemães, italianos e poloneses, ou seja, segunda ou terceiras gerações de
imigrantes europeus)”
Schaefer (1985, p.35) diz ainda que a ocupação do sudoeste paranaense é fruto dessa
corrente migratória iniciada no Rio Grande do Sul, permeada em Santa Catarina e continuada
no solo paranaense:
Os agricultores vindos das antigas áreas colonizadas pelos imigrantes italianos e
alemães foram ocupando inicialmente o oeste do Rio Grande do Sul, fundando entre
outros, os atuais municípios de Ijuí, Cerro Largo, Carazinho, Iraí, Santa Rosa, Três
de Maio, Três Passos, Erechim etc. No oeste catarinense, passo seguinte do avanço
migratório dos gaúchos foram fundadas as cidades atuais de São Miguel do Oeste,
Chapecó, Joaçaba, Concórdia, Xanxerê, Mondaí, Itapiranga, São José do Cedro etc;
no sudoeste do Paraná foram em seguida colonizadas as atuais cidades de Cascavel,
Medianeira, Marechal Rondon, Toledo, Capanema, Céu Azul, Foz do Iguaçu, Pato
Branco, Francisco Beltrão etc.
34
Todo esse processo de ocupação (idem, p. 35) aconteceu gradativamente, “[...]
avançando naturalmente à medida que as terras anteriormente ocupadas iam se tornando
insuficientes para os descendentes dos pioneiros e sua infertilidade ia decrescendo.” De
acordo com Ralil Padis (1970 apud Schaefer 1985, p. 35), há dois fatores que seguramente
influíram como causas dos movimentos migratórios do povo gaúcho: “A fragmentação das
pequenas propriedades resultante da herança familiar e da pressão demográfica exercida sobre
a estrutura fundiária e, em segundo lugar, a crise da indústria gaúcha, incapaz de absorver a
mão-de-obra oriunda da zona rural.”
Segundo Oliveira (2006 apud SOUZA, 2008, p.68), não é uma tarefa fácil definir o
perfil do colono que migrou para o Mato Grosso
[...] porque cada projeto de colonização tem a sua característica, cada colonizadora
tem seu público. Há, grosso modo, dois tipos de colonos: o que tinha capital no Sul
e resolveu investir em Mato Grosso e o que nada tinha como alternativa a não ser
abandonar os sonhos do passado e buscar novos rumos para a sobrevivência da
família.
Schaefer (1985, p. 61-62) em seus estudos acerca das migrações do sul do país em
direção ao Norte de Mato Grosso afirma que a Colonizadora SINOP (Sociedade Imobiliária
Noroeste do Paraná) no seu projeto de colonização, a então Gleba Celeste, procurou
sensibilizar e atrair sobretudo colonos da região sul do país, segundo o historiador “[...] cerca
de 50% dos colonos são luso-brasileiros e os restantes 50% são de origem alemã, italiana,
polonesa e japonesa”, e relata que “cerca de 35% da população é proveniente do Paraná, 30%
de Santa Catarina, 20% do Rio Grande do Sul, 12 % de São Paulo e os restantes 3% provêm
de outros Estados”.
De acordo com Ferreira (1997, p.615), da população existente no município de
Sorriso, “[...] aproximadamente 90% são sulistas e o restante é de outros Estados. Dos sulistas
25% são catarinenses, 25% do Paraná e o restante gaúchos.”
Refletindo sobe os dados apresentados por Ferreira (1997, p.615) e Schaefer (1985,
p.61), é possível afirmar que se a região de origem de parte dos paranaenses, gaúchos e
catarinenses descritos é advinda do oeste paranaense e catarinense e norte gaúcho, um
considerável número de migrantes possui a característica etnolinguística bilíngue se
35
refletirmos esses dados no mapa15
2.2 do Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do
Brasil (ALERS), que, segundo Altenhofen (2004, p.85), mostra as línguas de imigrantes em
“[...] representatividade em amplas áreas do sul do Brasil”.
2.7 O elemento ítalo-gaúcho na RNEMT
A comunidade ítalo-gaúcha na RNEMT se organiza em corais, associações e
programas de rádio. Fatos curiosos, como a constituição do nome da cidade de Sorriso (80 km
de Sinop) marcam os processos de identidade na história regional. Segundo o historiador João
Carlos Vicente Ferreira, em entrevista gravada com o colonizador da cidade, o catarinense
Claudino Francio, no projeto Memória Viva no ano de 1991, diz que uma das versões da
origem do nome da cidade de Sorriso deve-se a um caso na região onde um colono “[...] foi
perguntado sobre a cultura de maior produção naquelas terras. A resposta foi a seguinte – só
riso, só riso16
”, segundo o colonizador, o colono se referia à excelente safra de arroz colhido
utilizando o „dialeto‟17
italiano.” (FERREIRA,1997, p.615).
O talian ainda é falado em alguns lares de ítalo-gaúchos e seus descendentes. Os
programas de rádio Tchó e Beppi da Rádio Meridional FM de Sinop – MT e o programa
italian da Rádio Tropical de Vera – MT são os momentos de entretenimento que a
comunidade tem para ouvir canções e conteúdos relacionados à língua, no entanto, alguns
conteúdos veiculados não valorizam de maneira positiva esta identidade, com um discurso
estigmatizador.
Suportes como os CDs do Coral Bello Vivere da Associação Italiana de Vera – MT
(ACIVE18
) e do Coral Vozes de Sorriso de Sorriso – MT, materializam a língua talian e se
constituem em apoio institucional da língua alóctone na RNEMT.
Ações político-administrativas a favor da identidade ítalo-brasileira, como é o caso da
Lei Estadual nº 8.12919
, em vigor desde o dia 8 de Junho de 2004, de autoria do deputado
João Malheiros, que institui o dia 19 de setembro como o dia da Comunidade Italiana no
Estado de Mato Grosso, são instrumentos positivos para a manutenção da diversidade cultural
mato-grossense.
15
O Mapa 2.2 se encontra em: ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Áreas linguísticas do português falado no sul do
Brasil: um balanço das fotografias geolinguísticas do ALERS. In: VANDRENSEN, Paulino (org.). Variação e
mudança no português falado na Região Sul. Pelotas: EDUCAT, 115-145, 2002. 16
(italiano padrão) sm. Arroz (FLORENZANO, 1981, p.202), termo equivalente no vêneto sul-riograndense/
talian: Riso. sm. Arroz (TONIAL, 1997, p.31) 17
(aspas nossas) 18
Fotos das apresentações da Associação estão nos anexos. Fonte: ACIVE, Vera - MT. 19
Presente nos anexos.
36
Figura 06: Coral Bello Vivere, ACIVE, Vera - MT
Fonte: ACIVE
Associações culturais como a Associação Cultural Italiana de Vera – MT (ACIVE),
ou a Associação Cultural Italiana de Campo Novo dos Parecis – MT são espaços que
proporcionam o funcionamento e a manutenção da língua na comunidade.
37
2. CAPÍTULO III: CORPUS, METODOLOGIA E ANÁLISE
A Análise do Discurso tem um procedimento que demanda
um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise.
Eni Puccinelli Orlandi 20
Neste capítulo apresentamos primeiramente a origem do corpus, logo após
descrevemos a metodologia utilizada para materializar nossas reflexões. Posteriormente, se
encontram as análises.
3.1 A constituição do corpus e a metodologia de análise
Analisamos o funcionamento do discurso das gerações migrante e descendente de
sujeitos ítalo-gaúcho-norte-matogrossenses. Para isso, foram realizadas entrevistas semi-
dirigidas 21
com famílias ítalo-gaúchas residentes no município de Sinop – MT.
O corpus se constitui de narrativas orais de entrevistas em áudio com dois grupos de
pessoas, o primeiro representa a geração migrante que veio para a RNEMT na posição sujeito
de genitores a partir da década de 70 do século XX, com idade acima de 50 anos, residentes
no espaço urbano e que atuam em diversas profissões; o segundo representa um conjunto de
pessoas nascidas na RNEMT, trata-se da geração descendente da migrante (filhos ou netos),
também residentes na cidade e que atuam em distintas profissões.
Os critérios utilizados para a escolha dos informantes migrantes foram: residir a mais
de dez anos na RNEMT; ser falante da língua minoritária talian; e terem filhos ou netos
nascidos no norte do Mato Grosso. Para a geração descendente foram utilizados tais critérios:
ter nascido no norte mato-grossense; ter menos de trinta anos de idade; ter pais ou avós
falantes da língua vêneta sul-rio-grandense (talian); conviver próximo a um familiar (pai,
avós, etc) falante da língua de origem familiar, e, residir no norte do Mato Grosso desde o
nascimento.
Foram entrevistadas onze pessoas, sendo que sete ocupavam a posição sujeito de
migrante e as outras quatro de descendente. É importante salientar que as entrevistas com a
geração migrante foram feitas privilegiando o uso da língua talian para que os informantes se
sentissem mais à vontade ao discursarem e também para que a memória destes sujeitos acione
maior quantidade de conteúdos discursivos estruturados historicamente pela língua de origem.
Sobre essa memória social, segundo Roversi (2011, p.32), não se trata “[...] de lembranças
20
Apud Roversi (2011, p.55) 21
As guias de entrevista estão presentes no apêndice.
38
passadas, muito menos de recordações de momentos, situações” e sim de uma memória
construída coletivamente, socialmente, que “[...] os sujeitos se apropriam inconscientemente e
as projetam em seus discursos”.
Após a feitura das entrevistas e de transcrevê-las, fizemos os recortes e começamos as
análises. Para estas, a fundamentação teórica já contextualizada neste trabalho será de suma
importância, uma vez que buscamos elevar os traços identificatórios que se remetem à
memória discursiva do sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense migrante e descendente
inserida no contexto regional.
Neste trabalho de pesquisa, consideram-se ítalo-gaúcho todos aqueles que nasceram
dentro do contexto de imigração e migração do imigrante italiano e seus descendentes, dentro
do espaço geográfico que vai além das fronteiras do Rio Grande do Sul.
Seguem-se, logo abaixo, informações sobre a origem, a idade e o sexo dos sujeitos
migrantes entrevistados:
Tabela 02: características dos informantes migrantes
Informante ítalo-
gaúcho migrante
sexo Idade Local de nascimento Chegada ao
Mato Grosso (ano)
SIM 1 feminino 83 anos Guaporé - RS 1993
SIM 2 feminino 72 anos Nova Palma - RS 1980
SIM 3 masculino 80 anos Bento Gonçalves - RS 1972
SIM 4 feminino 72 anos Encantado - RS 1972
SIM 5 masculino 82 anos Nova Prata - RS 1980
SIM 6 feminino 79 anos Lagoa vermelha - RS 1980
SIM 7 feminino 54 anos Erechim - RS 1990
Fonte: elaborada pelo autor
Já o próximo quadro mostra informações sobre a origem, a idade e o sexo dos sujeitos
descendentes entrevistados:
Tabela 03: Características dos informantes descendentes
Informante ítalo-
gaúcho descendente
sexo Idade Local de
nascimento
SID 1 masculino 27 anos Sinop - MT
SID 2 masculino 15 anos Sorriso - MT
39
SID 3 feminino 18 anos Sinop - MT
SID 4 masculino 07 anos Sorriso - MT
Fonte: elaborada pelo autor
Acreditamos que este estudo propicia a reflexão e a compreensão das condições de
produção da comunidade estudada, e do seu posicionamento ideológico a partir do
acontecimento linguístico, ou seja, no encontro da língua com a história.
O contato com a leitura e a re-leitura do corpus permitiu-nos o recorte de sequências
discursivas de referência (doravante SD), que entendemos como representativas no discurso
dos sujeitos entrevistados. Por meio deste processo, separamos as sequências discursivas em
três planos discursivos. O primeiro trata do imaginário entre-línguas, é composto por dois
recortes: o imaginário da língua vêneta sul-rio-grandense com o sub-recorte que se remete ao
futuro da língua, e o imaginário de língua portuguesa. O segundo plano discursivo trata do
imaginário entre-sujeitos, dividido em dois recortes: o imaginário de sujeito ítalo-gaúcho e o
imaginário de sujeito-brasileiro. O último plano, intitulado lugares da língua de origem e
memória, ficou reservado aos recortes: família, culinária, religião, escola, ditadura e
interdição linguística, povo migrante e Mato Grosso.
O sujeito ítalo-gaúcho migrante será representado pelas letras “SIM” seguidas de um
número arábico (SIM1, SIM2 etc.), pois escolhemos não nomear os informantes. O sujeito
ítalo-gaúcho descendente será representado pelas letras “SID”, com o mesmo mecanismo
numérico para definir a ordem de informantes. As sequências discursivas, denominadas pela
sigla SD, também se ordenam pela mesma metodologia numérica.
3.2 As análises
Neste tópico, expomos as análises divididas em três planos discursivos, conforme foi
situado anteriormente, as transcrições seguem a lista de símbolos apresentadas no início desta
pesquisa, e, quando é o caso, com suas respectivas traduções22
.
3.2.1 PLANO DISCURSIVO 1 – Imaginário entre-línguas.
3.2.1.1 RECORTE 1 – Imaginário de Língua Vêneta Sul-rio-grandense (ou talian)
Seguem, abaixo, algumas sequências discursivas relacionadas ao que habita na
memória dos sujeitos-enunciadores sobre a língua minoritária talian.
22
Elaboradas por nós.
40
3.2.1.1.1 Geração migrante
[SD1 – SIM 2] (informante) – Mi me ricordo de tanto che i era con la me nona, e el me nono, e le zie.. i
era otto sorelle, né.. adesso gnh‟è tre.. i era fradei par parte de mama né.. par parti de ela mi gò
cognessesto pochi.. ma quasi tutti.. e sempre si parlea in talian.. eh tutto in talian.. va catar su i
radicci.. va far un chimarrão.. va pareciar un café.. va tor un toco de pan.. na sciopa de pan..”
[…]Per andar in cesa… Vao in cesa, andemo pregare.. el prete vien dir la messa.. tutto cossí.. “ah! Son
andati ntea messa, i era bella.. el prete gà parla bastante, gà fatto un bel sarmom, TUTTO TALIAN!
Fora el bon día, boa tarde, bon giorno, boa notte… tutto, tutto, tutto talian!
Trad. (informante) – Eu me recordo mais que era com minha avó, o meu avô, e as tias.. eram oito
irmãs, né.. agora há três. Existia os irmãos por parte de mãe, né.. por parte dela eu conheci poucos.. mas
quase todos..e sempre se falava em talian.. e tudo em talian.. vai catar [colher] radicci.. vai fazer um
chimarrão.. vai preparar um café.. vai buscar um pedaço de pão.. uma fatia de pão..
[...] Ir à igreja, vamos rezar.. “o padre vem pregar a missa”.. tudo assim.. “ah! Fui à missa, e estava
bonita.. o padre falou bastante, fez um belo sermão, TUDO EM TALIAN! Fora o bom dia, boa tarde,
bom dia, boa noite.. tudo, tudo, tudo talian!
[SD2 – SIM 7] (Inquiridor) – che imagine vien in tela to mente quando ti te ricorda della lengoa
talian?
(informante) – parchè quando noantre era picinini si parlea tutto in talian, né. Então assim me ricordo
tutto che la mamma mandava far i laori né, era.. Então ela disea cossita “dimán matina tutti i levanta
su bon ora per far i laori, né, o tu vai tirar leite da vaca, quel altra la fa el café o sapeca la polenta par
tutti tomar café bon ora e andar par la roça, né”. Era assim, né, então é uma coisa que a gente não
esquece. Isso aí ficou tudo na memória, né, então eu.. eu nunca vou me esquecer disso.
Trad. (Inquiridor) – Que imagem vem na sua mente quando você se lembra da língua talian?
(informante) – Porque quando nós éramos pequenos se falava tudo em talian, né. Então assim me
lembro tudo.. que a mãe mandava fazer os afazeres, né, era... Então ela dizia assim “amanhã de manhã
todos levantem cedo para fazer os afazeres, né, ou tu vai tirar leite da vaca, aquela outra lá faz o café ou
sapeca a polenta para todos tomarem café cedo e ir para roça, né”. Era assim, né, então é uma coisa que
a gente não esquece. Isso aí ficou tudo na memória, né, então eu.. eu nunca vou me esquecer disso.
Entendemos que nos fragmentos apresentados acima o advérbio “tutto / tudo” é que
atravessa as redes do interdiscurso do sujeito-enunciador tecendo os fios imagéticos da língua
na materialidade do discurso do ítalo-gaúcho migrante, uma vez que para o sujeito-enunciador
é a língua que constrói o seu mundo, pois é quem faz a relação com a sua própria história de
vida. Compreendemos que os sujeitos têm sua posição sujeito construída por meio de sua
língua de origem familiar, presume-se então que se a prática do discurso fosse realizada em
língua portuguesa, no caso na língua de madeira / oficial, as redes de filiações de sentidos não
se materializariam da mesma forma.
Nas formulações “si parlea tutto in talian né/ se falava tudo em talian”(SD 2), “e
sempre si parlea in talian / e sempre se falava em talian” (SD 1) e “tutto, tutto, tutto talian! /
tudo, tudo, tudo talian” (SD 1) se estrutura a intensidade nos gestos de sentidos direcionados
à atuação da língua na memória do sujeito enunciador, tal estruturação se dá de tal maneira
que a utilização do “tutto/ tudo” constitui a base/ ou centro das filiações de sentido
atravessadas pelos espaços, ações, personagens e situações de um passado que “ficou tudo na
memória [...] então é uma coisa que a gente não esquece.”(SD 2)
41
[SD3 – SIM 2] (Inquiridor) – E ti piase parlar talian par che motivi?
(informante) - Eu acho que é a natureza.. eu acho”
Trad. (Inquiridor) – E você gosta de falar talian por quais motivos?
(informante) Eu acho que é a natureza.. eu acho
Na formulação “eu acho que é a natureza” (SD 3) encontramos um sujeito atravessado
pelo esquecimento ideológico, quando o indivíduo utiliza o pronome pessoal “eu” acredita ser
dono do seu discurso, no entanto está assujeitado a um processo ideológico de construção de
sujeito permeado pela língua e história que o possibilita dizer X ou Y. Portanto, o sujeito
esquece que a „natureza‟ é a responsável por constituir a si memso, e sua comunidade em
língua, sujeito e memória.
[SD4 – SIM 2](Inquiridor) – Ti considera el talian na lengoa próprio o sol un dialetto?
(Informante) - Nò, mi considera che la zè na lengoa, una lengoa come quelle altre! Parchè pensa in tel
brasile, prima de tutto quase, i zè vegnesti i taliani, e lora mi cato che la zè una lengoa che el Signor gà
santà elo quelo ali, come quei altre. Non gà diferensa.
Trad. (Inquiridor) – Você considera o talian uma língua mesmo ou somente um dialeto?
(Informante) - Não, eu considero que ela é uma língua, uma língua como aquelas outras! Porque
pensa no Brasil primeiramente, antes de tudo, vieram os italianos, e então eu acho que ela é uma língua
que o Senhor a abençoou/santificou, como aquelas outras. Não há diferença.
