fotografia estenopeica revisitada dissert. pinhole

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A FOTOGRAFIA ESTENOPEICA REVISITADA: DESCONSTRUÇÃO DA HOMOLOGIA TRADICIONAL ATRAVÉS DAS DIMENSÕES SÓCIO-CULTURAIS DA TECNOLOGIADissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.resumo: Este estudo propõe investigar e discutir o uso da câmera estenopeica por artistas e fotógrafos contemporâneos e a mediação que se estabelece entre eles e o processo envolvido no ato de fotografar com estes artefatos. Fotografia estenopeica, conhecida também como fotografia pinhole, é a terminologia adotada para definir imagens obtidas com câmeras de orifício - as objetivas das câmeras fotográficas tradicionais são substituídas por um pequeno furo. Partindo da premissa que o resgate do uso desta técnica, pelos artistas contemporâneos, se dá no sentido de questionar os padrões, rompendo com a homologia no processo da fotografia tradicional, entendida como o registro e reprodução “fiel” da realidade. Percebe-se que essas posturas revelam mais claramente a subjetividade e a presença do usuário – artista/fotógrafo - como construtor da representação. Por isso, optou-se por estudar a recente produção de imagens fotográficas estenopeicas, resultado da retomada da técnica por fotógrafos e artistas contemporâneos, porque, além de buscar novas opções expressivas de manifestação estética, esses artistas procuram questionar o meio e as determinações das “novas tecnologias” impostas pela indústria fotográfica. Para compreender essas posturas, foi preciso entender quais as principais características da fotografia estenopeica, e as possibilidades de intervenção criativa do artista, nas diferentes etapas de produção das imagens. A simplicidade da técnica e as múltiplas possibilidades de construção da câmera aproximam o fotógrafo do processo de realização da imagem, transformando as relações de tempo e de espaço representados, e questionando os conceitos da fotografia tradicional. Na medida em que subverte o padrão convencionalmente imposto ao aparato fotográfico, o artista tem condições de utilizar a fotografia estenopeica como forma de expressão alternativa e ferramenta de criação. A opção estética do artista se inicia no momento em que ele constrói sua câmera. Conclui-se que, a partir deste estudo, foi possível confirmar que, por meio da fotografia estenopeica, é possível questionar os padrões e perturbar a prática comum de constituição de imagens fotográficas, desconstruindo o conceito de homologia do processo da fotografia tradicional e, ao mesmo tempo, evidenciando as dimensões sócio-culturais da tecnologia.Palavras chave: Fotografia Estenopeica; Pinhole; Fotografia Contemporânea; Arte e Tecnologia.

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UNIVERSIDADE TECNOLGICA FEDERAL DO PARAN PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TECNOLOGIA

MARIA HELENA SABURIDO VILLAR

A FOTOGRAFIA ESTENOPEICA REVISITADA: DESCONSTRUO DA HOMOLOGIA TRADICIONAL ATRAVS DAS DIMENSES SCIO-CULTURAIS DA TECNOLOGIA

CURITIBA 2008

MARIA HELENA SABURIDO VILLAR

A FOTOGRAFIA ESTENOPEICA REVISITADA: DESCONSTRUO DA HOMOLOGIA TRADICIONAL ATRAVS DAS DIMENSES SCIO-CULTURAIS DA TECNOLOGIA

Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Tecnologia. Programa de Ps-Graduao em Tecnologia, Universidade Tecnolgica Federal do Paran.

Orientadora: Profa. Dra. Luciana Martha Silveira

CURITIBA 2008

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca da UTFPR Campus CuritibaV719f Villar, Maria Helena Saburido A fotografia estenopeica revisitada : desconstruo da homologia tradicional atravs das dimenses scio-culturais da tecnologia / Maria Helena Saburido Villar. Curitiba. UTFPR, 2008 249 f. : il. ; 30 cm Orientadora: Prof. Dr. Luciana Martha Silveira Dissertao (Mestrado) Universidade Tecnolgica Federal do Paran. Programa de Ps-Graduao em Tecnologia. Curitiba, 2008 Bibliografia: f. 235 - 244 1. Fotografia. 2. Arte e tecnologia. 3. Fotografia Tcnicas. I. Silveira, Luciana Martha, orient. II. Universidade Tecnolgica Federal do Paran. Programa de Ps-Graduao em Tecnologia. III. Ttulo.

Aos meus amores

Tarefa delicada esta de agradecer queles que contribuem para uma realizao. Talvez fosse mais fcil no citar nomes, para no correr o risco de esquecer algum. Mas, como no cit-los? Por isso, manifesto meus mais sinceros agradecimentos... ... Luciana, querida orientadora. Por sua disposio em compartilhar olhares e idias. Sempre paciente, apoiando e acreditando que eu conseguiria chegar at aqui. ... Maristela Ono, Ronaldo Correa e Ronaldo Entler, pela contribuio e disposio em estabelecer uma leitura crtica e trocar idias imprescindveis para firmar o direcionamento do trabalho. ... aos amantes da fotografia pinhole: Ana Anglica Costa, Cleber Falieri, Dirceu Maus, Neide Jallageas, Rafael Johann e Simone Rodrigues, pela contribuio com seus depoimentos e imagens, fundamentais para a compreenso das inquietaes que movem artistas e fotgrafos na produo de imagens estenopeicas. ... ao professor Thales Trigo, por sua valiosa colaborao, sanando minhas mais profundas dvidas pticas. ... s amigas Mnica, Juracy, Cloudy, Isis e Mary; e amigos Fernando e Luis, por todo o carinho, o apoio e o estmulo em diferentes momentos. ... aos meus pais, Elvira e Luis, que sempre incentivaram minha curiosidade e minha dedicao aos estudos. ... aos professores e colegas do Programa de Ps-Graduao em Tecnologia da UTFPR. ... CAPES, pelo incentivo pesquisa e o fundamental suporte financeiro.

... e, em especial: ... minha pequena Ana, que acompanhou este trabalho to de perto. Mesmo me obrigando a me afastar de tudo e roubando minha ateno s pra ela. ... ao Paulinho, pelo amor, cumplicidade e estmulo que sempre me dedicou. E, principalmente, por me ajudar a reparar nas imagens, mais do que simplesmente olhar para elas.

[...] hoje [...] quase no mais possvel [...] falar de uma arte em si e por si s [...]. Ao contrrio, penso que [...] nunca se sente melhor posicionado para tratar, afinal, de uma forma de imagem dada, a no ser encarando-a a partir de uma outra, atravs de uma outra, dentro de uma outra, pelo vis de uma outra, como uma outra. Essa viso oblqua, deslocada, parece-me, muitas vezes, oferecer aberturas mais eficazes para se atingir o que existe no corao de um sistema. Entrar pela grande porta central, prevista para tanto, e em que tudo j fica organizado para ser visto na frontalidade, parece-me menos pontiagudo, menos pertinente, menos instigante, do que imiscuir-se pelo lado, por uma pequena entrada lateral que permitir ver coisas inditas (nunca vistas desta maneira) e, muitas vezes, mais significativas e originais. Anamorfosear os territrios de imagens [...] , na maioria dos casos, mais penetrante e subvertente que o fato de observ-las recatadamente de frente, l onde elas se afixam e onde, afinal, se escondem.Philippe Dubois

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RESUMOEste estudo prope investigar e discutir o uso da cmera estenopeica por artistas e fotgrafos contemporneos e a mediao que se estabelece entre eles e o processo envolvido no ato de fotografar com estes artefatos. Fotografia estenopeica, conhecida tambm como fotografia pinhole, a terminologia adotada para definir imagens obtidas com cmeras de orifcio - as objetivas das cmeras fotogrficas tradicionais so substitudas por um pequeno furo. Partindo da premissa que o resgate do uso desta tcnica, pelos artistas contemporneos, se d no sentido de questionar os padres, rompendo com a homologia no processo da fotografia tradicional, entendida como o registro e reproduo fiel da realidade. Percebe-se que essas posturas revelam mais claramente a subjetividade e a presena do usurio artista/fotgrafo - como construtor da representao. Por isso, optou-se por estudar a recente produo de imagens fotogrficas estenopeicas, resultado da retomada da tcnica por fotgrafos e artistas contemporneos, porque, alm de buscar novas opes expressivas de manifestao esttica, esses artistas procuram questionar o meio e as determinaes das novas tecnologias impostas pela indstria fotogrfica. Para compreender essas posturas, foi preciso entender quais as principais caractersticas da fotografia estenopeica, e as possibilidades de interveno criativa do artista, nas diferentes etapas de produo das imagens. A simplicidade da tcnica e as mltiplas possibilidades de construo da cmera aproximam o fotgrafo do processo de realizao da imagem, transformando as relaes de tempo e de espao representados, e questionando os conceitos da fotografia tradicional. Na medida em que subverte o padro convencionalmente imposto ao aparato fotogrfico, o artista tem condies de utilizar a fotografia estenopeica como forma de expresso alternativa e ferramenta de criao. A opo esttica do artista se inicia no momento em que ele constri sua cmera. Conclui-se que, a partir deste estudo, foi possvel confirmar que, por meio da fotografia estenopeica, possvel questionar os padres e perturbar a prtica comum de constituio de imagens fotogrficas, desconstruindo o conceito de homologia do processo da fotografia tradicional e, ao mesmo tempo, evidenciando as dimenses scio-culturais da tecnologia.

Palavras-chave: Fotografia Estenopeica; Pinhole; Fotografia Contempornea; Arte e Tecnologia.

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ABSTRACTThis study proposes to investigate and to discuss the use of stenopaic photography by contemporary artists and photographers, as well as the mediation established between them and the process involved in the act of photographing with these devices. Known as pinhole photograph, stenopaic photograph is the terminology adopted to define images produced by orifice cameras. A tiny hole replaces the lenses of traditional photographic cameras. This study understands that some contemporary artists are rediscovering this technique in order to question the standards, disrupting with the common praxis of photographic images constitution, breaching with the homology of traditional photography, understood as a faithful register and reproduction of the reality. These attitudes disclose more clearly the subjectivity and the presence of the user artist/photographer - as the constructor of the representation. In this sense, the option is to study the recent pinhole images production, result of resumption of the technique by contemporaries photographers and artists, because, besides looking for new expressive options of aesthetic manifestation, these artists intend to question the means and the new technologies determination imposed by photographic industry. In order to do this, we attempt to understand which are the main characteristics of pinhole photography and the possibilities of creative intervention in the different stages of image production. The simplicity of this technique and the multiple possibilities of camera construction approach the photographer to the process of image accomplishment. Time and space relations represented in pinhole photography are transformed and finish questioning traditional photography concepts. At the same time the artist subverts the conventional pattern imposed to the photographic apparatus, this artist has conditions to use the pinhole photography as an alternative expression medium and creation tool. The artists aesthetic option begins at the moment he builds the camera. Throughout this study, it was possible to attest that the use of pinhole photography is a possibility to question the standards and breaching with the common praxis of photographic images constitution, deconstructing the homology of traditional photography, and, at the same time, making evident the sociocultural dimensions of technology.

