foucault, michel. a arqueologia do saber (7. ed.) (dig.)
Embed Size (px)
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
- 1. Coleo Campo Terico Dirigida por Manoel Barros da Motta e Severino Bezerra Cabral Filho Da mesma coleo: Do Mundo Fechado ao Universo Infinito Alexandre Koyr Estudos de Histria do Pensamento Cientfico Alexandre Koyr Estudos de Histria do Pensamento Filosfico Alexandre Koyr O Normal e o Patolgico Georges Canguilhem O Nascimento da Clnica Michel Foucault Da Psicose Paranica em suas Relaes com a Personalidade Jacques Lacan Teoria e Clnica da Psicose Antonio Quinet Michel Foucault - Uma Trajetria Filosfica Paul Rabinow e Hubert Dreyfus Raymond Roussel Michel Foucault
- 2. 7 edio / 3 reimpresso - 2008 Copyright ditions Gallimard, 1969 Traduzido de: L'Archologie du Savoir Capa: Mello & Mayer Editorao eletrnica: Textos & Formas CIP-Brasil Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. FS6a Foucault, Michel, 1926-1984 7.ed. A arqueologia do sabei/Michel Foucault; traduo de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008. (Campo Terico) Traduo de: L'archologie du Savoir ISBN 978-85-218-0344-7 1. Teoria do conhecimento. I. Titulo. II. Srie. 03-2742 CDD 121 CDU 165 Proibida a reproduo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrnico ou mecnico, sem permisso expressa do Editor (Lei n 9,610, de 19,2.1998). Reservados os direitos de propriedade desta edio pela EDITORA FORENSE UNIVERSITRIA Rio de Janeiro. Rua do Rosrio, 100 - Centro - CEP 20041-002 Tels./Fax: 2509-3148/2509-7395 So Paulo Senador Paulo Egdio, 72 - slj / sala 6 - Centro - CEP 01006-010 Tels./Fax; 3104-2005 / 3104-0396 / 3107-0842 e-mail: [email protected] http://www.forenseuniversitana.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil
- 3. Sumrio Capa Orelha - Contracapa I - INTRODUO .............................................................................. 1 II - AS REGULARIDADES DISCURSIVAS ..................................... 1. As Unidades do Discurso ...................................................... 2. As Formaes Discursivas .................................................... 3. A Formao dos Objetos ....................................................... 4. A Formao das Modalidades Enunciativas .......................... 5. A Formao dos Conceitos.................................................... 6. A Formao das Estratgias .................................................. 7. Observaes e Consequncias ............................................... 21 23 35 45 56 62 71 79 III - O ENUNCIADO E O ARQUIVO ............................................... 1. Definir o Enunciado .............................................................. 2. A Funo Enunciativa ........................................................... 3. A Descrio dos Enunciados ................................................. 4. Raridade, Exterioridade, Acmulo ........................................ 5. O A Priori Histrico e o Arquivo.......................................... 87 89 99 120 134 143 IV - A DESCRIO ARQUEOLGICA .......................................... 1. Arqueologia e Histria das Idias.......................................... 2. O Original e o Regular .......................................................... 3. As Contradies .................................................................... 4. Os Fatos Comparativos ......................................................... 5. A Mudana e as Transformaes .......................................... 6. Cincia e Saber ...................................................................... 151 153 159 168 177 187 199 V - CONCLUSO .............................................................................. 221
- 4. I INTRODUO
- 5. H dezenas de anos que a ateno dos historiadores se voltou, de preferncia, para longos perodos, como se, sob as peripcias polticas e seus episdios, eles se dispusessem a revelar os equilbrios estveis e difceis de serem rompidos, os processos irreversveis, as regulaes constantes, os fenmenos tendenciais que culminam e se invertem aps continuidades seculares, os movimentos de acumulao e as saturaes lentas, as grandes bases imveis e mudas que o emaranhado das narrativas tradicionais recobrira com toda uma densa camada de acontecimentos. Para conduzir essa anlise, os historiadores dispem de instrumentos que criaram ou receberam: modelos de crescimento econmico, anlise quantitativa dos fluxos de trocas, perfis dos desenvolvimentos e das regresses demogrficas, estudo do clima e de suas oscilaes, identificao das constantes sociolgicas, descrio dos ajustamentos tcnicos, de sua difuso e persistncia. Estes instrumentos permitiram-lhes distinguir, no campo da histria, camadas sedimentares diversas: as sucesses lineares, que at ento tinham sido o objeto da pesquisa, foram substitudas por um jogo de interrupes em profundidade. Da mobilidade poltica s lentides prprias da "civilizao material", os nveis de anlises se multiplicaram: cada um tem suas rupturas especficas, cada um permite um corte que s a ele pertence: e, medida que se desce para bases mais profundas, as escanses se tornam cada vez maiores. Por trs da histria desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histrias, quase imveis ao olhar histrias com um suave declive: histria dos caminhos martimos, histria do trigo ou das minas de ouro, histria da seca e da irrigao, histria da rotao das culturas, histria do equilbrio obtido pela espcie humana entre a fome e a proliferao. As velhas questes de anlise tradicional (Que ligao estabelecer entre
- 6. 4 Michel Foucault acontecimentos dspares? Como estabelecer entre eles uma sequncia necessria? Que continuidade os atravessa ou que significao de conjunto acabamos por formar? Pode-se definir uma totalidade ou preciso limitar-se a reconstituir encadeamentos?) so substitudas, de agora em diante, por interrogaes de outro tipo: Que estratos preciso isolar uns dos outros? Que tipos de sries instaurar? Que critrios de periodizao adotar para cada uma delas? Que sistema de relaes (hierarquia, dominncia, escalonamento, determinao unvoca, causalidade circular) pode ser descrito entre uma e outra? Que sries de sries podem ser estabelecidas? E em que quadro, de cronologia ampla, podem ser determinadas sequncias distintas de acontecimentos? Ora, mais ou menos na mesma poca, nessas disciplinas chamadas histrias das idias, das cincias, da filosofia, do pensamento e da literatura (a especificidade de cada uma pode ser negligenciada por um instante), nessas disciplinas que, apesar de seu ttulo, escapam, em grande parte, ao trabalho do historiador e a seus mtodos, a ateno se deslocou, ao contrrio, das vastas unidades descritas como "pocas" ou "sculos" para fenmenos de ruptura. Sob as grandes continuidades do pensamento, sob as manifestaes macias e homogneas de um esprito ou de uma mentalidade coletiva, sob o devir obstinado de uma cincia que luta apaixonadamente por existir e por se aperfeioar desde seu comeo, sob a persistncia de um gnero, de uma forma, de uma disciplina, de uma atividade terica, procura-se agora detectar a incidncia das interrupes, cuja posio e natureza so, alis, bastante diversas. Atos e liminares epistemolgicos descritos por G. Bachelard: suspendem o acmulo indefinido dos conhecimentos, quebram sua lenta maturao e os introduzem em um tempo novo, os afastam de sua origem emprica e de suas motivaes iniciais, e os purificam de suas cumplicidades imaginrias; prescrevem, desta forma, para a anlise histrica, no mais a pesquisa dos comeos silenciosos, no mais a regresso sem fim em direo aos primeiros precursores, mas a identificao de um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos mltiplos. Deslocamentos e transformaes dos conceitos: as anlises de G. Canguilhem podem servir de modelo, pois mostram que a histria de um conceito no , de forma
- 7. A Arqueologia do Saber 5 alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstrao, mas a de seus diversos campos de constituio e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios tericos mltiplos em que foi realizada e concluda sua elaborao. Distino, feita igualmente por G. Canguilhem, entre as escalas micro e macroscpicas da histria das cincias, onde os acontecimentos e suas consequncias no se distribuem da mesma forma: assim, uma descoberta, o remanejamento de um mtodo, a obra de um intelectual - e tambm seus fracassos - no tm a mesma incidncia e no podem ser descritos da mesma forma em um e em outro nvel, onde a histria contada no a mesma. Redistribuies recorrentes que fazem aparecer vrios passados, vrias formas de encadeamento, vrias hierarquias de importncia, vrias redes de determinaes, vrias ideologias, para uma nica e mesma cincia, medida que seu presente se modifica: assim, as descries histricas se ordenam necessariamente pela atualidade do saber, se multiplicam com suas transformaes e no deixam, por sua vez, de romper com elas prprias (M. Serres acaba de apresentar a teoria desse fenmeno no domnio da matemtica). Unidades arquitetnicas dos sistemas, tais como foram analisadas por M. Guroult e para as quais a descrio das influncias, das tradies, das continuidades culturais no pertinente como o a das coerncias internas, a dos axiomas, das cadeias dedutivas, das compatibilidades. Finalmente, as escanses mais radicais so, sem dvida, os cortes efetuados por um trabalho de transformao terica quando "funda uma cincia destacando-a da ideologia de seu passado e revelando este passado como ideolgico".1 A isso seria necessrio acrescentar, evidente, a anlise literria, considerada daqui por diante como unidade: no a alma ou a sensibilidade de uma poca, nem os "grupos", as "escolas", as "geraes" ou os "movimentos", nem mesmo o personagem do autor no jogo de trocas que ligou sua vida sua "criao", mas sim a estrutura prpria de uma obra, de um livro, de um texto. 1.Althusser, Ponr Marx. p. 168.