[SD 5 – SIM 1 ] (Inquiridor) – E ti credi che el talian l‟è una lengoa bella di se parlar? L‟è una lengoa
bella come el portoghese.. Che ti pensa su la lengoa?
(Informante) - Oh Varda! Mi, parchè son taliana ... Me par che la me lengoa la saria quase meio.. [...]
ti sé, semo qua in tel Brasil, e lora me toca parlar in brasilian.
[SD 5 – SIM 1 ] Trad. (Inquiridor) – E você acredita que o talian é uma língua bonita para se falar? É
uma língua bonita como o português. O que você pensa sobre a língua?
(Informante) – Oh, escuta! /olha! Eu, porque sou italiana.. „me parece‟ que a minha língua seria
quase melhor.. [...] você sabe, estamos aqui no Brasil, e então cabe a mim falar em português.
Nessa SD 4, perguntamos se o termo dialeto para o sujeito enunciador é apropriado
para a sua língua. Compreendemos que no discurso desse sujeito o código linguístico é visto
como “língua”, que, por sua vez, é paráfrase de algo “santificado” e visto como igual perante
à “Deus”, o divino. Isso demonstra que diante à religião a língua de origem é como qualquer
outra, porém o não dito se instaura se filiando discursivamente à desigualdade linguística nas
outras esferas sociais que não seja a religiosa. Encontramos um gesto de sentido relacionado
ao status de língua inserida num idealismo religioso de igualdade, em que a possível
igualdade é atravessada pelo advérbio “quase”, materializando que alguém chegou
antecipadamente e impôs sua língua num tempo anterior, logo, a língua de origem é uma que
“quase” chegou primeiro e “quase” foi instaurada como superior. Entendemos que neste
discurso o talian está relacionado ao “quase”, e sua língua de oposição é posta além, ela se
concretizou como língua de respeito.
42
Em “Me par che la me lengoa la saria quase meio / me parece que a minha língua
seria quase melhor” (SD 5) se instaura por meio da materialidade discursiva a dicotomia entre
língua de madeira e língua de vento. O uso do advérbio “quase” sugere a persuasão de uma
tese – há uma língua melhor, uma mais adequada – portanto a língua de origem, a língua da
vida, que não é a melhor, deve ser apagada e silenciada uma vez que “ti sé, semo qua in tel
Brasil/ você sabe, estamos aqui no Brasil” (SD 5) se desliza para um espaço onde não há
lugar para outra língua senão aquela que representa o Estado, o Brasil. A defesa desta tese
demonstra, por meio dos processos imaginários, a necessidade de justificar o porquê o talian
não pode ser uma língua adequada para se comunicar no território brasileiro. Entendemos que
este discurso se remete a uma memória que se inscreve ao silenciamento produzido pela
interdição linguística do período do Estado Novo, que interfere, interdita o dizer, silenciando
e determinando o que pode, ou não, ser dito.
[SD 6 – SIM 2] (Informante) - mi gò un par de amighe mie anca che parla in talian.. che è i Zambiazi,
quel altra, la Terezinha.. nò me ricordo el sobrenome su.. noantre parlemo in talian.
Trad. (Informante) - eu tenho um par de amigas minhas que também falam em talian.. que são os
Zambiazi, aquela outra lá, Terezinha.. não me lembro o sobrenome dela.. nós falamos em talian.
[SD 7 – SIM 1] (Inquiridor) – Signora [...], ti piase parlar talian par qual motivo ? Che reson che ti fa
parlar talian?
(Informante) - Ah ... mi, quando che mi cato con le me femene, le me compagnere!.. ma desso qua non
l‟è tanto.. porque.. ghin‟è le parle anca ele delle volte in talian, né!.. ma se non eu, quando che mi vao
là in Santa Catarina o Rio Grande.. MAMA MIA!.. non se gà pì voia de tornar in drio.. par causa,
par colpa che l‟è zé tutto che se parla in talian parece che la zè.. la gente le gà tutto quel assunto.. che
l‟è un assunto de dir cossita.. fao la polenta, eh.. radicci, eh.. con la so seoleta dentro, quel coso!?..
lardo de porco, ben rostió.. e butarghe do vinagre.. el vinagre..EH.. el aseo.. che resti.. quando meter la
bassia di radici con la so seola ensima, e va con el piron e mexe.. per smissiare tutto. De là lora, si
magnea la polenta, el radicci, el formaio e se cantea, e se andea far filó de notte, de giorno se cosea, se
sapea, se area con l‟arado, con le mule che l‟è tirea del arado col i cavai, e mi andea parché mi gera
pìu piccola e pìu magra.. e lora ensima el caval.. tegnerlo dentro del rego andove che el arado passea..
e là lora, se andea fin la via in fondo e là se fea la volta... se voltea i cavai, se vegnea par de qua e lora
l‟era solo. “E va par de qua, e va par de là!‟‟.. e se passea al giorno intiero cossí. É!.. quando che non
l‟era par montar ensima dei cavai.. E lora devanti del arado ciapar i piei de miglio sechi butarghe de
sotto, che quei che passea con el arado i caminea meio..
[...]
Trad. (Inquiridor) – Senhora [...], você gosta de falar talian por qual motivo? Qual é a razão que te faz
falar talian?
(informante) – Ah.. eu, quando que me encontro com as minhas amigas/ mulheres, as minhas
companheiras!.. mas agora aqui não é tanto.. porque.. há as que falam também, e às vezes conversamos
em talian, né!.. mas senão eu, quando que vou lá em Santa Catarina ou Rio Grande do Sul.. Meu
Deus!/Minha mãe!.. não se tem vontade mais de retornar.. por causa, porque é tudo o que se fala em
talian, parece que é.. as pessoas têm todo aquele assunto.. que é um assunto de dizer assim.. faço a
polenta, eh.. radiche, eh.. com a sua cebolinha dentro, aquele negócio!?.. toucinho de porco, bem
frito/assado.. e por vinagre em cima.. o vinagre.. EH.. o vinagre.. que fique.. quando colocar a bacia de
radiche23
com a sua cebola em cima, e vai com o garfo, e vai com o garfo e mexe.. para mexer tudo.
23
Radiche. s.m Hortaliça, também conhecida como Almeirão (TONIAL, 1997, p.22)
43
Daí, então, se comia a polenta, o radicci, o queijo e se cantava, e ia fazer filó24
à noite, de dia se
cozinhava, se carpia, se lavrava com o arado, com as mulas que puxavam o arado com os cavalos, e eu
ia porque eu era a mais pequena e a mais magra.. e então em cima do cavalo.. segurá-lo/ mantê-lo
dentro do trilho onde que o arado passava.. e aí então, ia-se até o fim do eito e de lá se fazia a volta.. se
viravam os cavalos, e vinha de volta pra cá e então era só isso. “E vai para cá, e vai para lá!”.. e se
passava o dia inteiro assim. É!.. quando que não era para montar em cima do cavalo. E então diante do
arado pegar/arrancar os pés de milho e colocá-los virados para baixo, pois aquele que passava com o
arado caminhava melhor. [...]
Nas formulações “mi quando che mi cato con le me femene, me conpagnere/ quando
que me encontro com as minhas amigas/ mulheres, as minhas companheiras”(SD 7), “mi gò
un par de amighe mie anca che parla in talian [...] noantre parlemo in talian/ eu tenho um
par de amigas minhas que falam talian também, [...] nós falamos em talian” (SD 6)
compreendemos que a memória sobre a língua é atravessada pelo afeto e as redes de amizade,
a língua é o veículo que constitui as relações do sujeito com sua comunidade. As filiações de
sentido relacionadas a este afeto se materializam fortemente quando a lembrança da família e
das amizades é atravessada pelo lugar de origem dessa memória, o Rio Grande do Sul e Santa
Catarina. Estes dois pontos geográficos gravitam amarrando de sentidos a expressão “mama
mia!” (SD 7).
Em “tutto quel assunto/ todo aquele assunto” (SD7) entendemos que há uma
constituição por meio de todos os fatos e acontecimentos que são construídos pela língua, ou
seja, essa que estrutura “todo aquele assunto”, que tem memória e que está prenha de sentidos
atravessados pelo acontecimento linguístico, é esta língua, a de origem familiar, que pode dar
a luz à discursividade, e por em marcha o discurso pretendido que “parla in talian/ fala em
talian”, e que se inscreve numa formação discursiva comum.
[SD8 – SIM 1 ] (Inquiridor) – E la to mama e el to pupà piasea parlar talian?
(Informante) - Lori i parlea tutto in talian.
(Inquiridor) – Lori i gà imparà a parlar el brasilian o nò?
(Informante) - Lori i parlea, la pora mama, ela la parlea el talian di.. come è.. el dialetto.. el talian
mesmo.. el talian dell‟Italia.. come che parla i taliani dell‟Italia, ma doppo, qua in tel Brasil.. alora ela
e el pupà, chi l‟é nassesto in tel Brasil né, enton.. Lori i parlea come che son drio parlar mi desso con
ti.
Trad. (Inquiridor) – E a tua mãe e o teu pai gostavam de falar talian?
(Informante) – Eles falavam tudo em talian.
(Inquiridor) – Eles aprenderam a falar o português ou não?
(Informante) – Eles falavam, a pobre mãe, ela falava o talian do.. como é.. o dialeto.. o italiano mesmo..
o italiano da Itália.. como que falam os italianos da Itália, mas depois, aqui no Brasil.. então ela e o pai,
que nasceu no Brasil, né.. então.. Eles falavam este como estou falando com você agora.
24
O filó se caracteriza como um encontro social de amigos, familiares e vizinhos “[...] realizado no paiol, na
cozinha, no porão ou mesmo ao ar livre. Depois da janta, chegavam homens, mulheres e crianças para ajudarem
a scartossá (desfolhar) ou sgraná (debulhar) o milho, ou mesmo para conversar”. (RIBEIRO 2005 apud
ARMILIATO, 2010, p.22)
44
Nesta formulação discursiva, nos perguntamos quais sentidos funcionam neste
fragmento “Lori i parlea come che son drio parlar mi desso con ti / Eles falavam este que
estou falando com você agora” (SD 8).
A língua que a mãe falava estava mais próxima ao imaginário de língua da Itália, no
entanto o pai, natural do Brasil, falava a coiné estabelecida na região de colonização de
imigrantes.
Encontramos um sujeito que se depara com a diversidade linguística dentro da
realidade de sua língua de origem. Segundo Frosi (1998, p.159), no estágio inicial da Região
de Colonização Italiana do Nordeste do Rio Grande do Sul (RCI) - Serra Gaúcha, diversos
dialetos italianos eram falados, no entanto “[...] alguns foram falados durante muito pouco
tempo, outros sofreram, desde cedo, modificações pelas interinfluências linguísticas que se
processaram já nos primeiros anos de vida italiana na RCI.” O Resultado das modificações e
interinfluências linguísticas entre as variedades de italianos foi a constituição da coiné
linguística, de base vêneta, essa “come che son drio parlar mi desso con ti/ como estou
falando com você agora”.
[SD 9 – SIM 1](Inquiridor) – ) Qual l‟è la impresson di parlar talian..? Qual l‟è la diferensa per ti,
quando ti fa un ciacole in talian o in brasilian.. qual l‟è la diferensa?
(Informante) – Olha, la diferensa zè che quando che parlo in talian, mi sò TUTTO! Me alembro, me
ricordo de tutto.. afinal me vien in mente le parole, el nome de parole dei altre, cossita.. tutto pì facile.
Trad. (Inquiridor) – ) Qual é a impressão de falar talian? Qual é a diferença para ti, quando você
conversa em talian ou em português. Qual é a diferença?
(Informante) – Olha, a diferença é que quando que falo em talian, eu sei TUDO! Me lembro, me
recordo de tudo.. afinal me vem na mente as palavras, o nome de palavras dos outros, assim.. tudo mais
fácil.
No fragmento “quando che parlo in talian, mi só tutto!/ quando que falo em talian eu
sei tudo!” (SD9) encontramos um sujeito interpelado pelo esquecimento ideológico
materializado no “eu”, em que o sujeito acredita ser a origem do seu discurso; “tutto/ tudo”
faz relação de paráfrase com completude, destreza no recordar, proximidade à memória, das
palavras constituídas pela língua de origem e „dos outros‟, que entendemos como pessoas,
personagens representativos memorados e estruturados pela língua talian.
3.2.1.1.2 Geração descendente
Na sequência do estudo apresentamos as análises do discurso da geração descendente:
[SD 10 - SID 1] (Inquiridor) – Hum.. hum.. tá certo, você não fala nada da língua da tua origem?
(informante) – Não.
(Inquiridor) – Do italiano você chegou a ouvir?
(informante) – Bastante!
45
(Inquiridor) – Bastante aonde?
(informante) – Pai, mãe, a vó, principalmente a vó. Quando a gente vai às vezes de férias pra lá eles
falam, aí eles olham pra gente : “ah é, você não fala italiano!”, né, tipo falam às vezes intuitivamente,
mas eles percebem e depois percebe “ah não, você não fala, né!” aí repete em português, né, então é
normal ouvir.
(Inquiridor) – E o que as pessoas da tua idade acham sobre isso?
(informante) – Acho, sobre isso o que nessa parte?
(Inquiridor) – Das pessoas mais antigas conservar ainda o hábito de falar.
(informante) – Ah, eles respeitam porque, tipo[...], então o que acontece.. eles falam italiano, eles não
ensinaram o italiano pra gente, então também não tem o porquê cobrar que a gente fale, entendeu?
Eu vejo dessa maneira.
(Inquiridor) – E você entende quando alguém fala?
(informante) – Humm... não... pra ser sincero, uma ou outra coisa. Só palavrão, era só o que falavam
geralmente. (risos)
Tabela 04: enfrentamento discursivo
Fonte: elaborada pelo autor
Na sequência acima encontramos um sujeito enunciador que marca o seu discurso com
o enfrentamento entre as palavras “italiano” ≠ “português”, “eles” ≠ “a gente”, “falar” ≠ “não
falar”, “cobrar” ≠ “ser cobrado”. Entendemos que o sujeito (SID 1) é cobrado pelo outro
(representado por: pai, mãe e vó), este outro fala o italiano (no caso a variedade talian), que,
por sua vez, cobra aqueles que não falam, então “a gente” representa todos os que estão na
mesma posição-sujeito deste sujeito-enunciador, que no caso entendemos que sejam seus
irmãos e primos etc. Para o sujeito (SID 1) não há lugar para obrigação no que tange aprender
a língua de origem familiar, o talian, uma vez que os genitores não tiveram interesse de
ensiná-lo quando pequeno e agora em sua posição sujeito “adulto” é incompreensível ter que
aprender algo em que ele foi posto para fora do espaço discursivo, o da utilização do talian.
Nessa discursividade que apreende o quanto os reflexos do acontecimento da
interdição linguística do período ditatorial brasileiro interferiu na transmissão linguística da
língua minoritária talian no plano geracional, uma vez que o sujeito-enunciador se sente
cobrado, mas há uma memória filiada ao silenciamento linguístico que não o permite se
inscrever à uma formação discursiva diferente.
46
Segundo Altenhofen (2004, p.90), os pais falantes de línguas minoritárias optam por
não ensinarem os filhos a falarem a língua de origem para não „prejudicarem‟ suas crianças na
escola, trata-se de ações permeadas por uma memória de escola excludente. De acordo com o
autor (2004, p. 90), “[...] muitos pais bilíngues, especialmente os mais novos, optam por
ensinar aos seus filhos apenas o português, sob a alegação de que estes não sofressem os
problemas e preconceitos que tiveram que enfrentar na escola.”
Nas formulações “ah é, você não fala italiano” (SD10), “eles não ensinaram o italiano
pra gente, então também não tem o porquê cobrar que a gente fale, entendeu?” (SD10)
encontramos um sujeito atravessado pelo sentimento de cobrança, esta que é feita pelos
sujeitos “pai, mãe, a vó, principalmente a vó” (SD10). Este fato evidencia que as novas
gerações se sentem cobradas e incomodadas com o fato dos seus genitores não terem
incentivado os filhos a falarem a língua de origem, proporcionando discursos plenos de
indignação que se materializam em fragmentos discursivos como este: “não tem o porquê
cobrar que a gente fale, entendeu?”
Esta nova ordem de sentido é pertencente à FD deste sujeito descendente, que
podemos verificar em seu esquecimento ideológico materializado em “eu vejo dessa maneira”
(SD10), temos um sujeito que acredita ser dono de seu discurso, não percebendo que ele
compartilha uma conjuntura discursiva que dita o que pode e não pode ser dito, onde se
inscrevem todos os sujeitos que se encontram na posição-sujeito de filho e neto de ítalo-
gaúchos radicados na RNEMT.
[SD 11 – SID 1]“(Inquiridor) – - e você sente falta de não ter aprendido?
(informante) – eu acho que não, porque eu nunca precisei utilizar pra escrita, pra estudar ou coisa
assim, então interessante é! É outro idioma, mas se não vai me fazer uma .. acrescentar alguma coisa,
também não acrescenta falta, né.. nunca precisei ver um, digamos que um manual em italiano, “ah,
só vem italiano no manual, tenho que aprender pra entender!”, então não.. por hora não, o inglês já dá
mais falta, né.. tudo vem com inglês, né, até pra estudar.”
Novamente encontramos um sujeito atravessado pelo esquecimento ideológico, uma
vez que além dele todos os que estão em sua posição estão assujeitados às possibilidades do
dizer sobre a língua de origem. Trata-se de um discurso tecido pela concepção de língua que
não contempla o caminho do estudo, portanto não exige leitura e nem escrita, uma vez que
para o sujeito-enunciador é o estudo que agrega valor à vida, sendo que aquilo que não o
acrescenta, não faz falta.
No fragmento “nunca precisei ver um [...] manual em italiano [...] tudo vem com
inglês, né, até pra estudar” (SD11) vemos que o sujeito-enunciador se refere à língua talian,
ou numa outra interpretação, à língua italiana padrão utilizada pelo Estado Italiano, como
47
aquela que representa sua comunidade etinolinguística aqui no Brasil, já a língua inglesa está
filiada à ordem mundial, à informação, ao alcance do estudo e do conhecimento. Encontramos
a dicotomia entre língua de vento ≠ língua de madeira, em que o talian (ou o italiano padrão)
gravita no sentimento afetivo materializado no “interessante é!”, uma vez que se constitui
como algo de seu interesse porque representa uma memória que cobra engajamento, e a de
madeira é constituída pelo “até pra estudar”, que vemos como paráfrase de „principalmente
para o estudo‟, „inclusive o estudo‟, „aquela que acrescenta‟, ou seja, a que se insere ao ensino
aprendizagem como condição de ascenção social. É nessa relação de força e poder que se tece
a escolha, e que insere o sujeito num lugar entre-línguas.
Em “fazer uma...” (SD 11) percebemos que há o silenciamento da palavra „diferença‟.
