francisco cÂndido xavier - irmÃo x - cartas e crÔnicas

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    FRANCISCO CANDIDO XAVIER

    CARTAS E CRNICAS ( Ditadas pelo Esprito Irmo X)

    Caro Amigo Se voc gostou deste livro e tem oportunidade de adquiri-lo, faa-o, pois os direitos autorais so doados a instituies de caridade. Muita Paz

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    NDICE

    TEMAS CAP TEMAS CAP A CARIDADE MAIOR 27 KARDEC E NAPOLEO 28 A ESTACA ZERO 23 LIO NAS TREVAS 01 A PETIO DE JESUS 03 MENSAGEM BREVE 37 ACERCA DA PENA DE MORTE 21 NA HORA DA CRUZ 25 AMOR E AUXLIO 10 NO APRENDIZADO COMUM 36 ANOTAES SIMPLES 33 NO REINO DOMSTICO 32 AS TRS ORAES 02 NOTA EXPLICATIVA 20 AUXLIO DO SENHOR 15 O CAMINHO DO REINO 05 BELARMINO BICAS 16 O GRANDE CEIFADOR 34 BICHINHOS 29 O GRUPO REAJUSTADO 31 CARTA DE UM MORTO 35 O SERVO INSACIVEL 30 CARTA ESTIMULANTE 26 OBSESSO PACFICA 08 COMUNICAES 14 ORAO DIANTE DO TEMPO 40 CONSCINCIA ESPRITA 07 PROVAES 22 CURIOSA EXPERINCIA 09 RESPONDENDO 24 EM TORNO DA PAZ 19 SERVIO E TEMPO 11 ESPIRITISMO E DIVULGAO 12 TRAGDIA NO CIRCO 06 EXPLICAO DE AMIGO 13 TREINO PARA A MORTE 04 EXPLICANDO 38 VENENO LIVRE 18 INFLUENCIA DO BEM 17 VERSO MODERNA 39

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    DEDICATRIA Num belo aplogo conta Rabindranath Tagore que um lavrador, a caminho de casa, com a colheita do dia, notou que, em sentido contrrio, vinha suntuosa carruagem, revestida de estrelas. Contemplando-a, fascinado, viu-a estacar, junto dele, e, semi-estarrecido, reconheceu a presena do Senhor do Mundo, que saiu dela e estendeu-lhe a mo a pedir-lhe esmolas. O qu? - refletiu, espantado - o Senhor da Vida a rogar-me auxlio, a mim, que nunca passei de msero escravo, na aspereza do solo? Conquanto excitado e mudo, mergulhou a mo no alforje de trigo que trazia e enfrentou ao Divino Pedinte apenas um gro da preciosa carga. O Senhor agradeceu e partiu. Quando, porm, o pobre homem do campo tornou a si do prprio assombro, observou que doce claridade vinha do alforje poeirento. O grnulo de trigo, do qual fizera sua ddiva, tornara sacola, transformado em pepita de ouro luminescente. Deslumbrado, gritou: - Louco que fui! . Porque no dei tudo o que tenho ao Soberano da Vida? Na atualidade da Terra, quando o materialismo compromete edificaes venerveis da f, no caminho dos homens, sabemos que o Cristo pede cooperao para a sementeira do Evangelho Redivivo que a Doutrina Esprita veicula. E, entregando este livro humilde circulao das idias renovadoras - trabalho despretensioso que no chega a valer um gro de trigo da verdade -, imagino nestas cartas e crnicas, que passo s mos de leitor amigo, um punhado de acendalhas para o lume da Nova Revelao, e repito, reverente, ante a bondade do Eterno Amigo: - Ah! Senhor! . Compreendo a significao de teus apelos e a grandeza de tua magnificncia, mas perdoa ao pequenino servo que sou, se nada mais tenho de mim para te dar!

    Uberaba, 18 de abril de 1966.

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    01 - LIO DAS TREVAS

    No vale das trevas, delirava a legio de Espritos infelizes. Rixas, obscenidades, doestos, baldes. Planejavam-se assaltos, maquinavam-se crimes. O Esprito Benfeitor penetrou a caverna, apaziguando e abenoando. Aqui, abraava um desventurado, apartando-o da malta, de modo a entreg-lo, mais tarde, a equipes socorristas; mais adiante, aliviava com suave magnetismo a cabea atormentada de entidades em desvario. O servio assistencial seguia difcil, quando enfurecido mandante da crueldade, ao descobri-lo, se aquietou em sbita acalmia e, impondo respeitosa serenidade a chusma de loucos, declinou-lhe a nobre condio. Que os companheiros rebelados se acomodassem, deixando livre passagem quele que reconhecia por missionrio do bem. - Conheces-me? - interrogou o recm-chegado, entra espantado e agradecido. - Sim - disse o rude empreiteiro da sombra -, eu era um doente na Terra e curaste meu corpo que a molstia desfigurava. Lembro-me perfeitamente de teu cuidado ao lavar-me as feridas. Os circunstantes entraram na conversao de improviso e um deles, de dura carranca, apontou o visitador e clamou para o amigo: Que mais te fez este homem no mundo para que sejamos forados deferncia? Deu-me teto e agasalho. Outro inquiriu: Que mais? Supriu minha casa de po e roupa, libertando-nos, a mim e a famlia, da nudez e da fome. Outro ainda perguntou com ironia: Mais nada?

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    Muitas vezes, dividia comigo o que trazia na bolsa, entregando-me abenoado dinheiro para que a penria no me arrasasse. Estabelecido o silncio, o Esprito Benfeitor, encorajado pelo que ouvia, indagou com humildade: Meu irmo, nada fiz seno cumprir o dever que a fraternidade me impunha; entretanto, se te mostras to generoso para comigo, em tuas manifestaes de reconhecimento e de amor que reconheo no merecer, porque te entregas, assim, obsesso e delinqncia?! . O interpelado pareceu sensibilizar-se, meneou tristemente a cabea e explicou: Em verdade, s bom e amparaste a minha vida, mas no me ensinaste a viver! Espritas, irmos! Cultivemos a divulgao da Doutrina Renovadora que nos esclarece e rene! Com o po do corpo, estendamos a luz da alma que nos habilite a aprender e compreender, raciocinar e servir.

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    02 - AS TRS ORAES

    Instado pela assemblia de amigos a falar sobre a resposta do Criador s preces das criaturas, respondeu o velho Simo Abileno, instrutor cristo, considerado no Plano Espiritual por mestre do aplogo e da sntese: Repetirei para vocs, a nosso modo, antiga lenda que corre mundo nos contos populares de numerosos pases... Em grandes bosque da sia Menor, trs rvores ainda jovens pediram a Deus lhes concedesse destinos gloriosos e diferentes. A primeira explicou que aspirava a ser empregada no trono do mais alto soberano da Terra; aps ouv-la, a segunda declarou que desejava ser utilizada na construo do carro que transportasse os tesouros desse rei poderoso, e a terceira, por ltimo, disse ento que almejava transformar-se numa torre, nos domnios desse potentado, para indicar o caminho do Cu. Depois das preces formuladas, um Mensageiro Anglico desceu mata e avisou que o Todo-Misericordioso lhes recebera as rogativas e lhes atenderia s peties. Decorrido muito tempo, lenhadores invadiram o horto selvagem e as rvores, com grande pesar de todas as plantas circunvizinhas, foram reduzidas a troncos, despidos por mos cruis. Arrastadas para fora do ambiente familiar, ainda mesmo com os braos decepados, elas confiaram nas promessas do Supremo Senhor e se deixaram conduzir com pacincia e humildade. Qual no lhes foi, conduzir com pacincia e humildade. Qual no lhes foi, porm, a aflitiva surpresa!... Depois de muitas viagens, a primeira caiu sob o poder de um criador de animais que, de imediato, mandou convert-la num grande cocho destinado alimentao de carneiros; a segunda foi adquirida por um velho praiano que construa barcos por encomenda; e a terceira foi comprada e recolhida para servir, em momento oportuno, numa cela de malfeitores. As rvores amigas, conquanto separadas e sofredoras, no deixaram de acreditar na mensagem do Eterno e obedeceram sem queixas s ordens inesperadas que as leis da vida lhes impunham... No bosque, contudo, as outras plantas tinham perdido a f no valor da orao, quando, transcorridos muitos anos, vieram a saber que as trs rvores haviam obtido as concesses gloriosas solicitadas... A primeira, forrada de panos singelos, recebera Jesus das mos de Maria de Nazar, servindo de bero ao Dirigente Mais Alto do Mundo; a segunda, trabalhando com pescadores, na forma de uma barca valente e pobre, fora o veculo de que Jesus se utilizou para transmitir sobre as guas muitos dos seus mais belos ensinamentos; e a terceira, convertida apressadamente numa cruz em Jerusalm, seguira com Ele, o Senhor, para o monte e, ali, ereta e valorosa, guardara-lhe o corao torturado, mas repleto de amor no extremo sacrifcio, indicando o verdadeiro caminho do Reino Celestial... Simo silenciou, comovido. E, depois de longa pausa, terminou, a entremostrar os olhos marejados de pranto: Em verdade, meus amigos, todos ns podemos enderear a Deus, em qualquer parte e em qualquer tempo, as mais variadas preces; no entanto, ns todos precisamos cultivar pacincia e humildade, para esperar e compreender as respostas de Deus.

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    03 - A PETIO DE JESUS ... E Jesus, retido por deveres constrangedores, junto da multido, em Cafarnaum, falou a Simo, num gesto de bno: - Vai, Pedro! Peo-te! ... Vai casa de Jeremias, o curtidor, para ajudar. Sara, a filha dele, prostrada no leito, tem a cabea conturbada e o corpo abatido. Vai sem delonga, ora ao lado dela, e o Pai, a quem rogamos apoio, socorrer a doente por tuas mos. Na manh ensolarada, ps-se o discpulo em marcha, entusiasmado e sorridente com a perspectiva de servir. tarde, quando o sol cedia as ltimas posies sombra noturna, vinha de retorno enunciando inquietao e pesar no rosto spero. - Ah! Senhor! - disse ao Mestre que lhe escutava os apontamentos - todo esforo baldado, tudo em vo! ... - Como assim? E o apstolo explicou amargamente, qual se fora um odre de fel a derramar-se: - A casa de Jeremias um antro de perdio... Antes fosse um pasto selvagem. O abastado curtidor um homem que ajuntou dinheiro, a fim de corromper-se. De entrada, dei com ele bebericando vinho num paiol, a cuja porta bati, na esperana de obter informaes para demandar o recinto domstico. No parecia um patriarca e sim um gozador desavergonhado. Sentava-se na palha de trigo e, de momento a momento, colava os lbios ao gargalo de pesada botelha, desferindo gargalhadas, ao p de serva bonita e jovem, que se refestelava no cho, positivamente embriagada... Ao receber-me, comeou perguntando quantos piolhos trago cabea e acabou mandando-me ao primognito... Sa procura de Zoar, o filho mais idoso, e o achei, enfurecido, no jogo de dados em que perdia largas somas para conhecido traficante de Jope. Acolheu-me aos berros, explicando que a sorte da irm no lhe despertava o menor interesse... Por fim, expulsou-me aos coices, dando a idia de uma besta-fera solta no campo . Afastava-me, apressado, quando esbarrei com a dona da casa. Dei-lhe a razo de minha presena; contudo, antes de atender-me, passou a espancar esqueltica menina, alegando que a criana lhe havia surrupiado um figo, enquanto a pequena chorosa tentava esclarecer que a fruta havia sido devorada por galos de estimao... Somente aps ensangentar a vtima, resolveu a megera designar o aposento em que poderia avistar-me com a filha enferma... Ante o olhar melanclico do ouvinte, o discpulo prosseguiu: - A dificuldade, porm, no ficou nisso... Visivelmente transtornada por bagatela, a velha sovina errou na indicao, pois entrei numa alcova estreita, onde fui defrontada por Josu, o filho mais moo do curtidor, que mergulhava a mo num cofre de jias. Desagradavelmente surpreendido, fz-se amarelo de raiva, acreditando decerto que eu no passava de algum a

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    servio da famlia, a fim de espionar-lhe os movimentos. Quando ergueu o brao para esmurrar-me, supliquei-lhe considerasse a minha situao de visitante em misso de paz e socorro fraterno . Embora contrafeito, conduzindo-me ao quarto da irm... Ah! Mestre, que tremenda desiluso!.. No duvido de que se trata de uma doente, mas, logo me viu, a estranha criatura se tornou inconveniente, articulando gestos indecorosos e pronunciando frases indignas...No agentei mais... Fugi, horrorizado, e regressei pelo mesmo caminho. Observando que o Amigo Sublime se resguardava, triste e silencioso, volveu Simo, aps comprido intervalo: - Senhor, no fui, acaso, bastante claro? Porventura, no terei procurado cumprir-te honestamente os desejos? Seria justo, Mestre, pronunciar o nome de Deus, ali, entre vcios e deboche, avareza e obscenidade? Jesus, porm, depois de fitar longamente o cu, a inflamar-se de lumes distantes, fixou no companheiro o olhar profundamente lcido e exclamou com serenidade: - Pedro, conheo Jeremias, a esposa e os filhos, h muito tempo!... Quando te incumbi de ir ao encontro deles, apenas te pedi para auxiliar! .