- 8. 6 Michel Foucault E, assim, o grande problema que se vai colocar - que se coloca a tais anlises histricas no mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um nico e mesmo projeto pde-se manter e constituir, para tantos espritos diferentes e sucessivos, um horizonte nico; que modo de ao e que suporte implica o jogo das transmisses, das retomadas, dos esquecimentos e das repeties; como a origem pode estender seu reinado bem alm de si prpria e atingir aquele desfecho que jamais se deu - o problema no mais a tradio e o rastro, mas o recorte e o limite; no mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformaes que valem como fundao e renovao dos fundamentos. V-se, ento, o espraiamento de todo um campo de questes - algumas j familiares - pelas quais essa nova forma de histria tenta elaborar sua prpria teoria: como especificar os diferentes conceitos que permitem avaliar a descontinuidade (limiar, ruptura, corte, mutao, transformao)? Atravs de que critrios isolar as unidades com que nos relacionamos: O que uma cincia? O que uma obra? O que uma teoria? O que um conceito? O que um texto? Como diversificar os nveis em que podemos colocar-nos, cada um deles compreendendo suas escanses e sua forma de anlise? Qual o nvel legtimo da formalizao? Qual o da interpretao? Qual o da anlise estrutural? Qual o das determinaes de causalidade? Em suma, a histria do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar toda as perturbaes da continuidade, enquanto a histria propriamente dita, a histria pura e simplesmente, parece apagar, em benefcio das estruturas fixas, a irrupo dos acontecimentos. * Mas que este entrecruzamento no nos iluda. No imaginemos, com f nas aparncias, que algumas das disciplinas histricas caminharam do contnuo ao descontnuo, enquanto outras iam do formigamento das descontinuidades s grandes unidades ininterruptas; no imaginemos que, na anlise da poltica, das instituies ou da economia, fomos cada vez mais sensveis s determinaes globais, mas sim que, na
- 9. A Arqueologia do Saber 7 anlise das idias e do saber, prestamos uma ateno cada vez maior aos jogos da diferena; no acreditemos que, ainda uma vez, essas duas grandes formas de descrio se cruzaram sem se reconhecerem. Na verdade, os problemas colocados so os mesmos, provocando, entretanto, na superfcie, efeitos inversos. Podem-se resumir esses problemas em uma palavra: a crtica do documento. Nada de mal-entendidos: claro que, desde que existe uma disciplina como a histria, temo-nos servido de documentos, interrogamo-los, interrogamo-nos a seu respeito; indagamos-lhes no apenas o que eles queriam dizer, mas se eles diziam a verdade, e com que direito podiam pretend-lo, se eram sinceros ou falsificadores, bem informados ou ignorantes, autnticos ou alterados. Mas cada uma dessas questes e toda essa grande inquietude crtica apontavam para um mesmo fim: reconstituir, a partir do que dizem estes documentos - s vezes com meias-palavras -, o passado de onde emanam e que se dilui, agora, bem distante deles; o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silncio: seu rastro frgil mas, por sorte, decifrvel. Ora, por uma mutao que no data de hoje, mas que, sem dvida, ainda no se concluiu, a histria mudou sua posio acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, no interpret-lo, no determinar se diz a verdade nem qual seu valor expressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em nveis, estabelece sries, distingue o que pertinente do que no , identifica elementos, define unidades, descreve relaes. O documento, pois, no mais, para a histria, essa matria inerte atravs da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no prprio tecido documental, unidades, conjuntos, sries, relaes. preciso desligar a histria da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropolgica: a de uma memria milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranas; ela o trabalho e a utilizao de uma materialidade documental (livros, textos, narraes, registros, atas, edifcios, instituies, regulamentos, tcnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer
- 10. 8 Michel Foucault sociedade, formas de permanncias, quer espontneas, quer organizadas. O documento no o feliz instrumento de uma histria que seria em si mesma, e de pleno direito, memria; a histria , para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaborao massa documental de que ela no se separa. Digamos, para resumir, que a histria, em sua forma tradicional, se dispunha a "memorizar" os monumentos do passado, transform-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente so verbais, ou que dizem em silncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a histria o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo era que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a histria e s tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histrico; poderamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a histria, em nossos dias, se volta para a arqueologia - para a descrio intrnseca do monumento. Isso tem vrias consequncias. Inicialmente, o efeito de superfcie que j se assinalou: a multiplicao das rupturas na histria das idias, a exposio dos perodos longos na histria propriamente dita. Esta, na verdade, sob sua forma tradicional, se atribua como tarefa definir relaes (de causalidade simples, de determinao circular, de antagonismo, de expresso) entre fatos ou acontecimentos datados: sendo dada a srie, tratava-se de precisar a vizinhana de cada elemento. De agora em diante, o problema constituir sries: definir para cada uma seus elementos, fixar-lhes os limites, descobrir o tipo de relaes que lhe especfico, formular-lhes a lei e, alm disso, descrever as relaes entre as diferentes sries, para constituir, assim, sries de sries, ou "quadros": da a multiplicao dos estratos, seu desligamento, a especificidade do tempo e das cronologias que lhes so prprias; da a necessidade de distinguir no mais apenas acontecimentos importantes (com uma longa cadeia de consequncias) e
- 11. A Arqueologia do Saber 9 acontecimentos mnimos, mas sim tipos de acontecimentos de nvel inteiramente diferente (alguns breves, outros de durao mdia, como a expanso de uma tcnica, ou uma rarefao da moeda; outros, finalmente, de ritmo lento, como um equilbrio demogrfico ou o ajustamento progressivo de uma economia a uma modificao do clima); da a possibilidade de fazer com que apaream sries com limites amplos, constitudas de acontecimentos raros ou de acontecimentos repetitivos. O aparecimento dos perodos longos na histria de hoje no um retorno s filosofias da histria, s grandes eras do mundo, ou s fases prescritas pelo destino das civilizaes; o efeito da elaborao, metodologicamente organizada, das sries. Ora, na histria das idias, do pensamento e das cincias, a mesma mutao provocou um efeito inverso: dissociou a longa srie constituda pelo progresso da conscincia, ou a teleologia da razo, ou a evoluo do pensamento humano; ps em questo, novamente, os temas da convergncia e da realizao; colocou em dvida as possibilidades da totalizao. Ela ocasionou a individualizao de sries diferentes, que se justapem, se sucedem, se sobrepem, se entrecruzam, sem que se possa reduzi-las a um esquema linear. Assim, apareceram, em lugar dessa cronologia contnua da razo, que se fazia remontar invariavelmente inacessvel origem, sua abertura fundadora, escalas s vezes breves, distintas umas das outras, rebeldes diante de uma lei nica, frequentemente portadoras de um tipo de histria que prpria de cada uma, e irredutveis ao modelo geral de uma conscincia que adquire, progride e que tem memria. Segunda consequncia: a noo de descontinuidade toma um lugar importante nas disciplinas histricas. Para a histria, em sua forma clssica, o descontnuo era, ao mesmo tempo, o dado e o impensvel; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos - decises, acidentes, iniciativas, descobertas - e o que devia ser, pela anlise, contornado, reduzido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o estigma da disperso temporal que o historiador se encarregava de suprimir da histria. Ela se tornou, agora, um dos elementos fundamentais da anlise histrica, onde aparece com um triplo papel. Constitui, de incio, uma operao deliberada do historiador (e no mais o que recebe involuntariamente do material
- 12. 10 Michel Foucault que deve tratar), pois ele deve, pelo menos a ttulo de hiptese sistemtica, distinguir os nveis possveis da anlise, os mtodos que so adequados a cada um, e as periodizaes que lhes convm. tambm o resultado de sua descrio (e no mais o que se deve eliminar sob o efeito de uma anlise), pois o historiador se dispe a descobrir os limites de um processo, o ponto de inflexo de uma curva, a inverso de um movimento regulador, os limites de uma oscilao, o limiar de um funcionamento, o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular. Ela , enfim, o conceito que o trabalho no deixa de especificar (em lugar de negligenci-lo como uma lacuna uniforme e indiferente entre duas figuras positivas); ela toma uma forma e uma funo especfica de acordo com o domnio e o nvel em que delimitada: no se fala da mesma descontinuidade quando se descreve um limiar epistemolgico, a reverso de uma curva de populao, ou a substituio de uma tcnica por outra. Paradoxal noo de descontinuidade: , ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa, delimita o campo de que o efeito, permite individualizar os domnios, mas s pode ser estabelecida atravs da comparao desses domnios. Enfim, no simplesmente um conceito presente no discurso do historiador, mas este, secretamente, a supe: de onde poderia ele falar, na verdade, seno a partir dessa ruptura que lhe oferece como objeto a histria - e sua prpria histria? Um dos traos mais essenciais da histria nova , sem dvida, esse deslocamento do descontnuo: sua passagem do obstculo prtica; sua integrao no discurso do historiador, no qual no desempenha mais o papel de uma fatalidade exterior que preciso reduzir, e sim o de um conceito operatrio que se utiliza; por isso, a inverso de signos graas qual ele no mais o negativo da leitura histrica (seu avesso, seu fracasso, o limite de seu poder), mas o elemento positivo que determina seu objeto e valida sua anlise. Terceira consequncia: o tema e a possibilidade de uma histria global comeam a se apagar, e v-se esboar o desenho, bem diferente, do que se poderia chamar uma histria geral. O projeto de uma histria global o que procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilizao, o princpio -material ou espiritual - de uma sociedade, a significao comum a todos os fenmenos de um perodo, a lei que explica sua coeso - o que se chama metaforicamente o "rosto" de
- 13. A Arqueologia do Saber 11 uma poca. Tal projeto est ligado a duas ou trs hipteses: supe-se que entre todos os acontecimentos de uma rea espao-temporal bem definida, entre todos os fenmenos cujo rastro foi encontrado, ser possvel estabelecer um sistema de relaes homogneas: rede de causalidade permitindo derivar cada um deles relaes de analogia mostrando como eles se simbolizam uns aos outros, ou como todos exprimem um nico e mesmo ncleo central; supe-se, por outro lado, que uma nica e mesma forma de historicidade compreenda as estruturas econmicas, as estabilidades sociais, a inrcia das mentalidades, os hbitos tcnicos, os comportamentos polticos, e os submeta ao mesmo tipo de transformao; supe-se, enfim, que a prpria histria possa ser articulada em grandes unidades - estgios ou fases - que detm em si mesmas seu princpio de coeso. So estes postulados que a histria nova pe em questo quando problematiza as sries, os recortes, os limites, os desnveis, as defasagens, as especificidades cronolgicas, as formas singulares de permanncia, os tipos possveis de relao. Mas no que ela procure obter uma pluralidade de histrias justapostas e independentes umas das outras: a da economia ao lado da das instituies e, ao lado delas ainda, as das cincias, das religies ou das literaturas; no, tampouco, que ela busque somente assinalar, entre essas histrias diferentes, coincidncias de datas ou analogias de forma e de sentido. O problema que se apresenta - e que define a tarefa de uma histria geral - determinar que forma de relao pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes sries; que sistema vertical podem formar; qual , de umas s outras, o jogo das correlaes e das dominncias; de que efeito podem ser as defasagens, as temporalidades diferentes, as diversas permanncias; em que conjuntos distintos certos elementos podem figurar simultaneamente; em resumo, no somente que sries, mas que "sries de sries" - ou, em outros termos, que "quadros"2 - possvel constituir. Uma descrio global 2. Ser preciso assinalar, para os mais desatentos, que um "quadro" (e, sem dvida, em todos os sentidos do termo) formalmente uma "srie de sries"? De qualquer forma, no se trata de uma pequena imagem fixa que se coloca diante de uma lanterna mgica, para grande decepo das crianas, que, nessa idade, preferem, claro, a vivacidade do cinema.