O sujeito silencia, pois há um Outro que interdita, que não permite que confirme sua
indiferença ao afeto e à memória da língua familiar, sendo estas duas as responsáveis pelo
atravessamento do silêncio no seu intradiscurso, o interrompendo e interditando.
3.2.1.1.3 Sub-recorte 1 – O futuro da língua
Neste sub-recorte apresentamos algumas práticas discursivas que se filiam à imagem
do futuro da língua talian.
3.2.1.1.3.1 Geração migrante
[SD 12 – SIM 2] (Inquiridor) – E per ti qual é el futuro della to lengoa di origene, che l‟è el talian, che
cosa ti pensa su questo?
(Informante) - Olha, mi vao esser sinsera contigo.. mi nò penso in futuro in tela me lengoa. Pode ser..
quei pi giovani, ma mi.. no i gò insegnà a nissuni! [risos]”
Trad. (Inquiridor) – E para você, qual é o futuro da tua língua de origem, que é o talian, o que você
pensa sobre isso?
(informante) – Olha, eu vou ser sincera contigo.. eu não penso em futuro na minha língua. Pode ser
que aqueles mais jovens, mas eu.. não a ensinei a ninguém! [risos]
O futuro da língua para este sujeito está na transmissão da mesma no âmbito familiar,
se este não existe, logo não há lugar para otimismo no que tange ao futuro, pois o presente é
materializado no fragmento “no i gò insegnà nissuni!/ não ensinei a ninguém”. (SD12)
Segundo Ponso (2003, p.45) a geração mais velha não se interessa em transmitir a língua de
origem à geração mais nova, pois “usar uma língua sem prestígio não ajuda na conquista de
um melhor nível social, [...]”, além disso há uma “[...] marginalização sofrida pela fala
dialetal, por pentencer a um grupo minoritário, identificado como „colono”. (PONSO, 2003,
p.45)
48
[SD 13 – SIM 1](Inquiridor) – - La lengoa che ti parla, el talian, ela la gaverà futuro?
(Informante) – […] Nò!
(Inquiridor) – Parchè ti pensa che nò?
(Informante) – Parchè semo qua in tel Brasil, e quante cose che la vien.. che a final, si non te parle
come che l‟è.. le vien esser come me cugnà.
(Inquiridor) – Sí ?
(Informante) – Che lu... quando che l‟è vegnesta.. l‟è vegnesta, quela lei del Brasil che non podia falar
in talian, i metea in preson..
Trad. (Inquiridor) – A língua que você fala, o talian, ela terá futuro ?
(informante) – […] Não !
(Inquiridor) – Por que você pensa que não?
(informante) – Porque estamos aqui no Brasil, e quantas coisas que acontece/ vem.. que afinal, se não
fala como deve ser.. vem a ser/ igual o que aconteceu com o meu cunhado.
(Inquiridor) – Sim?
(informante) – Que ele.. quando veio aquela lei.. veio, aquela lei do Brasil que não se podia falar em
talian, eles colocavam na prisão.
O futuro da língua está sendo tecido dentro de uma relação de força e poder, em que o
fato de “estar no Brasil” impede a existência do direito à língua de origem, instaurando o
“certo”, “aquilo que deve ser falado”, o “correto para usar na comunicação”, a autoridade da
língua de prestígio, a língua de madeira. Esta última é entendida pelo sujeito enunciador como
língua que representa o Estado, a nação, eclodindo a ideia que qualquer outra que não seja a
língua portuguesa seja vista de fora do processo, seja compreendida como excluída.
Segundo Altenhofen (2004, p.87), o discurso “fale português, você está no Brasil” é
um mito nacionalista, trata-se de uma “ [...] velha tese romântica de „um país com uma única
língua‟, que tantos estragos fez em nome da pureza linguística e da construção de estados
nacionais, na verdade ainda permanece como uma ideologia forte nas relações sociais dessas
comunidades.”
Bagno (1999, p.15) afirma que o mito do monolinguísmo, ou seja, da surpreendente
unidade linguística do português no Brasil, é “[...] o maior e o mais sério dos mitos que
compõem a mitologia do preconceito linguístico no Brasil.” Ainda, segundo o autor (idem,
1999, p.15), tal mito “[...] está tão arraigado em nossa cultura que até mesmo intelectuais de
renome, pessoas de visão crítica e geralmente boas observadoras dos fenômenos sociais
brasileiros, se deixam enganar por ele”. Bagno (1999, p.15) cita como exemplo Darcy
Ribeiro, antropólogo que produziu estudos sobre o povo brasileiro. Segundo o autor (1999,
p.15), Ribeiro escreveu que “[...] os brasileiros são hoje, um dos povos mais homogêneos
linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam
uma mesma língua [...]” (grifo nosso) (Ribeiro, 1995 apud Bagno, 1999, p.15)
49
Essa hegemonia linguística do português que colabora na estruturação do mito „da
unidade na diversidade‟, para Bagno (2003, p.74), “[...], foi conseguida, historicamente, a
ferro e fogo: com decretos e proibições, expulsões e prisões, perseguições e massacres.”
Estudos que desconstruam esse mito e colaboram para o entendimento de um país
multicultural vão de encontro com a proposta de uma política linguística que dê voz e que
possibilite a manutenção linguística das minorias nacionais.
[SD 14 – SIM 1](Inquiridor) – Che cosa ti pensa su questo, dei neti non parlar el talian?
(informante) – Lora, mi penso cossita che um giorno, i vien.. eles pensa.. por exemplo.. “varda, el pupà
e la mamma i parlea”, o pai e a mãe falavam assim e assado, né, e i disea “nós também falava assim..
ma eles falavam outro jeito.. “Ma que vontade eu teria de podê falar, por exemplo..e.. e ter
compreendido bem.. afinal que hoje então eu poderia dizer assim „ah! La pora mama, ela disea
cossita.. el poro pupa, el disea acolà‟.. e, afinal de tutto noantre adesso non parlemo.. noantre temo
na memória que nós via eles falar, mas nós non se interessava de escutar e aprender o italiano.”
Trad. (Inquiridor) – - o que você pensa sobre isso, dos netos não falarem o talian?
(informante) – Pois então, eu penso assim que um dia, aconteça.. eles pensam.. por exemplo: “olha, o
pai e a mãe falavam”, o pai e a mãe falavam assim e assado, né, e diziam “nós também falava assim..
mas eles falavam outro jeito.. “Mas que vontade eu teria de podê falar, por exemplo.. e.. e ter
compreendido bem.. afinal que hoje então eu poderia dizer assim „ah! A pobre mãe, ela dizia
assim.. o pobre pai, ele dizia aquilo lá‟.. e, afinal de tudo, nós agora não falamos.. nós temos na
memória que nós via eles falar, mas nós não se interessava de escutar e aprender o italiano.”
Nesta sequência discursiva encontramos um sujeito interpelado pela fala do “outro”,
este que entendemos como sendo o discurso dos netos e dos filhos em um tempo, imaginado
pelo sujeito-enunciador, em que estes se encontram com a falta dos membros familiares “el
pupà e la mama/ o pai e a mãe” (SD14), e atrelado a isso a falta da língua que os constituía
como personagens marcados por uma memória.
Compreendemos que o discurso deste sujeito migrante se inscreve aos sentidos de
mágoa, angústia e afeto a um passado construído pela língua de origem familiar, ou seja,
aquela que formaliza imaginariamente o discurso de seus netos em cima da imagem que tem
de seus descendentes. Encontramos um sujeito que sente saudade do modo/ da memória/ da
marca linguística na fala da “[...] pora mama e el poro pupà/ [...] pobre mãe e o pobre
pai”(SD14), e que a “vontade [...] de poder falar”(SD14) anuncia o funcionamento do início
de um esquecimento, do silenciamento, do desgaste de uma língua dentro de uma
temporalidade que a assujeita à “vontade”, que entendemos como „querer resgatar, prezar,
guardar na memória ou compartilhar, uma vez que essa gana se estrutura de afeto, origem,
memória e raiz.
3.2.1.1.3.2 Geração descendente
50
[SD 15 – SID 2] (Inquiridor) – e essa língua que os teus pais falam, que os teus avós falavam, ou
falam. Você acha que ela tem algum futuro?
(informante) – olha, ehh, é uma pergunta meio complexa, mas eu creio que dificilmente aqui, né.
Depende o ponto pra onde você vai, depende do que é necessário, necessidade se algum dia for a
língua mundial, atual for italiano, mais isso depende mais do contexto geral do que a questão da
língua em si, né.
Neste fragmento encontramos um sujeito que se inscreve na FD em que a língua de
sua origem familiar só caminhará para o futuro se vinculando ao prestígio de língua da
modernidade, que se desliza para „língua do comércio, da tecnologia, da comunicação, do
trabalho etc.‟ Desta forma, as condições de produção se sustentam pela imagem de língua do
capital, direcionando o discurso do ítalo-gaúcho descendente ao silenciamento de uma língua
de cultura, da origem, de valor afetivo e atrelado ao passado familiar.
Pesquisas como a de Cambrussi (2007, p. 53) revelam que o governo brasileiro realiza
políticas de promoção linguística às línguas de dominação, como o caso do italiano padrão,
utilizado atualmente pelo Estado Italiano como língua oficial, e esquece as línguas de
imigração que representam “[...] a identidade, a cultura e a história dos brasileiros que têm a
língua brasileira de imigração como língua materna.”
Na formulação “uma pergunta meio complexa”(SD15), entendemos que o sujeito se vê
atravessado pela afetividade na resposta para uma pergunta que fala do futuro da língua de
origem. Essa afetividade diz respeito ao renegar, abster ou ser indiferente à memória da
família, ao passado que o constitui como membro de uma história familiar. O „né‟ também é
constituído pelo silêncio, algo atravessa seu interdiscurso funcionando como “o que não pode
ser dito”. Entendemos que a formação imaginária que este sujeito tem da língua de origem
familiar não permite que ele acredite em um futuro.
3.2.1.2 RECORTE 2 : Imaginário da Língua Portuguesa / Brasileira
Neste sub-recorte apresentamos sequências discursivas relacionadas ao imaginário de
língua nacional/ língua portuguesa.
3.2.1.2.1 Geração migrante
[SD16 – SIM 2] (Inquiridor) – Ma ghe tu voia di ensegnar talian ai fioi?
(informante) – Ah, si me dumanda mi ghe ensegno!
(Inquiridor) – Sì?
(informante) – Ma senon, va no brasiliero che i è costumá, né?”
[SD16 – SIM 2] Trad. (Inquiridor) – - Mas você tem vontade de ensinar talian aos filhos?
51
(informante) – Ah, se me pedem eu ensino!
(Inquiridor) – Sim?
(informante) – Mas senão, vai no português que eles estão acostumados, né?
[SD 17 – SIM 1] (informante) – Ma lora, parlar in brasilian, le volea esser andati in tela Scola come
mi, né? In tela Scola andove che ghe gera gente che parlea talian, e sì!.. in brasilian né? Par poder
saber ben la lengoa, la lengoa brasiliana.. envesse mi.. (risos) son sempre stata quela che.. quando che
me ocorea casa par cuidar i tosatei mi tochea star casa.. enton.. nò andea scola […] e lora con quela
mi son sempre stata in drio della scola.
Trad. (informante) – Mas então, falar em português, era necessário ter ido à escola como eu, né? Na
escola onde que havia gente que falava talian, e sim! Em português, né? Para poder saber bem a língua,
a língua portuguesa.. agora eu/ ao em vez de mim.. (risos) fui sempre aquela que, quando que precisava
estar em casa para cuidar das crianças, cabia a mim estar em casa.. então.. não ia para escola [...] e então
por causa disso eu sempre estive fora da escola.
Baseados nas sequências discursivas acima montamos um quadro para contextualizar
os imaginários que gravitam em torno da língua portuguesa, que entendemos, neste contexto,
como língua de madeira / língua de direito, e da língua talian, a língua de vento, de vida.
Tabela 05: imaginário entre-línguas
Língua portuguesa Língua do hábito (a que os filhos
compreendem melhor)
Língua do Estado: língua da escola
Língua talian Língua que está fora da escola
Língua de casa, porém a que os filhos já
não estão mais acostumados. Fonte: elaborada pelo autor
Na materialidade discursiva destes sujeitos a língua de madeira, o português, é a que
entra no habitual, na normalidade, na ordem estatal, uma vez que ela é a língua da escola, das
relações com os poderes políticos da nação. Do outro lado, se encontra a língua de vento, de
vida, o talian. Essa é a que sai da normalidade, que perde proximidade ao hábito, uma vez que
o talian está fora da escola e não tem reconhecimento e valor para o Estado.
3.2.1.2.2 Geração descendente
[SD 18 – SID 1] (Inquiridor) – humm.. e o que que eles falavam pra você?
(informante) – Pra gente não, pra gente português normal.. mas às vezes entre se tá de férias, às vezes
conversa alguma coisa italiano entre eles, ou às vezes falam metade português, ou alguma palavra,
algumas coisas a gente até entende por intuição, né, porque você vê o contexto da frase e sabe do que
que é, mas dizer “não, isso é um verbo, isso é isso, isso aquilo, isso é adjunto, sei lá”, é difícil de
identificar, definir, entender em si a parte teórica, né. Se entende, às vezes que apontou pra alguma
coisa e falou, você vai saber que é daquilo, mas entender exatamente que cada coisa é. [...]
52
Discursivamente para este sujeito não há lugar para „normalidade‟ no que tange à sua
língua de origem familiar, o talian. Novamente vemos as relações de força e poder entre-
línguas na materialidade discursiva de um sujeito ítalo-gaúcho descendente, em que a língua
de madeira (o português brasileiro) tem filiações de sentido ao normal, e a língua de vento
(talian) à todas as possibilidades do dizer relacionadas àquilo que não seja normal, que
entendemos como língua restrita ao cotidiano familiar, porém silenciada pelo contexto urbano
que funciona pela língua de madeira, o português.
A instauração do monolinguísmo em língua portuguesa no âmbito geracional do
sujeito descendente permite que uma nova ordem de sentidos se instale, aquela em que o
português é o “normal”. A nova disposição do uso linguístico no espaço familiar em suas
relações de força e poder impede, interdita, exclui e re-significa o sentido de “língua normal”,
que se parafraseia com o „língua habitual‟, „língua corrente‟, língua que „nós todos falamos e
entendemos sem problemas e rejeição‟.
3.2.2 PLANO DISCURSIVO 2 - Imaginário entre-sujeitos
Entendemos que o silenciamento deste plano discursivo, dividido em dois recortes,
silenciaria a presença dos conflitos etno-culturais existentes nos espaços geográficos deste
país, estes que são consequência do contexto sócio-histórico colonizatório marcado pela
opressão, exclusão, perseguição, silenciamento e indiferença à diversidade cultural brasileira.
3.2.2.1 RECORTE 1 - Imaginário de sujeito ítalo-gaúcho
Seguem-se algumas práticas discursivas da geração migrante:
3.2.2.1.1 Geração migrante
[SD 19 – SIM 2]- (Inquiridor) – - E come è el populo talian per ti? Come l‟è questa persona?
(informante) – Ahh, mi cato che l‟è una bona persona!
(Inquiridor) – E, par esempio quando dice “Taliani tutti bona gente”, parchè dice cossita?
(informante) – Parchè eu acho che gà ciapà che lu l‟è bon, né?.. taliani, bona iente, parchè, pensa ben
el talian eu acho ch‟el l‟è safa de pì de tutto.
(Inquiridor) – - [...]- Lora el laora, el talian loara ben!?
(informante) – Laora ben e pì, e pì.. e ben caprichà! Che ghin‟è i tanti che fà „capricho‟..
Trad. (Inquiridor) – E como é o povo italiano para você? Como é essa pessoa?
(informante) – Ahh, eu acho que ele é uma boa pessoa!
(Inquiridor) – E, por exemplo, quando dizem: “italianos tudo boa gente” 25
, por que dizem assim?
25
Essa expressão é corrente no discurso dos ítalo-gaúchos. Acreditamos que seria necessário fazer um estudo
socio-histórico e discursivo para entender a origem material desse imaginário, uma vez que tal expressão é
conhecida por todos os informantes entrevistados, no entanto preferimos deixar para outra oportunidade.
53
(informante) – Porque eu acho que tomaram eles como bons, né? Italianos, boa gente, porque, pensa
bem, o italiano eu acho que se safa mais do que todos.
(Inquiridor) – [...] Então ele trabalha, o italiano trabalha bem?
(informante) – Trabalham bem e mais, e mais.. e bem caprichado! Que existe uns tantos que fazem
capricho.
Na SD 19, encontramos um sujeito que se inscreve numa formação discursiva em que
a imagem do sujeito ítalo-gaúcho está atravessada pelo trabalho. É “bona iente/ boa gente”
(SD19) porque trabalha com “capricho”, esta qualidade de bom trabalhador é filiada ao
“pí/mais” e ao “ben/bem”, que entendemos como efeitos de sentidos ligados ao orgulho, à boa
conduta da origem étnica em encarar o trabalho, do sujeito-enunciador e à sua tradição com o
trato da terra.
[SD 20 – SIM 2] (Inquiridor) – Le persone dumanda “ma ti te si gaùcha, si tu?”
(informante) – I dise!
(Inquiridor) – I dise?
(informante) – É! De volta e antra, quei chi è mai parlà com mi me varda e dise “ma ti te si uma
gaùcha!?”Si ti te si un brasileiro, ghe zè diferensa ... tem diferença! [...] Maaa.. come che te ghe dito, “ el signor ringrassa tutti queste lengoe, andemo in torno, avanti”
[SD 20 – SIM 2] Trad. (Inquiridor) – As pessoas perguntam: “mas você é gaúcha, você é?”
(informante) – Eles dizem!
(Inquiridor) – Dizem?
(informante) – É! De vez em quando, aqueles que nunca falaram comigo, me olham e dizem; “mas
você é uma gaúcha!?” Se você é um brasileiro, há diferença.. tem diferença!
[...] Mas, como eu te disse, “o senhor abençoa/ agradece todas as línguas, vamos adiante com elas!”
Na sequência discursiva (SD20) encontramos um sujeito-enunciador entre-sujeitos, ou
seja, entre um deslize de identificação. „Ser gaúcha‟ é um deslize de ser descendente de
italianos nascidos no Rio Grande do Sul, um lugar que fala diferente do restante do país. Essa
diferença na fala que a marca como “gaúcha” é percebida pelos outros e pela própria
informante numa relação parafrástica „italiano = gaúcho‟, que se filia ao imaginário de que
„povo gaúcho é diferente de povo brasileiro‟ porque “i zè diferensa/ há diferença”(SD20)
entre “tutti queste lengoe/ todas estas línguas”(SD20). Compreendemos que o que atravessa
seu imaginário naquelas condições de produção é a imagem de um descendente de italiano
que nasceu no Rio Grande do Sul, que fala uma língua que não se inscreve à palavra „Brasil‟ e
sim „gaúcho‟ e „Rio Grande do Sul‟.