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    04 - TREINO PARA A MORTE Preocupado com a sobrevivncia alm do tmulo, voc pergunta, espantado, como deveria ser levado a efeito o treinamento de um homem para as surpresas da morte. A indagao curiosa e realmente d que pensar. Creia, contudo, que, por enquanto, no muito fcil preparar tecnicamente um companheiro frente da peregrinao infalvel. Os turistas que procedem da sia ou da Europa habilitam futuros viajantes com eficincia, por lhes no faltarem os termos analgicos necessrios. Mas ns, os desencarnados, esbarramos com obstculos quase intransponveis. A rigor, a Religio deve orientar as realizaes do esprito, assim como a Cincia dirige todos os assuntos pertinentes vida material. Entretanto, a Religio, at certo ponto, permanece jungida ao superficialismo do sacerdcio, sem tocar a profundez da alma. Importa considerar tambm que a sua consulta, ao invs de ser encaminhada a grandes telogos da Terra, hoje domiciliados na Espiritualidade, foi endereada justamente a mim, pobre noticiarista sem mritos para tratar de semelhante inquirio. Pode acreditar que no obstante achar-me aqui de novo, h quase vinte anos de contado, sinto-me ainda no assombro de um xavante, repentinamente trazido da selva matogrossense para alguma de nossa Universidades, com a obrigao de filiar-se, de inopino, aos mais elevados estudos e s mais complicadas disciplinas. Em razo disso, no posso reportar-me seno ao meu prprio ponto de vista, com as deficincias do selvagem surpreendido junto coroa de Civilizao. Preliminarmente, admito deva referir-me aos nossos antigos maus hbitos. A cristalizao deles, aqui, uma praga tiranizante. Comece a renovao de seus costumes pelo prato de cada dia. Diminua gradativamente a volpia de comer a carne dos animais. O cemitrio na barriga um tormento, depois da grande transio. O lombo de porco ou o bife de vitela, temperados com sal e pimenta, no nos situam muito longe dos nossos antepassados, os tamoios e os caiaps, que se devoravam uns aos outros. Os excitantes largamente ingeridos constituem outra perigosa obsesso. Tenho visto muitas almas de origem aparentemente primorosa, dispostas a trocar o prprio Cu pelo usque aristocrtico ou pela nossa cachaa brasileira.

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    Tanto quanto lhe seja possvel, evite os abusos do fumo. Infunde pena a angstia dos desencarnados amantes da nicotina. No se renda tentao dos narcticos. Por mais aflitivas lhe paream as crises do estgio no corpo, aguente firme os golpes da luta. As vtimas da cocana, da morfina e dos barbitricos demoram-se largo tempo na cela escura da sede e da inrcia. E o sexo? Guarde muito cuidado na preservao do seu equilbrio emotivo. Temos aqui muita gente boa carregando consigo o inferno rotulado de amor. Se voc possui algum dinheiro ou detm alguma posse terrestre, no adia doaes, caso esteja realmente inclinado a faz-las. Grandes homens, que admirvamos no mundo pela habilidade e poder com que concretizavam importantes negcios, aparecem, junto de ns, em muitas ocasies, maneira de crianas desesperadas por no mais conseguirem manobrar os tales de cheque. Em famlia, observe cautela com testamentos. As doenas fulminatrias chegam de assalto, e, se a sua papelada no estiver em ordem, voc padecer muitas humilhaes, atravs de tribunais e cartrios. Sobretudo, no se apegue demasiado aos laos consanguneos. Ame sua esposa, seus filhos e seus parentes com moderao, na certeza de que, um dia, voc estar ausente deles e de que, por isso mesmo, agiro quase sempre em desacordo com a sua vontade, embora lhe respeitem a memria. No se esquea de que, no estado presente da educao terrestre, se alguns afeioados lhe registrarem a presena extraterrena, depois dos funerais, na certa intim-lo-o a descer aos infernos, receando-lhe a volta inoportuna. Se voc j possui o tesouro de uma f religiosa, viva de acordo com os preceitos que abraa. horrvel a responsabilidade moral de quem j conhece o caminho, sem equilibrar-se dentro dele. Faa o bem que puder, sem a preocupao de satisfazer a todos. Convena-se de que se voc no experimenta simpatia por determinadas criaturas, h muita gente que suporta voc com muito esforo. Por essa razo, em qualquer circunstncia, conserve o seu nobre sorriso. Trabalhe sempre, trabalhe sem cessar. O servio o melhor dissolvente de nossas mgoas. Ajude-se, atravs do leal cumprimento de seus deveres. Quanto ao mais, no se canse nem indague em excesso, porque, com mais tempo ou menos tempo, a morte lhe oferecer o seu carto de visita, impondo-lhe ao conhecimento tudo aquilo que, por agora, no lhe posso dizer.

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    05 - O CAMINHO DO REINO Na tosca residncia de Aro, o curtidor, dizia Jesus a Zacarias, dono de extensos vinhedos em Jeric: - O Reino de Deus ser, por fim, a vitria do bem, no domnio dos homens!... O Sol cobrir o mundo por manto de alegria luminosa, guardando a paz triunfante. Os filhos de todos os povos andaro vinculados uns aos outros, atravs do apoio mtuo. As guerras tero desaparecido, arredadas da memria, quais pesadelos que o dia relega aos princpios da noite!... Ningum se lembrar de exigir o suprfluo e nem se esquecer de prover os semelhantes do necessrio, quando o necessrio se lhes faa preciso. A seara de um lavrador produzir o bastante para o lavrador que no conseguiu as oportunidades da sementeira e o teto de um irmo erguer-se- igualmente como refgio do peregrino sequioso de afeto, sem que a idia do mal lhes visite a cabea... A viuvez e a orfandade nunca mais derramaro sequer ligeira lgrima de sofrimento, porquanto a morte nada mais ser que antecmara da unio no amor perptuo que clareia o sem-fim. Os enfermos, por mais aparentemente desvalidos, acharo leito repousante, e as molstias do corpo deixaro de ser monstros que espreitam a moradia terrestre, para significarem simplesmente notcias breves das leis naturais no arcabouo das formas. O trabalho no ser motivo de cativeiro e sim privilgio sagrado da inteligncia. A felicidade e o poder no marcaro o lugar dos que retenham ouro e prpura, mas o corao daqueles que mais se empenham no doce contentamento de entender e servir. O lar no se erigir em cadinho de provao, porque brilhar incessantemente por ninho de bnos, em cujo aconchego palpitaro as almas felizes que se encontram para bendizer a confiana e a ternura sem mcula. O homem sentir-se- responsvel pela tranqilidade comum, nos moldes da reta conscincia, transfigurando a ao edificante em norma de cada dia; a mulher ser respeitada, na condio de me e companheira, a que devemos, originariamente, todas as esperanas e regozijos que desabrocham na Terra, e as crianas sero consideradas por depsitos de Deus!... A dor de algum ser repartida, qual transitria sombra entre todos, tanto quanto o jbilo de algum se espalhar, na senda de todos, recordando a beleza do claro estelar... A inveja e o egosmo no mais subsistiro, visto que ningum desejar para os outros aquilo que no aguarda em favor de si mesmo! Fontes deslizaro entre jardins, e frutos substanciosos pendero nas estradas, oferecendo-se fome do viajor, sem pedir-lhe nada mais que uma prece de gratido bondade do Pai, de vez que todas as criaturas alentaro consigo o anseio de construir o Cu na Terra que o todo misericordioso lhes entregou!... Deteve-se Jesus contemplando a turba que o aplaudia, frentica, minutos depois da sua entrada em Jerusalm para as celebraes da Pscoa, e, notando que os israelitas se diferenavam entre si, a revelarem particularidades das regies diversas de que procediam acentuou: - Quando atingirmos, coletivamente, o Reino dos Cus, ningum mais nascer sob qualquer sinal de separao ou discrdia, porque a Humanidade se reger pelos ideais e interesses de um mundo s!...

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    Enlevado, Zacarias fitou-o com ansiosa expectao e ponderou com respeito: - Senhor, vim de Jeric para o culto s tradies de nossos antepassados; todavia, acima de tudo, aspirava a encontrar-te e ouvir-te... Envelheci, arando a gleba e sonhando com a paz!... Tenho vivido nos princpios de Moiss; no entanto, do fundo de minha alma, quero chegar ao Reino de Deus do qual te fazes mensageiro nos tempos novos!... Mestre! Mestre!... Para buscar-te percorri a trilha de minha estncia at aqui, passo a passo... De vila em vila, de casa em casa, um caminho existe, claro, determinado... Qual , porm, Senhor, o Caminho para o Reino de Deus? - A estrada para o Reino de Deus uma longa subida... comeou Jesus, explicando. Eis, contudo, que filas de manifestantes penetraram o recinto, interrompendo-lhe a frase e arrebatando-o praa fronteiria, recoberta de flores.

    * * * Zacarias, em xtase, demandou o stio de parentes, no vale de Hinom, demorando-se por dois dias em comentrios entusiastas, ao redor das promessas e ensinos do Cristo, mas, de retorno cidade, no surpreende outro quadro que no seja a multido desvairada e agressiva... No mais a glorificao, no mais a festa. Diante do ajuntamento, o Mestre, em pessoa, no mais querido. Aqueles mesmos que o haviam honorificado em cnticos de louvor apupavam-no agora com requintes de injria. O velho de Jeric, translcido de espanto, viu que o Amado Amigo, cambaleante e suarento, arrastava a cruz dos malfeitores... Ansiou abra-lo e esgueirou-se, dificilmente, suportando empuxes e zombarias do populacho... Rente ao madeiro, notou que um grupo de mulheres chorosas abrigava o Mestre a parada imprevista e, antecedendo-se-lhes palavra, ajoelhou-se diante dele e clamou: - Senhor!... Senhor!... Jesus retirou do lenho a destra ferida, afagou-lhe, por instantes, os cabelos que o tempo alvejara, lembrando o linho quando a estriga descansa junto da roca, e falou, humilde: - Sim, Zacarias, os que quiserem alcanar o Reino de Deus subiro ladeira escabrosa... Em seguida, denotou a ateno de quem escutava os insultos que lhe eram endereados... Finda a pausa ligeira, apontou para o amigo, com um gesto, a poeira e o pedregulho que se avantajavam frente e, como a recordar-lhe a pergunta que deixara sem resposta, afirmou com voz firme:

    - Para a conquista do Reino de Deus, este o caminho...