Keywords: Pinhole; Contemporary Photography; Art and Technology.

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LISTA DE FIGURASFigura 1: Desenho mostrando o funcionamento da tavolleta................................................................... 46 Figura 2: Modelo da primeira tavolleta de Brunelleschi........................................................................... 47 Figura 3: Esquema de Alberti para a construo perspectiva.................................................................... 48 Figura 4: Objeto em perspectiva. ............................................................................................................ 48 Figura 5: Leonardo da Vinci, estudo para A Adorao dos Magos, c. 1481. ............................................ 48 Figura 6: Desenho da janela de Leonardo da Vinci. ............................................................................. 49 Figura 7: Albrecht Drer, Pintor Estudando as Leis do Escoro, 1525. ................................................... 49 Figura 8: Camera obscura do sc. XIX, Dionysis Larder, 1855................................................................ 51 Figura 9: Maurits Cornelis Escher, Waterfall, 1961 ................................................................................ 52 Figura 10: Iluso perspectiva, s. d. .......................................................................................................... 53 Figura 11: Paulo Camargo, sem ttulo, 1989. ......................................................................................... 75 Figura 12: Matt Gatton, Paleo-Camera. ................................................................................................. 78 Figura 13: David Stork, imagens de um eclipse parcial do sol, s.d. .......................................................... 79 Figura 14: Reinerus Gemma Frisius, Camera Obscura, 1544.................................................................. 80 Figura 15: Fox Talbot, Latticed Window at Lacock Abbey, 1835. .......................................................... 82 Figura 16: Oscar Rejlander, Two Ways of Life, 1858. ............................................................................ 85 Figura 17: Guerra Duval, Estudo, 1930.................................................................................................. 87 Figura 18: Edward Steichen, O Pensador, 1902...................................................................................... 88 Figura 19: Eadweard Muybridge, Galloping Horse, 1878....................................................................... 90 Figura 20: tienne-Jules Marey, homem correndo vestindo roupa negra com listras brilhantes, 1880-90.91 Figura 21: Flinders Petrie, Waiting to Begin Work, Egito, 1883 84........................................................ 92 Figura 22: George Davison, An Old Farmstead, ou The Onion Field, 1890........................................... 93 Figura 23: Henri Cartier-Bresson, Hyeres, Frana, 1932. ....................................................................... 96 Figura 24: Alexander Rodchenko, Mulher ao Telefone, 1928. ................................................................ 97 Figura 25: Kasimir Malevich, Fotografia Area, c. 1927.......................................................................... 98 Figura 26: Lszl Moholy-Nagy, From the Radio Tower Berlin, 1928. .................................................. 99 Figura 27: Man Ray, Rayografia, 1927. ................................................................................................ 101 Figura 28: Arturo Bragaglia, Retrato Fotodinmico de Uma Mulher, c. 1924....................................... 102 Figura 29: Otto Steinert, Lamps at the Place de la Concorde, luminograma, 1952. .............................. 104 Figura 30: Geraldo de Barros, A Menina do Sapato, So Paulo, 1949................................................... 105 Figura 31: Andras Muller-Pohle, Face Codes 2096, Kyoto, 1989/99................................................... 114 Figura 32: Maureen Bisilliat, sem ttulo, dc. 1960............................................................................... 120 Figura 33: Rosangela Renn, Cicatriz, 1996. ........................................................................................ 121 Figura 34 (esq): Carlos Fadon Vicente, Medium, 1991. ....................................................................... 122 Figura 35 (dir): Carlos Fadon Vicente, Medium, 1991. ........................................................................ 122 Figura 36: Abelardo Morell, projeo do sol sobre mesa coberta, 2000. ................................................ 128

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Figura 37: Abelardo Morell, eclipse solar, Brookline, MA, 1994. .......................................................... 128 Figura 38: Formao da imagem atravs de um orifcio. ....................................................................... 129 Figura 39: Reflexo da luz..................................................................................................................... 131 Figura 40: Refrao da luz. ................................................................................................................... 132 Figura 41: Reflexo total da luz............................................................................................................. 132 Figura 42: Formao da imagem no interior da camera obscura............................................................ 133 Figura 43: Thomas Hudson Reeve, Brooklyn Bridge, s.d...................................................................... 134 Figura 44: Proporo da imagem estenopeica........................................................................................ 135 Figura 45: Luminosidade da imagem estenopeica. ................................................................................ 135 Figura 46: Danilo pedruzzi, s. d............................................................................................................ 136 Figura 47: Material sensvel paralelo. .................................................................................................... 137 Figura 48: Peter Zirnis, Backyard, 1998 ............................................................................................... 137 Figura 49: Joaqun Casado, Hotel Arts - Port Olmpic, Barcelona, 2003. ............................................. 138 Figura 50 e Figura 51: Material sensvel cncavo. ................................................................................. 138 Figura 52: Kenneth Ransom, Rockport, ME, 1991. ............................................................................. 139 Figura 53: Cmera panormica cncava................................................................................................ 139 Figura 54: David Van Zandt, 2006. ..................................................................................................... 139 Figura 55: Material sensvel convexo..................................................................................................... 140 Figura 56: Cmera estenopeica 360. .................................................................................................... 140 Figura 57: Jrgen Lechner, Schloss weibenstein1, Eckental Alemanha, 2006. ....................................... 141 Figura 58: Ana Anglica Costa, Janelas, Braslia, 2003.......................................................................... 141 Figura 59: Material sensvel inclinado................................................................................................... 142 Figura 60: Eric Renner, Stretch Marilyn, 1997. .................................................................................... 142 Figura 61: Cmera tubular 360 ........................................................................................................... 143 Figura 62: Cleber Falieri, Imagem anamrfica 360. ............................................................................. 143 Figura 63: Cleber Falieri, Imagem anamrfica 360. ............................................................................. 144 Figura 64: Julian Beever, c. 2004. ......................................................................................................... 144 Figura 65: Julian Beever, Ilustrao vista de outro ngulo. .................................................................... 145 Figura 66 (esq): Lente convergente. ...................................................................................................... 147 Figura 67 (dir): Lente divergente. ......................................................................................................... 147 Figura 68: Imagem formada por uma lente simples............................................................................... 147 Figura 69: Imagem formada por um orifcio e detalhe. ......................................................................... 148 Figura 70: Formao da imagem atravs de um orifcio. ....................................................................... 149 Figura 71: Formao da imagem atravs de uma lente convergente. ...................................................... 149 Figura 72: Luz passando atravs de uma fenda sem apresentar difrao. ................................................ 150 Figura 73: Luz passando atravs de uma fenda apresentando difrao. .................................................. 150 Figura 74: Veijo Vilva, s.d. ................................................................................................................... 152 Figura 75: Uso de slit vertical e slit horizontal....................................................................................... 153 Figura 76: Doris Markley, sem ttulo, 1987. ......................................................................................... 153

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Figura 77: Uso de slit horizontal e slit vertical....................................................................................... 154 Figura 78: Doris Markley, sem ttulo, 1987. ......................................................................................... 154 Figura 79: Formas de slits. .................................................................................................................... 154 Figura 80: Joaquin Casado, Franz Kafka, s.d......................................................................................... 155 Figura 81: Claudia Rojas, Desnudo n2, s.d.......................................................................................... 155 Figura 82: Desenhos de zone plates. ..................................................................................................... 156 Figura 83 (esq): Imagem com cmera de orifcio................................................................................... 156 Figura 84 (dir): Imagem com zone plate no lugar do orifcio. ............................................................... 156 Figura 85: Nancy Spencer, Beth, 1996 ................................................................................................. 157 Figura 86: Jochen Dietrich, Cine So Jorge, Lisboa, 1996/97. .............................................................. 159 Figura 87 e Figura 88: Ana Anglica Costa, Durao, 2004-2005......................................................... 160 Figura 89: Louis Daguerre, Paris Boulevard, 1839. ............................................................................... 161 Figura 90: Anton Giulio Bragaglia, Change of Position, 1911. ............................................................. 162 Figura 91: Paolo Gioli, Dire No, 1974. ................................................................................................ 162 Figura 92: Dirceu Maus, Ver-o-Peso Pelo Furo da Agulha, 2004. ....................................................... 163 Figura 93: Danilo Pedruzzi, Auto-Retrato, c. 2000............................................................................... 164 Figura 94: Dominique Stroobant, fotografia com exposio de 6 meses. ............................................... 165 Figura 95: Ilan Wolff, Red Pepper Used Like a Camera Obscura, s.d. .................................................. 167 Figura 96: Jeff Guess, From Hand to Mouth ,1994.............................................................................. 168 Figura 97: Jeff Guess, From Hand to Mouth ,1994.............................................................................. 168 Figura 98: Paolo Gioli, Pugno Contro me Stesso, 1989. ....................................................................... 169 Figura 99: Imagem do punho utilizado como cmera, 1989. ................................................................ 169 Figura 100: Paolo Gioli, Imagem feita com a Cmera Crackerstenopeica, 1980.................................... 170 Figura 101: Paolo Gioli, cmera Crackerstenopeica, 1980. ................................................................... 170 Figura 102: Jeff Fletcher, Bromide Eggs, 1989. .................................................................................... 171 Figura 103 (esq): Jochen Dietrich, Auto retrato, 1993. ......................................................................... 171 Figura 104 (dir): Jochen Dietrich, Cmera relgio, 1994...................................................................... 171 Figura 105: Abelardo Morell, Philadelphia Museum of Art, 2005. ....................................................... 173 Figura 106: Marja Piril, Interior/exterior, 1996-2002. ........................................................................ 174 Figura 107 (esq): Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 3.5 x 5 cm, 1999................................................ 176 Figura 108 (dir): Thomas Bachler, O Terceiro Olho Nus, 1999. ....................................................... 176 Figura 109: Tarja Trygg, Solargraphy, Helsinki, 2003 .......................................................................... 186 Figura 110: Thomas Bachler, Bon Voyage!, 1998. ................................................................................ 187 Figura 111 (esq): Thomas Bachler, From Nuernberg to Kassel, Travel Memories, 1985. ...................... 187 Figura 112 (dir): Thomas Bachler, Pinhole Parcel, Travel Memories, 1985. ......................................... 187 Figura 113: Thomas Bachler, Scenes of Crime, 1995............................................................................ 188 Figura 114: Thomas Bachler, Shot in a Head, 1993. ............................................................................ 189 Figura 115: Neide Jallageas, Realidades Meramente Superficiais, 2000. ................................................ 190 Figura 116: Cmeras usadas em Realidades Meramente Superficiais ..................................................... 190