- 14. 12 Michel Foucault cinge todos os fenmenos em torno de um centro nico - princpio, significao, esprito, viso do mundo, forma de conjunto; uma histria geral desdobraria, ao contrrio, o espao de uma disperso. Finalmente, ltima consequncia: a histria nova encontra um certo nmero de problemas metodolgicos, muitos dos quais, sem dvida, a antecediam h muito, mas cujo feixe agora a caracteriza. Entre eles, podem-se citar: a constituio de corpus coerentes e homogneos de documentos (corpus abertos ou fechados, acabados ou indefinidos); o estabelecimento de um princpio de escolha (conforme se queira tratar exaustivamente a massa documental, ou se pratique uma amostragem segundo mtodos de levantamento estatstico, ou se tente determinar, antecipadamente, os elementos mais representativos); a definio do nvel de anlise e dos elementos que lhe so pertinentes (no material estudado, podem-se salientar as indicaes numricas; as referncias - explcitas ou no - a acontecimentos, a instituies, a prticas; as palavras empregadas, com suas regras de uso e os campos semnticos por elas traados, ou, ainda, a estrutura formal das proposies e os tipos de encadeamento que as unem); a especificao de um mtodo de anlise (tratamento quantitativo dos dados, decomposio segundo um certo nmero de traos assinalveis, cujas correlaes so estudadas, decifrao interpretativa, anlise das frequncias e das distribuies); a delimitao dos conjuntos e dos subconjuntos que articulam o material estudado (regies, perodos, processos unitrios); a determinao das relaes que permitem caracterizar um conjunto (pode tratar-se de relaes numricas ou lgicas; de relaes funcionais, causais, analgicas; pode tratar-se da relao significante-significado). Todos estes problemas fazem parte, de agora em diante, do campo metodolgico da histria, campo que merece ateno por duas razes. Inicialmente, porque vemos at que ponto se libertou do que constitua, ainda h pouco, a filosofia da histria, e das questes que ela colocava (sobre a racionalidade ou a teleologia do devir, sobre a relatividade do saber histrico, sobre a possibilidade de descobrir ou de dar um sentido inrcia do passado e totalidade inacabada do presente). Em seguida, porque coincide, em alguns de seus pontos, com problemas que se encontram em alguma outra parte - nos
- 15. A Arqueologia do Saber 13 domnios, por exemplo, da lingustica, da etnologia, da economia, da anlise literria, da mitologia. A estes problemas pode-se atribuir a sigla do estruturalismo. Sob vrias condies, entretanto, eles esto longe de cobrir, sozinhos, o campo metodolgico da histria, de que s ocupam uma parte cuja importncia varia com os domnios e os nveis de anlises; salvo em certo nmero de casos relativamente limitados, eles no foram importados da lingustica ou da etnologia (conforme o percurso hoje frequente), mas nasceram no campo da prpria histria - essencialmente no da histria econmica e em virtude das questes que ela colocava; enfim, no autorizam, de modo algum, que se fale de uma estruturalizao da histria, ou, ao menos, de uma tentativa para superar um "conflito" ou uma "oposio" entre estrutura e devir: j h bastante tempo que os historiadores identificam, descrevem e analisam estruturas, sem jamais se terem perguntado se no deixavam escapar a viva, frgil e fremente "histria". A oposio estrutura-devir no pertinente nem para a definio do campo histrico nem, sem dvida, para a definio de um mtodo estrutural. * Esta mutao epistemolgica da histria no est ainda acabada. No data de ontem, entretanto, pois se pode, sem dvida, fazer remontar a Marx o seu primeiro momento. Mas seus efeitos demoraram. Ainda em nossos dias, e sobretudo para a histria do pensamento, ela no foi registrada nem refletida, enquanto outras transformaes mais recentes puderam s-lo - as da lingustica, por exemplo - como se fosse particularmente difcil, nesta histria que os homens retraam com suas prprias idias e com seus prprios conhecimentos, formular uma teoria geral da descontinuidade, das sries, dos limites, das unidades, das ordens especficas, das autonomias e das dependncias diferenciadas. como se a onde estivramos habituados a procurar as origens, a percorrer de volta, indefinidamente, a linha dos antecedentes, a reconstituir tradies, a seguir curvas evolutivas, a projetar teleologias, e a recorrer continuamente s metforas da vida, experimentssemos uma repugnncia singular em pensar a diferena, em descrever os afastamentos e as disperses, em
- 16. 14 Michel Foucault desintegrar a forma tranquilizadora do idntico. Ou, mais exatamente, como se a partir desses conceitos de limiares, mutaes, sistemas independentes, sries limitadas - tais como so utilizados de fato pelos historiadores - tivssemos dificuldade em fazer a teoria, em deduzir as consequncias gerais e mesmo em derivar todas as implicaes possveis. como se tivssemos medo de pensar o outro no tempo de nosso prprio pensamento. H uma razo para isso. Se a histria do pensamento pudesse permanecer como o lugar das continuidades ininterruptas, se ela unisse, continuamente, encadeamentos que nenhuma anlise poderia desfazer sem abstrao, se ela tramasse, em torno do que os homens dizem e fazem, obscuras snteses que a isso se antecipam, o preparam e o conduzem, indefinidamente, para seu futuro, ela seria, para a soberania da conscincia, um abrigo privilegiado. A histria contnua o correlato indispensvel funo fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poder ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersar sem reconstitu-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poder, um dia - sob a forma da conscincia histrica -, se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas a distncia pela diferena, restaurar seu domnio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da anlise histrica o discurso do contnuo e fazer da conscincia humana o sujeito originrio de todo o devir e de toda prtica so as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo a concebido em termos de totalizao, onde as revolues jamais passam de tomadas de conscincia. Sob formas diferentes, esse tema representou um papel constante desde o sculo XIX: proteger, contra todas as descentralizaes, a soberania do sujeito e as figuras gmeas da antropologia e do humanismo. Contra a descentralizao operada por Marx - pela anlise histrica das relaes de produo, das determinaes econmicas e da luta de classes - ele deu lugar, no final do sculo XIX, procura de uma histria global em que todas as diferenas de uma sociedade poderiam ser conduzidas a uma forma nica, organizao de uma viso do mundo, ao estabelecimento de um sistema de valores, a um tipo coerente de civilizao. descentralizao operada pela genealogia nietzschiana, o tema ops a busca de um
- 17. A Arqueologia do Saber 15 fundamento originrio que fizesse da racionalidade o telos da humanidade e que prendesse a histria do pensamento salvaguarda dessa racionalidade, manuteno dessa teleologia e volta, sempre necessria, a este fundamento. Enfim, mais recentemente, quando as pesquisas da psicanlise, da lingustica, da etnologia, descentraram o sujeito em relao s leis de seu desejo, s formas de sua linguagem, s regras de sua ao, ou aos jogos de seus discursos mticos ou fabulosos, quando ficou claro que o prprio homem, interrogado sobre o que era, no podia explicar sua sexualidade e seu inconsciente, as formas sistemticas de sua lngua ou a regularidade de suas fices, novamente o tema de uma continuidade da histria foi reativado: uma histria que no seria escanso, mas devir; que no seria jogo de relaes, mas dinamismo interno; que no seria sistema, mas rduo trabalho da liberdade; que no seria forma, mas esforo incessante de uma conscincia em se recompor e em tentar readquirir o domnio de si prpria, at as profundezas de suas condies; uma histria que seria, ao mesmo tempo, longa pacincia ininterrupta e vivacidade de um movimento que acabasse por romper todos os limites. Para tornar vlido este tema que ope "imobilidade" das estruturas, a seu sistema "fechado", sua necessria "sincronia", a abertura viva da histria, preciso, evidentemente, contestar nas prprias anlises histricas o uso da descontinuidade, a definio dos nveis e dos limites, a descrio das sries especficas, a revelao de todo o jogo das diferenas. Somos, ento, levados a antropologizar Marx, a fazer dele um historiador das totalidades e a reencontrar nele o propsito do humanismo; somos levados a interpretar Nietzsche nos termos da filosofia transcendental e a rebaixar sua genealogia no plano de uma pesquisa do originrio; finalmente, somos levados a deixar de lado, como se jamais tivesse aflorado, todo este campo de problemas metodolgicos que a histria nova prope hoje. Pois se era tido como certo que a questo das descontinuidades, dos sistemas e das transformaes, das sries e dos limiares, se colocava em todas as disciplinas histricas (e nas que dizem respeito s idias ou s cincias tanto quanto nas que dizem respeito economia e s sociedades), como se poderia opor, com qualquer aspecto de legitimidade, o "devir" ao "sistema", o movimento s regulaes circulares, ou, como