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    06 - TRAGDIA NO CIRCO Naquela noite, da poca recuada de 177, o concilium de Lio regurgitava de povo. No se tratava de nenhuma das assemblias tradicionais da Glia, junto ao altar do Imperador, e sim de compacto ajuntamento. Marco Aurlio reinava, piedoso, e. Embora no houvesse lavrado qualquer rescrito em prejuzo maior dos cristos, permitira se aplicassem na cidade, com o mximo rigor, todas as leis existentes contra eles. A matana, por isso, perdurava, terrvel. Ningum examinava necessidades ou condies. Mulheres e crianas, velhos e doente, tanto quanto homens vlidos e personalidades prestigiosas, que se declarassem fiis ao Nazareno, eram detidos, torturados e eliminados sumariamente. Atravs do espesso casario, a montante da confluncia do Rdano e do Sane, multiplicavam-se prises, e no sop da encosta, mais tarde conhecida como colina de Fourvire, improvisara-se grande circo, levantando-se altas paliadas em torno de enorme arena. As pessoas representativas do mundo lions eram sacrificadas no lar ou barbaramente espancadas no campo, enviando-se os desfavorecidos da fortuna, inclusive grande massa de escravos, ao regozijo pblico. As feras pareciam agora entorpecidas, aps massacrarem milhares de vtimas, nas mandbulas sanguinolentas. Em razo disso, inventavam-se tormentos novos. Verdugos inconscientes ideavam estranhos suplcios. Senhoras cultas e meninas ingnuas eram desrespeitadas antes que lhes decepassem a cabea, ancies indefesos viam-se chicoteados at a morte. Meninos apartados do reduto familiar eram vendidos a mercadores em trnsito, para servirem de alimrias domsticas em provncias distantes, e nobres senhores tombavam assassinados nas prprias vinhas. Mais de vinte mil pessoas j haviam sido mortas. * Naquela noite, a que acima nos referimos, anunciou-se para o dia seguinte a chegada de Lcio Galo, famoso cabo de guerra, que desfrutava atenes especiais do Imperador por se haver distinguido contra a usurpao do general Avdio Cssio, e que se inclinava agora a merecido repouso.

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    Imaginaram-se, para logo, comemoraes a carter. Por esse motivo, enquanto l fora se acotovelavam gladiadores e jograis, o patrcio lcio Plancus, que se dizia descendente do fundador da cidade, presidia a reunio, a pedido do Propretor, programando os festejos. - Alm das saudaes, diante dos carros que chegaro de Viena dizia, algo tocado pelo vinho abundante -, preciso que o circo nos d alguma cena de exceo... O lutador Setmio poderia arregimentar os melhores homens; contudo, no bastaria renovar o quadro de atletas... - A equipe de danarinas nunca esteve melhor aventou Caio Marcelino, antigo legionrio da Bretanha que se enriquecera no saque. - Sim, sim... concordou lcio instruiremos Musnia para que os bailados permaneam altura... - Providenciaremos um encontro de auroques lembrou Prsio Nger. - Auroques! Auroques!... clamou a turba em aprovao. - Excelente lembrana! falou Plancus em voz mais alta mas, em considerao ao visitante, imperioso acrescentar alguma novidade que Roma no conhea... Um grito horrvel nasceu da assemblia; - Cristos s feras! cristos s feras! Asserenado o vozerio, tornou o chefe do conselho: - Isso no constitui novidade! E h circunstncias desfavorveis. Os lees recm-chegados da frica esto preguiosos... Sorriu com malcia e chasqueou: - Claro que surpreenderam, nos ltimos dias, tentaes e viandas que o prpio Lculo jamais encontrou no conforto de sua casa... Depois das gargalhadas gerais, lcio continuou, irnico: - Ouvi, porm, alguns companheiros, ainda hoje, e apresentaremos um plano que espero resulte certo. Poderamos reunir, nesta noite, aproximadamente mil crianas e mulheres crists, guardando-as nos crceres... E, amanh, coroando as homenagens, ajunt-las-emos na arena, molhada de resinas e devidamente cercada de farpas embebidas em leo, deixando apenas passagem estreita para a liberao das mais fortes. Depois de mostradas festivamente em pblico, incendiaremos toda a rea, deitando sobre elas os velhos cavalos

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    que j no sirvam aos nossos jogos... Realmente, as chamas e as patas dos animais formaro muitos lances inditos... - Muito bem! Muito bem! reuniu a multido, de ponta a ponta do trio. - Urge o tempo gritou Plancus e precisamos do concurso de todos... No possumos guardas suficientes. E erguendo ainda mais o tom de voz: - Levante a mo direita quem esteja disposto a cooperar. Centenas de circunstantes, incluindo mulheres robustas, mostraram destra ao alto, aplaudindo em delrio. Encorajado pelo entusiasmo geral, e desejando distribuir a tarefa com todos os voluntrios, o dirigente da noite enunciou, sarcstico e inflexvel: - Cada um de ns traga um... Essas pragas jazem escondidas por toda a parte... Ca-las e extermin-las o servio da hora... Durante a noite inteira, mais de mil pessoas, vidas de crueldade, vasculharam residncias humildes e, no dia subsequente, ao Sol vivo da tarde, largas filas de mulheres e criancinhas, em gritos e lgrimas, no fim de soberbo espetculo, encontraram a morte, queimadas nas chamas alteadas ao sopro do vento, ou despedaadas pelos cavalos em correria.

    * Quase dezoito sculos passaram sobre o tenebroso acontecimento... Entretanto, a justia da Lei, atravs da reencarnao, reaproximou todos os responsveis, que, em diversas posies de idade fsica, se reuniram de novo para dolorosa expiao, a 17 de dezembro de 1961, na cidade brasileira de Niteri, em comovedora tragdia num circo.

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    07 - CONSCINCIA ESPRITA Diz voc que no compreende o motivo de tanta autocensura nas comunicaes dos espritas desencarnados. Fulano, que deixou a melhor ficha de servio, volta a escrever, declarando que no agiu entre os homens como deveria; sicrano, conhecido por elevado padro de virtudes, regressa, por vrios mdiuns, a lastimar o tempo perdido... E voc acentua, depois de interessantes apontamentos: Tem-se a impresso de que os nossos confrades tornam, do Alm, atormentados por terrveis complexos de culpa. Como explicar o fenmeno? Creia, meu caro, que nutro pessoalmente pelos espritas a mais enternecida admirao. Infatigveis construtores do progresso, obreiros do Cristianismo Redivivo. Tanta liberdade, porm, receberam para a interpretao dos ensinamentos de Jesus que, sinceramente, no conheo neste mundo pessoas de f mais favorecidos de raciocnio, ante os problemas da vida e do Universo. Carregando largos cabedais de conhecimento, justo guardem eles a preocupao de realizar muito e sempre mais, a favor de tantos irmos da Terra, detidos por iluses e inibies no captulo da crena. Conta-se que Allan Kardec, quando reunia os textos de que nasceria O Livro dos Espritos, recolheu-se ao leito, certa noite, impressionado com um sonho de Lutero, de que tomara notcias. O grande reformador, em seu tempo, acalentava a convico de haver estado no paraso, colhendo informes em torno da felicidade celestial. Comovido, o codificador da Doutrina Esprita, durante o repouso, viu-se tambm fora do corpo, em singular desdobramento... Junto dele, identificou um enviado de Planos Sublimes que o transportou, de chofre, a nevoenta regio, onde gemiam milhares de entidades em sofrimento estarrecedor. Soluos de aflio casavam-se a gritos de clera, blasfmias seguiam-se a gargalhadas de loucura. Atnito, Kardec lembrou os tiranos da Histria e inquiriu, espantado: - Jazem aqui os crucificadores de Jesus? - Nenhum deles informou o guia solcito. Conquanto responsveis, desconheciam, na essncia, o mal que praticavam. O prprio Mestre auxiliou-os a se desembaraarem do remorso, conseguindo-lhes abenoadas reencarnaes, em que se resgataram perante a Lei. - E os imperadores romanos? Decerto, padecero nestes stios aqueles mesmos suplcios que impuseram Humanidade... - Nada disso. Homens da categoria de Tibrio ou Calgula no possuam a mnima noo de espiritualidade. Alguns deles, depois de estgios regenerativos na Terra, j se elevaram a

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    esferas superiores, enquanto que outros se demoram, at hoje, internados no campo fsico, beira da remisso. - Acaso, andaro presos nestes vales sombrios tornou o visitante os algozes dos cristos, nos sculos primitivos do Evangelho? - De nenhum modo replicou o lcido acompanhante -, os carrascos dos seguidores de Jesus, nos dias apostlicos, eram homens e mulheres quase selvagens, apesar das tintas de civilizao que ostentavam... Todos foram encaminhados reencarnao, para adquirirem instruo e entendimento O codificador do Espiritismo pensou nos conquistadores da Antiguidade, tila, Anbal, Alarico I, Gengis Khan... Antes, todavia, que enunciasse nova pergunta, o mensageiro acrescentou, respondendo-lhe consulta mental: - No vagueiam, por aqui, os guerreiros que recordas... Eles nada saiam das realidades do esprito e, por isso, recolheram piedoso amparo, dirigidos para o renascimento carnal, entrando em lides expiatrias, conforme os dbitos contrados... - Ento, dize-me rogou Kardec, emocionado -, que sofredores so estes, cujos gemidos e imprecaes me cortam a alma? E o orientador esclareceu, imperturbvel: - Temos junto de ns os que estavam no mundo plenamente educado quanto aos imperativos do Bem e da Verdade, e que fugiram deliberadamente da Verdade e do Bem, especialmente os cristos infiis de todas as pocas, perfeitos conhecedores da lio e do exemplo do Cristo e que se entregaram ao mal, por livre vontade... Para eles, um novo bero na Terra sempre mais difcil... Chocado com a inesperada observao, Kardec regressou ao corpo e, de imediato, levantou-se e escreveu a pergunta que apresentaria, na noite prxima, ao exame dos mentores da obra em andamento e que figura como sendo a Questo nmero 642, de O Livro dos Espritos: Para agradar a Deus e assegurar a sua posio futura, bastar que o homem no pratique o mal?, indagao esta a que os instrutores retorquiram: No; cumpre-lhe fazer o bem, no limite de suas foras, porquanto responder por todo o mal que haja resultado de no haver praticado o bem. Segundo fcil de perceber, meu amigo, com princpios to claros e to lgicos, natural que a conscincia esprita, situada em confronto com as idias dominantes nas religies da maioria, seja muito diferente.