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Figura 117: Neide Jallageas, fotogramas de Realidades Meramente Superficiais, 2000. ......................... 191 Figura 118: Paula Trope, Contos de Pasagem, 2000............................................................................. 193 Figura 119: Paula Trope, Os Meninos, 1993/1994............................................................................... 194 Figura 120: Claudia Wornum, Eletric Montains, Walker Lake, Eastern Sierra Nevada, 1999. .............. 194 Figura 121: Marcus Kaiser, sem ttulo, 1990. ....................................................................................... 195 Figura 122: Ilan Wolff, Concorde, Paris, 1997. .................................................................................... 196 Figura 123: Robert Doisneau, Dancers, s.d........................................................................................... 204 Figura 124: Andreas Mller-Pohle , Transformance 3590, 1980........................................................... 205 Figura 125: Frederic Fontenoy, Mtamorphose, 1988-1990. ................................................................ 208 Figura 126: Andrew Davidhazy, Peripheral Portrait de Bruce Made, c. 1967........................................ 208 Figura 127: Nam June Paik, TV Magnet, 1965. ................................................................................... 209 Figura 128: Zbigniew Rybczynski, The Fourth Dimension, 1988. ....................................................... 210 Figura 129: Steve Pippin, Laundromat-Locomotion (Horse & Rider) 1997. ........................................ 211 Figura 130: Joaqun Casado, Port Olmpic, Barcelona, 2003................................................................ 218 Figura 131: Michael Wesely, Postdamer Platz, Berlin, 5.4.1997 a 3.6.1999.......................................... 218 Figura 132: Thomas Bachler, From Frankfurt to Kassel, Travel memories, 1985.................................. 218

11

SUMRIOCONSIDERAES INICIAIS.......................................................................... 13CONCEITO DE TECNOLOGIA..........................................................................23

1

A IMAGEM E O REAL: A IMAGEM FOTOGRFICA E OS SEUS CDIGOS.................................................................................................. 341.1 1.2 IMAGEM COMO REPRESENTAO.......................................................36 ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRFICA ..........................................40 1.2.1 Perspectiva: O Modelo Perspctico como Viso de Mundo .................44 1.2.2 A Fotografia como Espelho do Real: A Mimese ..................................54 1.2.3 A Fotografia como Transformao do Real: A Desconstruo..............59 1.2.4 A Fotografia como Trao do Real: O ndice e o Referente...................65 1.2.4.1 Referente ......................................................................................68 1.2.5 Outros Olhares: novos caminhos........................................................73 A TRAJETRIA DA FOTOGRAFIA ..........................................................76 1.3.1 Antes da Fotografia............................................................................78 1.3.2 A primeira fase primeira metade sc. XIX ........................................81 fidelidade ao real .......................................................................................81 1.3.3 A segunda fase segunda metade sc. XIX..........................................83 documento x arte ......................................................................................83 1.3.4 A terceira fase primeira metade sc. XX ...........................................95 domnio tcnico x experimentalismo ..........................................................95 1.3.5 A quarta fase - segunda metade do sc. XX. ...................................... 103 CONTEXTO ARTSTICO CONTEMPORNEO.................................... 109 1.4.1 A Fotografia .................................................................................... 112 1.4.2 A Fotografia Expandida ................................................................... 115 1.4.3 Contexto Brasileiro.......................................................................... 118

1.3

1.4

2

IMAGEM E ARTEFATO: A CONSTRUO DE IMAGENS COM A CMERA ESTENOPEICA......................................................................... 1242.1 ARTEFATO: CARACTERSTICAS TCNICAS ......................................... 126 2.1.1 Formao da Imagem ...................................................................... 128 2.1.1.1 Luz: propriedades pticas............................................................130 2.1.1.2 No interior da cmera a imagem se forma...................................133 2.1.2 Orifcio: Ausncia da Objetiva, Refrao e Difrao ......................... 146 2.1.2.1 Outras possibilidades: Slits e Zone Plates ....................................153 2.1.3 Tempo Expandido........................................................................... 157

12

2.2

CONSTRUINDO A CMERA ESTENOPEICA: A EXPERINCIA ARTSTICA ............................................................................................... 166 2.2.1 Uma Outra Perspectiva.................................................................... 175 EXPERIMENTAO: AS POSSIBILIDADES EXPRESSIVAS DA CMERA ESTENOPEICA ......................................................................................... 177 2.3.1 Acaso .............................................................................................. 181 2.3.2 Produo Estenopeica Artstica Contempornea: outras possibilidades 183 (DES)CONSTRUINDO A CAIXA PRETA ............................................... 198 2.4.1 Decifrando o Aparelho .................................................................... 199 2.4.2 Estenopeica: Dentro da Caixa Preta ................................................. 212

2.3

2.4

3 4

APONTAMENTOS.................................................................................. 215 CONSIDERAES FINAIS..................................................................... 228

REFERNCIAS .............................................................................................. 235 GLOSSRIO .................................................................................................. 245

13

CONSIDERAES INICIAIS

Ao explicar o tema de pesquisa, o comentrio mais comum sempre foi:

H? fotografia estenopeica, o que isso?Em seguida, aps explicar o que vem a ser fotografia estenopeica, segue-se sempre um segundo comentrio:

Que legal! Voc vai falar sobre fotografia de latinha!Ento, a resposta :

Sim, sim, vou falar sobre fotografia de latinha!O estranhamento com relao ao tema da pesquisa continua:

Puxa, mas seu mestrado em Tecnologia, no ?... E voc vai estudar fotografia de latinha?...

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O estranhamento com relao fotografia estenopeica e tecnologia se espalha para alm do pblico leigo. As concepes de fotografia e de tecnologia podem ser por vezes, de tal forma equivocadas, que a escolha do tema pode ento parecer, se no deslocada, ao menos um tanto inslita. Mas, apesar de estar associada a uma brincadeira de criana, ou apenas a um mtodo para aprender os princpios bsicos da fotografia, o que se v na fotografia estenopeica est muito alm do ldico ou dos fundamentos fotogrficos. Percebe-se nela uma alternativa de aproximao da fotografia e uma possibilidade de questionamento dos conceitos j enraizados sobre ela, e porque no, sobre a tecnologia. Mais do que isso, a fotografia estenopeica pode ser vista como uma opo extremamente fecunda e rica de criar e pensar as imagens. Afinal, uma discusso terica no precisa necessariamente se enquadrar ou se limitar a temas sisudos e comportados para ser aceita no meio acadmico, ou precisa? Alm disso, o que se espera, no decorrer desta dissertao, mostrar o quo sria pode ser a discusso sobre essa brincadeira de criana. Como primeirssimo passo, importante elucidar a primeira pergunta: o que fotografia

estenopeica? O termo pouco comum e de certa forma no muito conhecido mesmo entrefotgrafos. Estenopeica a terminologia adotada para definir imagens obtidas sem a utilizao de lentes. A luz que forma a imagem atravessa apenas um pequeno furo. No caso da fotografia estenopeica, no lugar das objetivas das cmeras fotogrficas tradicionais apenas um orifcio que forma a imagem. A palavra estenopeica vem de estenopo que o nome que se d ao pequeno furo por onde passa a luz que ir formar a imagem. O termo tem origem na lngua grega steno: estreito, e op: furo ou ps: olho. Curiosamente, em grego, furo e olho parecem ter uma raiz comum. No Brasil aparecem com freqncia as denominaes: cmera de orifcio, cmera de

buraco de agulha ou simplesmente camera obscura; tambm muito comum a utilizao dotermo pinhole, num emprstimo da lngua inglesa: pin alfinete e hole buraco. Entretanto, alguns cuidados devem ser tomados ao se utilizar o termo pinhole: ele pode designar tanto o orifcio, como a maneira como obtida a imagem - a tcnica propriamente dita e as prprias imagens que resultam desse processo. Optou-se por utilizar as denominaes estenopo ou orifcio para designar o furo, e a palavra estenopeica para qualificar a tcnica, a cmera e as imagens.

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A possibilidade de obteno de imagens formadas atravs de um orifcio no se restringe fotografia; alguns artistas utilizam o orifcio para obter imagens em vdeo, por exemplo. Na verdade, em qualquer processo de formao de imagens que derive da camera obscura1, ou seja, que dependa da ao da luz que penetra em um ambiente escuro para formar a imagem, pode-se utilizar apenas um orifcio no lugar das lentes. Uma camera obscura nada mais do que um compartimento escuro de qualquer tamanho - com um furo (ou mais) em um dos lados. Do lado de fora desse compartimento a luz refletida pelos objetos em todas as direes. Parte dessa luz refletida pelos objetos atravessa o furo e forma a imagem externa no interior do compartimento, invertida e na face oposta ao(s) furo(s). Maiores detalhes sobre os princpios e o desenvolvimento da camera obscura sero abordados na seo 1.3.1 do captulo 1, p. 78. Uma cmera estenopeica basicamente um ambiente vedado de luz com um pequeno furo de um lado e um material fotossensvel do outro. A luz refletida pelos objetos passa pelo orifcio e atinge a superfcie fotossensvel, formando a imagem. Essa superfcie sensvel pode ser tanto um material convencional/qumico - uma emulso que depois de receber a luz, ser processada quimicamente para fixar a imagem; como tambm pode ser um sensor eletrnico do processo digital que transforma os sinais eltricos captados pelo sensor em informaes digitais de intensidade e cor de luz. Neste caso, o que diferencia a imagem estenopeica basicamente a ausncia de lentes no equipamento que ir capturar a imagem, ou seja, na cmera. Por conta disso, no decorrer da dissertao, o termo fotografia com lentes ser usado para identificar imagens obtidas com cmeras que utilizam objetivas, independentemente do tipo de superfcie fotossensvel: qumica ou digital. O termo sem lentes poder usado para identificar as diferentes modalidades de imagens obtidas com cmeras sem a utilizao de objetivas. A busca primeira desta pesquisa pensar a fotografia, sua linguagem e as concepes que se traam a respeito de suas imagens, resultado do incmodo em perceber que a imagem fotogrfica ainda est impregnada pela idia da figurao. A ligao com o real e o referente est de tal forma aderida imagem fotogrfica que, no senso comum, uma imagem fotogrfica aindaCamera obscura o termo latino para cmera escura (camera - compartimento ou aposento de uma casa e, em especial, o quarto de dormir; e obscuru (a) - falta de luz; pouco claro; sombrio, tenebroso). A expresso utilizada para designar o princpio de formao de imagens atravs de orifcios no interior de compartimentos escuros. Inicialmente as cameras obscuras eram utilizadas para a observao de eclipses. Posteriormente, na forma de pequenas caixas portteis, foram utilizadas para auxiliar no desenho. Nessas caixas foram acrescentadas lentes no lugar do orifcio para melhorar a qualidade da imagem, e uma superfcie translcida do lado oposto, para decalcar a imagem. No incio do sc. XIX, com a introduo de um material sensvel na face onde se forma a imagem ela se transformou na cmera fotogrfica.1