[SD 21 – SIM 2] [...] Tem gente que chama a senhora de gringa?
(informante) – Tem! Tem!
(Inquiridor) – E o que a senhora acha disso?
(informante) – Eu dou risada! Porque eu me acho gringa.
(Inquiridor) – A senhora se acha gringa? Por que?
(informante) – Porque eu não falo tudo certo, né!? Eu numm.. eu... vai te incomodar? Num tem
como!
(Inquiridor) – Mas é comum as pessoas chamarem de gringo?
54
(informante) – Olha, é bastante, às vezes tu vê que tu começa.. às vezes eu vou.. porque eu.. eu assim
com minhas filhas eu saio bastante, né! Com o Edisson, principalmente na casa dele almoço, janta, aí lá
as Galinhada faz junto.. eles me levam, as guria domingo ficam com a Vivi na casa do namorado dela..
então sempre tem aquele que diz “mas tu parece uma gringa!..”
(Inquiridor) – E o que é gringo para a senhora?
(informante) – Gringo diz que é o “verdadeiro italiano, né! Era un gringon, gringo quel gringon!
Era o verdadeiro italiano!”
Na sequência discursiva acima encontramos um sujeito que se identifica com o termo
“gringo/gringa”, sendo que sua justificativa se filia ao imaginário de língua „certa‟, que, por
sua vez, discursivamente não corresponde àquela que o constitui como sujeito.
Por que este sujeito migrante acredita que falar o português com traços da língua
minoritária de origem familiar é não falar „certo‟ a língua portuguesa? No fragmento “vai te
incomodar?”, por que este sujeito-enunciador acredita que sua fala nos incomodaria na
posição de pesquisador?
Entendemos que este sujeito é atravessado por uma memória que se relaciona ao riso e
à estigmatização linguística de sua fala, uma vez que esta está estritamente inscrita a uma
memória constituída do acontecimento da interdição linguística realizada no período de
ditadura militar, que proíbe, ignora, persegue as línguas minoritárias de imigração,
principalmente no âmbito educacional, onde se ensina a língua de prestígio, se instaurando
assim o trauma, a marca, o estigma na fala de um português com traços da língua italiana
dialetal, que passa a ser entendido como feio, errado, „inculto‟ e „excluído‟. Segundo Frosi,
Faggion e Dal Corno (2008, p. 142), em pesquisa sobre o prestígio e a estigmatização na RCI,
“[...] falar em dialeto italiano ou em português com interferências dialetais italianas era
suficiente para ser identificado de modo insultoso como „colono burro‟, ou „colono grosso”.
Goffman (1988 apud FROSI, FAGGION & DAL CORNO, 2008, p.142), considera
estigma uma “[...] marca que o indivíduo carrega e o torna inabilitado para a aceitação social
plena”, é, ao nosso entendimento, o que habita no interdiscurso desse sujeito-enunciador,
permitindo o funcionamento de um discurso feito na FI que produz o incômodo.
Nos fragmentos “verdadeiro italiano, né” (SD20), “Era un gringon, gringon, quel
gringon!/ Era um gringão, gringão, aquele gringão!” (SD20) nos perguntamos: este sujeito
acredita que havia italianos não tão italianos? Quais efeitos de sentidos produzem o
aumentativo realizado na palavra gringo?
Entendemos que este sujeito não se identifica como sendo uma verdadeira „italiana‟,
há algo que funciona em seu interdiscurso, algo que interdita sua inclusão na posição-sujeito
tecida pelo aumentativo. Ao nosso entender, trata-se do fato de ter nascido no Brasil e estar
assujeitado à uma FD de um sujeito entre-línguas, de um espaço entre-sujeitos, entre-nações.
55
[SD22 – SIM 5 e SIM 6] 26
(Inquiridor) – Lá no Paraná eles chamavam as famílias italianas de
gringos?
(informante A) – gringo, era os brasileiros que chamavam de gringo, né! Até hoje, né, aqueles que é
brasileiro, “ah, eu fui lá na casa do gringo lá!” (risos)
(informante B) – não sei, já faz 32 anos que mudamos pra cá, mas acho que alguns chamam.
(Inquiridor) – E vocês, eles chamavam de gringo?
(informante A) – ah, nós também eles chamavam, “ah, eu tava trabalhando pro gringo!”
(informante B) – ah, quando chamava “gringo, gringa” nós dava risada; os outros eram os preto, né!
(risos)
(Inquiridor) – a senhora se sente gringa?
(informante B) – ah, de natureza eu sou, mas sou brasileira, nasci no Brasil! Quando tem um jogo,
dizem “pra quem é que tu torce?” “Vou torcer para os dois, um porque nasci, sou de lá, e outro porque
sou do Brasil! Vou torcer para os dois ganhá, qualquer um tá bom. ” (risos)
(Inquiridor) – a senhora se sente mais brasileira então?
(informante B) – ah, eu me sinto, mas não sei se é! (risos)
Na sequência discursiva (SD22) encontramos no discurso destes sujeitos-enunciadores
a estruturação de uma dicotomia entre termos estigmatizadores, trata-se do “gringo≠ preto”.
No discurso dos ítalo-gaúchos-norte-mato-grossenses existe uma oposição de sentidos
que estrutura o imaginário de povo italiano e de povo brasileiro. O primeiro é tido como
„gringo‟, que se relaciona ao „nós descendentes de italianos‟, „não falamos certo‟,
„trabalhamos com a terra‟, „temos a terra, onde o brasileiro trabalha para nos ajudar‟, „somos
vistos como estrangeiros‟; já o segundo é tido como o „preto‟, e em termos como „negro‟,
„brasiliero‟, „brasiliàn‟ e „brisòqui‟.
Gringo, segundo o dicionário Aurélio (FERREIRA, 2001, p.355), trata-se de um termo
depreciativo para se referenciar a um sujeito estrangeiro. Quando o sujeito-enunciador diz
“nós dava risada” quando eram chamados de “gringo, gringa”, nos perguntamos: para o
sujeito-enunciador „ser gringo‟ não produz efeitos de sentidos equivalentes ao „ser preto‟?
Compreendemos que „ser preto‟ para o ítalo-gaúcho é algo mais forte que „ser gringo‟, é algo
que é atravessado por uma historicidade que não permite que o grau de estigma de „ser
gringo‟ ultrapasse o de „ser preto‟.
Em “ah, de natureza eu sou, mas sou brasileira”(SD22) nos deparamos com um sujeito
entre-sujeitos (ser italiana ≠ ser brasileira), que se filia à FD materializada pela conjunção
adversativa „mas‟, que estrutura um sujeito que se vê estrangeiro num país que não representa
a “sua natureza”, que a exclui, que não a permite se sentir brasileira, que a vê „gringa‟, „do
exterior‟, de „outro lugar‟. Este sentido se reforça em “ah, eu me sinto, mas não sei se
é”(SD22), uma vez que há um „outro‟, aquele que se sente fruto da terra, no qual entendemos
26
Este casal nasceu no Rio Grande do Sul, mas na infância migraram com os pais para Pato Branco – PR, lá se
conheceram, casaram-se e migraram com os filhos para o Mato Grosso.
56
como o sujeito brasileiro, que não a vê como brasileira. Os sentidos vinculados ao discurso do
„outro‟ presente na memória do ítalo-gaúcho migrante permite que habite em seu
interdiscurso sentidos que se aproximam à „dúvida‟ e à „incerteza‟ no que diz respeito ao
„sentirse um cidadão brasileiro‟.
A FD em que este sujeito se inscreve não permite que este discurso se filie ao „se
sentir e ser brasileira‟ com segurança, pois esta formação discursiva se marca entre o lá
(Itália) e o aqui (Brasil). Portanto, compreendemos que „ser de natureza‟ está estruturado em
origem, afeto, memória e família e, ao ser visto como „gringo‟, „estrangeiro‟, „o de fora‟, e
„ser do Brasil‟ está relacionado ao nascer num espaço geográfico brasileiro.
3.2.2.1.2 Geração descendente
[SD 23 – SID 1] (Inquiridor) – As pessoas aqui em Sinop te perguntam da tua origem, o que você fala?
(informante) – Olha, geralmente .. que nem hoje uma situação.. a diretora olhou pra mim, eu ia passar o
nome do chefe do patrimônio, que é em alemão, é Golschimdt, aí eu falei, “olha, eu vou soletrar, porque
se eu falar eu não sei se você acerta, tem duas vogais o nome inteiro e tem meia e uma dúzia de
consoantes aqui, né.. aí soletrei. Então ela me disse: “mas você é alemão, você não?” Tipo, você não
compreende, ou tipo, tipo que ela era loira, não sei se é descendência alemã, às vezes ela saberia
escrever só de falar como que é o nome, né.. mas também eu não falei: “ não, eu sou italiano, né!”
Porque a conversa não deu tempo, porque eu mais loiro e tudo mais não pareço italiano, o Renardi
sim parece, o Renardi.
(Mãe do informante) – Italiano?
(informante) – O Ilha não parece tanto, a gente é mais branco, o italiano tem o ser mais, cabelo
escuro e tal, né. (Mãe do informante) – Nãoo! Italiano é branco!
(informante) – Nariz grande.
(Mãe do informante) – Esse é o alemã, o nariz grande.
(informante) – Não, italiano nariz pontudo, né!?
No discurso do sujeito descendente „ser italiano‟ se inscreve em „ter cabelo escuro‟,
„não ser tão branco‟ e „ter nariz pontudo‟. É uma FI que se filia ao estereótipo de povo italiano
que a mídia brasileira propaga, servindo de exemplos os personagens “Matteo e Giuliana” da
telenovela Terra Nostra 27
da Rede Globo de televisão.
Neste caso há uma oposição de sentidos quando comparamos o discurso do sujeito-
descendente com sua mãe, uma vez que para a figura materna ter „cabelo escuro‟, „não ser tão
branco‟ e ter „nariz pontudo‟ se distancia da sua FI de „sujeito italiano‟.
Encontramos aqui um caso de re-significação do imaginário dentro de um plano
diageracional, em que o imaginário do sujeito descendente não se filia ao de sua genitora.
Uma das possíveis causas dessa re-significação é o contato do sujeito descendente com o
27
Terra Nostra é uma telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo entre 20 de
setembro de 1999 e 2 de junho de 2000, [...]. Foi escrita por Benedito Ruy Barbosa[...] com direção geral e de
núcleo de Jayme Monjardim. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Terra_Nostra. Acesso: 03, Junho,
2012.
57
multiculturalismo presente na RNEMT e uma formação discursiva inscrita nos fios de
sentidos produzidos pela mídia.
[SD 24 – SID 1] (Inquiridor) – tu te vê italiano?
(informante) – como?
(Inquiridor) – tu ti vê uma pessoa italiana?
(informante) – ah, eu acho que já é difícil de dizer, acho que não.. acho que não, porque é só
convivendo lá mesmo pra saber como é que é exatamente, né, mas eu acho que não exatamente, né..
entendo a origem em si, mas não posso dizer : “ah, eu sou italiano, entendeu?”. [...] Eu me vejo com
descendência italiana.
No fragmento “eu acho que [...], acho que não” (SD24) entendemos que „acho‟ veicula
gestos de sentidos que demonstra um sujeito atravessado pelo sentimento de pertença ao
grupo identitário e ao mesmo tempo alheio a este processo, compreendemos assim que a
questão linguística, ou seja, o „não falar a língua de origem‟ funciona em sua memória como
deslize de „não poder se sentir parte da identidade de origem‟.
Entendemos que nos processos de identificação, no contexto de comunidade ítalo-
gaúcha-norte-mato-grossense, a geração migrante se sente mais próxima a origem, à língua e
identidade que a geração descendente, pois esta última se encontra inserida num contexto
monolíngue em que não há isolamento dos meios de comunicação e a vida quotidiana está
voltada ao uso da língua de madeira, a língua portuguesa.
3.2.2.2 RECORTE 2: Imaginário de sujeito brasileiro 28
Abaixo se encontram práticas discursivas referentes à geração migrante que se
inscrevem ao imaginário de sujeito brasileiro.
3.2.2.2.1 Geração migrante
[SD25 – SIM2] (Inquiridor) – E, par esempio, quando dise “taliani tutti bona gente” parchè i dise
cossita?
(informante) – Parchè eu acho che gà ciapà che lu l‟è bom, né?.. taliani bona iente, parche pensa ben
el talian eu acho el l‟è safa de pì de tutto. Sí, parche ti ghe tu visto, vamos supor, un brasileiro con un
bel vignale, con bel alvoredo, con una bona sapa na bona foice?
El la.. El la buta via! Ma el talian.. vai là par sule par verder !‟‟
Trad. (Inquiridor) – E, por exemplo, quando dizem “italiano tudo boa gente” por que dizem assim?
(informante) – Porque eu acho que tomaram eles como bons, né? Italianos boa gente, porque pensa
bem, o italiano eu acho que se safa mais do que todos. Sim, por que você já viu, vamos supor, um
brasileiro com um belo vinhedo, com um belo arvoredo, com uma boa enxada, uma boa foice?
Ele a.. ele a joga fora! Mas o italiano.. vai lá pro sul para ver!
28
Retomando o que foi dito na introdução deste trabalho, o termo sujeito brasileiro é pensado pelo viés
discursivo-imagético produzido pelo sujeito ítalo-gaúcho.
58
[SD26 – SIM2] (informante) – Porque é assim: o gringo é o italiano, o preto.. moreno é os “brisòqui”
pros antigamente.
(Inquiridor) – Como?
(informante) – Brisòqui!
[SD27 – SIM2] (Inquiridor) – Ma ti pensa che le persone gà.. in tel quel tempo chi non era talian
gavea preconceito contra i taliani ?
(informante) – Ghe gera, e l‟era ben grande !
(Inquiridor) – E che cosa disea queste persone?
(informante) – Ah i brasilieri i gera sempre voltà par na banda!
(Inquiridor) – Sí?
(informante) – Si! I taliani i era pì davanti e i brasilieri i era lá in drio.”
Trad. (Inquiridor) – Mas você pensa que as pessoas têm.. naquele tempo quem não era italiano tinha
preconceito com os italianos?
(informante) – Havia, e ele era bem grande!
(Inquiridor) – E o que diziam estas pessoas?
(informante) – Ah, os brasileiros ficavam sempre para um lado!
(Inquiridor) – Sim?
(informante) – Sim! Os italianos ficavam mais adiante e os brasileiros ficavam lá atrás/ abaixo.
[entendemos que o sujeito se refere à localização das famílias dispostas na comunidade onde nasceu]
[SD28 – SIM 1] (Inquiridor) – - Lora sinseri, che cosa pì ti pensa di talian, de diverso del popolo
brasilian?
(informante) – Ma el popolo brasilian.. também, lu l‟è cosa.. ma ghe zè quei mais mulati, ghe zè quei
che delle volte dise che.. vingativi [...] „„tu me surró, varda che mi te ciapo!” E da una pì granda.. un
tapo mais grando que tu me deu.. ma al final, né.. ma mi digo che [...] quei taliani, i zè brasiliani
anca.. ma lora el italiano mesmo, da Itália.. lori gera SÉRIE, lori non incomodea, non se catea de..
de brigar. Lori se dea con tutti. Afinal i era una cosa che nò i gera vingativi.
Trad. (Inquiridor) – Então sinceros, o que mais você pensa do italiano de diferente do povo brasileiro?
(informante) – Mas o povo brasileiro.. também, ele é assim.. mas há aqueles mais mulatos, existe
aqueles que às vezes diz que.. vingativos [...] “você me surrou, olha que eu te pego!” e dá uma
maior.. um tapa maior que aquele que você me deu.. mas afinal, né.. mas eu digo que [...] aqueles
italianos29
, eles são brasileiros também.. mas agora o italiano mesmo, da Itália.. eles eram sérios,
eles não incomodavam, não brigavam. Eles se davam com todos. Afinal era uma coisa que não eram
vingativos.
[SD 29 – SIM 1] (informante) - O meu nono, ele era um tanto racista, parchè ele não queria ver
negro..
(Inquiridor) – Maridarse con na fiola..?
(informante) - Nó, nó nó!... parchè naquele tempo là non tinha nò.. ma uma vez, o meu pai, ele pegou
um.. um preto afinal.. ma l‟era da romai de età tamém, assim ele tinha là uns 30 anos, 25 a 30 anos.. e
ele sempre ia trabalhar de pion em volta par le case...
Sempre uma pessoa séria, que ele não era.. um.. um prevalecido, desaforento, afinal assim.. então o
meu pai e o meu tio, eles chamaram ele pra vir ajudar pra nós trabalhar na roça.. e lora el me nono, el
gà dito cossita “vardé fioi de Dio! Mi no gò caro gnanca un poco”, el gà dito “vedere un negro dentro
delle me porte”.. e lora el pupà e el zio, el gà dito cossita: “Ah pupà!”.. el gà dito.. “ el l‟è una persona
come noantre!”
“MA!”.. el gà dito.. “ma l‟è un negro!”, e lora el pupà, el gà dito: “sí ma e noantre?”… el gà
dito…“che si era.. de voia”, el gà dito.. “l‟era d‟esser in tela Itália, e i ve parà via” [...] “i ve gà tocà
vegner salvarse par de qua in tel Brasil”.. el gà dito “e lora?”
Lora el gà dito “ma che qua in tel Brasil gnh‟è dei bianche”, e lora el pupà el gà dito de volta “ma
ghe zè os negri e quei chi comanda!”.. e afinal de là lora, ele ficava quieto um poco, ma ele non
gostava desse rapaz que vinha lá as vezes ajudar a carpir.
Trad. (informante) - O meu avô, ele era um tanto racista, porque ele não queria ver negro.
29
Entendemos que o sujeito se refere aos descendentes dos imigrantes italianos nascidos no Brasil.
59
(Inquiridor) – Casar-se com uma filha?
(informante) – Não, não, não...porque naquele tempo lá não tinha não. Mas uma vez, o meu pai, ele
pegou um.. um preto afinal, mas era um já de idade também, assim ele tinha lá uns 30 anos, 25 a 30
anos.. E ele sempre ia trabalhar de peão lá em volta de casa.
Sempre uma pessoa séria, que ele não era um.. um prevalecido, desaforento, afinal assim.. então o meu
pai e o meu tio, eles chamaram ele pra vir ajudar pra nós trabalhar na roça.. e então o meu avô, ele disse
assim: “ prestem atenção/ olhem, filhos de Deus! Eu não gostei nem um pouco”, ele disse, “ ver um
negro dentro das minhas portas”... e então o pai e o tio, ele disse assim: “Ah, pai!”, ele disse, “ele é uma
pessoa como nós!”
“MAS!”, ele disse, “mas é um negro!”. E então o pai, ele disse: “sim, mas e nós?”, ele disse, “que se
fosse por vontade”, ele disse, “era de estar na Itália, e acabamos parando na rua”[...] “ e coube a nós
virmos para nos salvarmos, para este lugar aqui no Brasil”, ele disse, “e então?”