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    08 - OBSESSO PACFICA Quando reencontrei o meu amigo Custdio Saquarema na Vida Espiritual, depois da efuso afetiva de companheiros separados desde muito, a conversa se dirigiu naturalmente para comentrios em torno da nova situao. Sabia Custdio pertencente a famlia esprita e, decerto, nessa condio, teria ele retirado e o mximo de vantagens da existncia que vinha de largar. Pensando nisso, arrisquei uma pergunta, na expectativa de sab-lo com excelente bagagem para o ingresso em estncias superiores. Saquarema, contudo, sorriu, de modo vago, e informou com a fina autocrtica que eu lhe conhecia no mundo: - Ora, meu caro, voc no avalia o que seja uma obsesso disfarada, sem qualquer mostra exterior. A Terra me devolveu para c, na velha base do ganhou mas no leva. Ajuntei muita considerao e muito dinheiro; no entanto, retorno muito mais pobre do que quando parti, no rumo da reencarnao... Percebendo que no me disponha a interromp-lo, continuou: - Voc no ignora que renasci num lar esprita, mas, como sucede maioria dos reencarnados, trazia comigo, jungidos ao meu clima psquico, alguns scios de vcios e extravagncias do passado, que, sem o veculo de carne, se valiam de mim para se vincularem s sensaes do plano terrestre, qual se eu fora uma vaca, habilitada a cooperar na alimentao e conduo de pequena famlia... Creia que, de minha parte, havia retomado a charrua fsica, levando excelente programa de trabalho que, se atendido, me asseguraria precioso avano para as vanguardas da luz. Entretanto, meus vampirizadores, ardilosos e inteligentes, agiam socapa, sem que eu, nem de leve, lhes pressentisse a influncia... E sabe como? - ?... - Atravs de simples consideraes ntimas prosseguiu Saquarema, desapontado. To logo me vi sado da adolescncia, com boa dose de raciocnios lgicos na cabea, os instrutores amigos me exortaram, por meus pais, a cultivar o reino do esprito, referindo-se a estudo, abnegao, aprimoramento, mas, dentro de mim, as vozes de meus acompanhantes surgiam da mente, como fios dgua fluindo de minadouro, propiciando-me da falsa idia de que eu falava comigo mesmo; Coisas da alma, Custdio? Nada disso. A sua hora de juventude, alegria, sol... Deixe a filosofia para depois... Decorrido algum tempo, bacharelei-me. As advertncias do lar se fizeram mais altas, conclamando-me ao dever; entretanto, os meus seguidores, at ento invisveis para mim, revidavam tambm com a zombaria inarticulada: Agora? No ocasio oportuna. De que maneira harmonizar a carreira iniciante com assuntos de religio? Custdio, Custdio!... Observe o critrio das maiorias, no se faa de louco!... Casei-me e, logo aps, os chamados espiritualizao recrudesceram, em torno

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    de mim. Meus solertes exploradores, porm, comentaram, vivazes: No ceda. Custdio! E as responsabilidades de famlia? preciso trabalhar, ganhar dinheiro, obter posio, zelar por mulher e filhos... A morte subtraiu-me os pais e eu, advogado e financista, j na idade madura, ainda ouvia os Bons Espritos, por intermdio de companheiros dedicados, requisitando-me elevao moral pela execuo dos compromissos assumidos; todavia, na casa interna se empoleiravam os argumentos de meus obsessores inflexveis: Custdio, voc tem mais que fazeres... vida social... Voc no est preparado para seara de f... Em seguida, meu amigo, chegaram a velhice e a doena, essas duas enfermeiras da alma, que vivem de mos dadas na Terra. Passei a sofrer e desencantar-me. Alguns raros visitantes de minha senectude, transmitindo-me os derradeiros convites da Espiritualidade Maior, insistiam comigo, esperando que eu me consagrasse s coisas sagradas da alma; no entanto, dessa vez, os gritos de meus antigos vampirizadores se altearam, mais irnicos, assoprando-me sarcasmo, qual se fora eu mesmo a ridicularizar-me: Voc, velho Custdio?! Que vai fazer voc com Espiritismo? tarde demais... Profisso de f, mensagens de outro mundo... Que se dir de voc, meu velho? Seus melhores amigos falaro em loucura, senilidade... No tenha dvida... Seus prprios filhos interditaro voc, como sendo um doente mental, inapto regncia de qualquer interesse econmico... Voc no est mais no tempo disso... Saquarema endereou-me significativo olhar e rematou: - Os meus perseguidores no me seviciaram o corpo, nem me conturbaram a mente. Acalentaram apenas o meu comodismo e, com isso, me impediram qualquer passo renovador. Volto da Terra, meu caro, imitando o lavrador endividado e de mos vazias que regressa de um campo frtil, onde poderia ter amealhado inimaginveis tesouros... Sei que voc ainda escreve para os homens, nossos irmos. Conte-lhes minha pobre experincia, refira-se, junto deles, obsesso pacfica, perigosa, mascarada... Diga-lhes alguma coisa acerca do valor do tempo, da grandeza potencial de qualquer tempo na romagem humana!... Abracei Saquarema, de esperana voltada para tempos novos, prometendo atender-lhe a solicitao. E aqui lhe transcrevo o ensinamento pessoal, que poder servir a muita gente, embora guarde a certeza de que, se eu andasse agora reencarnado na Terra e recebesse de algum semelhante lio, talvez estivesse muito pouco inclinado a aproveit-la.

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    09 - CURIOSA EXPERINCIA Joo Massena, esprito extremamente dedicado aos enfermos, desde alguns anos aps a desencarnao dirigia um grupo de companheiros em grande cidade, esmerando-se na plantao das idias libertadoras do Espiritismo. Respeitado e querido, entre aqueles que lhe recebiam a generosidade, ampliava constantemente a prpria rea de ao, Invocado carinhosamente, aqui e ali, prestava servios preciosos, angariando tesouros de cooperao e simpatia. Aplicava o Evangelho, com raro senso de oportunidade, sustentava infelizes, protegia desesperados e sabia orientar o concurso de vrios mdicos desencarnados, em favor dos doentes, especializando-se, sobretudo, no socorro aos processos obsessivos. Massena apoiava o grupo de amigos encarnados e o grupo apoiava Massena, com tal segurana de entendimento e trabalho, que prodgios se realizavam constantemente. As tarefas continuavam sempre animadoras, quando surgiu para Joo certo caso aflitivo. Jovem destinada a importantes edificaes medinicas jazia em casa, trancada entre quatro paredes e vigiada por Espritos impossveis, interessados em cobrar-lhe algumas dvidas do passado culposo. Benfeitores da Vida Maior amparavam-na; perseguidores que lhe tramavam a perda. Prestigiado pelos poderes Superiores, Massena estudou a melhor maneira de acord-la para as responsabilidades de que se achava investida e percebeu que, para isso, bastaria aparecesse algum capaz de lhe excitar a memria para o retorno ao equilbrio, algum que falasse a ela com respeito f raciocinada, crena lgica, imortalidade da alma e vida espiritual. A jovem, contudo, sob a provao da riqueza amoedada, sofria a desvantagem de no precisar sair do estreito recinto domstico e, face disso, encontrava maior empeo para largar a si prpria. A pouco e pouco, dominada por entidades vampirizadoras, entregou-se ao vcio do lcool e, quase anulada que lhe foi a resistncia, permitiu que essas mesmas criaturas pertubadas lhe assoprassem a sugesto de um crime a ser perpetrado na pessoa de um parente prximo. Conquanto reagisse, a pobrezinha estava quase cedendo insanidade, delinquncia. Joo, aflito, reconheceu o estado de alarma. A moa, no entanto, no se ausentava de casa, no recebia visitas, no recorria a leituras e ignorava o poder da prece. Mentalmente intoxicada, tomava rumo sinistro, quando Massena descobriu algo. A infortunada menina gostava de televiso, que se lhe fizera o nico meio de contacto com o mundo exterior. Porque no auxili-la atravs de semelhante recurso? O abnegado amigo espiritual ps-se em campo e, repartindo apelos mentais, em setores diversos, conseguiu articular providncias, at que um amigo lhe aceitou a inspirao e veio ao grupo com um projeto entusistico. Esse projeto entusistico no era outra coisa seno o interesse de Massena no salvamento da jovem. E o visitante, sob o influxo dele, fz-se veemente no tranquilo

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    cenculo, convidando o conjunto a aproveitar uma oportunidade que obtivera em determinado canal. Conseguira vinte minutos para assunto esprita numa televisora respeitvel. O grupo representar-se-ia, por alguns dos componentes mais categorizados, da a quatro dias uma sexta-feira s dez da noite -, para comentar ligeiros aspectos de mediunidade e Doutrina Esprita. O ofertante, aps anotaes de jubiloso otimismo, concluiu explicando que necessitava de ajustes urgentes. Queria, de imediato, o nome do companheiro decidido a falar, antes de atender a instrues de autoridades e estabelecer minudncias. Os nove companheiros, ali reunidos, no sintonizavam, porm, naquela onda de espectao fervorosa. Lara, o diretor de maior responsabilidade, ponderou: - Ora! Ora! O Espiritismo no precisa de televiso. Temos as nossas casas de ensino... Entretanto, coloco o assunto ao critrio dos irmos... O recm-chegado, expressando-se por si e pelo benfeitor espiritual que o envolvia em pensamentos de esperana, ripostou: - Sem dvida, o templo esprita o lar da palavra doutrinria, mas isso no nos impede de comentar os princpios espritas, em benefcio da Humanidade, seja no rdio ou na imprensa, na rua ou no salo. Se fssemos falar acerca do bem apenas nos instintos de f religiosa, deixaramos ao mal campo livre, terrivelmente livre... O judicioso apontamento, contudo, no vingou. Delcides, comentarista inteligente da equipe, aduziu: - Sou contra. Eu no iria televiso, de modo algum. Considero isso pura vaidade. Antnio Pinho, orador competente, anuiu: - De minha parte, no tenho coragem de me entregar a semelhante exibio... Meira, verbo seguro e viso firme, comentou, seco: - Nem eu. E os demais cinco ajuntaram: - Decididamente, ir televiso falar de Espiritismo no est certo... - Penso de igual modo. Quem quiser aprender Doutrina Esprita, venha s reunies... - Eu tambm no poderia concordar...

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    - No sou de teatro... - O assunto esta fora de cogitao... Encerrou-se o entendimento e o ofertante afastou-se, desapontado. Curiosos, visitamos a jovem obsidiada, justamente na data para a qual Massena lhe previa o suspirado auxlio. Eram dez horas da noite, na sexta-feira referida, e fomos ach-la sentada frente do vdeo. Os minutos que seriam reservados aos comentrios em torno do Espiritismo estavam sendo aplicados num festivo programa de exaltao ao usque e, perplexos, fitamos o simptico sorriso de tele-atriz que convidava: - Beba a nova marca! Uma delcia!...