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significa uma imagem muito fiel ao modelo; uma cpia fiel; uma reproduo exata. Mesmo com o advento do digital, no qual a ps-fotografia2 no depende da luz para a formao da imagem, diferente, portanto, em sua gnese, da fotografia tradicional, a figurao permanece sendo o grande referencial. As imagens de modulao digital direta, que no dependem das especificidades do processo fotogrfico fenmenos fsico/qumicos responsveis pela formao da imagem: luz, cmera, conjunto ptico, processamento qumico/eletrnico ainda perpetuam o modelo figurativo da construo perspctica renascentista. Com toda a corrida pela mais alta tecnologia de produo de imagens, alardeada aos sete ventos pela indstria fotogrfica, se chega, no final, ao modelo que se repete h quase dois sculos pela fotografia tradicional. A inquietao com essa concepo acerca da imagem fotogrfica, como cpia fiel do referente e da tecnologia como sinnimo de progresso tcnico, desligada de todo o contexto social, cultural e histrico que a envolve, motivou a reflexo e a busca por possibilidades de produo de imagens que colocassem em questo essas concepes. Encontrou-se na fotografia estenopeica uma possibilidade. Assim, este estudo prope-se a discutir as imagens estenopeicas fotogrficas, com a preocupao de investigar diferentes conceitos e discusses que se estabelecem no entorno da imagem fotogrfica e do conceito de tecnologia. Opta-se por observar a prtica da fotografia estenopeica, pois se acredita que ela permitir evidenciar e colocar em discusso uma srie de aspectos, de conceitos e de pr-conceitos que, de certa forma, esto cristalizados no senso comum, a respeito da imagem fotogrfica tradicional e das demais mdias visuais que dela so herdeiras. Dessa forma, o objetivo desta pesquisa o estudo da fotografia estenopeica como possibilidade de romper com o conceito de homologia no processo da fotografia tradicional3 com lentes e, ao mesmo tempo, como forma de evidenciar as dimenses scio-culturais da tecnologia. A noo de ruptura adotada com o sentido de indicar uma quebra com as convenes formais e conceituais estabelecidas em torno da fotografia tradicional. Apesar da intensidade do termo, ele adotado, neste trabalho, para identificar posturas que se propem, no apenas a questionar, mas tambm desconstruir prticas da fotografia tradicional e limitaes impostas peloO termo ps-fotografia se refere a imagens de aparncia fotogrfica que so modeladas diretamente no computador sem a necessidade da existncia de um objeto real, um referente que reflita a luz para formar a imagem.3 2

Neste trabalho, o termo fotografia tradicional se refere tanto prtica quanto s imagens obtidas atravs da utilizao de cmeras fotogrficas convencionais com uma postura tambm convencional, ou seja, que reproduz o padro esttico figurativo da perspectiva renascentista. Consideram-se cmeras convencionais aquelas disponveis comercialmente analgicas ou digitais nas quais a imagem formada atravs de um conjunto ptico - objetiva sobre um material sensvel disposto numa superfcie perfeitamente plana do lado oposto objetiva e delimitado por uma rea retangular.

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mercado ao aparato fotogrfico. Posturas que estabelecem um corte conceitual e formal com a idia da fotografia como reproduo fiel da realidade visvel, como um anlogo do referente. Para isso, optou-se por estudar a recente produo de imagens fotogrficas estenopeicas, resultado da retomada da tcnica por fotgrafos e artistas contemporneos que, alm de buscar novas opes expressivas de manifestao esttica, procuram, muitas vezes, questionar o meio e as determinaes das novas tecnologias impostas pela indstria fotogrfica. Atravs de uma pesquisa bibliogrfica de carter descritivo/exploratrio, buscou-se inicialmente um levantamento bibliogrfico para fundamentar as bases conceituais delimitadas pela pesquisa. A partir do referencial terico, observaram-se aspectos conceituais envolvidos na ontologia da imagem fotogrfica. Paralelamente, realizou-se uma pesquisa bibliogrfica a respeito dos aspectos tcnicos envolvidos na construo da cmera e na formao da imagem. Outro procedimento adotado foi pesquisar o uso da tcnica da fotografia estenopeica em atividades artsticas e de pesquisa esttica a partir da observao de imagens, assim como, do acompanhamento da produo estenopeica artstica contempornea. Esses trs caminhos de investigao procuram descrever os aspectos tecnolgicos envolvidos com a forma de captao e de registro das imagens estenopeicas. Ao mesmo tempo, estabelecer parmetros para identificar em que medida os resultados formais possibilitados pelo uso desse tipo de tecnologia aliados s posturas estticas dos artistas/fotgrafos podem permitir o distanciamento das concepes de objetividade e mimese fotogrficas. Inicialmente buscaram-se textos e publicaes tericas em lngua portuguesa assim como imagens e artistas que trabalham com a tcnica. Diante da escassez de material impresso, recorreuse a produes em outras lnguas e, principalmente, a rede mundial de computadores. Cabe ressaltar que o contato com a produo recente, nacional e internacional, s foi possvel por meio de pesquisas na internet, uma vez que os acervos das bibliotecas e museus no do conta dessa produo. Distribuda por diferentes pases, e com praticantes que no se restringem ao meio artstico institucionalizado, a prtica da fotografia estenopeica abordada na pesquisa inclui usurios diversos, entre eles: artistas, fotgrafos profissionais e amadores - no sentido de amantes da fotografia. Usurios com diferentes conhecimentos tcnicos que encontraram na fotografia estenopeica um meio de expresso e experimentao esttica. Entrevistas com artistas brasileiros, realizadas por meio de correio eletrnico, foram essenciais para direcionar e identificar

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o foco de interesse e a postura artstica com relao tcnica, alm de orientar as pesquisas na rede mundial de computadores. Apesar de restries tcnicas, conceituais e ideolgicas, os artistas contemporneos buscam, cada vez mais, alargar as fronteiras que limitam a fotografia, tanto como possibilidade expressiva como em sua conceitualizao terica. Isso vem reforar a postura de alguns deles na direo de um rompimento com a tcnica e a esttica fotogrfica praticadas convencionalmente. O uso de cmeras rudimentares, tecnologicamente primitivas ou que apresentam deficincias construtivas e a utilizao de processos qumicos alternativos, no disponveis comercialmente, trazem aos artistas outras perspectivas expressivas. O artista/fotgrafo se desprende de certos estatutos visuais da fotografia para estabelecer outros, mais adequados s suas necessidades expressivas. No contexto artstico contemporneo, a fotografia estenopeica, assim como o fotograma e outros inmeros processos fotogrficos histricos, chamados hoje de alternativos tais como o ciantipo, a goma-arbica, o platintipo e a fotogravura, entre outros -, esto sendo retomados4. O intuito dos artistas, ao retomar essas tcnicas, no apenas o de produzir imagens diferentes daquelas obtidas pela fotografia tradicional, mas, principalmente, buscar maneiras de discutir o prprio meio. As possibilidades de rompimento com o processo fotogrfico tradicional entendido como registro e reproduo fiel do referente, que surgem de propostas estticas e atitudes experimentais na busca pelo entendimento dos processos de representao e dos cdigos inscritos nas imagens tcnicas5, revelam mais claramente a subjetividade e a presena do usurio artista/fotgrafo - como construtor da representao. Ao mesmo tempo, essas novas imagens estimulam tanto aquele que as cria, quanto aquele que as observa a questionar a maneira como simbolizam e interpretam sua prpria realidade, evidenciando que representaes visuais como a fotografia so construes simblicas social e culturalmente constitudas. A tcnica no determina sozinha o resultado simblico das imagens. Uma tcnica mais avanada no significa necessariamente novos resultados simblicos ou novas posturas estticas. A construo simblica das imagens fotogrficas no est na tcnica em si, mas nas intenes e posturas do4

Para maiores informaes sobre os processos fotogrficos histricos, ver Monforte (1997). Uma verso eletrnica do livro est disponvel em: . Acesso em: 10 fev. 2008.

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Segundo Flusser imagens tcnicas so aquelas produzidas de forma programtica ou com uma tendncia automatizada, que fazem parte de um sistema em geral fechado para quem o opera e sempre mediado por um aparelho (FLUSSER, 2002).