- 18. 16 Michel Foucault se diz era uma irreflexo bem ligeira, a "histria" "estrutura"? a mesma funo conservadora que se encontra em atividade no tema das totalidades culturais - pelo qual se criticou e depois distorceu Marx -, no tema de uma busca do originrio - que se ops a Nietzsche antes de se querer transp-lo -, e no tema de uma histria viva, contnua e aberta. Denunciaremos, ento, a histria assassinada, cada vez que em uma anlise histrica - e sobretudo se se trata do pensamento, das idias ou dos conhecimentos - virmos serem utilizadas, de maneira demasiado manifesta, as categorias da descontinuidade e da diferena, as noes de limiar, de ruptura e de transformao, a descrio das sries e dos limites. Denunciaremos um atentado contra os direitos imprescritveis da histria e contra o fundamento de toda historicidade possvel. Mas no devemos nos enganar: o que tanto se lamenta no o desaparecimento da histria, e sim a supresso desta forma de histria que era em segredo, mas totalmente referida atividade sinttica do sujeito; o que se lamenta o devir que deveria fornecer soberania da conscincia um abrigo mais seguro, menos exposto que os mitos, os sistemas de parentesco, as lnguas, a sexualidade ou o desejo; o que se lamenta a possibilidade de reanimar pelo projeto o trabalho do sentido ou o movimento da totalizao, o jogo das determinaes materiais, das regras de prtica, dos sistemas inconscientes, das relaes rigorosas mas no refletidas, das correlaes que escapam a qualquer experincia vivida; o que se lamenta o uso ideolgico da histria, pelo qual se tenta restituir ao homem tudo o que, h mais de um sculo, continua a lhe escapar. Acumulamos todos os tesouros de outrora na velha cidadela desta histria; acreditamos que ela fosse slida; sacralizamo-la; fizemos dela o lugar ltimo do pensamento antropolgico; acreditamos poder a capturar at mesmo aqueles que se tinham encarniado contra ela; acreditamos poder torn-los guardies vigilantes. Mas os historiadores desertaram h muito tempo dessa velha fortaleza e partiram para trabalhar em outro campo; percebe-se mesmo que Marx ou Nietzsche no asseguram a salvaguarda que se lhes tinha confiado. No se deve mais contar com eles para proteger os privilgios, nem para afirmar, uma vez mais - e, entretanto, s Deus sabe se se teria necessidade disso na aflio de hoje -, que a histria,
- 19. A Arqueologia do Saber 17 pelo menos ela, viva e contnua; que ela , para o tema em questo, o lugar do repouso, da certeza, da reconciliao - do sono tranquilizado. Neste ponto se determina uma empresa cujo perfil foi traado por Histoire de la folie, Naissance de la clinique, Les mots et les choses, muito imperfeitamente. Trata-se de uma empresa pela qual se tenta medir as mutaes que se operam, em geral, no domnio da histria; empresa onde so postos em questo os mtodos, os limites, os temas prprios da histria das idias; empresa pela qual se tenta desfazer as ltimas sujeies antropolgicas; empresa que quer, em troca, mostrar como essas sujeies puderam-se formar. Estas tarefas foram esboadas em uma certa desordem, e sem que sua articulao geral fosse claramente definida. Era tempo de lhes dar coerncia - ou, pelo menos, de coloc-las em prtica. O resultado desse exerccio este livro. Eis algumas observaes, antes de comear e para evitar qualquer mal-entendido. - No se trata de transferir para o domnio da histria, e singularmente da histria dos conhecimentos, um mtodo estruturalista que foi testado em outros campos de anlise. Trata-se de revelar os princpios e as consequncias de uma transformao autctone que est em vias de se realizar no domnio do saber histrico. bem possvel que essa transformao, os problemas que ela coloca, os instrumentos que utiliza, os conceitos que a se definem, os resultados que ela obtm, no sejam, at certo ponto, estranhos ao que se chama anlise estrutural. Mas no essa anlise que aqui se encontra, especificamente, em jogo. - No se trata (e ainda menos) de utilizar as categorias das totalidades culturais (sejam as vises de mundo, os tipos ideais ou o esprito singular das pocas) para impor histria, e apesar dela, as formas da anlise estrutural. As sries descritas, os limites fixados, as comparaes e as correlaes estabelecidas no se apiam nas antigas filosofias da histria, mas tm por finalidade colocar novamente em questo as teleologias e as totalizaes.
- 20. 18 Michel Foucault - Na medida em que se trata de definir um mtodo de anlise histrica que esteja liberado do tema antropolgico, v-se que a teoria que vai ser esboada agora se encontra, com as pesquisas j feitas, em uma dupla relao. Ela tenta formular, em termos gerais (e no sem muitas retificaes e elaboraes), os instrumentos que essas pesquisas utilizaram ou criaram para atender s necessidades da causa. Mas, por outro lado, ela se refora com os resultados ento obtidos para definir um mtodo de anlise que esteja isento de qualquer antropologismo. O solo sobre o qual repousa o que ela descobriu. As pesquisas sobre a loucura e o aparecimento de uma psicologia, sobre a doena e o nascimento de uma medicina clnica, sobre as cincias da vida, da linguagem e da economia, foram tentativas de certa forma cegas: mas elas se esclareciam sucessivamente, no somente porque precisavam, pouco a pouco, seu mtodo, mas porque descobriram - neste debate sobre o humanismo e antropologia - o ponto de sua possibilidade histrica. Em uma palavra, esta obra, como as que a precederam, no se inscreve - pelo menos diretamente ou em primeira instncia - no debate sobre a estrutura (confrontada com a gnese, a histria, o devir); mas sim no campo em que se manifestam, se cruzam, se emaranham e se especificam as questes do ser humano, da conscincia, da origem e do sujeito. Mas, sem dvida, no estaramos errados em dizer que aqui tambm se coloca o problema da estrutura. Este trabalho no a retomada e a descrio exata do que se pode ler em Histoire de la folie, Naissance de la clinique ou Les mots et les choses. Em muitos pontos ele diferente, permitindo tambm diversas correes e criticas internas. De maneira geral, Histoire de la folie dedicava uma parte bastante considervel, e alis bem enigmtica, ao que se designava como uma "experincia", mostrando assim o quanto permanecamos prximos de admitir um sujeito annimo e geral da histria. Em Naissance de la clinique, o recurso anlise estrutural, tentado vrias vezes, ameaava subtrair a especificidade do problema colocado e o nvel caracterstico da arqueologia. Enfim, em Les mots et les choses, a ausncia da balizagem metodolgica permitiu que se acreditasse em
- 21. A Arqueologia do Saber 19 anlises em termos de totalidade cultural. Entristece-me o fato de que eu no tenha sido capaz de evitar esses perigos: consolo-me dizendo que eles estavam inscritos na prpria empresa, j que, para tomar suas medidas, ela mesma tinha de se livrar desses mtodos diversos e dessas diversas formas de histria; e depois, sem as questes que me foram colocadas,3 sem as dificuldades levantadas, sem as objees, eu, sem dvida, no teria visto desenhar-se to clara a empresa qual, quer queira quer no, me encontro ligado de agora em diante. Da, a maneira precavida, claudicante deste texto: a cada instante, ele se distancia, estabelece suas medidas de um lado e de outro, tateia em direo a seus limites, se choca com o que no quer dizer, cava fossos para definir seu prprio caminho. A cada instante, denuncia a confuso possvel. Declina sua identidade, no sem dizer previamente: no sou isto nem aquilo. No se trata de uma crtica, na maior parte do tempo; nem de uma maneira de dizer que todo mundo se enganou a torto e a direito; mas sim de definir uma posio singular pela exterioridade de suas vizinhanas; mais do que querer reduzir os outros ao silncio, fingindo que seu propsito vo - tentar definir esse espao branco de onde falo, e que toma forma, lentamente, em um discurso que sinto como to precrio, to incerto ainda. * - Voc no est seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-se em relao s questes que lhe so colocadas, dizer que as objees no apontam realmente para o lugar em que voc se pronuncia? Voc se prepara para dizer, ainda uma vez, que voc nunca foi aquilo que era voc se critica? Voc j arranja a sada que lhe permitir, em seu prximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: no, no, eu no estou onde voc me espreita, mas aqui de onde o observo rindo. 3. As primeiras pginas deste texto, especialmente, constituram, sob forma um pouco diferente, uma resposta s questes formuladas, pelo Cercle d'pistmologie de E.N.S. (v. Colliers pour Vanalyse, n 9). Por outro lado, um esboo de certas exposies foi apresentado em resposta aos leitores de Esprit (abril, 1968).