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    10 - AMOR E AUXLIO Rolava a conversao em torno de proteo espiritual, quando Jonaquim, respeitado mentor de comunicabilidades crists, narrou com a voz aquecida de bondade e sabedoria: - Ouvi de um instrutor amigo que Mardnio Trcio, convertido ao Cristianismo, nos primeiros dias do Evangelho em Roma, se fz um discpulo to valioso e humilde do Senhor que, para logo, teve o seu nome abenoado nos Cus. Patrcio de enorme fortuna, desde muito cedo abandonado pela mulher que demandara Cartago para uma vida independente, Mardnio, assim que penetrou a essncia da doutrina do Cristo, dividiu todos os bens com o filho nico, Marcos Lcio, e entregou-se caridade e renovao. Instrumento fiel do bem, abria os ouvidos a todos os apelos edificantes, fssem dos mensageiros de Jesus que lhe solicitavam a execuo de tarefas benemerentes ou dos irmos encarnados nos mais baixos degraus da penria. Fizera-se espontneamente o apoio das vivas desamparadas e o tutor afetuoso dos rfos. Alm, disso, mantinha horrios, cada dia, para o servio de assistncia direta aos doentes e sofredores, administrando-lhes alimento e socorro com as prprias mos Ao contrrio do pai, o jovem Marcos se chafurdou em absurda viciao. Aos trinta de idade, parecia um flagelo ambulante. Distinguindo-se entre as foras do ouro e do poder, no vacilava em abusar das regalias que desfrutava para manter-se no banditismo dourado que os privilgios sociais tanta vez conservam impune. Dois caminhos to diferentes produziram, em consequncia, duas posies diametralmente opostas no Mundo Espiritual. Sobrevindo a morte, Mardnio cresceu em tamanho merecimento que foi elevado esfera do Cristo, acessvel aos servidores que pudessem colaborar com ele, o Senhor, nos dias mais torturados do Evangelho nascente. Marcos, porm, arrojou-se a escuro antro das zonas inferiores, onde, conquanto afeito revolta e perverso, qual se trouxesse a conscincia revestida em grossa carapaa de insensibilidade. O genitor, convertido em apstolo da abnegao, visitava o filho, no vale tenebroso a que se chumbava, sem que o filho, cego de esprito, lhe assinalasse a presena; e tanto se condoeu daquele com quem partilhara o afeto e o sangue que, certo feita, num rasgo de apaixonado amor pelo rebento querido, suplicou ao Senhor permisso para lev-lo consigo para as Alturas, a fim de assist-lo, de mais perto. Jesus sorriu compreensivo e aquiesceu, diante da ternura ingnua do devotado cooperador, e, antes que amigos experientes lhe administrassem avisos, l se foi Mardnio para a cava sombria, onde o filho se embriagava de loucura e iluso... Renteando com Marcos, positivamente distante de qualquer noo de responsabilidade, aplicou-lhe passes magnticos, anestesiou-lhe os sentidos e, to logo o beneficiado cedeu ao repouso, colocou-o enternecidamente nos ombros, feio de carga preciosa, e, com imensos cuidados, transportou-o para os Cus...

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    Instalado num dos stios mais singelos do Plano Superior, o recm-chegado, porm, usufrua luz mais radiante que a do dia terrestre, e, to depressa acordou sob o encantamento paternal, ao ver-se coberto de fluidos repugnantes que lhe davam a impresso de ser um doente empastado de lama enquistada. Marcos se confrontou com os circunstantes, que se moviam em corpos tnues e luminosos, e passou a gritar improprios e insultos. Ao pai que intentou reconfort-lo, procurou esbofetear sem misericrdia, afirmando que no pedira e nem desejara a mudana. Exortado a respeitar o nome e a casa do Senhor, injuriou o ambiente com palavras e idias de zombaria e ingratido. Parecia uma fera desatrelada, buscando enlamear um fonte de luz. Interferiram amigos e o rebelado caiu de novo em prostrao, sob hipnose benfica... Jonaquim fz novo intervalo, e, porque se interrompera em apontamento culminante da historia, um dos companheiros interrompeu: - E da? Mardnio se viu coibido de amparar o filho a quem amava? O instrutor explicou: - Sim, meus amigos, Mardnio acabou compreendendo que nem Deus violenta filho algum, em nome do bem, e que o bem jamais foge pacincia, a fim de ajudar... Por isso, reconduziu Marcos ao antro de onde o arrancara e, sem nada perder em ternura e esperana, at que o filho quisesse ou pudesse de l sair para novos passos no caminho da evoluo, o ex-patrcio, por noventa e dois anos consecutivos, desceu diariamente ao vale das trevas, oferecendo ao filho, de cada vez, a bno de uma prece, uma frase esclarecedora e um naco de po. - Mas, isso no o mesmo que acentuar a impraticabilidade do socorro? aventou um dos presentes. No seria mais justo relegar o necessitado ao prprio destino para que ele mesmo cogitasse de si? Jonaquim sorriu expressivamente e rematou: - No temos o direito de pr em dvida o poder e a eficincia da lei de auxlio. A renovao conseguida por noventa e dois anos de devotamento talvez custasse, sem eles, noventa e dois sculos. O amor, para auxiliar, aprende a repetir.

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    11 - SERVIO E TEMPO A senhora Juvercina Trajano era um prodgio de minudncias. Aos quase sessenta de idade, reafirmava a sua condio de missionria do Cristo, no amparo infncia, com particularidades preciosas de informao. Esprita fervorosa, sabia-se reencarnada para o desempenho de grande tarefa. Cabia-lhe socorrer crianas desprotegidas. Antevia a obra imensa. Mentalizava-se rodeada de pequeninos a lhe rogarem ternura. Enternecia-se ao narrar as prprias recordaes da sua vida de Esprito, antes do bero, pois Dona Juvercina chegava a lembrar-se do tempo em que se via, no Plano Espiritual, preparando a existncia fsica em que se reconhecia habilitada ao grande empreendimento. Revia-se em companhia de vrios benfeitores desencarnados, visitando instituio assistencial de zonas inferiores e anotando dezenas de Espritos, positivamente desorientados e inferiores, aos quais prestaria auxlio eficiente, depois de reinstalada na Terra. E a senhora Trajano explicava, vezes e vezes, para os amigos admirados. - Torno a ver o stio escuro e esquisito, como se fsse agora... Um vale extenso, repleto de almas agoniadas, necessitando retornar a experincia do mundo, feio de alunos aguardando ansiosamente os benefcios da escola. Creiam que ouo ainda a voz do instrutor paternal que me dizia ser o irmo Ambrsio, a falar-me confiantemente: - Sim, minha irm, voc renascer na Terra com a misso de patrocinar crianas em abandono, sofrimento... Deste recanto de aprendizado, partiro oitenta Espritos transviados, mas sequiosos de esclarecimento e de amor, ao encontro de seus braos... Voc organizar para eles um lar regenerador. No lhe faltaro recursos para situ-los no ambiente preciso. Volte Terra e trabalhe... Compreenda que para assegurar os alicerces de sua obra, voc carregar a responsabilidade sobre o reajuste de oitenta irmos nossos, desorientados e enfermos que tomaro, depois de voc, o corpo carnal para o esforo restaurativo... Seguiro eles, a pouco e pouco, sob nossa vigilncia, na direo de seu carinho!... A senhora Trajano alinhava reminiscncias, entre entusiasmada e comovida. E, realmente, desde os trinta e dois de idade, iniciara, com xito, a construo de um lar para os rebentos do infortnio. O empreendimento, lanado por ela em terreno frtil, encontrara a melhor acolhida. Coraes nobres haviam chegado, colocando-lhe nas mos os recursos imprescindveis. Facilidades, ofertas, dinheiro e cooperao. Em cinco anos, erguera-se o vasto domiclio, simples sem penria e confortvel sem excesso. Juvercina, todavia, se fizera exigente e, por isso, conquanto a casa se patenteasse digna e pronta, prosseguia descobrindo detalhes que considerava de especial importncia. Nunca se sentia com bastante conforto para albergar as dezenas de crianas desventuradas

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    que lhe batiam s portas. Depois do edifcio acabado, quis aument-lo. Efetuados numerosos acrscimos, reclamou mais terras. Compradas as terras, decidiu a formao de pomares. Multiplicaram-se campanhas, projetos, apelos e doaes. Mas no ficou nisso. Resolveu modificar, por vrias vezes, o sistema de gua, a iluminao, a estrutura das paredes, os tetos e os pisos. Deliberou experimentar sementeiras diferentes, em hortas e jardins, reformando-as, insatisfeita. Quando tudo fazia prever a inaugurao, solicitou varandas e prgulas, alm de galpes e caprichosas caladas. Se a obra no se alterava por dentro, surgiam as novidades de fora. E vinte e seis anos passaram na expectativa. Todo esse tempo se desdobrava em pormenores e pormenores, quando, na reunio medinica semanal de que era ela companheira solcita, compareceu, por um dos mdiuns psicofnicos, o Irmo Ambrsio em pessoa. Partilhando a surpresa dos circunstantes, Dona Juvercina chorou, empolgada. Aquela voz... Conhecia aquela voz... O mensageiro exortou-a ao cumprimento da promessa e explanou, com elegncia e beleza, sobre as necessidades da infncia, no estgio da reencarnao terrestre. Juvercina escutou e escutou, mas, percebendo que a palavra do instrutor continha para ela expressiva inflexo de advertncia, indagou, respeitosa, quando o comunicante se dispunha a despedir-se: - Irmo Ambrsio, no estarei sendo leal a mim mesma? O irmo admite que me mantenho fiel s obrigaes que abracei? O interlocutor fixou inesquecvel gesto de brandura e respondeu com a bondade de um pai que aconselha uma filha: - Sim, minha irm, voc tem sido muito exata no programa traado, tem trabalhado e sofrido pela obra, mas no se esquea do tempo... As horas so emprstimos preciosos!... E acrescentou sob o espanto geral: - Trinta Espritos necessitados de reconduo e assistncia, dos oitenta que voc comprometeu a socorrer e reeducar, so agora delinqentes de novo... Dois so obsidiados perigosos na via pblica, seis esto fichados por doentes mentais em penitencirias e os restantes vinte e dois se encontram internados em diversas cadeias.

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    12 - ESPIRITISMO E DIVULGAO O excelente advogado Joaquim Mota, esprita de convico desde a primeira mocidade, possua ideais muito prprias acerca de pensamento religioso. Extremamente sensvel, julgava um erro expor qualquer definio pessoal, em matria de f. Religio costumava dizer assunto exclusivo de conscincia. E fechava-se. Na biblioteca franqueada aos amigos, descansavam tomos em percalina e dourados, reunindo escritores clssicos e modernos, em cincia e literatura. Conservava, porm, os livros espritas isolados em velha cmoda do espaoso quarto de dormir. No agia assim, contudo, por maldade. Era, na essncia, um homem sincero e respeitvel, conquanto esprita moda dele, sem a menor preocupao de militana. Espcie de ilha amena, cercada pelas correntes do comodismo. Encasquetara na cabea o ponto de vista de que ningum devia, a ttulo algum, falar a outrem de princpios religiosos que abraasse, e prosseguiu, vida a fora, repelindo qualquer palpite que o induzisse renovao. Era justamente a esse homem que framos confortar, dentro da noite. Mota vinha de perder a companhia de Licnio Fonseca, recentemente desencarnado, o amigo que lhe partilhara vinte e seis anos de servio no foro. Ambos amadurecidos na existncia e na profisso, aps os sessenta de idade, eram associados invariveis de trabalho e de luta. Juntos sempre nos atos jurdicos, negcios, interesses, frias e excurses. Sem o colega ideal, baqueara Mota em terrvel angstia. Trancava-se em lgrimas, no aposento ntimo, ansiando v-lo em esprito... E tanto rogou a concesso, em preces ocultas, que ali nos achvamos, em comisso de quatro cooperadores, com instrues para lev-lo ao companheiro. Desligado cautelosamente do corpo, que se acomodara sob a influncia do sono, embora no nos percebesse o apoio direto, foi Joaquim transportado presena do amigo que a morte arrebatara. No leito de recuperao do grande instituto beneficente a que fora recolhido, no Mundo Espiritual, Licnio chorou de alegria ao rev-lo, e ns, enternecidos, seguimos, frase a frase, o dilogo empolgante que se articulou, aps o jbilo extrovertido das saudaes. - Mota, meu caro Mota soluou o desencarnado, com impressionante inflexo -, a morte apenas mudana... Cuidado, meu amigo! Muito cuidado!... Quanto tempo perdi, em razo de minha ignorncia espiritual!!... Saiba voc que a vida continua!... - Mas eu sei disso, meu amigo ajuntou o visitante, no intuito de consol-lo -, desde muito cedo entrei no conhecimento da imortalidade da alma. O sepulcro nada mais que a passagem de um plano para outro... Ningum morre, ningum...