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artista/fotgrafo ao dispor daquele meio para criar imagens, e na tecnologia fotogrfica, ou seja, a tcnica fotogrfica inserida no complexo contexto scio-cultural do qual fazem parte o artista/fotgrafo criador das imagens e o espectador que as observa. Ao discutir-se a imagem fotogrfica no se pode deixar de ter em mente a dimenso interdisciplinar do processo de construo do conhecimento e a importncia da imagem como instrumento de conhecimento da realidade social mediado pela cultura e especialmente por um tipo de cultura visual do qual fazem parte as imagens fotogrficas. Os seres humanos tm a capacidade de dar significado a tudo que se relaciona sua realidade. atravs do significado atribudo s representaes (aos signos) - visuais ou no - que se d sentido s experincias (GEERTZ, 1978). A fotografia est entre esses signos que esto na base do conjunto de processos de significao que a cultura, regulando e identificando a existncia humana. Produtos de um sujeito social e historicamente localizado, essas construes simblicas so elaboradas a partir da vida em sociedade, resultado da interao entre os vrios grupos sociais, com suas diferentes experincias, pois a histria dinmica, e as experincias, heterogneas. Cada grupo humano, em cada poca, constri os processos de significao, envolvendo sempre uma dimenso de pluralidade, porque suas experincias so diferentes e mltiplas. Essas experincias so incorporadas ao cotidiano, produzindo e reproduzindo as condies de existncia atravs das prticas e das tcnicas comuns a cada grupo, a cada cultura. Como resultado, tem-se diversas maneiras de significar o mundo, mltiplos discursos e diferentes verdades, ou, nas palavras de Bakhtin, inmeras vozes sociais atravs das quais d-se sentido ao mundo. Um mesmo signo poder ter significaes diferentes, dependendo da voz social que o enuncie (BAKHTIN, 1981, apud FARACO, 2003). As discusses sobre a imagem fotogrfica seguem essa mesma lgica, trilhando por inmeros e distintos caminhos que se entrelaam e se entrecruzam como numa teia. Se existem fronteiras entre esses caminhos, elas so mveis e esto em constante transformao. Assim, podem-se lanar sobre a fotografia tantos pontos de vista quantos so os ngulos possveis de se observar um objeto ou de fotograf-lo. Da mesma maneira como se modifica o sentido atribudo s imagens - representaes visuais -, os conceitos sobre elas vo sendo alterados e transformados no decorrer da histria, refletindo as experincias daquele contexto histrico, social e cultural. Essas diferentes vozes esto num contnuo dilogo, no qual ora se estabelecem trocas, ora

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confrontos, como que em posies opostas. So olhares distintos, mas no isolados uns dos outros. atravs dessa relao dialgica entre essas diferentes vozes que esta pesquisa procura se aproximar da imagem fotogrfica. No decorrer desta dissertao, ao estudar o desenvolvimento histrico e os diferentes conceitos acerca da fotografia, percebe-se que, em alguns momentos, na histria da fotografia, se privilegia um determinado olhar (uma determinada voz) em detrimento de outro, como num dilogo monolgico, onde apenas uma das vozes prevalece. Entretanto, se observa que esses diferentes pontos de vista podem, e devem, ser lanados sobre a imagem fotogrfica ao mesmo tempo. Nesta perspectiva, acredita-se que analisar a construo de imagens atravs da fotografia estenopeica permite perceber que a presena simultnea dessas diferentes vozes, desses diferentes olhares, possvel. Um olhar que mimtico, outro olhar que desconstrutor, outro que indicial, ou ainda outros que misturam um pouco de cada um deles. Todos esses olhares buscam, de alguma maneira, discutir a imagem fotografia em sua relao com o real. Desde seu surgimento, a fotografia trouxe consigo uma srie de questionamentos conceituais acerca da semelhana que a aparncia de suas imagens apresenta com a realidade. A inteno de reproduzir automaticamente a realidade, sem a interferncia da subjetividade e da presena humana nos processos de registro do mundo visvel, fez com que a fotografia, desde os seus primrdios, fosse conhecida como o espelho do real6. Diferentemente de outras tcnicas de registro figurativo da realidade usadas pelo homem, como a pintura, a gravura e o desenho, o processo fotogrfico trouxe, em sua constituio, a sensao aparente de no precisar e nem depender das habilidades manuais de quem a utilizasse. Gerando assim, a crena de que a gnese mecnica do meio supria a interferncia humana na captao da imagem, em funo de sua objetividade tcnica. Num outro extremo, o conceito de fotografia, como transformao do real, considera a fotografia uma codificao ideolgica produzida pela interferncia de diversos elementos (tcnicos, culturais, sociolgicos, estticos e outros) que agem determinando um rompimento com a idia de que a fotografia se manifeste conceitualmente como um duplo do real. Voloshinov (1995) defende que a realidade material da ideologia formada por signos: entidades elementares que constituem todos os sistemas de representao numa definio6

As expresses espelho do real, transformao do real e trao de um real foram tomadas da discusso de Philippe Dubois (1994) sobre a questo do realismo na fotografia.

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simplificada, signo seria aquilo que representa algo que no ele prprio. Para ele essa representao das coisas se d de forma dupla e contraditria: os signos ao mesmo tempo refletem e refratam a realidade visada pela representao (MACHADO, 1984, p. 20). Os verbos refletir e refratar, tomados da ptica, significam igualmente modificar uma onda de luz pela interposio de uma superfcie qualquer. No fenmeno da reflexo os raios so devolvidos ao meio de origem e na refrao eles so absorvidos e desviados. Segundo Machado:[...] o fenmeno da refrao nos impede de obter uma reproduo fiel dos sinais luminosos, j que ele os deforma ou os transfigura de acordo com a natureza do material cristalino interposto em seu percurso. justamente esse carter transfigurador dos signos que Voloshinov tem em mente ao apropriarse da expresso ptica refrao [...] Eis porque refratar, na acepo de Voloshinov, significa operar uma modificao nos fenmenos. (MACHADO, 1984, p. 21).

O pensamento da fotografia como transformao do real se d, neste caso, pela codificao ideolgica produzida pela interferncia dos diversos elementos que se colocam em seu processo de constituio. Com esta idia, pode-se entender que a questo da gnese mecnica e da automatizao da constituio da imagem fotogrfica foi examinada por meio de uma concepo transformadora e interpretativa da realidade. Por esse conceito, no h fotografia sem interferncia ideolgica ou sem interpretao subjetiva. Ela sempre considerada uma codificao. Na cmera estenopeica, a luz que chega at o material fotossensvel para formar a imagem atravessa apenas um pequeno orifcio. A ausncia de lentes (objetivas) ou sistemas ticos baseados na refrao luminosa, permite evitar alguns problemas ocasionados pela refrao, ao mesmo tempo, impede uma srie de correes e compensaes que, supostamente, conferem s cmeras convencionais a fidelidade de imagem necessria iluso de objetividade obtida pelas imagens tcnicas. No decorrer desta dissertao, adota-se o conceito de refrao dentro da acepo de Voloshinov, como uma transfigurao dos signos que se processa pela re-interpretao que se faz da realidade, mediada por questes tcnicas, estticas e principalmente por questes sociais e culturais. No entanto, tambm o conceito ptico-fsico de refrao discutido no momento em que se trata do processo de formao ptica da imagem, com o intuito de explicar diferenas que so fundamentais para demonstrar as especificidades da formao da imagem atravs do orifcio em comparao imagem formada pela objetiva.

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Se, por um lado, existe a semelhana entre a imagem e o objeto representado e, por outro, a desconstruo da imagem fotogrfica, que interpreta e transfigura o real, existe tambm uma forte ligao entre a imagem e seu referente. Na abordagem que considera a fotografia como trao de um real, um ndice, na classificao semitica de Peirce (2003), a inevitvel sensao de presena do referente se d pela conexo fsica entre o objeto e sua representao. A imagem fotogrfica no seria possvel caso no existisse o objeto que reflete a luz e que formar a imagem no interior da cmera. Assim, segundo Peirce, as fotografias so produzidas em circunstncias tais que foram fisicamente foradas a corresponder ponto a ponto natureza (PEIRCE, 2003 p. 65). Nessa mesma teia que envolve as discusses sobre a imagem fotogrfica tambm est presente o conceito de tecnologia. A multiplicidade de olhares com relao tecnologia, com definies e conceitos confusos, muitas vezes, faz com que se tenha um entendimento equivocado de suas amplas dimenses, que vo muito alm da tcnica ou do artefato em si, mas se estendem como uma construo humana. Pode parecer estranho relacionar fotografia e tecnologia. A tendncia seria, provavelmente, considerar a fotografia como uma tcnica especfica, ou no mximo falar em tecnologia fotogrfica. No entanto, o mesmo olhar que leva a enxergar a imagem fotogrfica como uma forma de significar o mundo e apreender a realidade, construindo conhecimento, permite olhar para a tecnologia como uma construo social complexa, com papel fundamental nos processos de significao do real e do simblico. Da mesma forma, o mesmo olho que v a tecnologia como logos da tcnica, ou como a cincia aplicada tcnica, enxerga na fotografia apenas a aplicao prtica de uma tcnica, de um saber, ambas isoladas das relaes sociais. As interpretaes e os determinismos que envolvem os conceitos de fotografia e de tecnologia esto muito prximos. Assim, pode-se tomar a fotografia como um exemplo de como se constri simbolicamente a idia de tecnologia. E neste ponto, estudar uma tcnica fotogrfica especfica ou um artefato em particular, como a fotografia estenopeica, permite verificar uma srie de caractersticas que evidenciam certas concepes acerca da fotografia em si, e, ao mesmo tempo, acerca da tecnologia. Tanto a prtica da fotografia estenopeica como os resultados imagticos que ela possibilita permitem questionar os diferentes conceitos sobre a fotografia e, de certa forma, evidenciar algumas questes que envolvem sua prtica. Assim, cabe inicialmente

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discutir as definies que se traam acerca da tecnologia como uma maneira de estabelecer desde j como sero lanados os olhares sobre a fotografia.

CONCEITO DE TECNOLOGIAO avio no foi feito para voar, mas para o homem voar.lvaro Vieira Pinto7

importante estabelecer uma diferenciao entre o uso que se far dos termos tcnica e tecnologia. Etimologicamente, o termo tecnologia vem da lngua grega - technologa, - teckn: arte ou ofcio, e logos: estudo, cincia, saber -, significando o conhecimento da tcnica; o conjunto ou a totalidade de conhecimentos, especialmente de princpios cientficos, que se aplicam a uma determinada atividade. Nesta acepo, o termo se confunde com a definio de tcnica - do grego techniks, relativo arte, ou pelo latin technicu - o conjunto de processos de uma arte; maneira, jeito ou habilidade especial de executar ou fazer algo. (FERREIRA, s.d.) O que se percebe que, no senso comum, se estabelece uma hierarquizao entre eles. A palavra tcnica associada a uma prtica que se realiza de maneira mecnica, repetitiva, automtica, como a fabricao de um utenslio ou de uma ferramenta, como a pedra lascada nas sociedades primitivas, resultado de um treinamento, destitudo de qualquer elaborao sensvel ou intelectual, enquanto tecnologia envolve a aplicao de teorias e experimentaes cientficas mais elaboradas. Milton Vargas define tecnologia como o desempenho cientfico da tcnica, atribuindo a passagem da tcnica para a tecnologia, no a uma evoluo ou ao desenvolvimento interno das tcnicas, mas s condies scio-econmicas em que a tecnologia estaria inserida. (VARGAS, 1984 apud BASTOS, 2000) Neste caso, a passagem da tcnica para a tecnologia se d com a aliana entre a tcnica e o conhecimento cientfico a partir do sc. XVIII, com a Revoluo Industrial. No entanto, ambas so consideradas realizaes humanas, e nelas esto inseridas questes que envolvem a produo das condies materiais de vida que fazem parte da experincia7