- 22. 20 Michel Foucault - Como?! Voc pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabea baixa, se no preparasse - com as mos um pouco febris - o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propsito, abrir-lhe subterrneos, enterr-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu no terei mais que encontrar? Vrios, como eu sem dvida, escrevem para no ter mais um rosto. No me pergunte quem sou e no me diga para permanecer o mesmo: uma moral de estado civil; ela rege nossos papis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.
- 23. II AS REGULARIDADES DISCURSIVAS
- 24. 1 AS UNIDADES DO DISCURSO O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de srie, de transformao, coloca, a qualquer anlise histrica, no somente questes de procedimento, mas tambm problemas tericos. So estes os problemas que vo ser aqui estudados (as questes de procedimento sero consideradas no curso das prximas pesquisas empricas, se eu tiver, pelo menos, a oportunidade, o desejo e a coragem de empreend-las). Entretanto, s sero considerados em um campo particular: nessas disciplinas to incertas de suas fronteiras, to indecisas em seu contedo, que se chamam histria das idias, ou do pensamento, ou das cincias, ou dos conhecimentos. H, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noes que diversificam, cada uma sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dvida, no tm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas sua funo precisa. Assim a noo de tradio: ela visa a dar uma importncia temporal singular a um conjunto de fenmenos, ao mesmo tempo sucessivos e idnticos (ou, pelo menos, anlogos); permite repensar a disperso da histria na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferena caracterstica de qualquer comeo, para retroceder, sem interrupo, na atribuio indefinida da origem; graas a ela, as
- 25. 24 Michel Foucault novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanncia, e seu mrito transferido para a originalidade, o gnio, a deciso prpria dos indivduos. O mesmo ocorre com a noo de influncia, que fornece um suporte - demasiado mgico para poder ser bem analisado - aos fatos de transmisso e de comunicao; que atribui a um processo de andamento causai (mas sem delimitao rigorosa nem definio terica) os fenmenos de semelhana ou de repetio; que liga, a distncia e atravs do tempo - como por intermdio de um meio de propagao -, unidades definidas como indivduos, obras, noes ou teorias. Assim tambm ocorre com as noes de desenvolvimento e de evoluo: elas permitem reagrupar uma sucesso de acontecimentos dispersos; relacion-los a um nico e mesmo princpio organizador; submet-los ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptao, sua capacidade de inovao, a incessante correlao de seus diferentes elementos, seus sistemas de assimilao e de trocas); descobrir, j atuantes em cada comeo, um princpio de coerncia e o esboo de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relao continuamente reversvel entre uma origem e um termo jamais determinados, sempre atuantes. O mesmo acontece, ainda, com as noes de "mentalidade" ou de "esprito", que permitem estabelecer entre os fenmenos simultneos ou sucessivos de uma determinada poca uma comunidade de sentido, ligaes simblicas, um jogo de semelhana e de espelho - ou que fazem surgir, como princpio de unidade e de explicao, a soberania de uma conscincia coletiva. preciso pr em questo, novamente, essas snteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, so aceitos antes de qualquer exame, esses laos cuja validade reconhecida desde o incio; preciso desalojar essas formas e essas foras obscuras pelas quais se tem o hbito de interligar os discursos dos homens; preciso expuls-las da sombra onde reinam. E ao invs de deix-las ter valor espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questo de cuidado com o mtodo e em primeira instncia, de uma populao de acontecimentos dispersos. preciso tambm que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que j nos so familiares. possvel admitir, tais como so, a distino dos grandes tipos de discurso, ou a das formas ou dos gneros que opem, umas s outras, cincia, literatura, filosofia, religio, histria, fico etc.,
- 26. A Arqueologia do Saber 25 e que as tornam espcies de grandes individualidades histricas? Ns prprios no estamos seguros do uso dessas distines no nosso mundo de discursos, e ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados que eram, na poca de sua formulao, distribudos, repartidos e caracterizados de modo inteiramente diferente: afinal, a "literatura" e a "poltica" so categorias recentes que s podem ser aplicadas cultura medieval, ou mesmo cultura clssica, por uma hiptese retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de semelhanas semnticas; mas nem a literatura, nem a poltica, nem tampouco a filosofia e as cincias articulavam o campo do discurso nos sculos XVII ou XVIII como o articularam no sculo XIX. De qualquer maneira, esses recortes - quer se trate dos que admitimos ou dos que so contemporneos dos discursos estudados - so sempre, eles prprios, categorias reflexivas, princpios de classificao, regras normativas, tipos institucionalizados: so, por sua vez, fatos de discurso que merecem ser analisados ao lado dos outros, que com eles mantm, certamente, relaes complexas, mas que no constituem seus caracteres intrnsecos, autctones e universalmente reconhecveis. Mas, sobretudo, as unidades que preciso deixar em suspenso so as que se impem da maneira mais imediata: as do livro e da obra. Aparentemente, pode-se apag-las sem um extremo artifcio? No so elas apresentadas da maneira mais exata possvel? Individualizao material do livro que ocupa um espao determinado, que tem um valor econmico e que marca por si mesmo, por um certo nmero de signos, os limites de seu comeo e de seu fim; estabelecimento de uma obra que se reconhece e que se delimita, atribuindo um certo nmero de textos a um autor. E, no entanto, assim que so observadas um pouco mais de perto, comeam as dificuldades. Unidade material do livro? Ser a mesma quando se trata de uma antologia de poemas, de uma coletnea de fragmentos pstumos, do Trait des coniques ou de um tomo da Histoire de France de Michelet? Ser a mesma quando se trata de Un coup de ds, do processo de Gilles de Rais, do San Marco de Butor, ou de um missal catlico? Em outros termos, a unidade material do volume no ser uma unidade fraca, acessria, em relao unidade discursiva a que ela d apoio? Mas essa unidade discursiva, por sua vez, ser homognea e
- 27. 26 Michel Foucault uniformemente aplicvel? Um romance de Stendhal ou um romance de Dostoivski no se individualizam como os de La comdie humaine; e estes, por sua vez, no se distinguem uns dos outros como Ulisses da Odissia. que as margens de um livro jamais so ntidas nem rigorosamente determinadas: alm do ttulo, das primeiras linhas e do ponto final, alm de sua configurao interna e da forma que lhe d autonomia, ele est preso em um sistema de remisses a outros livros, outros textos, outras frases: n em uma rede. E esse jogo de remisses no homlogo, conforme se refira a um tratado de matemtica, a um comentrio de textos, a uma narrao histrica, a um episdio em um ciclo romanesco; em qualquer um dos casos, a unidade do livro, mesmo entendida como feixe de relaes, no pode ser considerada como idntica. Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mo; por mais que ele se reduza ao pequeno paraleleppedo que o encerra: sua unidade varivel e relativa. Assim que a questionamos, ela perde sua evidncia; no se indica a si mesma, s se constri a partir de um campo complexo de discursos. Quanto obra, os problemas por ela levantados so mais difceis ainda. Aparentemente, entretanto, o que h de mais simples? Uma soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome prprio. Ora, essa denotao (mesmo se forem deixados de lado os problemas da atribuio) no uma funo homognea: o nome de um autor denota da mesma maneira um texto que ele prprio publicou com seu nome, um texto que apresentou sob pseudnimo, um outro que ser descoberto aps sua morte, em rascunho, um outro ainda que no passa de anotaes, uma caderneta de notas, um "papel"? A constituio de uma obra completa ou de um opus supe um certo nmero de escolhas difceis de serem justificadas ou mesmo formuladas: ser que basta juntar aos textos publicados pelo autor os que ele planejava editar e que s permaneceram inacabados pelo fato de sua morte? Ser preciso incluir, tambm, tudo que rascunho, primeiro projeto, correes e rasuras dos livros? Ser preciso reunir esboos abandonados? E que importncia dar s cartas, s notas, s conversas relatadas, aos propsitos transcritos por seus ouvintes, enfim, a este imenso formigamento de vestgios verbais que um indivduo deixa em torno de si, no momento de morrer, e que falam, em um entrecruzamento indefinido, tantas