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    - Ah! voc sabe ento que o homem na Terra um Esprito habitando provisoriamente um engenho constitudo de carne? Que somos no mundo inquilinos do corpo? indagou Licnio, positivamente aterrado. - Sei, sim... - E voc j foi informado de que quando nascemos, entre os homens, conduzimos ao bero as dvidas do passado, com determinadas obrigaes a cumprir? - De modo perfeito. Muito jovem ainda, aceitei o ensinamento e a lgica da reencarnao... - Mota!... Mota!... gritou o outro visivelmente alterado voc j consegue admitir que nossas esposas e filhos, parentes e amigos, quase sempre so pessoas que conviveram conosco em outras existncias terrestres? Que estamos enleados a eles, frequentemente, para o resgate de antigos dbitos? - Sim, sim, meu caro, no apenas creio... Sei que tudo isso a verdade inconteste... - E voc cr nas ligaes entre os que voltam para c e os que ficam? Voc j percebe que uma pessoa na Terra vive e respira com criaturas encarnadas de obsesso, entre os chamados vivos e mortos, raiando na loucura e no crime?!... - Claramente, sei disso... O interlocutor agarrou-lhe a destra e continuou, espantado: - Mota! Mota! Oua!... Voc est certo de que a vida aqui a continuao do que deixamos e fazemos? j se convenceu de que todos os recursos do plano fsico so emprstimos do Senhor, para que venhamos a fazer todo o bem possvel e que ningum, depois da morte, consegue fugir de si mesmo?... - Sim, sim... Nesse instante, porm, Licnio desvairou-se. Passeou pelo recinto o olhar repentinamente esgazeado, fz instintivo movimento de recuo e bradou: - Fora daqui, embusteiro, fora daqui!... O visitante, dolorosamente surpreendido, tentou apazigu-lo: - Licnio, meu amigo, que vem a ser isso? acalme-se, acalme-se... Sou eu, Joaquim Mota, seu companheiro do dia-a-dia... - Nunca! Embusteiro, mistificador!... Se ele conhecesse as realidades que voc confirma, jamais me teria deixado no suplcio da ignorncia... Meu amigo Joaquim Mota como eu, enganado nas sombras do mundo... Ele foi sempre o meu melhor irmo!... Nunca, nunca permitiria que eu chegasse aqui, mergulhado em trevas!...

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    Mota, em pranto, intentava redarguir, mas interferimos, a fim de sustar o desequilbrio e, para isso, era preciso afast-lo de imediato. Mais alguns minutos e o advogado reapossou-se do corpo fsico. Nada de insegurana que o impelisse idia de sonho ou pesadelo. Guardava a certeza absoluta do reencontro espiritual. Estremunhado, ergueu-se em lgrimas e, sequioso de ar puro que lhe refrigerasse o crebro em fogo, abriu uma das janelas do alto apartamento que lhe configurava o ninho domstico. Mota contemplou o casario compacto, onde, talvez, naquela hora, dezenas de pessoas estivessem partindo da experincia passageira do mundo para as experincias superiores da Vida Maior e, naquele mesmo instante da madrugada, comeou a pensar, de modo diferente, em torno do Espiritismo e da sua divulgao.

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    13 - EXPLICAO DE AMIGO Acredita voc que tenhamos perdido o fio da inspirao, se que o possumos em algum tempo, e acentua que, na condio de esprito desencarnado, assemelhamo-nos hoje a outra pessoa, inidentificvel e distante, para no dizer idiota e pueril. Declara que sente falta de graa, em nossas crnicas atuais, insulsas e vagas, qual se houvssemos perdido o contacto com a Terra e com os homens, esquecendo a literatura e acrianando o pensamento. Queria voc que nos detivssemos nos chamados assuntos palpitantes do mundo, efetuando o strip-tease desse ou daquele escndalo, no palco da imprensa, com objetivos de regenerao dos costumes, como se no conhecssemos, e de sobra, o picadeiro da pilhria humana, onde, por mal de nossos pecados, j desempenhamos a funo de palhao. Afirma, ainda, que teramos olvidado a Mitologia e o gosto das citaes para nos acomodarmos to-somente ao estilo trivial dos que ensaiam frases comoventes para conforto de estivadores e lavadeiras, como se lavadeiras e estivadores no fssem gente igual a ns. Que no desfrutamos competncia para a arte da redao, coisa vulgarmente sabida. Se h o que estranhar em sua carta a impresso de que nos acharamos presentemente modificados, o que, em verdade, no sucede. Sou o mesmo jornalista desenxabido, sem a iluso de estar servindo caviar no cardpio das letras, quando apenas dispe de algum refogado pobre para oferecer aos amigos. Em socorro do que asseveramos, basta recorrer s informaes do nosso colega Eloy Pontes, quando escrevia as suas impresses em O Globo, de h bons trinta anos. Esse distinto crtico de nossa lavoura livresca, em pginas saborosas, que se transferiram do jornal para a sua primeira srie de Obra Alheia, assegurou a nosso respeito: Lida uma das crnicas atuais do Sr.......... esto lidas todas. Ele monocrdio.... E acrescenta noutro passo da mencionada apreciao, em se referindo a ns: Ele no tira coisa alguma de si. No o que se denomina, geralmente, um inspirado. um paciente. Os velhos assuntos bblicos, os antigos elementos das lendas orientais, os pretextos cedios de smbolos que o tempo imps, formam a arquitetura do volume. O Sr........... pertence ao nmero dos que escrevem porque leram. No descobrimos, ao longo destas pginas, nenhum sinal de emoo prpria. As emoes aqui so de reminiscncias. De resto, recapitulando os volumes que vm enfileirados na bibliografia do autor, sentimos que sua obra em prosa tambm se fez de alinhavos, de remendos, de chiffons. No nos reportamos aos apontamentos do estimado companheiro, com a idia de lanar pimenta no assunto, mas para confirmar, com sinceridade, que ele se expressava, desse modo, com plena razo.

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    Francamente, meu caro, o que produzimos hoje, atravs de um mdium, to sem originalidade agora quanto antes. Carregando o carro enxundioso da vida fsica ou envergando o envoltrio mais leve do plano espiritual, mu crebro a mesma lamparina de arteso, com que lavro a canivete a preciosa madeira do vernculo, que tantos filigranam com o buril da inteligncia, inflamado a fogo sagrado de inspirao. No inculpe, assim, as antenas medianmicas, com relao minha pobreza intelectual. Se nos exprimimos, na situao de escriba annimo da verdade, cada vez mais despretensiosamente, creia que nunca tarde a fim de reconhecer que o jornalista ou o escritor, por mais insignificantes, qual acontece em meu caso, so chamados pela vida a escrever para os outros e no para si mesmos. E, atingindo semelhante conhecimento de posio, imperioso anotar o que estamos fazendo com os poderes mgicos do alfabeto. Escrever, sim, mas escrever com proveito, entendendo-se que a pena o instrumento da palavra e a palavra edifica e destri, tanto quanto rebaixa ou santifica. Isso o que, em s conscincia, nos sentimos na obrigao de explicar-lhe. Quanto a estarmos funcionando, no domnio das letras, tanto tempo depois de morto, qual proclama voc, supomos que isso ocorre face de caridosa concesso da Misericrdia Divina, de vez que no escondo a alegria de poder trabalhar com as palavras, embora isso, no fundo, deva constituir igualmente uma provao. Esteja certo, entretanto, de que aspiramos, profundamente, agora, a lidar com as letras, no terreno do esprito, com a cautela de um lavrador que se esmerasse em cultivar batatas, depois de muita desiluso com as plantas empregadas na valorizao dos entorpecentes. Isso, meu prezado amigo, o que vamos atualmente procurando aprender e fazer, desejando, porm, que voc, ao chegar aqui, venha a conseguir coisa melhor.

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    14 - COMUNICAES A histria parece brejeira, mas o fato autntico. Rafael Provenzano escutava os grandes comentaristas do Evangelho, entre despeitado e infeliz. Atormentado de inveja. Queria tambm falar s massas, comover a multido. Nada lhe fulgia tanto aos olhos como a tribuna. E aguardava, ansioso, o dia em que pudesse alcanar aquele ponto saliente no espao, de onde a sua voz conseguisse impressionar centenas de ouvidos. Embora fixado semelhante ambio, era empregado de singela sapataria. E a sua especialidade era bater pinos em sola. Bastas vezes, surpreendia-se no trabalho, mentalizando pblico enorme e ele a falar, a falar sob aplausos. Talvez por isso fsse ranzinza. Conflito permanente entre a vocao e a profisso. A famlia e os companheiros pagavam a diferena. A esposa e as quatro filhinhas, em casa, sofriam-lhe a teimosia e o desespero. Irritadio por d aquela palha, classificava-se conta de tirano domstico. Apurava com esmero o hbito de chacoalhar e ferir. A tenso no se limitava ao crculo mais ntimo. A parentela toda aguentava espancamentos morais. Entre amigos era temido na condio de crtico impertinente. Apesar de tudo isso, a paixo de Rafael era pregar solenemente a verdade crist nos templos espritas. Certa noite, quando falava Martinho, o orientador espiritual da reunio medinica de que era participante, Rafael consultou o comunicante a respeito de seus velhos propsitos. Sim, meu filho comentou o benfeitor, atravs do mdium -, voc poder ensinar, mais tarde, das tribunas. Agora, porm, cedo. Convm estudar, preparar-se, aprender a servir... E prosseguiu explicando que a banca de solador era tambm lugar santo. Podia demonstrar f e abnegao pelo exemplo, edificar, inspirar, auxiliar... Provenzano ouviu paciente, mas saiu desapontado.

    * Decorridas algumas semanas, o grupo se aprestava reunio, em sala adequada. Conversa amena. Uma hora faltando para o incio das oraes. Rafael chega, alegre. Participa que deseja expor ao estimado Martinho o estudo de um belo sonho e contou aos circunstantes que, na noite anterior, se vira espiritualmente, fora do corpo fsico. Sentira-se volitando, leve qual pluma ao vento. E contemplara aos cus um

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    cartaz com seis letras A.D.P.S.B.P., em projeo radiante. Tomara nota de tudo ao despertar. Dona Emlia, que supunha nos sonhos um constante veculo para grandes ensinamentos, inquiriu dele, quanto concluso a que chegara. Pois a senhora no compreende? Rafael explanou para o auditrio interessado: Segundo a minha intuio, as letras querem dizer: agora deves pregar sem bater pinos. E acentuou que, apesar de algum sacrifcio para a famlia, se dispunha a tentar outro emprego. Precisava de tempo livre. Se isso redundasse em privaes e provaes, afirmava-se pronto para o que desse e viesse. Por fim, declarou-se cansado de bater couro de boi para calados. Aspirava a posio diferente. No horrio justo, a pequena assemblia se entregou s tarefas que, naquela noite, se vinculavam desobsesso. Atividades preparatrias. Preces. E comeou movimentado socorro s entidades enfermas. Martinho ocupava o mdium esclarecedor, que, de quando em quando, orientava os servios, dava idias. Rafael pediu vez para conversar. O instrutor, contudo, recomendou-lhe esperasse. Necessrio desincumbir-se de obrigaes mais urgentes. Entender-se-iam no fim. Com efeito, ao trmino das atividades, Martinho convidou-o palavra. Algo tmido. Provenzano narrou o sonho, referiu-se s letras luminosas que descobrira no firmamento, como que brilhando especialmente para ele, e reasseverou os antigos desejos. Queria ser grande conferencista e prometia consagrar-se, de corpo e alma, aos ensinamentos pblicos do Evangelho. O amigo espiritual, sereno, perguntou sobre a interpretao que ele, o interessado, dera s letras. Rafael repetiu, impvido: agora deves pregar sem bater pinos. O benfeitor espiritual, todavia, pintou expresso de complacncia no rosto do mdium e observou: Efetivamente, Rafael, voc esteve fora do corpo de carne e viu, de fato, a mensagem do plano espiritual... Mas, engana-se, quanto ao que julga ter lido. As letras querem dizer, simplesmente: antes de pregar seja bom primeiro.