Então ele disse: “mas aqui no Brasil há os brancos!”, então o pai disse de volta “mas existe os
negros e eles que comandam!”.. E afinal de lá, então ele ficava quieto um pouco, mas ele não gostava
desse rapaz que vinha lá às vezes ajudar a carpir.
[SD 30– SIM 5] (informante) [...] os brasileiro não aceitava que o gringo trabalhava e tal...e eles
viviam devendo, né. Se tu adiantava um dinheiro para eles fazer uma roça, tu tinha que dar
adiantado um porco gordo pra eles tratar a família. Quanto que eu perdi! Perdi porco gordo de mais
de 5 quilos pra tratar de uma família do cara e nunca mais veio fazer a roça.”
Observando as sequências discurvas apresentadas acima, percebemos que o ponto que
evidencia o processo imaginário entre o ítalo-gaúcho e o brasileiro é primeiramente a cor, no
entante há um deslize que direciona a relação destes com o trabalho, e, em seguida, o
comportamento nas ações da vida cotidiana.
No discurso do ítalo-gaúcho, “o brasileiro”, “quei mais mulati/ aqueles mais
mulatos”(SD28) ou “brisòqui”(SD26) está relacionado à “vingativi/ vingativos”(SD28),
“brigar”(SD28), que não tem “un bel vignale, con bel alvoredo, con una bona sapa na bona
foice / um belo vinhedo, com belo arvoredo, com uma boa enxada, uma boa foice?”(SD25),
pois “el la buta via/ ele a joga fora”(SD25), “pra eles fazer uma roça [...] tinha que dar
adiantado”(SD30), “viviam devendo”(SD30), “ficavam sempre para um lado”(SD27), por
fim, era quem dizia “tu me suró, varda che mi te ciapo!/ você me surrou, olha que eu te
pego!”(SD28)
Rovílio Costa e Luis A. De Boni em Nós, os gringos (1998, p.21) tecem alguns
comentários sobre o imaginário de sujeito-brasileiro feitos pelos imigrantes italianos
radicados na Serra Gaúcha. Tal imaginário é atravessado pelas relações de vida e trabalho.
Vejamos o que dizem Costa; De Boni (1998, p.21):
Esta visão economicista nos torna até mesmo um tanto daltônicos quanto a cor da
pele humana: nossa prevenção ante o negro, geralmente, têm pouco de racismo e
muito de desaprovação devido ao modo como ele encara a vida e o trabalho
(grifo nosso). Convêm mesmo observar que nossos pais usavam o termo “brasilián”
(brasileiro) tanto para indicar o luso-brasileiro, como para indicar o negro.
60
Encontramos no discurso do ítalo-gaúcho migrante relação a uma memória que se
parafraseia com o discurso do governo do período imperial brasileiro, este que, segundo Payer
(2001, p.236), tinha como um dos objetivos a alcançar, com a abertura dos portos brasileiros à
imigração europeia no final do século XIX, a “[...] projeção de caldeamento das raças”,
portanto, a política imperial brasileira tinha um discurso
[...] comum da oligarquia das nações latino-americanas, [...] sua alienação cultural
que a fazia ver sua própria gente com olhos europeus. Como estes, olhavam
suspeitosos os negros e mestiços que formavam a maior parte da população e
explicavam o atraso prevalecente no país pela inferioridade racial dos povos de cor.
(RIBEIRO, 1995, p.436)
Compreendemos que o imaginário do sujeito-brasileiro, que se materializa no discurso
do ítalo-gaúcho, é produzido por meio de uma memória onde se mantém o discurso de
etnocentrismo do governo brasileiro imperial, que estimulou a vinda de seus antepassados
para substituir uma população tida pela cor da pele como “matuta (do mato), incapaz e
despreparada”, no entanto é necessário perguntar: por que este discurso se mantém na
memória do sujeito ítalo-gaúcho?
É possível empreendermos a tese de que tal discursividade é construída no fato onde o
ítalo-gaúcho também é imaginado no discurso do sujeito-brasileiro com valor ligado ao
desprestígio, à desaprovação, pois, termos como „gringo‟, que se desliza para estrangeiro,
aquele que não pertence à origem brasileira, ao território nacional, o intruso etc., circulam no
discurso do sujeito-brasileiro, uma vez que tal materialidade discursiva habita a memória dos
imigrantes e de seus descendentes funcionando em sentidos relacionados ao “vingativi/
vingativos”(SD28), “tu me surró/ você me bateu”(SD28), “un tapo mais grando/ um tapa
maior”(SD28), que estrutura uma memória de violência, assim como relata Constantino
(1994, p.23) sobre a brutalidade sofrida pela colônia italiana na Revolução de 1893 no Rio
Grande do Sul. Segundo a autora (idem, 1994, p.23), na revolução federalista se
Discorre sobre graves incidentes: Antonio Purini, pequeno comerciante, fora agredido
por militares a quem negara fornecimento de mercadorias. Teve brutalmente
assassinado o pai ancião, com o crânio esfacelado. Um oficial cortou uma orelha do
cadáver, advertindo que igual lição seria dada a outros italianos (grifo nosso).
Estamos diante de um entrecruzamento de formações imaginárias mediadas pela
noção de antecipação, que, segundo Orlandi (2000, p.39), se trata da capacidade que o sujeito
tem “[...] de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor “ouve”
suas palavras. [...] Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de
61
um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte”. Vejamos o
imaginário funcionando no discurso do ítalo-gaúcho migrante:
I SI (SB): Imagem que o sujeito ítalo-gaúcho (e seus descendentes) faz de sujeito-
brasileiro = vingativo, preto, negro, devedor, os que ficavam sempre para um lado
etc.
I SI (SB) I (SI): Imagem que o ítalo-gaúcho faz da imagem que o sujeito brasileiro
faz do ítalo-gaúcho = o „gringo‟, o de fora, o intruso, o estrangeiro.
A força e os sentidos que gravitam nessas formações imaginárias, fortemente
marcadas, permitem a manutenção ou substituição dessas, porém, cada sujeito, durante o seu
respectivo percurso produzido pelo encontro da história com a língua, permitirá a re-
significação ou a permanência destes imaginários.
No fragmento “quei taliani i zè brasiliani anca/ aqueles italianos são brasileiros
também” (SD28) vemos que a FD da ítalo-gaúcha migrante, filha de descendentes de
imigrantes italianos nascidos no Brasil, se aproxima à do sujeito brasileiro, há uma re-
significação imersa na temporalidade, uma vez que o ítalo-gaúcho também é „vingativo‟, pois
não representa “el italiano mesmo, da Itália”, os vindos da Itália “lori gera SÈRIE, lori non
incomodea, non se catea de... de brigar. Lori se dea con tutti/ eles eram SÉRIOS, eles não
incomodavam, não brigavam. Eles se davam com todos ”(SD28). Observamos que o que
habita no imaginário do sujeito ítalo-gaúcho migrante é um discurso que mantém o dizer do
governo imperial brasileiro, o responsável político que incentivou a vinda de seus
antepassados, os imigrantes ao Brasil. No entanto, com a convivência com a nova terra, houve
movimentos que proporcionaram a re-significação de identidades.
Concluímos que, tanto a imagem que o ítalo-gaúcho tem do brasileiro, quanto a que
esse sujeito tem da imagem que o sujeito brasileiro tem dos descendentes de italianos, são
frutos de uma historicidade de exclusão social de âmbito nacional regida por uma educação
conteudista e não transformadora que exclui, interdita, fragmenta, inferioriza e isola; onde
uma criança parda, branca, mestiça ou negra, descendente de imigrantes ou nativos, que tenha
o cabelo crespo ou liso, que more em uma favela, ou no campo, que tenha certa concepção
religiosa familiar, ou que seja ou não falante de uma língua minoritária brasileira, não consiga
perceber que sua característica sócio-cultural, que a constitui como sujeito, não é motivo, nem
conceito, para sua exclusão, seu isolamento, sua inferiorização ou seu apagamento.
62
Portanto, concordamos com a filósofa e educadora Viviane Mosé 30
que a realidade
social brasileira é fruto de uma escola que forma uma sociedade imatura, isolada e
fragmentada, que promoveu, e ainda em certas realidades promove, a permanência do
imaginário em que a diversidade linguística e cultural brasileira é paráfrase de desigualdade
social, além disso, é esta escola que produz, como uma fábrica, indivíduos isolados e políticos
imaturos. Acreditamos que esta pesquisa contribui para a desconstrução e re-significação
deste imaginário.
3.2.2.2.2 Geração Descendente
[SD31 – SID3] (informante) – Hoje a mãe até vai bastante lá visitar o nono e a nona, mas quando a
gente era criança não muito.. porque dizem que o nono31
chamava ela de preta, até depois que
casou com o pai continuou chamando. Enfim, não que a mãe era preta, mas acho que é porque ela
é paranaense e nasceu num lugar onde fala meio Gino e Geno, meio „porta‟, sabe, então, não é
bem o jeito de falar igual, assim, que nem na família do pai, né, que fala meio cantando. [...] Mas
pra mim, assim, a mãe é branca que nem eu.
Na formulação “a mãe é branca que nem eu” encontramos um sujeito que se identifica
com as características étnicas que vê em sua mãe, um movimento contrário à formação
imaginária que tinha o seu avô, “o nono”, uma vez que o conceito de ser brasileiro, ora visto
como “preto” em alguns discursos de sujeitos migrantes, para o que nasceu na RNEMT é re-
significado, em que ser brasileiro é ser “branca que nem eu”.
A mãe para este sujeito enunciador é vista com diferença não pela sua cor, mas pela
língua que a constitui, uma língua que não se assemelha àquela falada pela família paterna.
Essa diferença se materializa no discurso deste sujeito através do “nasceu num lugar onde fala
meio Gino e Geno32
, meio „porta‟, sabe [...]” (SD31), o qual representa um português com
marcas/ traços distintos do falar da região de origem paterna, em oposição à “família do pai,
né, que fala meio cantando” (SD31), que, no caso, entendemos que representa um português
sulista com marcas da língua alóctone, no caso o vêneto sul-rio-grandense.
3.2.3 PLANO DISCURSIVO 3 - Lugares da língua de origem e memória
Neste plano reunimos fragmentos discursivos que se filiam aos lugares da língua de
origem e sua memória. Portanto, o dividimos em recortes, como dito anteriormente. No
30 Entrevista ao programa Café filosófico Canal CPFL Cultura. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=YRRzVBkAS04&feature=related, acessado dia 12, Maio, 2012. 31
Avô, s.m Nono (pupà del me pupà o dea mama) (TONIAL, 1997, p.37)
trad. Avô (pai do meu pai ou da minha mãe) (tradução nossa) 32
Gino e Geno é uma dupla de cantores de Música Sertaneja do Brasil que iniciou sua carreira em 1970.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gino_%26_Geno. Acesso em: 28, Maio, 2012.
63
entanto, somente em família, religião e Mato Grosso que analisamos formulações das duas
gerações entrevistadas. Nos recortes escola, culinária, ditadura e interdição linguística, e povo
migrante trabalhamos somente com discursos da geração migrante, pois há fortes sentidos
relacionados à origem étnica e à língua de origem que não se apresentam tão fortemente na
geração descendente, por falta de tempo escolhemos analisar somente a materialidade
discursa da geração que migrou para a RNEMT.
3.2.3.1 RECORTE 1 - Família
A seguir, encontramos recortes discursivos que se remetem à relação da língua com a
memória dos membros familiares.
3.2.3.1.1 Geração migrante
[SD 32 – SIM 1 ] (informante) – Che l‟è la me mama !
(Inquiridor) – La to mama ?
(informante) – La me mama.. la me mama la zè morta con 43 anni, é! .. mama de 13 fioi.
La mama … la mama e el me nono!
Trad. (informante) – Que é a minha mãe!
(Inquiridor) – Sua mãe?
(informante) – A minha mãe.. a minha mãe morreu com 43 anos, é!.. mãe de 13 filhos.
A mãe .... a mãe e o meu avô!
[SD 33 – SIM 4] (informante) – mi fa ricordar dei mei genitori..[...] Lora me vien in mente.. me vien
in mente dei mei genitori, me dà „SALDADE‟ dei mei genitori.
(Inquiridor) – La to mama e el to pupa. Che imagine che vien de lori?[...]
(informante) – De lori? La presensa de lori me par de veder lÍ de mi esser in casa con lori.
Trad. (informante) – me faz recordar dos meus pais.. [...] Então me vem na mente.. vem na mente os
meus pais, me dá SAUDADE dos meus pais.
(Inquiridor) – A tua mãe e o teu pai. Que imagem vem deles?
(informante) – deles? A presença deles.. tenho a impressão (me parece) de ver ali.. de eu estar em casa
com eles.
[SD 34 – SIM 2] (informante) – Mi me ricordo de tanto che i era con la me nona, e el me nono, e le
zie.. i era otto sorelle né.. adesso ghin‟è tre.. i era fradei par parte de mama, né.. par parte del pare, mi
gò cognessesto pochi.. ma quasi tutti. e sempre si parlea in talian.. e tutto in talian.. va catar su i
radicci.. va far un chimarrão.. va pareciar un café.. va tor un toco de pan.. na ciopa de pan..”
Trad. (informante) – Lembro-me mais quando estávamos com a minha avó, o meu avó, e as tias.. e oito
irmãs, né.. agora há três.. eram irmão por parte de mãe, né.. por parte do pai, eu conheci poucos.. mas
quase todos. E sempre se falava em talian.. e tudo em talian.. vai colher o radicci.. vai fazer um
chimarrão.. vai preparar um café.. vai buscar um pedaço de pão.. uma fatia de pão..”
A paráfrase também se presentifica na representação dos membros da família como
memória da língua. Vejamos que isso se apoia em “la mama e el me nono/ a mãe e meu avô”
(SD 32), “Mi me ricordo de tanto che i era con la me nona, e el me nono, e le zie/ eu me
64
lembro mais quando estávamos com a minha avó, o meu avô, e as tias” (SD 34), “mi fa
ricordar dei mei genitori/ me faz recordar dos meus pais” (SD 33).
O grau de afetividade aos membros da família representa a memória da língua, e a
falta desses intensifica os processos de identificação com a língua, como se apresenta neste
período (SD 33) “mi fa ricordar dei mei genitori..[...] Lora me vien in mente.. me vien in
mente dei mei genitori, me dà „SALDADE‟ dei mei genitori/ me faz recordar dos meus pais..
[...] Então me vem na mente.. vem na mente os meus pais, me dá SAUDADE dos meus pais”
(SD 33).
Em (SD 33) “Mi fa, me vien, me dà, me par, mi esser/ me faz, me vem, me dá, me
parece, eu estar [ou ser]” e (SD 34) “mi me ricordo/ eu me lembro”, encontramos o sujeito
interpelado pelo esquecimento ideológico, este que, segundo Orlandi (2000, p.35), “[...] é da
instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse
esquecimento temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade,
retomamos sentidos existentes”. Portanto, observamos que lembrar da língua de origem é
recordar sua imagem associada à presença dos pais e dos avós, é um discurso onde os sujeitos
estão marcados por uma FD comum. Assim, os sentidos não se originam pela vontade dos
sujeitos e neles em si, e sim porque se inscrevem na língua e na história.
3.2.3.1.2 Geração descendente
[SD 35 – SID 1] “(informante) - Eram agricultores.
(Inquiridor) – E tu tens orgulho da origem da tua família? O que você pensa disso?
(informante) - De certa forma sim, né, de certa forma sim.
(Inquiridor) – O que você tem na sua vida assim, que você percebe que é algo que você herdou da sua
família?
(informante) - Hum, como eu posso te dizer, porque todos os tios, cada um tem um perfil, desde o bom
ao não bom, é.. então, como eu posso te dizer, eu não sei se me foquei tanto, ou vê o geral pra definir ou
se o contexto externo, também a educação fora e em casa, então, acho que é a soma dos dois, o que eu
sou hoje não é só que.. acho que é 50% conhecimento externo, e 50% influência interna, né.”
Em “de certa forma sim, né” (SD35), entendemos que há um silenciamento atrelado
principalmente ao „né‟. Algo atravessa o interdiscurso deste sujeito que interdita sua certeza
por meio de um processo onde o enunciador se encontra entre-sujeitos. Tal sujeito-enunciador
é afetado por uma memória que se encontra num jogo conflituoso entre a imagem que tece a
origem, uma família de agricultores, materializada em “influência interna”, com a imagem de
um sujeito produzido pela sociedade urbana, o “[...] conhecimento externo” (SD35).
Entendemos que o sujeito enunciador em seus processos de identificação se afasta da
posição-sujeito „agricultor‟, inscrita na historicidade da família, e se aproxima à posição-
65
sujeito pertecente a um contexto urbano, a um contexto de materialidade social movimentada
pela globalização.
3.2.3.2 RECORTE 2 - Culinária
Vejamos, abaixo, algumas sequências discursivas de sujeitos migrantes inscritas à memória da
culinária familiar.
[SD 36 – SIM 2] “(Inquiridor) – E el magnar talian? Che cosa ti pensa del magnar talian?
(informante) - Ahh, l‟è gostoso! (risos)
(Inquiridor) – Sí? Parchè?
(informante) - Non sò!
(Inquiridor) – Che cosa diversa che ghin‟è tra el magnar brasilian e el talian?
(informante) - Ah! Mi cato el magnare tutto bon, tutto gostoso.. ma parece che quei che fai i taliani l‟è
pì.. pì gostoso! Vamos supor, una polenta.. un frango in ólio.. um gnochi[...] un bel churasco! Un bel
litro de vin! [risos] vien da onde?
Trad. (Inquiridor) – - E a comida italiana? O que você pensa da comida italiana?
(informante) - Ahh, ela é gostosa! (risos)
(Inquiridor) – Sim? Por quê?
(informante) - Não sei!
(Inquiridor) – Que coisa diferente existe entre a comida brasileira e a italiana?
(informante) - Ah! Eu acho a comida toda boa, tudo gostoso.. mas me parece que aquela que faz os
italianos é mais.. mais gostoso! Vamos supor uma polenta.. um frango ao ólio.. um nhoque33 [...] um
bom /belo churasco! Um bom/belo litro de vin! [risos] vem de onde?
[SD 37 – SIM 1] (Inquiridor) – E per ti, el magnar talian per ti, ti preferisce el magnar talian che i
altri?
(informante) - Ma mi gò pì fame de magnar el talian do che el novo del Brasil agora.. ma el pan
cosinà in tel forno, le bolaxe del forno de barro de tijolo là.. la polenta della caldiera de ferro.
Trad. (Inquiridor) – E, para você, a comida italiana para você, você prefere a comida italiana que as
outras?
(informante) - Mas eu tenho mais fome de comer a italiana que o novo do Brasil agora.. mas o pão
feito no forno, a bolacha do forno de barro de tijolo lá.. a polenta da caldeira de ferro.