- 28. A Arqueologia do Saber 27 linguagens diferentes? De qualquer forma, o nome "Mallarm" no se refere da mesma maneira s verses inglesas, s tradues de Edgar Poe, aos poemas ou s respostas a pesquisas; assim, no a mesma relao que existe entre o nome de Nietzsche por um lado e, por outro, as autobiografias de juventude, as dissertaes escolares, os artigos filolgicos, Zaratustra, Ecce Homo, as cartas, os ltimos cartes-postais assinados por "Dionysos" ou "Kaiser Nietzsche", as inumerveis cadernetas em que se misturam notas de lavanderia e projetos de aforismos. Na verdade, se se fala com tanto prazer e sem maiores questionamentos sobre a "obra" de um autor, porque a supomos definida por uma certa funo de expresso. Admite-se que deve haver um nvel (to profundo quanto preciso imaginar) no qual a obra se revela, em todos os seus fragmentos, mesmo os mais minsculos e os menos essenciais, como a expresso do pensamento, ou da experincia, ou da imaginao, ou do inconsciente do autor, ou ainda das determinaes histricas a que estava preso. Mas v-se logo que tal unidade, longe de ser apresentada imediatamente, constituda por uma operao; que essa operao interpretativa (j que decifra, no texto, a transcrio de alguma coisa que ele esconde e manifesta ao mesmo tempo); que, finalmente, a operao que determina o opus em sua unidade e, por conseguinte, a prpria obra, no ser a mesma no caso do autor do Thtre et son double ou no caso do autor do Tractatus, e que, assim, no no mesmo sentido que se falar uma "obra". A obra no pode ser considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade homognea. Finalmente, eis a ltima precauo para colocar fora de circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organizam, de antemo, os discursos que se pretende analisar: renunciar a dois temas que esto ligados um ao outro e que se opem. Um quer que jamais seja possvel assinalar, na ordem do discurso, a irrupo de um acontecimento verdadeiro; que alm de qualquer comeo aparente h sempre uma origem secreta - to secreta e to originria que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma, seramos fatalmente reconduzidos, atravs da ingenuidade das cronologias, a um ponto indefinidamente recuado, jamais presente em qualquer histria; ele mesmo no passaria de seu prprio vazio; e a partir dele, todos os comeos jamais poderiam deixar
- 29. 28 Michel Foucault de ser recomeo ou ocultao (na verdade, em um nico e mesmo gesto, isto e aquilo). A esse tema se liga um outro, segundo o qual todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um j-dito; e que este j-dito no seria simplesmente uma frase j pronunciada, um texto j escrito, mas um "jamais-dito", um discurso sem corpo, uma voz to silenciosa quanto um sopro, uma escrita que no seno o vazio de seu prprio rastro. Supe-se, assim, que tudo que o discurso formula j se encontra articulado nesse meio-silncio que lhe prvio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto no passaria, afinal de contas, da presena repressiva do que ele diz; e esse no-dito seria um vazio minando, do interior, tudo que se diz. O primeiro motivo condena a anlise histrica do discurso a ser busca e repetio de uma origem que escapa a toda determinao histrica; o outro a destina a ser interpretao ou escuta de um j-dito que seria, ao mesmo tempo, um no-dito. preciso renunciar a todos esses temas que tm por funo garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presena no jogo de uma ausncia sempre reconduzida. preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupo de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa disperso temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado at nos menores traos, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. No preciso remeter o discurso longnqua presena da origem; preciso trat-lo no jogo de sua instncia. Essas formas prvias de continuidade, todas essas snteses que no problematizamos e que deixamos valer de pleno direito, preciso, pois, mant-las em suspenso. No se trata, claro, de recus-las definitivamente, mas sacudir a quietude cora a qual as aceitamos; mostrar que elas no se justificam por si mesmas, que so sempre o efeito de uma construo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; definir em que condies e em vista de que anlises algumas so legtimas; indicar as que, de qualquer forma, no podem mais ser admitidas. Seria bem possvel, por exemplo, que as noes de "influncia" ou de "evoluo" originassem uma crtica que as colocasse - por um tempo mais ou menos longo - fora de uso. Mas a "obra", o "livro", ou ainda estas unidades como a "cincia" ou a "literatura", ser
- 30. A Arqueologia do Saber 29 preciso sempre dispens-las? Ser preciso tom-las por iluses, construes sem legitimidade, resultados mal alcanados? Ser preciso desistir de se buscar qualquer apoio nelas, mesmo provisoriamente, e de lhes dar uma definio? Trata-se, de fato, de arranc-las de sua quase-evidncia, de liberar os problemas que colocam; reconhecer que no so o lugar tranquilo a partir do qual outras questes podem ser levantadas (sobre sua estrutura, sua coerncia, sua sistematicidade, suas transformaes), mas que colocam por si mesmas todo um feixe de questes (Que so? Como defini-las ou limit-las? A que tipos distintos de leis podem obedecer? De que articulao so suscetveis? A que subconjuntos podem dar lugar? Que fenmenos especficos fazem aparecer no campo do discurso?). Trata-se de reconhecer que elas talvez no sejam, afinal de contas, o que se acreditava que fossem primeira vista. Enfim, que exigem uma teoria; e que essa teoria no pode ser elaborada sem que aparea, em sua pureza no sinttica, o campo dos fatos do discurso a partir do qual so construdas. E eu mesmo, de minha parte, nada farei seno isso: certamente tomarei por marco inicial unidades inteiramente formadas (como a Psicopatologia, ou a medicina, ou a economia poltica); mas no me colocarei no interior dessas unidades duvidosas para estudar-lhes a configurao interna ou as secretas contradies. No me apoiarei nelas seno o tempo necessrio para me perguntar que unidades formam; com que direito podem reivindicar um domnio que as especifique no espao e uma continuidade que as individualize no tempo; segundo que leis elas se formam; sobre o pano de fundo de que acontecimentos discursivos elas se recortam; e se, finalmente, no so, em sua individualidade aceita e quase institucional, o efeito de superfcie de unidades mais consistentes. Aceitarei os conjuntos que a histria me prope apenas para question-los imediatamente; para desfaz-los e saber se podemos recomp-los legitimamente; para saber se no preciso reconstituir outros; para recoloc-los em um espao mais geral que, dissipando sua aparente familiaridade, permita fazer sua teoria. Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade, todo ura domnio encontra-se, de fato, liberado. Trata-se de um domnio imenso, mas que se pode definir: constitudo pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham
- 31. 30 Michel Foucault sido falados ou escritos), em sua disperso de acontecimentos e na instncia prpria de cada um. Antes de se ocupar, com toda certeza, de uma cincia, ou de romances, ou de discursos polticos, ou da obra de um autor, ou mesmo de um livro, o material que temos a tratar, em sua neutralidade inicial, uma populao de acontecimentos no espao do discurso em geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrio dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que a se formam. Essa descrio se distingue facilmente da anlise da lngua. Certamente s podemos estabelecer um sistema lingustico (se no o construmos artificialmente) utilizando um corpo de enunciados ou uma coleo de fatos de discurso; mas trata-se, ento, de definir, a partir desse conjunto que tem valor de amostra, regras que permitam construir eventualmente outros enunciados diferentes daqueles: mesmo que tenha desaparecido h muito tempo, mesmo que ningum a fale mais e que tenha sido restaurada a partir de raros fragmentos, uma lngua constitui sempre um sistema para enunciados possveis - um conjunto finito de regras que autoriza um nmero infinito de desempenhos. O campo dos acontecimentos discursivos, em compensao, o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das nicas sequncias lingusticas que tenham sido formuladas: elas bem podem ser inumerveis e podem, por sua massa, ultrapassar toda capacidade de registro, de memria, ou de leitura: elas constituem, entretanto, um conjunto finito. Eis a questo que a anlise da lngua coloca a propsito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construdo e, consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construdos? A descrio de acontecimentos do discurso coloca uma outra questo bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e no outro em seu lugar? V-se igualmente que essa descrio do discurso se ope histria do pensamento. A, tambm, no se pode reconstituir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos. Mas esse conjunto tratado de tal maneira que se tenta encontrar, alm dos prprios enunciados, a inteno do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptvel fratura de suas palavras manifestas; de qualquer forma, trata-se de
- 32. A Arqueologia do Saber 31 reconstituir ura outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmurante, inesgotvel, que anima do interior a voz que escutamos, de restabelecer o texto mido e invisvel que percorre o interstcio das linhas escritas e, s vezes, as desarruma. A anlise do pensamento sempre alegrica em relao ao discurso que utiliza. Sua questo, infalivelmente, : o que se dizia no que estava dito? A anlise do campo discursivo orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situao; de determinar as condies de sua existncia, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlaes com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciao exclui. No se busca, sob o que est manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que no poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questo pertinente a uma tal anlise poderia ser assim formulada: que singular existncia esta que vem tona no que se diz e em nenhuma outra parte? Devemos perguntar-nos para que, finalmente, pode servir essa atitude de manter em suspenso todas as unidades admitidas, se se trata, em suma, de reencontrar as unidades que fingimos questionar no incio. Na verdade, a supresso sistemtica das unidades inteiramente aceitas permite, inicialmente, restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento e mostrar que a descontinuidade no somente um desses grandes acidentes que produzem uma falha na geologia da histria, mas j no simples fato do enunciado; faz-se, assim, com que ele surja em sua irrupo histrica; o que se tenta observar essa inciso que ele constitui, essa irredutvel - e muito frequentemente minscula - emergncia. Por mais banal que seja, por menos importante que o imaginemos em suas consequncias, por mais facilmente esquecido que possa ser aps sua apario, por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos, um enunciado sempre um acontecimento que nem a lngua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque est ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou articulao de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existncia remanescente no campo de uma memria, ou na