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    15 - AUXLIO DO SENHOR Na assemblia dedicada a estudos evanglicos, a parbola do bom samaritano fora a tema essencial. Os companheiros, porm, traziam indagaes variadas, em torno do desenvolvimento medinico. Alguns se iniciaram nas experincias psquicas, ignorando em que provncia de trabalho lhes competia mais dilatada fixao, ao passo que outros se queixavam do tempo despendido, nesse ou naquele setor, sem resultados prticos. Asserenado o ambiente, inado de interpelaes, o irmo Calimrio, amigo desencarnado extremamente afeioado ao crculo, controlou as faculdades psicofnicas de Dona Amanda, mdium veterana da casa, e saudou os circunstantes, dispondo-se a conversar. E as interrogaes chegaram de improviso: - Irmo Calimrio, que ser preciso para merecer mais ampla cobertura da Espiritualidade Superior nas tarefas medianmicas? - De que maneira recolher patrocnio seguro em clarividncia? - Irmo, sei que devemos estudar sempre, se quisermos discernir; entretanto, qual ser o processo de granjear o concurso de mentores competentes no campo da intuio? - E na mediunidade curativa? - Calimrio, como receber a proteo dos Missionrios do Bem, que nos libertem da influncia do mal? - Irmo, h muito tempo ensaio em efeitos fsicos, sem frutos apreciveis... Que me cabe fazer para angariar mais decisivo ampara do Alto? O comunicante, em tom despretensioso, falou sem afetao: - Meus amigos, estou muito distante da posio de orientador; no entanto, rogo perdido a Nosso Senhor Jesus Cristo se vou utilizar a parbola desta noite, no esclarecimento do assunto. E, diante dos companheiros atentos, expressou-se com humildade: - Segundo aprendi, o homem que descia de Jerusalm para Jeric, no episdio do bom samaritano, ao cair em poder dos ladres, que o deixaram semimorto, apelou, em prece muda, para a bondade de Deus. Compadecido, o Todo-misericordioso expediu, sem

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    detena, um mensageiro, que naturalmente carecia de instrumento humano a fim de expressar-se. O preposto da Providncia colocou-se ao lado da vtima, aguardando, ansiosamente, a chegada de algum que se dispusesse a colaborar com ele no piedoso mister. Justamente um sacerdote de grande cincia nas Escrituras, educado nos princpios do amor a Deus sobre todas as coisas e ao prximo como a s mesmo, foi o primeiro a aproximar-se... O encarregado da bno tentou induz-lo benevolncia; todavia, o titular da F, receando atrapalhaes, tratou de estugar o passo e seguiu adiante. Logo em seguida, um levita, igualmente culto, apareceu no stio e o benfeitor das Alturas rogou-lhe cooperao, debalde, porque o zelador da Lei, temendo complicar-se, negou-se a considerar o pedido mental, afastando-se, rpido. Mas um samaritano desconhecido, que viajava sem qualquer rtulo que lhe honorificasse a presena, ao passar por ali assinalou no corao a rogativa que o Emissrio Divino lhe endereava e, deixando-se tomar por sbita compaixo, passou junto dele ao trabalho da assistncia imediata. Limpou o infeliz, estancou-lhe o sangue das feridas e, logo aps, acomodando-o no cavalo, conduziu-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, desembolsou o dinheiro necessrio, pagou-lhe a estalagem e, antes de partir, responsabilizou-se, de modo espontneo, por todas as despesas que viessem a ocorrer no tratamento exigido, correspondendo, eficientemente, expectativa do enviado que viera praticar a beneficncia em nome de Deus... Calimrio pausou, tranquilo, e perguntou: - Qual dos trs parece a vocs o mais digno de ateno no Plano Espiritual? Antnio Pires, o mais amadurecido da reunio, com ar de aluno que j chegara ao objetivo do ensinamento, replicou por todos: - Decerto que o samaritano, obediente ao convite da caridade. O comunicante sorriu com brandura e encerrou: - Ento, meus amigos, faamos ns o mesmo.

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    16 - BELARMINO BICAS Depois da festa beneficente, em que servramos justos, Belarmino Bicas, prezado companheiro a que nos afeioamos, no Plano Espiritual, chamou-me parte e falou, decidido: - Bem, j que estivemos hoje em tarefa de solidariedade, estimaria solicitar um favor... Ante a surpresa que nos assaltou, Belarmino prosseguiu: - Soube que voc ainda dispes de alguma facilidade para escrever aos companheiros encarnados na Terra e gostaria de confiar-lhe um assunto... - Que assunto? - Acontece que desencarnei com cinquenta e oito anos de idade, aps vinte de convico esprita. Abracei os princpios codificados por Allan Kardec, aos trinta e oito, e, como sempre fora irascvel por temperamento, organizei, desde os meus primeiros contactos com a Doutrina Consoladora, uma relao diria de todas as minhas exasperaoes, apontando-lhes as causas para estudos posteriores... Os meus desconchavos, porm, foram tantos que, apesar dos nobres conhecimentos assimilados, suprimi, inconscientemente, vinte e dois anos da quota de oitenta que me cabia desfrutar no corpo fsico, regressando Ptria Espiritual na condio de suicida indireto... Somente aqui, pude examinar os meus problemas e acomodar-me s desiluses... Quantos tesouros perdidos por bagatelas! Quanta asneira em nome do sentimento!... E, exibindo curioso papel, Belarmino acrescentava: - Conte o meu caso para quem esteja ainda carregando a bobagem do azedume! Fale do perigo das zangas sistemticas, insista na necessidade da tolerncia, da pacincia, da serenidade, do perdo! Rogue aos nossos companheiros para que no percam a riqueza das horas com suscetibilidades e amuos, explique ao pessoal na Terra que mau-humor tambm mata!... Foi ento que passei leitura da interessante estatstica de irritaes, que no me furto satisfao de transcrever: Belarmino Bicas Nmero de cleras e mgoas desnecessrias com a especificao das causas respectivas, de 1936 a 1956 1811 em razo de contrariedades em famla; 906 por indispor-se, dentro de casa, em questo de alimentao e higiene; 1614 por altercaes com a esposa, em divergncia na conduta domstica e social; 1801 por motivo de desgostos com os filhos, genros e nora;

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    11 por descontentamento com os netos; 1015 por entrar em choque com chefes de servio; 1333 por incompatibilidade no trato com os colegas; 1012 em virtude de reclamaes a fornecedores e logistas em casos de pouca monta; 614 por mal-entendidos com vizinhos;

    315 por ressentimentos com amigos ntimos;

    1089 por melindres ante o descaso de funcionrios e empregados de instituies diversas; 615 por aborrecimentos com barbeiros e alfaiates; 777 por desacordos com motoristas e passageiros desconhecidos, em viagem de nibus, automveis particulares, bondes e lotaes; 419 por desavenas com leiteiros e padeiros; 820 por malquistar-se com gares em retaurantes e cafs; 211 por ofender-se com dificuldades em servios de telefones; 90 por motivo de controvrsias em casas de diverses; 815 por abespinhar-se com opinies alheias em matria religiosa; 217 por incompreenses com irmos de f, no templo esprita; 901 por engano ou inquietao, diante de pessoas imaginrios ou da perspectiva de

    acontecimentos desagradveis que nunca sucederam. Total: 16.386 exasperaes inteis. Esse, o apanhado das irritaes do prestimoso amigo Bicas: 16.386 dissabores dispensveis em 7.300 dias de existncia, e, isso, por quatro lustros mais belos de sua passagem no mundo, porque iluminados pelos clares do Evangelho Redivivo. Cumpro-lhe o desejo de tornar conhecida a sua experincia que, a nosso ver, to importante quanto as observaes que previnem desequilbrios e enfermidades, embora estejamos certos de que muita gente julgar o balano de Belarmino por mera invencionice de Esprito loroteiro.

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    17 - INFLUNCIA DO BEM Diz voc que os espritas exageram os temas de caridade, lanando livros, escrevendo crnicas, pronunciando conferncias e traando anotaes, em torno da sublime virtude. Assistncia social no ser obra para governo? pergunta voc com a serenidade de quem se julga exonerado de auxiliar o corpo de bombeiros na liquidao de um incndio. E acrescenta: Creio que os desencarnados, a ttulo de benemerncia, no deveriam estimular a preguia e a vagabundagem. No posso dizer que voc fala assim por ser um homem nascido de bero manso, com todas as facilidades do po e da educao, e concordo plenamente com o seu ponto de vista, quanto a esperarmos da ao administrativa soluo adequada aos problemas da ignorncia e da penria. Entretanto, que nadador no estender braos amigos ao banhista que o mar grosso ameaa com a morte simplesmente porque o guarda esteja ocupado ou distrado no posto de salvamento? Alm disso, a caridade ingrediente da paz em todos os climas da existncia, no apenas aliviando os sofredores ou soerguendo cados, mas tambm frustrando crimes e arredando infortnios. Certo que a justia fundamento do Universo; contudo, o amor alma da vida. Quantos enigmas do dio resolvidos num gesto de brandura? Quantas toneladas de sombras, segregadas no tonel do sofrimento, se escoam pela fresta descerrada por um raio de luz? Compreendo que voc, reencarnado qual se encontra, ter dificuldade para entender os obstculos que a bondade dissolve em silncio, mas, deste outro lado da experincia terrestre, somos defrontados, hora a hora, por lies vivas que nos convidam a servir e pensar. O trabalho e a dor, o aviso e a provao fazem muito em benefcio da alma; no entanto, a caridade propica renovao imediata ao destino. O Talmude, alinhando lies de sabedoria, conta que dois aprendizes do Rabi Hanina recusavam sistematicamente aceitar avisos e predies de adivinhos, fssem eles quais fssem. Um dia houve em que, penetrando na floresta, a fim de lenhar, ambos encontraram velho clarividente que viu, em torno deles, vasta coorte de malfeitores desencarnados, desejosos de dar-lhes perseguio e morte.

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    O mago, para no assust-los em demasia com as minudncias da viso, fitou as estrelas qual se buscasse nos astros as palavras que iria pronunciar e pediu-lhes considerassem os riscos a que se expunham, aconselhando-os urgente regresso a casa. Sombrias vaticnios lhes pesavam na marcha. Mais razovel tornar ao aconchego domstico, de vez que provavelmente no sairiam vivos da mata. Riram-se os jovens da advertncia, prosseguindo adiante. Vencido pequeno trecho de estrada, foram defrontados por um velhinho a lhes rogar algum recurso com que pudesse matar a fome. Os rapazes no traziam consigo outro farnel que no fsse um naco de po; todavia, no hesitaram divid-lo com o pedinte que, ali mesmo, suplicou a Deus lhes retribusse a beneficncia. Os improvisados lenhadores, sem maior ateno para com o incidente, muniram-se dos gravetos de que necessitavam e voltaram ao vilarejo, sem o menor contratempo que lhes tisnasse a alegria. Certo homem, contudo, que observara a predio e aguardava os resultados, dirigiu-se ao clarividente, indagando com ironia: - Embusteiro, como explicas teu erro? Os moos retornaram mais felizes que nunca. O ancio, intrigado, procurou os rapazes e, notando-os libertos dos obsessores que se lhes faziam acompanhantes, solicitou permisso para examinar os fardos que traziam e, desatados os feixes de maravalhas, foi encontrada num deles uma serpente morta, cortada ao meio. - Viestes? falou o mago a morte esteve a pique de arrasar-vos... O golpe, porm, foi removido. Que fizestes para merecer a Divina Misericrdia que vos livrou do desastre fatal? Um dos interpelados informou que o nico episdio de que se lembrava era simplesmente o encontro com um velho esfaimado com quem haviam os dois repartido a merenda. O advinho mostrou regozijo indisfarvel e falou para o homem que o criticara: - Tudo agora est claro! Que se pode fazer se a lei de Deus se deixa influenciar por um pedao de po?