A comida italiana, “el magnar talian”, para este sujeito-enunciador está relacionada à
“l‟è gostoso/ é gostosa”(SD36), “tutto bon/ tudo bom”(SD36) e “pì gostoso/ mais
gostosa”(SD36) mostrando a direção dos processos de identificação com a tradição culinária
de origem étnica.“Gostoso” se relaciona à “polenta”, “un frango in ólio/ um frango ao
óleo”(SD36), “un gnochi/ um nhoque”(SD36), “un bel churrasco!/ um bom/belo
churrasco”(SD36), “bon litro de vin!/ bom/belo litro de vinho!”(SD36), “pan cosinà in tel
33
Nhoque. S.m. massa de farinha de trigo, ovos e queijo, preparada em forma de pedaços arredondados. (LUFT,
1987, p.394)
66
forno, le bolaxe del forno de barro/ pão assado no forno, as bolachas do forno de
barro.”(SD37)
“Pí gostoso/ mais gostoso”(SD36) se encontra numa situação de paráfrase com “mi gò
pì fame de magnar el talian / tenho mais fome de comer a comida italiana”(SD37). Os
sentidos materializados nesses fragmentos discursivos apresentados se confrontam com os
sentidos produzidos por “che el novo del Brasil agora/ que o novo do Brasil agora”(SD37),
que entendemos como a comida do povo brasileiro, da terra aonde o imigrante desembarcou.
Trata-se de um sujeito atravessado pela memória da família, de hábitos culinários
relacionados aos sujeitos que os praticavam, se filiando ao afeto, à comida e à memória de
quem a preparava.
3.2.3.3 RECORTE 3 - Religião
Apresentamos abaixo algumas sequências discursivas relacionadas à temática.
3.2.3.3.1 Geração migrante
[SD 38 – SIM 2] (Inquiridor) – Ma el talian l‟era na persona religiosa?
(informante) – Aahh, l‟è! Aahh, l‟è! El talian eu acho che l‟è na persona che tien pì firme la
releion34
.
(Inquiridor) – La to fameia como l‟era?
(informante) - Tutti catolichi. [...]
(Inquiridor) – E la to mama che cosa pensea della religión? Como che l‟era?
(informante) - Ahhhhh!! Maaa nisssuni andea dormir sensa pregare!
(Inquiridor) – Nò?
(informante) - Maaa! Ela fea la polenta, e lì começava dei pì vecio, fin che quei scominsiaria parlare
um pouco manco orassiòn ma tocava dirle par doppo andar dormire!
Trad. “(Inquiridor) – – Mas o italiano era uma pessoa religiosa?
(informante) – Ahh, ele é! Ahh, ele é! O italiano eu acho que é uma pessoa que mantém bem firme
a religião.
(Inquiridor) – A família como era?
(informante) - Todos católicos [...]
(Inquiridor) – E a tua mãe, o que ela pensava da religião? Como que era isso?
(informante) - Ahhhhh!! Mas ninguém ia dormir sem rezar!
(Inquiridor) – Não?
(informante) - Maaa! Ela fazia a polenta, e ali começava do mais velho, até que estes começassem a
falar um pouco menos oração, mas cabia a eles dizerem para depois irem dormir!
[SD 39 – SIM 2] (Inquiridor) – [...] Lora el talian l‟è un popolo religioso?
(informante) - Maaa MUITO!
Trad. (Inquiridor) – - [...] Então o italiano é um povo religioso?
(informante) - Mas MUITO!
34
Esta informante é natural de Nova Palma – RS, região da quarta colônia italiana (colônia Silveira Martins,
[rever segundo capítulo]) no Rio Grande do Sul, a variedade de vêneto sul-rio-grandense falada por este sujeito
se difere às dos outros informantes. Tal fato se verifica na palatização da letra G, por exemplo em „releion‟
[Religiòn (TONIAL, 1997, p.289)], „iente‟- veja na SD19 – [Gente (TONIAL, 1997, p.159)], ou na permanência
do „e‟ nas terminações verbais ARE, IRE (parlare, dormire etc) marcadas na fala.
67
[SD 40 – SIM 6] (Inquiridor) – E a família era católica?
(informante A) - Graças a Deus enraizou, porque não quero saber de outra religião (risos), pretendo
ser, né. (risos)
(Inquiridor) – sim..
(informante B) - porque antigamente l‟era fadiga gaver um nò católico.. mia vero? Italiano católico..
tutto quei!.. tutti..[tradução 01]
(informante A) - Agora que tão ali, batizam, crismam tudo, casam e daí trocam de religião. Má uma vez
não era assim, né.
(Inquiridor) – ah..
(informante A) - Uma vez não era assim, não tinha tanta religião assim, né!
Trad. 01. [...] porque antigamente era difícil ter um não católico, não é verdade? Italiano católico..
todos aqueles, todos! [...]
Os gestos de sentido provocados por “Ahh, l‟è! Ahh, l‟è! / Ahh, ele é! Ahh, ele é!”,
“Maaa MUITO! / Mas é MUITO!” (SD39) e “graças a Deus enraizou” (SD40) se aproximam
ao sentimento de orgulho à religião de origem familiar. Entendemos que há sentidos
relacionados à tradição religiosa funcionando na memória destes sujeitos, tais sentidos estão
estritamente ligados ao repúdio ao abandono da religião de origem, como verificamos nas
SDs seguintes “porque não quero saber de outra religião” (SD40), “agora que tão ali, batizam,
crismam tudo, casam e daí trocam de religião” (SD40), “uma vez não era assim, não tinha
tanta religião assim, né!” (SD40)
Podemos levantar a relação sujeito-língua constituindo o elo da comunidade com a
religiosidade em “El talian eu acho che l‟è na persona che tien pì firme la releion / O italiano
eu acho que é uma pessoa que mantém firme a religião”(SD38).
Nessas práticas discursivas entendemos a língua como constituinte da fé religiosa que
se efetiva quando se remete às condições de produção dos sujeitos em análise, uma vez que a
relação da língua com a religiosidade está estritamente ligada à herança da fé cristã
constituinte da identidade do descendente do imigrante. A religião se vincula à uma tradição
familiar de manter a comunidade étnica com o rito religioso da origem. Segundo Perotti
(2007, p.65),
Os imigrantes italianos trouxeram consigo além dos diferentes dialetos também a
religiosidade em suas mais variadas manifestações. Tal era a importância dada pelos
imigrantes para a religião que, já nos primeiros tempos, superadas as dificuldades
iniciais, a próxima tarefa era constituir, com a colaboração da comunidade, o local
onde poderiam ser feitos os cultos.
A construção da paróquia, o levantamento da Igreja ou da capela, eram, segundo a
autora (2007, p.67), algo que vai além do oportunizar não somente o reforço da religião, como
também de “[...] encontrar-se com as famílias vizinhas, dividir os anseios, contar as
experiências, enfim, alimentar uma vida em sociedade”. Vejamos isso se refletindo no recorte
68
discursivo seguinte, em que o fato de constituir a comunidade pela construção da paróquia se
repete no percurso migratório do ítalo-gaúcho, desde a Região de Colonização Italiana no Rio
Grande do Sul até as terras de Mato Grosso:
[SD 41 – SIM 4] (informante) – Semo statti tre anni là in Revaldo, dristito di Encantado, construimo su
la paroquia… semo andatti star a Campina do sul, darente Erechim... 50 km dá de Erechim a Campina.
Stati là 4 anni e sete mese, far su la paroquia anca là.. ai el ga dito: “ andemo a Santa Catarina?” ...
“ andemo!”.. su Santa Catarina, semo arivai là e la paróquia de construir anca là.. “constrói la
paróquia anca là!”.. “andemo al Mato Grosso?”.. riva al Mato Grosso, “la paróquia de construir
anca São Camilo!” .. “constròi la paróquia São Camilo!”.. adesso stevi via rua dei cajueiros.. vegnesti
star qui.. “ la catedral de construir!”.. gò idea che l‟è la última che gue giutemo.
Trad. (informante) – Estivemos por três anos lá em Relvado, distrito de Encantado, construímos a
paróquia.. nos mudamos para Campina do Sul, perto de Erechim... 50 km dá de Erechim a Campina.
Estivemos por lá 4 anos e sete meses, ajudemos a levantar a paróquia lá também.. aí ele disse: “- vamos
para Santa Catarina?” ... “vamos!”.. Em Santa Catarina, chegamos lá, e havia paróquia para construir
lá também.. “constrói a paróquia também lá!”... “- vamos para o Mato Grosso?”... chegando ao Mato
Grosso, “ há a Paróquia São Camilo para construir também!”... “constrói a paróquia São Camilo!”..
agora saímos da Rua dos Cajueiros.. vinhemos morar aqui.. “há a catedral para construir!”.. acredito
que é a última que ajudamos a construir.
Entendemos que a vontade de ver a comunidade unida pela religião, e a família
inserida neste processo de construção do espaço da fé religiosa familiar é materializa em
“ademo!/ vamos!”(SD41) e o “constròi, contruir/ constrói, construir”(SD41). Esse fato é
constituinte de uma repetição alusiva a uma tradição em que o ítalo-gaúcho migrante não se
vê sem a existência de um espaço religioso que o constitui como posição-sujeito imersa num
percurso socio-histórico tecido no plano geográfico que liga o Rio Grande do Sul ao Mato
Grosso.
3.2.3.3.2 Geração descendente
[SD 42 – SID 1] (Inquiridor) – E, por exemplo, e a questão da religião como que é?
(informante) – ah eles são bem, a maioria vai na igreja. Bem, pode se dizer que são bem ligados em
religião, né.
(Inquiridor) – São?
(informante) – Agora nós, tipo, os filhos já não.
(Inquiridor) – Por que você acha?
(informante) – Porque depois, é que, tipo, como eu posso te dizer, né. A gente não foi tanto seguindo
todos os conhecimentos passados de pai pra filho, então, conforme a gente foi.. vai criando, pegando o
conhecimento, analisando melhor, às vezes a gente opta. Então não tem aquela pressão, não, você tem
que fazer isso, não, você tem que fazer isso se não você vai pro inferno, não, você tem que fazer isso
aqui, não, você tem que pagar o dízimo por causa disso... então, é opcional, chega no meu ponto que
“não, eu não vejo o porquê isso!”, aí não tem que discutir, então tipo tem esse senso, né, você chega a
tal idade, tipo, eu tive que fazer toda a crisma, tudo mais tal.
(Inquiridor) – Já você teve que fazer?
(informante) - Eu tive que fazer, mais aí que tá, né, depois que terminei tudo, tá, „eu acho que não é
necessário para mim‟, só que já tinha feito já, então.
[...]
(Inquiridor) – Hum. E o que os teus pais acham disso de vocês?
69
(informante) – Ah, eles estranham, sabe como é que é, né..não é que, tipo, você crê em nada, coisa
assim, mas tem uma opinião própria, né, sobre, né. E é coisa que não tem como discutir, porque a gente
tem um certo conhecimento, eles têm outra visão, então é diferente! E não tem por que discutir, às vezes
até “ah, mas tem que ir pra igreja, não sei o que, não sei o que”.. mas, no fim das contas, né.
(Inquiridor) – Hum..
(informante) - Tipo, como eu posso dizer, né.. eu sou mais em adotar a filosofia de vida em si certa
do que ter uma.. ter uma rédia, né. Entendeu?
Na SD (42) encontramos uma rede de sentidos re-significada entre a geração ítalo-
gaúcha migrante para a descendente no que tange o sentido de religião.Para o descendente,
religião se desliza para “não, eu não vejo o porquê disso!”, “acho que não é necessário para
mim” e “ter uma rédia”.
“Ter uma rédia” gravita entre os sentidos de ser „irracional, controlado, manipulado‟
por regras ou dogmas. Encontramos um sujeito que está entre-sujeitos, pois se sente afetado
pela imagem que faz em seus antecedentes de si, estes que “são bem ligados em religião”,
pois “eles estranham”, e um sujeito que tende a se identificar ao “adotar a filosofia de vida”,
pois esta está sustentada no “a gente tem um certo conhecimento”(SD42).
Compreendemos que a geração descendente se encontra em condições de produção
próximas ao „ter acesso ao conhecimento teórico‟, da urbanização, do multiculturalismo,
distintas das condições do sujeito ítalo-gaúcho migrante, que são mais próximas à memória da
vida familiar na colônia e na comunidade, à homogeneidade de credo religioso e ao maior
isolamento sócio-cultural. Essa contra-posição permitiu a inscrição do sujeito descendente à
uma FD que se movimenta em direção diversa, e que não corresponde à de seus antepassados.
3.2.3.4 RECORTE 4 – Escola
Seguem-se, abaixo, alguns recortes discursivos tecidos pela geração migrante,
selecionados e analisados, que se inscrevem na temática escola.
[SD 43 – SIM 2] (informante) - “Ah! Sabe.. che gnanca mi con i miei fiol né.. come che tanto mi con
elo, e lu gà serviu desdoto mesi in tel quartel.. parlava in talian, né, e lora quando guemo scominsià la
Scola, guemo patinà... lora noantre con i fioi guemo parlà tutti in brasileiro, desde picinini, non parlea
gnente talian con lori.[…] Parchè in tea chea época, come è che te digo.. Talian non era una lengoa,
come che si dise.. non era vista in tea Scola.. “andemo scola.. vao studiare”.. nò era vista [...] Tinha
che ser el brasilero, enton, por isso noantre guemo opità par el brasilero coi fioi.”
[...] Son andà a scola adesso doppo de 60 anni, eu tinha ido nova son anda solo um anno, doppo i era
par star in casa tender i miei fradei.
[...] Parchè mi era pì vecia e tutti picoli, o pai e a mãe i andea in tea a roça [...] E lora dea mie età,
quei che i zè andai in tel coleio i gà studi, quei che non zè andai nò ghenà. É.. e lora mi son andà in
Scola due anni, che ghinea Regina Passis. [...] Ah! tre anni son andà Scola là! E lora gò imparà a
ledere ben tutto, sol che se vao scrivere qualche parola faia! (risos)
Trad. (informante) - Ah! Sabe.. que nem eu com meu filho, né... como, que tanto eu com ele.. e ele
serviu dezoito meses no quartel.. falava em talian, né, e então quando começamos a escola, sofremos..
então nós com os filhos falamos tudo em brasileiro, desde pequenos, não se falava nada em talian com
70
eles [...] Porque naquela época, como que te digo.. Talian não era uma língua, como que se diz.. não
era vista na escola “vamos à escola, vou estudar!”.. não era vista [...] Tinha que ser o brasileiro,
então, por isso nós optamos pelo brasileiro com os filhos”
[...] Fui à escola agora depois de 60 anos, eu tinha ido nova, fui só por um ano, depois tinha que ficar
em casa tomar conta dos meus irmãos. [...] Porque eu era a mais velha e todos pequenos, o pai e a mãe iam para a roça [...] E então os da
minha idade, aqueles que foram ao colégio tem estudo, aqueles que não foram não tem. É.. e então eu
fui à escola dois anos, que tinha Regina Passis [...] Ah! três anos eu fui à escola lá! E então aprendi a ler
bem e tudo, só que se vou escrever qualquer palavra, falha! (risos)
[SD 44 – SIM 1] (Inquiridor) – E ti e el to marido in casa parlea talian?
(informante) - Noantre se parlea come mi e ti adesso.
(Inquiridor) – Ma parlea?
(informante) - Si.. sim sí!
(Inquiridor) – E com i fioi parlea come?
(informante) - Fioi, alora doppo quando che i fioi lora Lori.. mi parlea in talian, ma Lori me respondea
de volta in talian, ma doppo i respondea em brasilian né.. parche lori andea a scola, e lora, já ghe gera
lá scola che parlea brasilian né... I zé tutti professori, nó..
(Inquiridor) – Lora, tutti i fioi gà impará quando piccinin a parlar talian, ma doppo non parlea pì.?
(informante) - É, tutto talian, depois.. enton dalí.. começaram de ir na aula, tinham obrigação de falar
tudo em brasileiro, né.. enton, dalí, começaron a falar em brasileiro, em brasileiro... e va.. e agora
enton as vezes alguma palavra sai cossita, parche.. ah! Às vezes por uma brincadeira, ou.. mais se não
è tudo em brasileiro. Mi digo in brasileiro caipira.
Trad. (Inquiridor) – E você e teu marido em casa falavam em talian?
(informante) - Nós nos falávamos como eu e você agora.
(Inquiridor) – Mas falavam?
(informante) - Sim, sim, sim!
(Inquiridor) – E com os filhos falavam como?
(informante) - Filhos, então, depois quando que os filhos, então eles.. eu fala em talian, mas eles me
respondia de volta em talian, mas depois eles respondia em brasileiro, né.. porque eles iam à escola, e
então, já havia lá escola que falava brasileiro, né.. eles são todos professores.
(Inquiridor) – Então, todos os filhos aprenderam quando pequenos a falarem talian, mas depois não
falavam mais?
(informante) - É, tudo talian, depois.. então, dali.. começaram de ir na aula, tinham a obrigação de
falar tudo em brasileiro, né.. então dalí, começaram a falar em brasileiro, em brasileiro, e va.. e agora
então às vezes alguma palavra sai assim, porque.. ah! Às vezes por uma brincadeira, ou mais se não é
tudo em brasileiro. Eu digo brasileiro caipira.
[SD 45 – SIM 1] (informante) - Sí! Alora mi te digo cossita. Che mi cato che ghe zè la scola
portoghesa, che ghe zè la scola inglesa.. che ghe zè la scola spagnola, [...] tudo.. tutto, enton.. in tutte
quelle lengoe qua, la taliana la deve esser in mezzo.. che fa pì conta do che quelle che non le è parlata
qua.. mi cato cossita.
Trad. (informante) - Sim! Agora eu te digo assim. Que eu acho que existe na escola o português, que
há na escola a língua inglesa, há na escola a língua espanhola [...] tudo... tudo, então.. entre todas essas
línguas, a taliana deve estar no meio.. que faz mais conta do que aquelas que não são faladas aqui.. eu
penso assim.
Neste recorte quem grita na materialidade discursiva dos ítalo-gaúchos migrantes é a
dicotomia entre língua de madeira (ou direito) e a língua de vento (ou vida) (GADET;
PÊCHEUX, 2004).
O talian, que entendemos como a língua de vento nesta materialidade discursiva, é
marcada como a língua que “non era vista in tea Scola/ não era vista na escola”(SD43). Este
71
enunciado se remete ao acontecimento da política de nacionalização do Estado Novo. Neste
período, segundo Payer (2001, p. 253), a língua portuguesa entendida por nós como a „língua
de madeira‟ é vista como a “[...] língua nacional, expressamente designada e administrada
como elemento de soberania nacional, passa a funcionar como um elemento a atestar a
brasilidade do imigrante. Enquanto cidadão da nação ele é chamado a inscrever-se nessa
língua.”