- 33. 32 Michel Foucault materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque nico como todo acontecimento, mas est aberto repetio, transformao, reativao; finalmente, porque est ligado no apenas a situaes que o provocam, e a consequncias por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem. Mas se isolamos, em relao lngua e ao pensamento, a instncia do acontecimento enunciativo, no para disseminar uma poeira de fatos e sim para estarmos seguros de no relacion-la com operadores de sntese que sejam puramente psicolgicos (a inteno do autor, a forma de seu esprito, o rigor de seu pensamento, os temas que o obcecam, o projeto que atravessa sua existncia e lhe d significao) e podermos apreender outras formas de regularidade, outros tipos de relaes. Relaes entre os enunciados (mesmo que escapem conscincia do autor; mesmo que se trate de enunciados que no tm o mesmo autor; mesmo que os autores no se conheam); relaes entre grupos de enunciados assim estabelecidos (mesmo que esses grupos no remetam aos mesmos domnios nem a domnios vizinhos; mesmo que no tenham o mesmo nvel formal; mesmo que no constituam o lugar de trocas que podem ser determinadas); relaes entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente (tcnica, econmica, social, poltica). Fazer aparecer, em sua pureza, o espao em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos no tentar restabelec-lo em um isolamento que nada poderia superar; no fech-lo em si mesmo; tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relaes. Eis o terceiro interesse de tal descrio dos fatos de discurso: libertando-os de todos os grupamentos considerados como unidades naturais, imediatas e universais, temos a possibilidade de descrever outras unidades, mas, dessa vez, por um conjunto de decises controladas. Contanto que se definam claramente as condies, poderia ser legtimo constituir, a partir de relaes corretamente descritas, conjuntos que no seriam arbitrrios, mas que, entretanto, teriam permanecido invisveis. Certamente essas relaes jamais teriam sido formuladas, por elas mesmas, nos enunciados em questo (diferentemente, por exemplo, dessas relaes explcitas que so
- 34. A Arqueologia do Saber 33 colocadas e ditas pelo prprio discurso, quando assume a forma do romance, ou quando se inscreve numa srie de teoremas matemticos). Elas, entretanto, no constituiriam, de maneira alguma, uma espcie de discurso secreto, animando, do interior, os discursos manifestos; no , pois, uma interpretao dos fatos enunciativos que poderia traz-los luz, mas a anlise de sua coexistncia, de sua sucesso, de seu funcionamento mtuo, de sua determinao recproca, de sua transformao independente ou correlativa. Fora de cogitao, entretanto, est o fato de se poder descrever, sem limites, todas as relaes que possam assim aparecer. preciso, numa primeira aproximao, aceitar um recorte provisrio: uma regio inicial que a anlise revolucionar e reorganizar se houver necessidade. Mas como circunscrever essa regio? Por um lado, preciso, empiricamente, escolher um domnio em que as relaes corram o risco de ser numerosas, densas e relativamente fceis de descrever: e em que outra regio os acontecimentos discursivos parecem estar mais ligados uns aos outros, e segundo relaes mais decifrveis, seno nesta que se designa, em geral, pelo termo cincia? Mas, por outro lado, como se dar o mximo de chances de tornar a apreender, em um enunciado, no o momento de sua estrutura formal e de suas leis de construo, mas o de sua existncia e das regras de seu aparecimento, a menos que nos dirijamos a grupos de discursos pouco formalizados, onde os enunciados no paream se engendrar necessariamente segundo regras de mera sintaxe? Como estarmos certos de que escaparemos de recortes como os da obra, de categorias como as da influncia, a menos que proponhamos, desde o incio, domnios bastante amplos, escalas cronolgicas bastante vastas? Finalmente, como estarmos certos de que no nos prenderemos a todas essas unidades ou snteses pouco refletidas que se referem ao sujeito falante, ao sujeito do discurso, ao autor do texto, enfim, a todas essas categorias antropolgicas? A menos, talvez, que consideremos o conjunto dos enunciados atravs dos quais essas categorias se constituram - o conjunto dos enunciados que escolheram como "objeto" o sujeito dos discursos (seu prprio sujeito) e que se dispuseram a desenvolv-lo como campo de conhecimentos? Assim se explica o privilgio real que dei a discursos dos quais se pode dizer, muito esquematicamente, que definem as
- 35. 34 Michel Foucault "cincias do homem". Mas isso no passa de um privilgio inicial. preciso ter em mente dois fatos: a anlise dos acontecimentos discursivos no est, de maneira alguma, limitada a semelhante domnio; e, por outro lado, o recorte do prprio domnio no pode ser considerado como definitivo, nem como vlido de forma absoluta; trata-se de uma primeira aproximao que deve permitir o aparecimento de relaes que correm o risco de suprimir os limites desse primeiro esboo.
- 36. 2 AS FORMAES DISCURSIVAS Tentei descrever relaes entre enunciados. Tive o cuidado de no admitir como vlida nenhuma dessas unidades que me podiam ser propostas e que o hbito punha minha disposio. Decidi-me a no negligenciar nenhuma forma de descontinuidade, de corte, de limiar ou de limite. Decidi-me a descrever enunciados no campo do discurso e as relaes de que so suscetveis. Vejo que duas sries de problemas se apresentam de imediato: uma - vou deix-la em suspenso no momento e a retomarei mais tarde - se refere utilizao grosseira que fiz dos termos enunciado, acontecimento, discurso; a outra, s relaes que podem ser legitimamente descritas entre esses enunciados, deixados em seu grupamento provisrio e visvel. H, por exemplo, enunciados que se apresentam - e isso a partir de uma data que se pode determinar facilmente - como referentes economia poltica, ou biologia, ou Psicopatologia; h, tambm, os que se apresentam como pertencentes a essas continuidades milenrias - quase sem origem - que chamamos gramtica ou medicina. Mas o que so essas unidades? Como se pode dizer que a anlise das doenas mentais feita por Willis e pelos clnicos de Charcot pertencem mesma ordem de discurso? Que as invenes de Petty esto numa relao de continuidade com a economia de Neumann? Que a anlise do juzo feita pelos gramticos de Port-Royal pertence
- 37. 36 Michel Foucault ao mesmo domnio da identificao das alternncias voclicas nas lnguas indo-europias? O que , ento, a medicina, a gramtica, a economia poltica? Ser que no passam de um reagrupamento retrospectivo pelo qual as cincias contemporneas se iludem sobre seu prprio passado? So formas que se instauraram definitivamente e se desenvolveram soberanamente atravs do tempo? Encobrem outras unidades? E que espcie de laos reconhecer validamente entre todos esses enunciados que formam, de um modo ao mesmo tempo familiar e insistente, uma massa enigmtica? Primeira hiptese - a que me pareceu inicialmente a mais verossmil e a mais fcil de provar: os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um nico e mesmo objeto. Assim, parece que os enunciados pertinentes Psicopatologia referem-se a esse objeto que se perfila, de diferentes maneiras, na experincia individual ou social, e que se pode designar por loucura. Ora, logo percebi que a unidade do objeto "loucura" no nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relao ao mesmo tempo descritvel e constante. E isso ocorre por duas razes. Cometeramos um erro, seguramente, se perguntssemos ao prprio ser da loucura, ao seu contedo secreto, sua verdade muda e fechada em si mesma, o que se pde dizer a seu respeito e em um momento dado; a doena mental foi constituda pelo conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam, recortavam, descreviam, explicavam, contavam seus desenvolvimentos, indicavam suas diversas correlaes, julgavam-na e, eventualmente, emprestavam-lhe a palavra, articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus. Mas h mais ainda: esse conjunto de enunciados est longe de se relacionar com um nico objeto, formado de maneira definitiva, e de conserv-lo indefinidamente como seu horizonte de idealidade inesgotvel; o objeto que colocado como seu correlato pelos enunciados mdicos dos sculos XVII ou XVIII no idntico ao objeto que se delineia atravs das sentenas jurdicas ou das medidas policiais; da mesma forma, todos os objetos do discurso psicopatolgico foram modificados desde Pinel ou Esquirol at Bleuler: no se trata das mesmas doenas, no se trata dos mesmos loucos.