PINTO, 2005, p. 80, v. 1

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humana, desde os primrdios de sua existncia. Assim, diferencia-se tcnica de tecnologia no a partir de um momento histrico especfico, ou de um modelo scio-econmico, mas sim no uso que se faz do termo. Neste trabalho a palavra tcnica usada quando se est referindo ao conjunto de procedimentos e materiais utilizados para executar determinada tarefa, incluindo todo o desenvolvimento histrico e cientfico envolvidos em sua prtica. Ao usar a palavra tecnologia, se est considerando todo o complexo contexto scio-cultural do qual ela faz parte: o jogo de valores culturais, polticos, religiosos e econmicos no qual a tcnica est inserida, e no apenas o processo de forma isolada, por isso a importncia de se esclarecer desde j o entendimento do termo para este trabalho. inegvel que a tecnologia faz parte do contexto atual. Cada vez mais, objetos e bens que simbolizam e remetem tecnologia, cercam a vida humana. No entanto, a percepo da tecnologia como uma vasta variedade de instrumentos e mquinas, desenvolvidas para satisfazer necessidades e melhorar a qualidade da vida humana apenas uma das possibilidades de concebla. O termo assume diferentes sentidos e interpretaes dependendo do contexto em que estiver sendo abordado, o que torna sua conceituao extremamente complexa, levando muitas vezes a definies vagas e confusas. O olhar mais freqente sobre a tecnologia aquele que privilegia suas dimenses materiais, com concepes utilitaristas que atribuem ao termo um significado instrumental e que envolve basicamente as mquinas. Sob esse olhar, a tecnologia vista como a aplicao de conhecimentos cientficos: o que consequentemente atribui ao desenvolvimento e inovao tecnolgica o papel de transformar conhecimento cientfico em valor econmico. Outros olhares procuram pensar a tecnologia de forma mais ampla, apresentando conceitos que consideram tambm suas dimenses scio-culturais, relacionando tecnologia e sociedade. Dentro desse modo de ver a tecnologia, se destacam as reflexes de Ruy Gama (1986), para quem a tecnologia moderna a cincia do trabalho produtivo. Dentro do pensamento de tradio marxista, ele adota o conceito clssico de trabalho nas suas relaes com o modo de produo. Entretanto, ao considerar o trabalho produtivo, Gama limita o conceito, por estabelecer uma ligao direta entre a tecnologia e o modo de produo capitalista, uma vez que ele considera como trabalho produtivo apenas aquele que produz valor de mercadoria (GAMA, 1986). Apesar de ampliar a compreenso do termo ao considerar suas dimenses sociais, Gama

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restringe a possibilidade de pensar a tecnologia em outras formas de organizao social, fora da lgica capitalista. Uma abordagem mais aberta v a tecnologia por sua estreita interao com o ser humano, em seus aspectos social e cultural, considerando a tecnologia presente praticamente em todas as atividades humanas: desde as mais simples, dos primrdios da humanidade, at as mais complexas e sofisticadas, como as atuais. Os seres humanos construram sua trajetria buscando na natureza as solues para garantir a sua sobrevivncia e satisfazer suas necessidades. Para superar as dificuldades impostas pelas foras naturais, eles se utilizaram e fabricaram instrumentos cujo desenvolvimento fruto da aplicao de um conhecimento socialmente produzido e compartilhado, que pode ser considerado, portanto, tecnolgico. Dessa forma, a tecnologia atravessa todas as formaes sociais, independentemente do momento histrico ou do sistema poltico-econmico, uma vez que, para manter as condies materiais de vida, qualquer sociedade necessita se apropriar, criar e manipular tcnicas que envolvem dados culturais, polticos, religiosos e econmicos, que constituem sua existncia social. (BASTOS, 1997; CARVALHO, 2003). Seguindo essa mesma abordagem, tm-se os estudos desenvolvidos por lvaro Vieira Pinto, no livro O Conceito de Tecnologia (2005). Para defender sua posio com relao ao carter de dominao que se estabelece em torno da questo da tecnologia, Vieira Pinto destaca quatro significados principais, dentre as diferentes acepes do termo. O primeiro coloca a tecnologia como a teoria, o estudo, a discusso da tcnica. No segundo significado, tecnologia equivale tcnica: os dois termos so utilizados sem distino na linguagem corrente. No terceiro, o conceito de tecnologia entendido como o conjunto de todas as tcnicas de que dispe uma determinada sociedade, em qualquer fase histrica de seu desenvolvimento (PINTO, 2005, p. 219). Como quarto significado est aquele que Vieira Pinto defende: que considera tecnologia como a ideologia da tcnica. Nesse sentido, Vieira Pinto compartilha das idias de Jrgen Habermas, com relao ao carter ideolgico presente nos domnios da cincia e da tcnica:No apenas de maneira acessria, a partir do exterior, que so impostos tcnica fins e interesses determinados eles j intervm na prpria construo do aparato tcnico; a tcnica sempre um projeto (Projekt) histrico-social; nela projetado (Projektiert) aquilo que a sociedade e os interesses que a dominam tencionam fazer com o homem e com as coisas. (HABERMAS, 1983, p. 304)

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Lima Filho e Queluz (2005) apresentam uma outra maneira de pensar a multiplicidade de significados e apropriaes que se fazem do termo. Buscando uma sistematizao terica, reunindo afinidades e discordncias entre os diferentes conceitos de tecnologia, eles destacam duas matrizes conceituais que, de certa forma, englobam os significados descritos anteriormente. Cabe ressaltar, que mesmo dentro de cada uma das matrizes apontadas, existem posies e conceituaes diversas ou at divergentes. A matriz instrumental, ou reduzida, concebe a tecnologia como tcnica, isto , como aplicao prtica de saberes e conhecimentos. A matriz relacional, ou plena, compreende a tecnologia em sua dimenso relacional, ou seja, como construo, aplicao e apropriao das prticas, saberes e conhecimentos. (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005, p.19). Este trabalho no se detm numa discusso profunda de cada uma dessas acepes. Busca apenas destacar alguns aspectos de sua conceituao, para nortear a discusso e apresentar a concepo de tecnologia da qual se partilha e que adotada neste trabalho. O olhar que se lana sobre a questo da tecnologia considera que ela est presente e desenvolvida de forma relacional em todas as culturas, como uma construo social complexa, participando e condicionando as mediaes sociais, como fora intelectual e material do processo de produo e reproduo social. Entende-se que ela no pode ser considerada como fenmeno isolado das relaes sociais, independente das necessidades do modo de produo capitalista, como concebida pela conceituao instrumental, que atribui autonomia e neutralidade tecnologia, pois no a considera como relao social, mas apenas como uma tcnica, artefato ou mquina. (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005) Bastos considera que a tecnologia a capacidade humana de perceber, compreender, criar, adaptar, organizar e produzir insumos, produtos e servios. Ela ultrapassa a dimenso puramente tcnica, incorporando outros elementos da vida social, tornando-se um vetor fundamental de expresso da cultura das sociedades (BASTOS, 1998, p. 32). Compreender a tecnologia em sua dimenso scio-cultural, como um elemento formador da sociedade, no significa acreditar que ela, de alguma forma, a determine. O desenvolvimento tecnolgico se intensifica com a consolidao do capitalismo, e junto com ele, a idia de que a tecnologia determina a vida social. Esta, capaz de trazer progresso e transformar toda a sociedade: como se as inovaes e avanos tecnolgicos fossem responsveis pela melhoria da qualidade de vida, e como se essas melhorias fossem acessveis a todos. Essa valorizao

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exagerada do desenvolvimento tecnolgico pode levar, num outro extremo: ao entendimento de que aqueles que no se desenvolverem e no inovarem tecnologicamente estaro condenados dominao. Acusa-se o desenvolvimento tecnolgico pelas desigualdades sociais e pelo desemprego estrutural na sociedade globalizada. Com isso, delega-se ao conhecimento tecnolgico uma relao de poder e dominao que, na verdade, deve ser compreendida de forma mais ampla, pela interao de diferentes foras sociais, polticas, econmicas, culturais e ideolgicas (CARVALHO, 1998). Os discursos e concepes acerca da tecnologia so tambm reflexos de diferentes interesses polticos, econmicos e sociais. Ao descontextualiz-la, retirando-a do contexto sciocultural no qual ela produzida e apropriada, esta-se incorrendo em determinismos que ratificam os interesses dominantes, dotando a tecnologia de autonomia, como se ela, por si s, dominasse a vida humana. A esse respeito, concordando com as idias de Vieira Pinto (2005), Joo Bastos defende que a tecnologia um instituto social que desempenha um papel poltico (BASTOS, 1997, s.p.). Sendo assim, a tecnologia no pode ser considerada politicamente neutra. Segundo Joo Bastos:A estrutura de poder se utiliza da tecnologia, como de outros meios, para exercer sobre ela o controle de suas aes e de suas ideologias. A tecnologia, embora fundamentada em conceitos cientficos, vincula-se ao concreto de mquinas e ferramentas. [...] A atividade instrumental no deixa de ser um discurso que corresponde ao conceito e interpretao que se d quela tcnica. A escolha de determinadas mquinas e o controle exercido em nome de uma determinada classe social institucionalizam a tecnologia. Escolhidas por essas sociedades, as mquinas se transformam em instrumentos de inovao e adaptam-se a seus interesses e necessidades. (BASTOS, 1998, p. 14)

O desenvolvimento tecnolgico pode trazer avanos e melhorias para a vida humana, mas em contrapartida cria novas necessidades. O rol de necessidades vai aumentando medida que inovaes tecnolgicas surgem, sem que se perceba o quanto se depende dessa artificialidade (CARVALHO, 1997) Novas mquinas so desenvolvidas para satisfazer as necessidades humanas ao mesmo tempo em que criam novas necessidades. Nas palavras de Vieira Pinto: medida, porm, que vo sendo compreendidos os processos naturais e descobertas as foras que os movimentam, com a conseqente possibilidade de utilizao delas pelo homem, para produzir artefatos capazes de satisfazer novas necessidades, e essa fabricao se multiplica constantemente, o mundo deixa de ser o ambiente rstico espontneo e se converte em ambiente urbano, na casa povoada de produtos de arte e, na poca atual, de aparelhos que pem as foras naturais a servio do homem. (PINTO, 2005, p. 47, v. 1)

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Pode-se incluir as mquinas semiticas8 no rol desses instrumentos criados pela sociedade para satisfazer e gerar novas necessidades. O discurso e os conceitos reunidos nessas mquinas refletem os interesses polticos, econmicos e sociais. Segundo Flusser (2002), os aparelhos, assim como o aparelho fotogrfico funciona em funo dos interesses da fbrica, e esta, em funo do parque industrial, que atende aos interesses administrativos, econmicos, polticos, culturais, ideolgicos e assim por diante, seguindo uma cadeia ad infinitum. (FLUSSER, 2002, p. 26-27). No entanto, o desenvolvimento tecnolgico no resultado de uma evoluo do processo ou das mquinas em si, mas resulta da interao que o ser humano estabelece com a tecnologia. medida que o ser humano cria os processos e estes produzem melhor os bens que lhe daro condies convenientes de existncia, ele mesmo se recria. Para Vieira Pinto, as mudanas so frutos das necessidades e dos usos que a humanidade faz do conhecimento, assim:as estupendas criaes cibernticas com que hoje nos maravilhamos resultam apenas do aproveitamento da acumulao social do conhecimento, que permitiu fossem concebidas e realizadas. No derivam das mquinas anteriores enquanto tais, mas do emprego que o homem fez delas (PINTO, 2005, p. 9, v. 2).