    * Desculpar voc se recorro pgina de antigos documentos hebreus para responder sua carta; entretanto, se o conto simples nos fala dos crditos de um pedao de po doado com amor, perante as Leis Divinas, imaginemos o jbilo que reinar entre ns quando soubermos criar a felicidade dos semelhantes, empenhando fraternidade o corao inteiro.

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    18 - VENENO LIVRE Pede voc que os Espritos desencarnados se manifestem sobre o lcool, sobre os arrastamentos do lcool. Muito difcil, entretanto, enfileirar palavras e definir-lhe a influncia. Basta lembrar que a cobra, nossa velha conhecida, cujo bote comumente no alcana mais que uma s pessoa, combatida a vara de ferro, porrete, pedra, armadilha, borralho, gua fervente e boca de fogo, vigiada de perto pela gritaria dos meninos, pela cautela das donas de casa e pela defesa do servio municipal mas o lcool, que destri milhares de criaturas, veneno livre, onde quer que v, e, em muitos casos, quando se fantasia de champanha ou de usque, chega a ser convidado de honra, consagrando eventos sociais. Escorrega na goela de ministros com a mesma sem-cerimnia com que desliza na garganta dos malandros encarapitados na rua. Endoidece artistas notveis, desfibra o carter de abnegados pais de famlia, favorece doenas e engrossa a estatstica dos manicmios; no entanto, diga isso num banquete de luxo e tudo indica que voc, a conselho dos amigos mais generosos, ser conduzido ao psiquiatra, se no for parar no hospcio. Ningum precisa escrever sobre a aguardente, tenha ela o nome de vodca ou de suco de cana, rum ou conhaque, de vez que as crnicas vivas, escritas por ela mesma, esto nos prprios consumidores, largados bebedeiras, nos crimes que a imprensa recama de sensacionalismo, nos ataques da violncia e nos lares destrudos. E se comentaristas de semelhantes demolies devem ser chamados mesa redonda da opinio pblica, indispensvel sejam trazidos fala as vtimas de espancamento no recinto domstico, os homens e as mulheres de vida respeitvel que viram a loucura aparecer de chofre no horror ante o desvario de tutores inconscientes e, sobretudo, os mdicos encanecidos no duro ofcio de aliviar os sofrimentos humanos. Qual! No acredite que ns, pobres inteligncias desencarnadas, possamos grafar com mais vigor os efeitos da calamidade terrvel que escorre, de copinho a copinho. por isso talvez que as tragdias do alcoolismo so, quase sempre, tratadas a estilete de sarcasmo. E creia voc que. a ironia vem de longe. Consta do folclore israelita, numa histria popular, fartamente anotada em vrios pases por diversos autores, que No, o patriarca, depois do grande dilvio, rematava aprestos para lanar terra ainda molhada a primeira vinha, quando lhe apareceu o Esprito das Trevas, perguntando, insolente: - Que desejas levantar, agora? - Uma vinha respondeu o ancio, sereno. O sinistro visitante indagou quanto aos frutos esperados da plantao.

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    - Sim esclareceu o bondoso velho -, sero frutos doces e capitosos. As criaturas podero deliciar-se com eles, em qualquer tempo, depois de colhidos. Alm disso, fornecero milagroso caldo que se transformar facilmente em vinho, saboroso elixir capaz de adormec-las em suaves delrios de felicidade e repouso... - Exijo sociedade nessa lavoura! gritou Satans, arrogante. No, submisso, concordou sem restries e o Gnio do Mal encarregou-se de regar a terra e adub-la, para o justo cultivo. Logo aps, com a inteno de exaltar a crueldade, o parceiro maligno retirou quatro animais da arca enorme e passou a fazer a adubao e a rega com a saliva do bode, com o sangue do leo, com a gordura do porco e com o excremento do macaco. vista disso, quantos se entregam ao vcio da embriaguez apresentam os trejeitos e os berros sdicos do bode ou a agressividade do leo, quando no caem na estupidez do porco ou na momice dos macacos. Esta a lenda; entretanto, ns, meu amigo, integrados no conhecimento da reencarnao, estamos cientes de que o lcool, intoxicando temporariamente o corpo espiritual, arroja a mente humana em primitivos estados vibratrios, detendo-a, de maneira anormal, na condio de qualquer bicho.

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    19 - EM TORNO DA PAZ O relgio tilintou, marcando oito horas, quando Anacleto Silva acordou na manh clara, L fora, o Sol prometia calor mais intenso e a crianada disputava bagatelas como vaga chilreante de passarinhos. Anacleto estirou-se no leito, relaxando os nervos, e, porque iniciaria o trabalho s nove, antes de erguer-se tomou o Evangelho e leu nos apontamentos do Apstolo Joo, captulo catorze, versculo vinte e sete, as sublimes palavras do Celeste Amigo: A paz vos deixo, a minha paz vos dou. No vo-la dou maneira do mundo. No se turbe o vosso corao, nem se atemorize. - Alegro-me na certeza de que a paz do Senhor envolve o mundo inteiro. Onde estiver, receberei o amor do Cristo, que assegura a tranquilidade, em torno do meu caminho. Sei que a presena de Jesus abrange toda a Terra e que a sua influncia nos governa os destinos. Desfrutarei, assim, a paz entre as criaturas. O Eterno Benfeitor est canalizando todas as mentes para a vitria da paz. Por isso, ainda mesmo que os homens me ofendam, neles procurarei enxergar meus irmos que o Divino Poder est transformando para a harmonia geral. Regozijo-me na convico de que o Prncipe da Paz orienta as naes e que, desse modo, me garantir o bem-estar. Recolherei do Cu a bno da calma e permanecerei nos alicerces do entendimento e da retido, junto da Humanidade. Louvo o Senhor pela paz que me envia hoje, esperando que Ele me sustente em sua paz, agora em todos os dias de minha vida. Aps monologar, fervoroso, levantou-se feliz, mas, findo o banho rpido, verificou que a fina cala com que lhe cabia comparecer no escritrio sofrera longo corte de faca. Subitamente transtornado, chamou pela esposa, em voz berrante. Dona Horacina veio, aflita, guardando nos braos uma pequerrucha doente. Viu a pea maltratada e alegou, triste:

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    - Que pena! Os meninos esto solta, e eu ocupada com a pneumonia da Snia. Longe de refletir na grave enfermidade da filhinha de meses, Anacleto vociferou: - Que pena? tudo o que voc encontra para dizer? Ignora, porventura, que esta roupa me custou os olhos da cara? A senhora, sem revidar, dirigiu-se a velho armrio e trouxe-lhe um costume semelhante ao que fora dilacerado. Pouco depois, ao caf, notando a ausncia do leite, Anacleto reclamou, irritadio. - Sim, sim explicou a dona da casa -, no pude enfrentar a fila... Era preciso resguardar a pequena... Silva engoliu alguns palavres que lhe assomavam boca e, quando abriu a porta, na expectativa do lotao, eis que o sogro, velhinho, lhe aparece, de chapu destra encarquilhada, rogando, humildemente: - Anacleto, perdoe-me a intromisso; contudo, to grande a nossa dificuldade hoje em casa que venho pedir-lhe quinhentos cruzeiros por emprstimo... - Ora, ora... respondeu o genro, evidenciando clera injusta onde tem o senhor a cabea? Se eu tivesse quinhentos cruzeiros no bolso, no sairia agora para encarar a ona da vida. Nisso um carro buzinou reduzida distncia, passando, porm, de largo, sem atender-lhe ao sinal. - Malditos! como seguirei para a repartio? Malditos! malditos!... Outro carro, no entanto, surgiu rpido, e Silva acomodou-se, enfim. Mas, enquanto o veculo deslizava no asfalto, confrontou a prpria conduta com as afirmaes que fizera ao despertar, e s ento reconheceu que ele, to seguro em exaltar a harmonia do mundo, no suportara sem guerra uma cala rasgada; to convicto em prometer a si mesmo o equilbrio no Senhor, no se conformara ante a refeio incompleta; to pronto em proclamar o seu prvio perdo s ofensas humanas, no soubera acolher com gentileza a solicitao de um parente infeliz, e to solene em asseverar-se nos alicerces do entendimento, no hesitara em descer da linguagem nobre para a que condiz com a gria que amaldioa... E, envergonhado por haver cado to apressadamente da serenidade perturbao, comeou a perceber que, entre ele e a Humanidade, surgia o lar, reclamando-lhe assistncia e carinho, e que jamais receberia a paz do Cristo por fora, sem se dispor a recolh-la por dentro.

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    20 - NOTA EXPLICATIVA Meu amigo, voc estranha, sensibilizado, que certo morto inteligente haja olvidado o compromisso de identificar-se, em mensagem pessoal, a determinado companheiro vivo. Refere-se ao contrato de dois escritores respeitveis que os interesses afetivos entrelaaram, profundamente, atravs de tertlias literrias. Um, frente da morte, prometeu ao outro, mergulhado nas correntes da vida carnal, que voltaria das pesadas guas do Estige, com noticirio elegante e compreensvel. Preliminarmente, porm, o amigo morto leria, em espetculo de grande estilo, certa ordem de palavras que o amigo vivo manteria em segredo no cofre forte. Reconhecido, ento, pelos poderes divinatrios, o autor desencarnado, promovido a orculo, passaria condio de novo Marco Polo, com rdio e televiso para todos os recantos do mundo. Com semelhante realizao, em seu parecer que eu prezo muito, o Espiritismo salvador seria respeitado em toda parte. Todavia, o notvel escritor desencarnado, em quebrando os selos do tmulo, pareceu desmemoriado e distrado e no se arriscou execuo da promessa. E voc, maneira de muita gente, duvidou e sofreu, porque aguardava a soluo ao problema da imortalidade, assim como se espera numa arena esportiva o resultado de uma partida de futebol. O literato encarnado, copiando a tartaruga que de modo algum aceita a existncia de outra praia, alm daquela em que respira, enquanto dispe de abrigo na carapua, sorriu e negou, embriagado pelas grossas volutas de incenso narcotizante da vaidade, e vocs, os torcedores da pugna entre dois mundos, permaneceram desapontados. Creia, porm, que a morte s simples mergulho na vida espiritual, para quem soube ser realmente simples na experincia terrestre. Considerando, contudo, a complexidade de nossos desejos e os complicados processos de luta a que nos afeioamos, ningum julgue que largar o corpo traduza ascenso ao vu. Enrola-se-nos a vida mental em mltiplos caprichos e, quando suspiramos pela libertao verdadeira, eis que a nossa independncia jaz subordinado aos emaranhados novelos de nossos pensamentos que resultam em compromissos e prises de variada espcie. Somos bales cativos ao lastro de ns mesmos, incapazes de vo mais elevado no clima universalista, ainda mesmo quando sejamos portadores de intelectualidade brilhante, a modo de ave rara pela plumagem ou pelo canto, dentro da floresta. Nossa