Os fragmentos “começaram de ir na aula, tinham obrigação de falar tudo em
brasileiro, né!”(SD44), “scola che parlea brasilián né/ escola que falava português,
né”(SD44), “tinha que ser o brasileiro”(SD43), “guemo patinà / sofremos”(SD43), “guemo
opità par el brasileiro com i fioi/ optamos pelo brasileiro com os filhos”(SD43) vão de
encontro ao que Payer (2001, p.253) entende como chamado do Estado para que o imigrante
se inscrevesse na língua de madeira comprovando a sua brasilidade, uma vez que, segundo a
autora (2001, p.248), o “[...] processo de apagamento das memórias discursivas outras, força
os imigrantes a acelerarem sua adaptação ao país e à língua do Brasil.”
Compreendemos que a escola é um espaço em destaque no que tange ao silenciamento
das línguas minoritárias de imigração, e, no que diz respeito ao talian, observamos que há
efeitos de sentidos, nos discursos dos ítalo-gaúchos, que levam a sua representação imaginária
a se aproximar da estigmatização linguística, à vergonha, ao trauma em “guemo patinà/
sofremos”(SD43), ao seu uso na “brincadeira”, a sua interferência fonética na „língua
nacional‟, o português com traços da variedade de língua italiana deixa-o “caipira”.
Entendemos que em “in tutte quelle lengoe qua, la taliana la deve esser in mezzo /
entre todas essas línguas, a taliana deve estar no meio”(SD45) o sujeito-enunciador se
posiciona em posição de proximidade ao resgate da língua, à sua valorização como língua na
escola, no campo da cultura escrita, demonstra que a geração ítalo-gaúcha migrante na
discursividade do espaço escola, apesar da memória da interdição linguística, se movimenta a
favor da valorização do talian em seus processos de identificação com a língua de origem.
3.2.3.5 RECORTE 5 - Ditadura e interdição linguística
Abaixo encontramos alguns fragmentos discursivos da geração migrante que vão de
encontro com a temática relacionada à interdição linguística no período da política de
nacionalização do Estado Novo.
[SD 46 – SIM 1] (informante) - Quando che l‟è vegnesta.. l‟è vegnesta, quela lei del Brasil che non
podia falar in talian, i metea in preson..
(Inquiridor) – Si?
72
(informante) - E el me cugnà, el l‟è acusà lu e n‟antro, so amigo.. i è andati far la cartera de
identidade.. enton, lora là..e lora el gà dito: “non podea parlar in talian”. Talian, come che semo drio..
e lora, lori, né.. i gà parlà talian, parchè brasilian ele non sabia, e lori... o chefe, el coso... perguntava
em tali.. em brasilero, né.. lori i ghe gà respondesto in talian, e lora “NÒ!!” El gà dito: “bisogna che ti
parle in brasilian, parche desso ti te si qua in tel Brasil, e qua adesso l‟è proibiu parlar in talian” Ma lu, el gà dito cossita: “ma lora!”, el gà dito “mi col compagnero qua”, el gà dito, “che l‟è
Tochetto” de sobrenome..el gà dito: “Gonti de ciamar o que?,né, lora el gà dito: “PEDACINHO!”..
lora, el gà dito cosa.. el chefe, né.. “pedacinho”.
“Ma ond‟è que se viu?”.. el gà dito.. eu non sei cosa che el gà dito là a sto polìssia. Nò, Aaahh! El gà
dito: “E quei là, che l‟è Mane.. Machado!”, el gà dito.. “sobrenome de lu l‟è Machado”. “Gonti
ciamar di che? Di manera?” el gà dito... “machado, manera”... “ma!” el gà dito “nò, nò, nò!” el gà
dito “podemo noantre, parlemo nostra lengoa”, el gà dito “ se entendemo ben e tutto!”.
El gà ciamà el polissia là, e el gà dito: “rapa os cabelo e os bigode!”, nonn.. “rapa os bigode”.. el gà
dito.. e leva ele là pra cadeia.. e o outro porque el gà dito cossita.. “nò!” el gà dito.. “se me
compagnero, el me visigno, el va in tela cadeia”.. el gà dito.. “alora, vao anca mi!” e lora.. enton,
pegaram e cortaram o bigode e bateram com o martelo.. não sei o que.. em cima de um dedo.. em cima
da unha de um dedo da mão.
(Inquiridor) – Dio Santo!
(informante) - Siimmm! Enton.. i zera stati con una rabia desti brasileri né.. non andava nem fora de
casa, só laorar in colônia, e stea a casa ..della paura que tivesse.. che gavesse de afinal de cair de
novo, né.. parchè el gà dito che l‟è stata dura.. non sei quante ore che i stai dentro in cadeia, gò idea
che 24 ore mais o meno, por aí..
Lora questo… è... che mi te ghe digo nò, semo in tel Brasil..è.... bisogne di parlar in brasilian..
Trad. (informante) - Quando que veio.. veio, aquela lei do Brasil que não se podia falar em talian, eles
metiam na prisão.
(Inquiridor) – Sim?
(informante) - O meu cunhado, ele foi acusado, ele e um outro, seu amigo.. eles foram fazer a carteira
de identidade.. então, então lá... e então ele disse: “não podia falar em talian”. Talian, como estamos
falando agora.. e então, eles, né.. eles falaram talian, porque brasileiro [português] ele não sabia, e eles..
o chefe, o fulano.. perguntava em tali.. em brasileiro, né .. eles lhe responderam em talian,e então
“NÃO!!” Ele disse: “é necessário que você fale em brasileiro, porque agora você está aqui no
Brasil, e aqui agora é proibido falar em talian”.
Mas ele, ele disse assim: “mas então!”, ele disse “eu com o companheiro aqui”, ele disse, “que é
Tochetto” de sobrenome.. ele disse: “Devemos chamar do quê?”, né, então ele disse:
“PEDACINHO!”.. então, ele disse.. o chefe, né.. “pedacinho”.
“Mas aonde é que se viu?” .. ele disse.. eu não sei o que ele disse a esse polícia. Não, aaahh! Ele disse:
“E aquele lá, que é Mane.. Machado!” ele disse.. “sobrenome dele é Machado”. “Devemos chamar do
quê? De manera35
?” ele disse... “machado, manera”... “mas!” ele disse [o cunhado da informante] “não,
não, não!”, ele disse “nós podemos, falamos nossa língua”, ele disse “ nos entendemos bem e tudo!”
Ele chamou o policial lá, e disse: “rapa os cabelo e os bigode!” não.. “rapa os bigodes”, disse, “e leva
lá pra cadeia... e o outro porque ele disse assim “não!” ele disse.. “se o meu companheiro, o meu
visinho, ele vai para cadeia”.. ele disse “então, eu também vou!” e então, então pegaram e cortaram o
bigode e bateram com o martelo.. não sei o quê, em cima de um dedo.. em cima da unha de um
dedo da mão.
(Inquiridor) – Meu Deus!
(informante) - Siimmm! Então.. eles ficaram com uma raiva destes brasileiros, né.. não iam nem fora
de casa, só trabalhar na roça e ficar em casa.. do medo.. que tivesse.. que tivesse de afinal de cair de
novo, né.. porque ele disse que foi difícil/árduo/sofrido.. não sei quantas horas que eles ficaram dentro
da cadeia, acho que 24 horas mais ou menos, por aí.
Então isto.. é... que eu te digo, estamos no Brasil... é.... e é necessário falar em brasileiro.
[SD 47 – SIM 5] (informante) - Então eu vou contar aquela que quando foi preso os veio que falava
em italiano... na cidade lá, na Protásio Alves, lá era um distrito lá no Rio Grande do Sul,... lá era o lugar
deles tomar cachaça.. e quando eles tavam bêbado, aí a polícia chegava, né.. eles falavam tudo em
italiano.. prendia um, aí ficava um tempo na cadeia.. e o outro então falava: “e adesso, ghe tu
guadagnà o que là rento della cadeia? Si te ciapemo da qua un poco tiraremo ti là”! [tradução
01]..(risos) os veio „non‟ falava...
35
Machado : sf. Manera, manara (TONIAL, 1997, p.205)
73
(Inquiridor) – si... sí
(informante) - O policial veio lá, ficou bravo.. e eu lá junto.. tinha ido lá fazer compra na cidade, né...
junto com o meu pai.. Aí, daí o policial veio e meteu a boca num veio lá : “munta a cavalo ali! E larga a
mão de cachaça que tu não pode tomar cachaça e nem falar em italiano”. Daí ele falou: “ va, va
stupido! La z‟è una égua, non è mia un cavalo!” [tradução 02] (risos). Eu tinha 12 anos mais ou menos
quando... E o veio era um veio caranhato, né! “Ma quelo l‟è un burro! parchè non sabe gnanca che
cosa è cavalo medo.”[tradução 03] (risos)
Trad. 01. “e agora, o que você ganhou lá dentro da cadeia? Se te pegamos daqui a pouco jogaremos você lá”.
02. “anda, anda estúpido! Ela é uma égua, não é nunca um cavalo!” 03. “Mas aquele é um burro porque
não nem sabe o que é um cavalo exatamente”.
[SD 48 – SIM 6] (informante ) – só eu sei que naquela época em que a falecida mãe ensinava nóis lê em
italiano e o catecismo tudo.. aí veio aquela lei, né! Daí me alembro daquilo, né!
(Inquiridor) – E a tua mãe falava o quê?
(informante) – É, daí começaram a vir os livros pra ensinar em português, daí tocou até ela
aprender, né, pra explicar pra nóis.
(Inquiridor) – ah, ela aprendeu?
(informante) – ah, um pouquinho, né, mas ela, até que eu casei, ela tinha o livro dela com letra grande
que falava, que lia tudo em italiano. A missa, né? As reza!
(Inquiridor) – E o que ela falava de aprender o português, a senhora lembra de alguma coisa?
(informante) – ah, ela ficava muito brava, os veio ficava tudo bravo [...] é por causa que não dobrava
mais a língua, né, achava difícil, né! Acharam difícil de trocar aquela língua, né, porque eram
acostumados assim, né? [...] Daí os irmão mais grande lá ia na aula, aí ensinavam, e depois vinham pra
casa e explicava para aqueles em casa, né, era assim, né. Daí ia aprendendo, né (risos) [...] Iam na aula e
depois chegavam em casa e explicavam, né, “isso é assim, isso é assim”, e foi todo mundo, foi se
virando, né! Que eu mesmo nunca fui na aula, a mãe nunca me ponhou, por causa que entremo no
Paraná, eu tinha uns seis anos por aí, sete, e aí faleceu o meu pai.. era pobre, daí fiquemo com a
mudança em Pato Branco e ele trabalhando no Verê36
pra fazer, fazendo roça e tirando madeira pra
fazer a casa, né.
Neste recorte evidenciamos o que habita na memória do povo ítalo-gaúcho em relação
ao acontecimento da interdição e silenciamento linguístico das línguas dos imigrantes durante
a política de Estado Novo, período da ditadura militar brasileira.
Esse acontecimento o qual nos referimos se estrutura nos fragmentos discursivos “l‟è
vegnesta quela lei del Brasil che non podia falar in talian / veio aquela lei do Brasil que não
se podia falar em talian” (SD46), “aquela que quando foi preso os veio que falava em
italiano” (SD47), em que as palavras „cadeia‟ e „prisão‟ compõem o léxico que rege toda a
significação desta memória, e mostra o atravessamento de uma formação discursiva de
política de interdição linguísta da ditadura militar.
A cadeia, para o governo, representou uma medida de punição para quem não
estivesse disposto a se „nacionalizar‟, à se inscrever na condição de „cidadão brasileiro‟, uma
vez que, segundo Orlandi (2005, p.31 apud ROVERSI, 2011, p. 52), no processo de
nacionalização através do decreto-lei nº 1.545, assinado por Getúlio Vargas, “[...] o
estrangeiro não era um cidadão. E era a sua língua o documento desta exclusão”.
36
Município de Vêre – PR, próximo a Pato Branco - PR.
74
Segundo Armiliato (2010, p.14), o período de repreensão comandado pelo governo de
Getúlio Vargas instaurou a “[...] perseguição a quem falava o talian na região da serra, veio a
recomendação do fim do uso das línguas de imigração no Brasil”, uma vez que a declaração
de guerra do Brasil ao “[...] eixo Itália, Alemanha e Japão nesse período (mais precisamente
em 1942, na Segunda Guerra Mundial), contribuiu para uma erradicação prévia e talvez a
maior de todas as exclusões do talian nas comunidades vividas por imigrantes italianos e seus
descendentes.”(Idem, 2010, p.14)
As formulações “Ma ond‟è que se viu?” (SD46), “va, va stupido! / vai, vai estúpido!”
(SD47), “ma quelo l‟è un burro!/ mas aquele é um burro!” (SD47) relacionam-se à indignação
do sujeito ítalo-gaúcho acerca do assujeitamento ao silêncio imposto a si e à língua que o
constitui sujeito, materializando-se por meio da imagem desse sujeito-enunciador, “os
veio”(SD47), e da enunciação “[...] tu não pode tomar cachaça e nem falar em
italiano”(SD47).
Em “aí veio aquela lei”(SD48) o discurso deste sujeito se filia à memória do
acontecimento marcado pelo Decreto-lei n°1.545, que proíbe o uso das línguas minoritárias,
consideradas „estrangeiras‟, no âmbito social. Junto a esta proibição se torna obrigatório o
ensino da língua nacional, o português.
O cumprimento da lei se materializa em “daí começaram a vir os livros pra ensinar em
português”(SD48), quando a língua alóctone entra em relação de força e poder com a
nacional, esta que é sustentada e reconhecida juridicamente como língua do Estado,
colocando o sujeito imigrante à se nacionalizar em situação “difícil de trocar aquela
língua”(SD48), esta dificuldade se instaura discursivamente em “por causa que não dobrava
mais a língua”(SD48). A comunidade estava convidada a se inscrever na língua nacional, que
dava o direito de ser cidadão (ORLANDI, 2005 apud Roversi, 2011, p. 52), pois “[...] todo
mundo foi se virando” e é assim que o “[...] sujeito imigrante constituído (interpelado) por
esses sentidos de nacional, nacionalidade, nacionalismo, se opacifica na história que o
constitui, por entre as várias memórias discursivas e a relação com as diversas línguas.”
(PAYER, 2001, p.247)
A tortura, a cadeia, a polícia, inscritas nos fragmentos “rapa os cabelo e os bigode!”
(SD46), “cortaram os bigode [...] bateram com o martelo [...] em cima da unha de um dedo da
mão”(SD46), “foi preso os veio”(SD47), “o policial veio lá e ficou bravo”(SD47), geraram
75
sentidos que para o sujeito ítalo-gaúcho remetem à “[...] humilhação, vergonha, tristeza,
inibição e silêncio”. (FROSI, FAGGION & DAL CORNO, 2008, p. 145) 37
.
3.2.3.6 RECORTE 6 - Povo migrante
Abaixo temos fragmentos, discursos de sujeitos migrantes, relacionados à temática
„povo migrante‟.
[SD 49 – SIM 3 e SIM 4]- (informante A) - Romai semo caminà in mezzo mondo romai.. (risos)..
si! Parchè saimo di Garibaldi col pai, n‟altra vez là in Lajeado, de Lajeado semo andai a Revaldo, de
Revaldo semo andai a Campina do sul, Campina do sul semo andai a São Miguel d‟Oeste, São Miguel
semo vegnesti qua a Sinop, adesso semo belche in tel Pará.
(informante B) - Semo stati 15 dí là poco tempo... è! Descansar un poco l‟idea.
(informante A) - Agora che vedemo che i fioi, medo.. le nore varde medo di atravessado.. noantre, oh!
Par de qua! Par la pì curta! (risos)
Trad. (informante A) - Já caminhamos meio mundo já! (risos)... sim! Porque saímos de Garibaldi
com o pai, numa outra vez lá em Lajeado, de Lajeado fomos para Revaldo, de Revaldo fomos para
Campina do Sul, Campina do Sul fomos para São Miguel d‟Oeste, São Miguel vinhemos para cá, para
Sinop, agora estamos quase/ já no Pará.
(informante B) - Estivemos 15 dias lá, pouco tempo... é! Descansar um pouco a ideia.
(informante A) - Agora que vemos que os filhos, meio.. as noras olhem meio de atravessado.. nós, oh!
Por aqui! Pela mais curta! (risos)
O fragmento “romai semo caminà in mezzo mondo, romai / já caminhamos meio
mundo já”(SD49) se inscreve numa FD de um sujeito migrante atravessado por uma memória
estruturada pelos sentidos de “dificuldade, sofrimento, distância, saudade e coragem”
O sujeito enunciador tem o seu discurso marcado por uma memória estruturada por
um percurso, este é composto por personagens de afeto, “saimo de Garibaldi col pai/ saímos
de Garibaldi com o pai” (SD49). Esses sujeitos são quem constroem o percurso por meio das
ações, dos momentos, das aprendizagens e ensinamentos.
“Belchè in tel Pará/ já (quase) no Pará”(SD49) anuncia a continuidade da caminhada,
da abertura da fronteira, pois o Pará representa a nova terra para onde estão indo os filhos e
filhas dos ítalo-gaúchos radicados na RNEMT.
“Noantre oh! Par de qua! Par la pì curta/ Nós, oh! Por aqui! Pela mais curta”(SD49)
produz efeitos de sentidos parafraseados com „não há hora para irmos, já sabemos migrar, não
há o que nos impeça‟, que se inscrevem num processo de identificação ao „ser migrante‟, em
que para Rocha (2006, p.55), o gaúcho é „bicho carpinteiro‟, aquele que não cansa de
caminhar, que „sai, muda, migra‟, pois “[...] quem anda pra trás é caranguejo” (ROCHA,
2006, p.56).
37
FROSI, Vitalina Maria. FAGGION, Carmen Maria. DAL CORNO, Giselle Olívia Mantovani. Prestígio e
estigmatização: dialeto italiano e língua portuguesa da Região de Colonização Italiana do Nordeste do Rio
Grande do Sul. Revista ABRALIN, v. 7, n.2, p. 139-167, jul/dez. 2008.
76
3.2.3.7 RECORTE 7 - Mato Grosso
3.2.3.7.1 Geração migrante
[SD 50 – SIM 2] (informante) – Aí, daí, i è vegnesti in Santa Catarina [...] par mi, i fioi non i gà nem
sotaque di talian e gnanca di catarinense.. parchè romai trenta due anni qua.
- I se gà acostumà! I gà studià bastante qua.. e i gà el sotaque de matogrossense.
(Inquiridor) – Ti pensa che i fioi i gà sotaque de matogrossense?
(informante) - Mi cato che sí! (risos)”
Trad. (informante) – Aí, daí, eles foram para Santa Catarina […] para mim, os filhos não têm nem
sotaque de italiano e nem de catarinense.. porque já faz trinta e dois anos aqui.
Eles se acostumaram! Eles estudaram bastante aqui.. e eles têm o sotaque de mato-grossense
(Inquiridor) – Você acha que os filhos têm sotaque de mato-grossense?
(informante) - Eu acho que sim!