Descontextualizar a tecnologia em relao s prticas sociais significa separar tecnologia e sociedade (LIMA FILHO & QUELUZ, 2005). Isso configura-se como determinismo tecnolgico, ao enxergar a tecnologia como entidade independente das relaes sociais, produzindo impactos positivos ou negativos sobre a sociedade, consequentemente, dominando a vida social. Essa viso reducionista sugere, de certa forma, uma impossibilidade de resistncia a esse fenmeno de dominao. Da mesma maneira que a tecnologia pode ser percebida como uma entidade neutra e transparente, independente das relaes sociais, a imagem fotogrfica, por sua aparente objetividade, calcada em conceitos cientficos, pode da mesma forma, levar a esse entendimento. Entretanto ela tambm resultado da interao de um conjunto complexo de diferentes prticas sociais e histricas, como comenta Machado (1984):

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Mquinas semiticas segundo Machado seriam aquelas cuja propriedade bsica de estarem programadas para produzir determinadas imagens e para produzi-las de determinada maneira, a partir de certos princpios cientficos definidos a priori. [...] cuja funo bsica de produzir bens simblicos destinados inteligncia e sensibilidade do homem. (MACHADO, 2002, p.149)

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Os sistemas simblicos que os homens constroem para representar o mundo so

ideolgicos exatamente porque, longe de constiturem entidades autnomastransparentes, esto sendo determinados, em ltima instncia, pelas contradies da vida social. (MACHADO, 1984, p. 13)9

Retomando a questo das representaes visuais, pode-se dizer que as imagens figuram nesses sistemas simblicos construdos para representar o mundo com uma importncia cada vez maior. Uma vez que as imagens atuam como instrumentos de conhecimento da realidade social, principalmente hoje que se vive em um tempo cuja compreenso e assimilao dependem cada vez mais das imagens. Entre as maneiras encontradas pelo ser humano para construir imagens est o uso da mquina fotogrfica. Como artefato humano, se parece com ele, na medida em que busca reproduzir seu olhar. No entanto, as mquinas fotogrficas, ao menos as convencionalmente produzidas em escala industrial, se limitam a um modo de olhar especfico, eliminando outros inmeros pontos de vista, outros olhares possveis ou imaginveis, suprimindo outras possibilidades de olhar para o mundo. Este olhar fotogrfico, impregnado na imaginao e na experincia visual humana, fruto de uma cultura visual formada por meio da representao de um modelo geomtrico: a perspectiva linear, que passou a codificar a informao visual atravs de clculos matemticos desde o Renascimento e, a partir de ento, assumido como reproduo fiel do visvel. Esse modelo perspctico geomtrico, que caracteriza o olhar fotogrfico, no se restringiu s imagens construdas a partir da cmera fotogrfica ou dos demais artefatos que surgiram a partir da cmera, mas se estende, ao menos no ocidente, a todo o imaginrio visual, at mesmo s imagens obtidas a partir de outros meios de representao tais como o desenho e a pintura. O olhar foi moldado ao fotogrfico antes mesmo do advento da prpria fotografia, transformando a forma de perceber o mundo atravs das imagens e a prpria interpretao que se faz dele (JALLAGEAS, 2007). Igual a fotografia, a perspectiva uma construo simblica, um artefato humano que procura reproduzir um modo de representar e pensar o mundo.9

Arlindo Machado considera o conceito de ideologia, a partir da perspectiva de classes de Marx e Engels em A ideologia Alem. Simplificadamente, ideologia seria o sistema das representaes de que se valem os homens para se dar conta das relaes materiais (naturais e sociais) em que se acham mergulhados. (MACHADO, 1984, p. 12)

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Considerar que a tecnologia est nos artefatos, ou mesmo que esses artefatos so neutros e transparentes, significa ser determinista e aceitar a posio de espectador passivo, ou, segundo as proposies de Vilm Flusser (2002), a posio de funcionrio10. Neste aspecto, a fotografia estenopeica figura como uma possibilidade de rompimento com o determinismo dos aparelhos fotogrficos produzidos em escala industrial. Ao construir sua prpria cmera o artista/fotgrafo est rompendo com a cadeia de consumo e ao mesmo tempo interferindo profundamente no olhar escolhido para construir a representao e no resultado plstico/formal e, portanto, esttico da imagem. Com a possibilidade de romper com diferentes conceitos limitadores que se estabelecem com relao imagem fotogrfica tradicional, a prtica da fotografia estenopeica demonstra que as imagens tcnicas so tambm construes tcnicas/simblicas scio-culturalmente elaboradas. Diferentemente de abordagens instrumentais, j citadas anteriormente, que consideram a mquina como determinante do processo, acredita-se que as opes estticas do artista, ao construir a cmera estenopeica, permitem questionar os modelos de representao do fotogrfico, e os inmeros conceitos que se estabelecem sobre sua relao com o real, evidenciando a dimenso relacional da tecnologia. O questionamento e as atitudes contestadoras com relao ao meio permitem a esses artistas/fotgrafos colocar-se de forma mais consciente e responsvel diante de suas prticas sociais. Com o desafio de questionar conceitual e formalmente seus meios, os artistas/fotgrafos contemporneos, fortemente envolvidos pelas mediaes tcnicas, encontram na prtica da fotografia estenopeica, uma maneira de repensar as imagens tcnicas e, ao mesmo tempo, o determinismo tecnolgico embutido na concepo do aparato fotogrfico e das demais mquinas semiticas derivadas da cmera fotogrfica. A presena da imagem, como instrumento de conhecimento do real, sempre caracterizou a vivncia humana: desde a pr-histria, com a reproduo de suas experincias no interior das cavernas por meio das pinturas rupestres; ou as inscries hieroglficas do antigo Egito; at hoje, com o crescente aumento da dependncia das imagens visuais para compreender e assimilar a realidade social. As diferentes maneiras de expressar essas experincias cotidianas apresentamse nas imagens com uma multiplicidade de possibilidades de interpretao e de transformao da

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Quando o usurio utilizar um aparelho sem conhecer seu funcionamento interno, lidando apenas com as opes disponveis e limitadas pelo programa da mquina est atuando como um funcionrio. O conceito de funcionrio de Vilm Flusser abordado de forma detalhada na pgina 203 desta dissertao.

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realidade. A percepo e a interpretao do que o real e de como ele representado permeia toda a discusso em torno das representaes visuais e da fotografia. As maneiras como se percebem e se interpretam as imagens esto em constante transformao e tomam caractersticas que, de certa forma, condizem com os valores do contexto histrico social e cultural no qual esto inseridas. A cada momento se esta interferindo, construindo, desconstruindo e reconstruindo novas formas de perceber e de representar a realidade. Como resultado, so lanados diferentes olhares sobre a imagem, e especialmente sobre a imagem fotogrfica. Para compreender esses diferentes olhares, opta-se por desenvolver este trabalho em trs momentos: inicialmente sero abordadas as relaes da imagem fotogrfica com o real. Em seguida, apresentam-se os aspectos tcnicos da cmera estenopeica e suas implicaes na imagem. Num terceiro momento, ser feito um breve comentrio a partir da observao de trs imagens estenopeicas, nas quais podem ser percebidas diferentes vozes, que ressoam diferentes conceitos acerca da imagem fotogrfica. Entre os conceitos discutidos no decorrer da dissertao, opta-se por tratar de apenas trs deles, evidenciados pela fotografia estenopeica, e que se apresentam, em maior ou menor grau, materializados em cada uma das imagens escolhidas. Conforme foi apresentado anteriormente, podem-se lanar sobre a fotografia mltiplos olhares. Sem a inteno de limit-los, mas apenas para compreender melhor sua diversidade, apresentam-se duas maneiras de abordar o assunto, que renem, em cada uma delas, uma diversidade de olhares possveis. Em um extremo est a fotografia como representao simblica. Noutro extremo tem-se um ponto de vista tcnico, que visa descrever o dispositivo e seus potenciais. Este trabalho procura se aproximar da imagem fotogrfica por esses dois olhares, aparentemente opostos, como forma de simplificar a abordagem. O caminho trilhado para se aproximar desses olhares, que passa inicialmente pela ontologia da fotografia e segue com a abordagem dos aspectos tcnicos de constituio da fotografia estenopeica apenas um recurso metodolgico necessrio dentro das limitaes de um texto construdo linearmente. De forma alguma se pretende suprimir a complexidade do debate. Na verdade, perceber-se- que esses olhares se interpenetram e se complementam, uma vez que cada um deles composto por inmeros outros olhares. Em nenhum momento se acredita que s existam essas duas abordagens possveis, ou que elas possam existir de forma estanque, com o incio de uma encerrando a outra. No entanto este trabalho se limitar a elas como estratgia de abordagem.