- 38. A Arqueologia do Saber 37 Poderamos, deveramos talvez, concluir, a partir dessa multiplicidade dos objetos, que no possvel admitir, como uma unidade vlida para constituir um conjunto de enunciados, o "discurso referente loucura". Talvez fosse necessrio que nos ativssemos apenas aos grupos de enunciados que tm um nico e mesmo objeto: os discursos sobre a melancolia ou sobre a neurose. Mas logo nos daramos conta de que cada um desses discursos, por sua vez, constituiu seu objeto e o elaborou at transform-lo inteiramente. Assim, a questo saber se a unidade de um discurso feita pelo espao onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam, e no pela permanncia e singularidade de um objeto. A relao caracterstica que permitiria individualizar ura conjunto de enunciados referentes loucura no seria, ento, a regra de emergncia simultnea ou sucessiva dos diversos objetos que a so nomeados, descritos, analisados, apreciados ou julgados? A unidade dos discursos sobre a loucura no estaria fundada na existncia do objeto "loucura", ou na constituio de um nico horizonte de objetividade; seria esse o jogo das regras que tornam possvel, durante um perodo dado, o aparecimento dos objetos: objetos que so recortados por medidas de discriminao e de represso, objetos que se diferenciam na prtica cotidiana, na jurisprudncia, na casustica religiosa, no diagnstico dos mdicos, objetos que se manifestam em descries patolgicas, objetos que so limitados por cdigos ou receitas de medicao, de tratamento, de cuidados. Alm disso, a unidade dos discursos sobre a loucura seria o jogo das regras que definem as transformaes desses diferentes objetos, sua no-identidade atravs do tempo, a ruptura que neles se produz, a descontinuidade interna que suspende sua permanncia. De modo paradoxal, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a disperso desses objetos, apreender todos os interstcios que os separam, medir as distncias que reinam entre eles - em outras palavras, formular sua lei de repartio. Segunda hiptese para definir um grupo de relaes entre enunciados: sua forma e seu tipo de encadeamento. Parecera-me, por exemplo, que a cincia mdica, a partir do sculo XIX, se caracterizava menos por seus objetos ou conceitos do que por um certo estilo, um certo carter constante da
- 39. 38 Michel Foucault enunciao. Pela primeira vez, a medicina no se constitua mais de um conjunto de tradies, de observaes, de receitas heterogneas, mas sim de um corpus de conhecimentos que supunha uma mesma viso das coisas, um mesmo esquadrinhamento do campo perceptivo, uma mesma anlise do fato patolgico segundo o espao visvel do corpo, um mesmo sistema de transcrio do que se percebe no que se diz (mesmo vocabulrio, mesmo jogo de metforas); enfim, parecera-me que a medicina se organizava como uma srie de enunciados descritivos. Mas, ainda a, foi preciso abandonar essa hiptese inicial e reconhecer que o discurso clnico era no s um conjunto de hipteses sobre a vida e a morte, de escolhas ticas, de decises teraputicas, de regulamentaes institucionais, de modelos de ensino, mas tambm um conjunto de descries; que este no podia, de forma alguma, ser abstrado daqueles, e que a enunciao descritiva no passava de uma das formulaes presentes no discurso mdico. Foi preciso, tambm, reconhecer que essa descrio no parou de se deslocar: seja porque, de Bichat patologia celular, deslocaram-se as escalas e os marcos; seja porque, da inspeo visual, da auscultao e da palpao ao uso do microscpio e dos testes biolgicos, o sistema da informao foi modificado; seja ainda porque, da simples correlao anatomoclnica anlise refinada dos processos fisiopatolgicos, o lxico dos signos e sua decifrao foram inteiramente reconstitudos; seja, finalmente, porque o mdico, pouco a pouco, deixou de ser o lugar de registro e de interpretao da informao, e porque, ao lado dele, fora dele, constituram-se massas documentrias, instrumentos de correlao e tcnicas de anlise que ele tem, certamente, de utilizar, mas que modificam, em relao ao doente, sua posio de sujeito observante. Todas essas alteraes, que nos conduzem, talvez hoje, ao limiar de uma nova medicina, depositaram-se lentamente no discurso mdico, no decorrer do sculo XIX. Se se quisesse definir esse discurso por um sistema codificado e normativo de enunciao, seria preciso reconhecer que essa medicina se desfez to logo apareceu e que s conseguiu se formular com Bichat e Laennec. Se h unidade, o princpio no , pois, uma forma determinada de enunciados; no seria, talvez, o conjunto das regras que tornaram possveis, simultnea ou sucessivamente, descries puramente perceptivas, mas, tambm,
- 40. A Arqueologia do Saber 39 observaes tornadas mediatas por instrumentos, protocolos de experincias de laboratrios, clculos estatsticos, constataes epidemiolgicas ou demogrficas, regulamentaes institucionais, prescries teraputicas? Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistncia desses enunciados dispersos e heterogneos; o sistema que rege sua repartio, como se apiam uns nos outros, a maneira pela qual se supem ou se excluem, a transformao que sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posio e de sua substituio. Outra direo de pesquisa, outra hiptese: no se poderiam estabelecer grupos de enunciados, determinando-lhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que a se encontram em jogo? Por exemplo, a anlise da linguagem e dos fatos gramaticais no repousaria, com os clssicos (desde Lancelot at o fim do sculo XVIII), em um nmero definido de conceitos cujo contedo e uso eram estabelecidos de forma definitiva: o conceito de juzo definido como a forma geral e normativa de qualquer frase, os conceitos de sujeito e de predicativo reagrupados sob a categoria mais geral de nome, o conceito de verbo utilizado como equivalente do de ligao lgica, o conceito de palavra definido como signo de uma representao etc? Seria possvel, assim, reconstituir a arquitetura conceitual da gramtica clssica. Mas, ainda a, logo encontraramos limites; sem dvida, poderamos descrever, com tais elementos, apenas as anlises feitas pelos autores de Port-Royal; logo seramos obrigados a constatar o aparecimento de novos conceitos; alguns entre eles derivaram-se, talvez, dos primeiros, mas outros lhes so heterogneos e alguns at incompatveis. A noo de ordem sinttica natural ou inversa, a de complemento (introduzida no decorrer do sculo XV11I por Beauze) podem, sem dvida, integrar-se ainda ao sistema conceitual da gramtica de Port-Royal. Mas nem a idia de um valor originariamente expressivo dos sons, nem a de um saber primitivo guardado nas palavras e transmitido obscuramente por elas, nem a de uma regularidade na mutao das consoantes, nem a concepo do verbo como simples nome que permite designar uma ao ou uma operao compatvel com o conjunto dos conceitos que Lancelot ou Duclos podiam usar. Ser necessrio admitir, nessas condies, que a gramtica s aparentemente constitui uma figura coerente, e que uma falsa unidade esse conjunto de enuncia-
- 41. 40 Michel Foucault dos, anlises, descries, princpios e consequncias, dedues, que se perpetuou com esse nome durante mais de um sculo? Entretanto, talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscssemos no na coerncia dos conceitos, mas em sua emergncia simultnea ou sucessiva, em seu afastamento, na distncia que os separa e, eventualmente, em sua incompatibilidade. No buscaramos mais, ento, uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los no mesmo edifcio dedutivo; tentaramos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua disperso. Finalmente, a quarta hiptese para reagrupar os enunciados, descrever seu encadeamento e explicar as formas unitrias sob as quais eles se apresentam: a identidade e a persistncia dos temas. Em "cincias" como a economia e a biologia, to voltadas para a polmica, to permeveis a opes filosficas ou morais, to prontas em certos casos utilizao poltica, legtimo, em primeira instncia, supor que uma certa temtica seja capaz de ligar e de animar, como um organismo que tem suas necessidades, sua fora interna e suas capacidades de sobrevivncia, um conjunto de discursos. Ser que no se poderia, por exemplo, constituir como unidade tudo que, de Buffon a Darwin, constituiu o tema evolucionista? Tema de incio mais filosfico que cientfico, mais prximo da cosmologia que da biologia; tema que dirigiu de longe pesquisas, mais do que nomeou, recobriu e explicou resultados; tema que supunha sempre mais do que dele se sabia, mas que forava, a partir dessa escolha fundamental, a transformar em saber discursivo o que fora esboado como hiptese ou como exigncia. Ser que no se poderia falar, da mesma forma, do tema fisiocrtico? Idia que postulava, alm de qualquer demonstrao e antes de qualquer anlise, o carter natural das trs rendas fundirias; que supunha, em consequncia, o primado econmico e poltico da propriedade agrria; que exclua qualquer anlise dos mecanismos da produo industrial; que implicava, em compensao, a descrio do circuito do dinheiro no interior de um Estado, de sua distribuio entre as diferentes categorias sociais, e dos canais pelos quais voltava produo; que, finalmente, conduziu Ricardo a se interrogar sobre os casos em que essa tripla renda no aparecia, nas condies
- 42. A Arqueologia do Saber 41 era que poderia formar-se, e a denunciar, em consequncia disso, o arbitrrio do tema fisiocrtico? Mas a partir de semelhante tentativa, somos levados a fazer duas constataes inversas e complementares. Em um caso, a mesma temtica se articula a partir de dois jogos de conceitos, de dois tipos de anlise, de dois campos de objetos perfeitamente diferentes: a idia evolucionista, em sua formulao mais geral, talvez seja a mesma em Benoit de Maillet, Bordeu ou Diderot, e em Darwin; mas, na verdade, o que a torna possvel e coerente no , de forma alguma, da mesma ordem. No sculo XVIII, a idia evolucionista definida a partir de um parentesco das espcies que forma um continuum prescrito desde o incio (s as catstrofes da natureza o teriam interrompido, ou progressivamente constitudo pelo passar do tempo). No sculo XIX, o tema evolucionista se refere menos constituio do quadro contnuo das espcies do que descrio de grupos descontnuos e anlise das modalidades de interao entre um organismo, cujos elementos so solidrios, e um meio que lhe oferece suas condies reais de vida. Trata-se de um nico tema, mas a partir de dois tipos de discurso. No caso da fisiocracia, ao contrrio, a escolha de Quesnay repousa exatamente sobre o mesmo sistema de conceitos que a opinio inversa, sustentada pelos que podem ser chamados utilitaristas. Nessa poca, a anlise das riquezas compreendia um jogo de conceitos relativamente limitado e que era admitido por todos (dava-se a mesma definio da moeda; dava-se a mesma explicao sobre os preos; fixava-se, da mesma maneira, o custo de um trabalho). Ora, a partir desse jogo conceitual nico, havia duas maneiras de explicar a formao do valor, analisando-o a partir da troca, ou da remunerao pela jornada de trabalho. Essas duas possibilidades inscritas na teoria econmica, e nas regras de seu jogo conceitual, deram lugar, a partir dos mesmos elementos, a duas opes diferentes. Estaramos errados, sem dvida, em procurar na existncia desses temas os princpios de individualizao de um discurso. No seria mais indicado busc-los na disperso dos pontos de escolha que ele deixa livres? No seriam as diferentes possibilidades que ele abre no sentido de reanimar temas j existentes, de suscitar estratgias opostas, de dar lugar a interesses inconciliveis, de permitir, com um jogo de concei-
- 43. 42 Michel Foucault tos determinados, desempenhar papis diferentes? Mais do que buscar a permanncia dos temas, das imagens e das opinies atravs do tempo, mais do que retraar a dialtica de seus conflitos para individualizar conjuntos enunciativos, no poderamos demarcar a disperso dos pontos de escolha e definir, antes de qualquer opo, de qualquer preferncia temtica, um campo de possibilidades estratgicas? Eis-me, pois, em presena de quatro tentativas, de quatro fracassos e de quatro hipteses que se revezam. Ser preciso, agora, prov-las. A propsito dessas grandes famlias