Em “par mi i fioi non i gà nem sotaque di talian e gnanca di catarinense/ para mim os
filhos não têm nem sotaque de italiano nem de catarinense” (SD50) encontramos um sujeito
enunciador que acredita ser dono e origem de seu discurso, no entanto, esse discurso é
povoado por várias vozes, pois, segundo Orlandi (1988 apud ROVERSI, 2011, p.93), “o dizer
não é apenas o domínio do locutor, tem a ver com as condições em que se produz e com
outros dizeres, isto é, com os lugares em que ele passa [...], o dizer tem sua história”
Entendemos que “i gà el sotaque de matogrossense / eles têm o sotaque de mato-
grossense”(SD50) está relacionado a um espaço em que os descendentes dos ítalo-gaúchos
tiveram oportunidade de estudo, de proximidade ao espaço urbano, do multiculturalismo que
se assoma à RNEMT. Além disso, evidencia uma formação imaginária do como caminha a
fala norte mato-grossense, uma vez que ela se distancia do “sotaque di talian e [...] di
catarinense/ sotaque de italiano [...] de catarinense”(SD50), mostrando que o falar sulista na
RNEMT está dando lugar à um que surge e que se modela no multiculturalismo, o falar da
identidade norte mato-grossense. O que marca o movimento da língua talian na RNEMT é a
questão da temporalidade marcada em “parchè romai trenta due anni qua / porque já faz
trinta e dois anos aqui”(SD50), e pela materialidade do lugar.
[SD 51 – SIM 2] (informante) – Ah, quando eu estou no meio dos italianos, me sinto mais liberal,
assim.. vamos supor no Sorriso, eu tenho dois primo. Filho de um irmão do meu marido que já faleceu..
até semana retrasada fui ver.. [...] não.. no começo do mês.. fiquei lá! Tenho dois primo, três.. uma
prima, que a mãe é irmã da minha mãe, o pai é irmão do meu sogro. Daí tem a turma da minha cunhada,
[...] ah, tá tudo que vem do sul ali em Sorriso.. [...] “tudo, são tudo turma de gringo.. em Sorriso tá
assim, oh!”
Em “Sorriso tá assim, oh!” (SD51), “ah, tá tudo que vem do sul ali em Sorriso”
(SD51), “tudo, são tudo turma de gringo”(SD51) anunciam-se a percepção do sujeito-
77
enunciador de espaço da comunidade ítalo-gaúcha na RNEMT. Na sequencia “Sorriso tá
assim oh!” (SD 51) a interjeição „oh!‟ grita a intensidade do imaginário de contingente étnico
ítalo-gaúcho presente na região, em específico o município de Sorriso – MT (80 km de Sinop
– MT). Para esse sujeito (SIM 2), é na comunidade que “quando estou no meio dos italianos”
(SD51) a língua permeia a relação discursiva com os amigos e parentes, e é a esta memória
que se inscreve o “me sinto mais liberal” (SD51).
[SD 52 – SIM 1](Inquiridor) – Par esempio, ti te ghe dito che qua a Mato Grosso nò se parla tanto
come se parlea là.. (informante) - Eh! Nò, nò.. ben manco.. La me sorella, ela la parla tanto con soi fioi in talian. Parchè i
soi fioi, i zè stati de più insieme con so mama, i gà laorà in colonia e tutto, nò? E doppo, el costume de
lori já i gera un poco diferente che el mio.. parchè lori.. i gà teimà sora la lengoa vecia taliana,
cossita.. aqui no Brasil. Ma,... lori parla ancora.. “mama qua, mamma là”.
(Inquiridor) – – Ma ela sta qua in Mato Grosso?
(informante) - Sí, si.. i zè qua a Mato Grosso.. ma agora, fora di lori col la mama, alora l‟è diferente..
parchè i se gà maridà.. Ghin‟è un che se gà maridá con na brasiliana, morena.. a final, aqui in Mato
Grosso. Sól.. sinon.. i zè tutti maridà con taliane.
(Inquiridor) – Ah!
(informante) - Sí, nò che le zè vegnesti dell‟Itália, ma le zè vegneste di Santa Catarina, Rio Grande e
tudo
cossita..
Trad. (Inquiridor) – Por exemplo, você disse que aqui no Mato Grosso não se fala tanto como se falava
lá.
(informante) - Eh! Não, não.. bem menos.. a minha irmã, ela fala tanto com seus filhos em talian.
Porque os seus filhos, eles estão mais juntos com a mãe deles, eles trabalharam na colônia/roça e tudo,
não? E depois, o costume deles já era um pouco diferente que o meu.. porque eles.. eles teimaram em
cima da língua velha italiana assim.. aqui no Brasil. Mas .. eles falam ainda.. “mãmãe aqui, mãmãe lá”
(Inquiridor) – Mas ela está aqui no Mato Grosso?
(informante) - Sim, sim.. eles estão aqui no Mato Grosso.. mas agora, fora deles com a mãe, agora é
diferente.. porque eles se casaram.. Existe um que se casou com uma brasileira, morena... a final,
aqui no Mato Grosso.. Só.. senão.. eles tinham todos se casado com italianas.
(Inquiridor) – Ah!
(informante) - Sim, não que elas vieram da Itália, mas elas vinheram de Santa Catarina, Rio Grande e
tudo assim.
Nesta prática discursiva compreendemos que, para este sujeito, a língua talian é falada
“ben manco/ bem menos”(SD52) pois a comunidade de falantes se encontra com o
multiculturalismo presente na RNEMT.
O multiculturalismo se materializa no fragmento em “un che se gà marida con na
brasiliana, morena [...] afinal, aqui in Mato Grosso / um que se casou com uma brasileira,
morena [...] afinal, aqui no Mato Grosso”(SD52), no qual o sujeito-enunciador se refere à nora
mato-grossense de sua irmã. A origem étnica da nora de Mato Grosso estrutura um dual
percurso de aceitação com àquelas de um espaço da origem do ítalo-gaúcha em “sinon, i zè
tutti maridá con taliane [...] le zè vegnesti di Santa Catarina, Rio Grande / senão, seria todos
casados com italianas [...] elas vieram de Santa Catarina, Rio Grande”(SD52).
78
Encontramos no discurso deste sujeito-enunciador uma dicotomia etnogeográfica entre
Santa Catarina / Rio grande do Sul, deslize de proximidade à Itália; com Mato Grosso, deslize
de proximidade ao Brasil, e se constrói no imaginário do ítalo-gaúcho um sentido de não
possibilidade à vitalidade da língua de origem atravessada pelo marcante contato com a
diversidade étnicocultural.
3.2.3.7.2 Geração descendente
[SD 53 – SID 1] (Inquiridor) – E você vê uma diferença do povo lá com o povo daqui?
(informante) - daqui, olha, é que o daqui é maioria que veio de lá, né. Então, a base formada aqui
geralmente é do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, então não muda muito o contexto, né, o que
é diferente. Agora, por exemplo, quem veio do norte pra cá, entendeu? Isso tem diferença, no valor da
cultura, também tudo mais.”
Nesta prática discursiva encontramos as palavras “Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul” (SD53) tecendo a discursividade do que seria a “base” identitária do norte
mato-grossense; parafraseamos “base” por “pioneiros”, “os que fundaram e colonizaram o
espaço” numa posição sujeito de antecessores, já aquele que “veio do norte” se inscreve na
posição sujeito de recém-chegados, aqueles que sentem “diferença cultural”, pois se
encontram com uma colonização cultural produzida pela “base”, pela “maioria”. Entendemos
que este sujeito acredita que não há muita diferença cultural da Região sul, de onde saíram os
seus genitores, para a qual onde nasceu e se constitui o norte de Mato Grosso.
(SD54 – SID 4) (inquiridor) - Então para o sul você nunca foi Vinicios?
(informante) - Tinha vontade de ir. Eu gostaria, deve ser legal.
(inquiridor) - E o que você sabe de lá?
(informante) - Lá, que todo mundo fala gaúcho, toma chimarrão, tem bastante gente que fala
italiano.
(inquiridor) - É? Quem te disse isso?
(informante) - Minha vó!
Neste discurso vemos o enfrentamento discursivo entre o „aqui‟ e o „lá‟, sendo que o
„aqui‟ se constinui no não dito. O „lá‟ constitui o espaço Região Sul, e o aqui o norte do Mato
Grosso. Para este sujeito na RNEMT nem „todo‟ mundo fala gaúcho, toma chimarrão e
poucas pessoas falam o italiano. Esse imaginário de RNEMT construído na memória do
sujeito ítalo-gaúcho-norte-mato-grossense é tecido pela materialidade que o constitui como
sujeito, uma vez que ele nasceu numa região de multiculturalidade. O imaginário da Região
Sul está estruturado pela figura familiar, “minha vó!”(SD54), esta que “fala gaúcho, toma
chimarrão, [...] fala italiano”.(SD54)
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Se la previsione è che restano pochi anni di vita alla koinè veneta, molto meno tempo
è riservato agli altri dialeti specifici [...]. Ancora si è tempo di fare qualcosa, ma è
urgente che si faccia. È necessário che per lo meno i libri parlino alla generazioni
venture della storia umana, allo stesso tempo bella e triste, di questo gruppo étnico che,
nell‟anonimato, soffrì, lavorò e construì. È necessario che si vada fino in fondo nel suo
linguaggio, che pur nella sua connotazione sociale all‟interno della comunità maggiore
in cui è inserito, rappresenta la marca, il carattere culturale della nazione di origine di
cui ancora egli conserva le radici.” 38
Vitalina Maria Frosi (1987b apud PONSO, 2003, p.112)
Por meio da metodologia da Análise de Discurso e os pressupostos da
Sociolinguística, o presente estudo se ocupou de compreender, por meio do funcionamento do
discurso da comunidade ítalo-gaúcha-norte-mato-grossense, o que habita no seu imaginário e
como se dão os seus processos de identificação com a língua de origem.
Na análise da materialidade linguística, os acontecimentos discursivos da interdição
linguística e, logo após, a migração para o Mato Grosso, observa-se um espaço mais próximo
do multiculturalismo, além da proximidade dessas famílias à tecnologia, à comunicação e
urbanização. Todavia, espaços restritos para a língua talian permitiram o movimento de
sentidos, na discursividade da comunidade ítalo-gaúcha desta região, que se aproximam ao
apagamento da língua alóctone, dando lugar à língua portuguesa.
Entendemos que o que habita no imaginário da comunidade referida, ainda é marca de
um convite à se inscrever na língua nacional, é um Outro que diz do lugar da interdição, do
projeto de nacionalização.
O talian, na materialidade discursiva da geração migrante, é quem constrói o mundo
dos sujeitos inseridos a essa língua, por meio da relação dessa variedade alóctone com a
história de vida dos imigrantes e seus descendentes. Na dicotomia entre língua de vento x
língua de madeira, baseada nas reflexões de Gadet; Pêcheux (2004), entendemos que o talian
na discursividade da geração migrante se atrela aos processos imaginários, que se filiam ao
discurso do Estado Novo (década de 40 do século XX), em que ocorreu o processo de
nacionalização do imigrante radicado no Brasil. O discurso do sujeito migrante se parafraseia
com a do governo getulista, cujo o imigrante não era cidadão brasileiro, uma vez que sua
língua de origem era o documento que o excluía (ORLANDI apud ROVERSI, 2001, p. 52).
38
Tradução: “Se a previsão é de que restam poucos anos de vida à koiné veneta, muito menos é reservado aos
outros dialetos específicos. [...] Ainda assim está em tempo de fazer alguma coisa, mas é urgente que se faça. É
necessário que ao menos os livros falem às gerações vindouras da história humana, ao mesmo tempo bela e
triste, desse grupo étnico que, no anonimato, sofreu, trabalhou e construiu. É necessário que se vá a fundo na sua
linguagem, que mesmo na sua conotação social dentro da comunidade maior em que está inserida, representa a
marca caráter cultural da nação de origem da qual ainda conserva as raízes.” (PONSO, 2003, p.112)
80
Na discursividade do descendente, encontramos um sujeito construído por um
monolinguismo, em que a língua que o constrói se insere no sentido de „normal‟ e „habitual‟,
trata-se da língua portuguesa. A língua de origem se vê no afastamento da geração nascida na
RNEMT, pois o talian não alcança os espaços ensejados pelo sujeito descendente, trata-se do
campo da habilidade com a escrita, das relações com o estudo, das ferramentas inscritas na
globalização, objetos para ascenção social. Na geração descendente, se elucida um discurso
que se aproxima ao urbanismo, monolinguismo e o distanciamento da língua de origem
familiar, compreendemos que a indiferença ao vêneto sul-rio-grandense esteja estritamente
ligada às relações de força e poder entre a língua portuguesa (ou outras em mesma condição
de status linguístico de dominação, como o italiano padrão, inglês etc.) e a língua talian, em
que a última é interditada, excluída e ignorada nos espaços ligados ao ensino e à vida pública.
No entanto, encontramos na geração migrante, movimentos direcionados à língua que
se acendem quando as imagens do afeto, origem e vida quotidiana, construída pela língua
alóctone, surgem no imaginário desses sujeitos.
Junto ao imaginário de língua, encontramos o de sujeito habitando a memória desta
comunidade. Neste estudo abordamos os imaginários de sujeito ítalo-gaúcho e sujeito-
brasileiro. Concluímos que funciona na memória da geração migrante o imaginário de sujeito
imigrante italiano e descendente inseridos em um contexto de imigração, atrelado ao „não
falar certo‟, ao „gringo‟ que „veio de fora‟, que mora na colônia. Esses sentidos são tecidos a
partir da materialiadade do lugar que constitui o sujeito enunciador, no caso o migrante.
Nossa conclusão em relação ao imaginário de sujeito brasileiro na memória do ítalo-
gaúcho se filia a uma análise discursiva das condições de produção desses descendentes de
imigrantes que vieram trabalhar a terra no lugar daqueles que o governo imperial brasileiro
via com olhos suspeitosos, justificando o atraso do país pela cor de sua população (RIBEIRO,
1995) que compunha o Brasil antes da chegada dos camponeses europeus. E, logo após, se
estrutura um imaginário de sujeito brasileiro permeado pela violência sofrida pela
comunidade em períodos de agitação popular, como a ditadura militar e a revolução gaúcha
de 1893, marcando sentidos ligados à „vingança‟, „receio‟ e „medo‟.
Compreendemos que alguns lugares inscritos na memória da comunidade estudada se
constituíram como significativos, são marcas discursivas estruturadas pela temporalidade que
configura a vida desses sujeitos. Trata-se do discurso sobre a família, culinária, religião,
escola, ditadura e interdição linguística, migração e Mato Grosso. Foi observado que há
movimentos de sentidos contrários nas duas gerações estudadas, um exemplo é a religião de
origem étnica, que a migrante se processa na proximidade e a descendente no distanciamento.
81
O Mato Grosso se constrói na discursividade desses sujeitos por meio do elo
identitário da região norte deste Estado com a Região Sul do país, pois a última constitui a
„base‟ identitária da primeira. No entanto, observamos que no interdiscurso dos entrevistados
há a presença do multiculturalismo, esse que se aproxima modificando a „base‟, o sotaque do
sul caminha para dar lugar a outro que nasce, que surge como fruto da nova terra, o falar norte
mato-grossense.
Portanto, a geração migrante se inscreve em processos de identificação que se
movimentam em maior proximidade ao talian, em contrapartida a descendente se afasta. No
afastamento desta última geração, os acontecimentos ligados à migração, como a quebra do
isolamento com a comunidade étnica e o desprestígio da língua de origem no âmbito político
nacional, contribuem para o caminhar deste processo.
82
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86
APÊNDICE A – Material fotográfico recolhido nas entrevistas
87
88
89
90
APÊNDICE B – Guia de entrevistas
QUESTÕES LEVANTADAS NA ENTREVISTA SEMI-DIRIGIDA À
GERAÇÃO MIGRANTE
1 Qual é seu nome? Sua idade? De qual cidade/região você é nascido?
2 O que a sua língua de origem, o talian faz lembrar? Quais imagens aparecem em
sua mente quando te perguntam da língua de origem?
3 Com quem você aprendeu a língua de origem?
4 Você gosta de conversar em talian, por quais motivos?
5 Em quais momentos você prefere utilizar o talian para se comunicar com as
pessoas? E quando prefere (não) utilizá-la?
6 Com quais pessoas você tem o costume de conversar em talian? Por quais
motivos?
7 Seus filhos falam o Talian?
SIM Você acredita que ele ensinará aos filhos dele? NÃO Você gostaria que seus filhos falassem o talian, você acha
isso importante? Porque?
Você acredita que eles tem orgulho da origem familiar e da língua de origem?
8 O que sua mãe (pai, vó, vô, etc) acha sobre você (não) ter ensinado o Talian aos
seus filhos? O que você pensa disso?
9 Fale um pouco sobre o teu período na escola.
10 Você acredita que aqui no Mato Grosso as pessoas falam mais ou falam menos o
talian? Por quais motivos?
11 O que acha que deveria ser feito para resgatar a língua de origem?
12 Você tem o costume de escutar algum programa de rádio na língua de origem?
13 Qual é o perfil do povo italiano? O que você pensa sobre ele? E o povo brasileiro?
14 Você procura manter as relações com as pessoas do seu meio familiar sempre
falando a língua de origem, ou você acha isso desnecessário?
15 As pessoas tem preconceito com sua língua de origem? Porque você acredita
nisso?
16 Para você, qual é o futuro da sua língua de origem? Porque você acredita que será
assim?
QUESTÕES LEVANTADAS NA ENTREVISTA SEMI-DIRIGIDA À
GERAÇÃO DESCENDENTE
01 Qual é seu nome?
Sua idade? De qual cidade/região você é nascido?
02 Você fala o talian?
03 Você entende quando escuta alguém falar?
04 O que você acha dos seus pais/avós falarem a língua de origem?
05 Por que você não aprendeu o talian?
06 Você gosta de ouvir a língua de origem?
07 Você sente falta/ lamenta o fato de ainda não ter aprendido a falar a língua de
origem?
08 Você tem vontade de aprender o talian?
09 Você acha importante aprender a língua de origem?
10 Você escuta algum programa de rádio em talian?
11 Você tem orgulho da sua origem?
12 Para você qual é o futuro da sua língua de origem?
91
ANEXOS
Coral Bello Vivere – ACIVE, Vera - MT
92
93
94
LEI Nº 8.129, DE 08 DE JUNHO DE 2004 - D.O. 08.06.04.
Autor: Deputado João Malheiros
Institui o Dia da Comunidade Italiana
no Estado de Mato Grosso e dá outras
providências.
A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO,
tendo em vista o que dispõe o art. 42 da Constituição Estadual, aprova e Governador do
Estado sanciona a seguinte lei:
Art. 1º Fica criado o Dia da Comunidade Italiana, a ser comemorado,
anualmente, em 19 de setembro.
Art. 2º As comemorações farão parte do calendário escolar, cultural e
turístico do Estado de Mato Grosso.
Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.
Palácio Paiaguás, em Cuiabá, 08 de junho de 2004.
Ass. BLAIRO BORGES MAGGI
Governador do Estado