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Compreender o que caracteriza as imagens fotogrficas significa buscar as relaes simblicas ligadas s suas referncias e valores culturais e, ao mesmo tempo, entender como a utilizao de diferentes artefatos tecnolgicos pode transformar as imagens e a prpria relao simblica que se estabelece com ela. Para desenvolver essa discusso, no captulo 1, numa primeira abordagem, busca-se entender a imagem fotogrfica como representao, como uma construo scio-cultural-simblica em sua ligao com a realidade. Inicialmente discute-se a utilizao da perspectiva linear, posteriormente automatizada pela cmera fotogrfica, como modelo de representao adotado para traduzir o real visvel desde o Renascimento. Em seguida so abordadas as vrias maneiras de encarar a imagem fotogrfica em sua relao com o real, se aproximando como um duplo da realidade, ou se afastando como uma transformao, uma desconstruo dessa mesma realidade. Entre esses campos opostos sero colocadas outras possibilidades de ligao da imagem fotogrfica e o real. Passa-se ento, a abordar esses conceitos no decorrer da histria da fotografia, observando a forma como eles se alternam em diferentes posturas por parte de artistas e fotgrafos, destacando os movimentos que se aproximam da fotografia estenopeica. Para finalizar esse primeiro momento da dissertao, trata-se do contexto artstico recente, abordando-se as diferentes posturas estticas e conceituais com relao, especificamente, fotografia. No captulo 2, um segundo olhar busca compreender a fotografia como um aparato, construdo tcnica, social e culturalmente. Menos como uma ferramenta neutra e transparente, mas como decorrncia de um conjunto de intencionalidades, como uma construo complexa e no simplesmente uma tcnica. Para isso, observam-se inicialmente as caractersticas do aparato cmera estenopeica -, para ento se avaliar as diferentes possibilidades e opes do usurio ao construir e utilizar a cmera e as possveis implicaes de suas escolhas na evidncia do carter scio cultural dessa construo simblica. Como terceiro momento, no captulo 3, observa-se a imagem fotogrfica e busca-se identificar nela a multiplicidade de possibilidades de perceb-la. Para isso, analisam-se algumas fotografias estenopeicas e, atravs da observao de seus aspectos formais e plsticos, aponta-se para uma possvel presena de diferentes conceitos a respeito da imagem fotogrfica, buscando evidenciar como a fotografia estenopeica pode questionar, ou mesmo romper com os conceitos homolgicos da fotografia tradicional.

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Nas consideraes finais, toma-se a fotografia estenopeica como uma possibilidade de desconstruir e romper com a homologia ingnua ao se distanciar dos cnones figurativos da fotografia tradicional, como a perspectiva renascentista. Ao mesmo tempo, ao evidenciar a participao do autor como construtor da representao no momento que constri a cmera, consequentemente interferindo no processo de captao da imagem, o artista/fotgrafo, usurio da tcnica, se liberta das determinaes do aparelho. Dessa forma, a fotografia, assim como a tecnologia, no se apresenta como um artefato neutro ou transparente. Ao contrrio, ela um artefato opaco, pois na medida em que uma construo simblica social e culturalmente constituda, um processo dinmico, construdo e reconstrudo continuamente e no qual se interfere o tempo todo.

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1

A IMAGEM E O REAL: A IMAGEM FOTOGRFICA E OS

SEUS CDIGOS

O espelho, so muitos, captando-lhe as feies; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor cr-se com aspecto prprio e praticamente imudado, do qual lhe do imagem fiel. Mas que espelho? H-os bons" e "maus", os que favorecem e os que detraem; e os que so apenas honestos, pois no. E onde situar o nvel e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como que o senhor, eu, os restantes prximos, somos, no visvel? O senhor dir: as fotografias o comprovam. Respondo: que, alm de prevalecerem para as lentes das mquinas objees anlogas, seus resultados apiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconogrficos os ndices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um aps outro, os retratos sempre sero entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, porque vivemos, de modo incorrigvel, distrados das coisas mais importantes.Joo Guimares Rosa

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Para compreender as relaes da imagem fotogrfica com o real precisa-se entender como o ser humano se relaciona com a natureza e com a cultura e como traduz suas experincias atravs de smbolos. Cabe, inicialmente, esclarecer o uso dos termos real e realidade no decorrer deste trabalho. A partir do entendimento de Paulo Laurentiz, considera-se real como tudo aquilo que acontece sem a ao do pensamento do homem e realidade como tudo aquilo que fruto do pensamento humano (Laurentiz, 1991, p. 99). A interpretao que se faz desses conceitos, e o uso desses termos neste trabalho definem o real como sendo o objeto, a coisa que existe de forma concreta, material, fsica; excluindo-se desse grupo os objetos mentais ou imaginrios. Especialmente neste primeiro captulo, quando se trata da relao entre a imagem e o objeto real, o termo real, utilizado a partir das colocaes de Philippe Dubois (1994), fazendo meno ao referente que permitiu a obteno da imagem fotogrfica. Dito de outra forma, nomina-se como real aquele objeto ou cena concreta que refletiu a luz, possibilitando a formao de uma imagem no interior da cmera fotogrfica. Com relao ao conceito de realidade, busca-se na filosofia (idealismo) seu esclarecimento. O que se costuma chamar de realidade apenas o que podemos conhecer por meio das idias de nossa razo. [...] embora a realidade externa exista em si e por si mesma, s podemos conhec-la tal como nossas idias a formulam e a organizam e no tal como ela seria em si mesma. (CHAUI, 2000, s.p.) Para Geertz (2002), a arte est entre as diferentes maneiras pelas quais o ser humano apreende o mundo e expressa seus sentimentos com relao vida. A fotografia, como forma de manifestao artstica, representa e reproduz conhecimento da realidade. A maneira como ela constri e representa simbolicamente essa realidade tem como modelo de codificao do espao, a perspectiva linear renascentista. Os conceitos de mundo que esto por trs desse modelo de representao refletem a viso antropocntrica que caracterizou a cultura ocidental naquele momento. De alguma forma, a construo matemtica da perspectiva linear confere perspectiva uma racionalidade e uma objetividade, essenciais para a iluso de realidade, que garantiram a aceitao da fotografia como espelho do real at os dias de hoje. Entretanto, o carter ideolgico operado por esse cdigo de representao levou ao questionamento da objetividade fotogrfica, deslocando sua viso como espelho neutro e atribuindo a ela um carter transformador. Ao mesmo tempo, a gnese do processo fotogrfico confere sua imagem uma ligao tal com o

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referente, que atribui a ela um valor de testemunho, de prova indicial da existncia do objeto fotografado. Com o objetivo de se aproximar desses mltiplos olhares que se lanaram e que se lanam sobre a fotografia, este captulo apresenta inicialmente uma breve abordagem da produo de conhecimento por meio das representaes visuais como construo de bens simblicos, mais especificamente, a representao atravs da imagem fotogrfica. Em seguida, para apresentar os diferentes conceitos ontolgicos da fotografia, discute-se o uso da perspectiva renascentista como forma de esclarecer o modelo de representao adotado pela fotografia; para ento apresentar as diferentes concepes acerca da fotografia com relao ao mundo visvel real: como espelho perfeito; como agente transformador; como ndice; ou ainda, como o conjunto dos trs aspectos. A seo seguinte trata da trajetria da fotografia, observando-se os diferentes conceitos ontolgicos acerca da imagem fotogrfica e buscando-se os momentos em que as posturas conceituais e formais se aproximam da fotografia estenopeica; descrevendo-se principalmente aqueles que apresentam posturas experimentais e questionadoras com relao ao meio fotogrfico. O captulo encerrado com a apresentao do contexto artstico contemporneo. Destaca-se a produo fotogrfica que busca romper com as barreiras que limitam a fotografia, discutindo-se para isso, o conceito de fotografia expandida. Finaliza o captulo, um breve panorama da produo fotogrfica contempornea brasileira.

1.1

IMAGEM COMO REPRESENTAO atravs da interao com a cultura que, no s se constroem as experincias e d-se

sentido aos acontecimentos, como tambm d-se forma, ordem, objetivo e direo vida. O ser humano utiliza smbolos significantes - palavras, gestos, desenhos, sons musicais - para impor um significado sua existncia. A cultura o conjunto complexo desses sistemas de smbolos significantes - a linguagem, a arte, o mito, o ritual - que regulam a existncia humana, no como simples padres de comportamento, mas como mecanismos de controle planos, receitas, regras, instrues - que governam a conduta humana e so condio essencial para a sua existncia e razo de sua especificidade. (GEERTZ, 1978)

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Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produo de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoes, o homem determinou, embora inconscientemente, os estgios culminantes do seu prprio destino biolgico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele prprio se criou (GEERTZ, 1978, p. 60).

Atravs da arte, assim como das demais expresses dos objetivos humanos como a religio, a moralidade, a cincia, o comrcio, a tecnologia, a poltica, o direito, ou nas formas de lazer e at na forma como organiza sua vida prtica e cotidiana, que um povo transmite os sentimentos que tem pela vida (GEERTZ, 2002). A arte faz parte desse sistema geral de formas simblicas que a cultura. Os sinais com que os artistas trabalham so reflexos de uma sensibilidade formada coletivamente com base na vida social, materializando uma forma de viver, trazendo um modelo especfico de pensar para o mundo dos objetos, tornando-o visvel (GEERTZ, 2002, p. 150). Esse processo de significao, constitudo social e historicamente, s faz sentido se observado considerando-se seu contexto cultural e temporal especficos, respeitando-se as diferenas e semelhanas entre povos e indivduos. A forma como o ser humano percebe e interpreta esses signos determinada pela sociedade que influencia sua experincia de vida. Ele vive e v o mundo com os olhos e valores de sua poca (GEERTZ, 2002). Dentro do universo das artes, as imagens esto entre os mais importantes objetos simblicos dos quais o ser humano se utiliza para pensar, sentir e traduzir seu mundo. As diferentes culturas fizeram e fazem usos distintos das imagens, sejam elas imagens mentais ou imagens visuais concretas. As imagens mentais so abstratas, imateriais, e aparecem como vises, fantasias, imaginaes, modelos, ou seja, como representaes construdas mentalmente por outros estmulos perceptivos: tteis, olfativos, auditivos ou gustativos e no pelos olhos. As imagens visualmente concretas so representaes visuais com um suporte definido materialmente: como desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematogrficas, televisivas, holo e infogrficas (SANTAELLA & NTH, 2001). As imagens, mentais ou visuais, seja qual for seu uso, se caracterizam como uma representao cultural, uma forma de construo de conhecimento sobre a realidade. Em seu significado filosfico, representao o contedo concreto apreendido pelos sentidos, pela imaginao, pela memria ou pelo pensamento11. Dentre os diversos usos do termo,11

Verbete representao (FERREIRA, s.d.).

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Jacques Aumont (1993) aponta como ponto comum, que representao um processo pelo qual institui-se um representante que, em certo contexto limitado, tomar o lugar do que representa (AUMONT, 19