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FREDERICK FORSYTH SEM PERDÃO Título original em inglês: NO COMEBACKS Tradução de Pinheiro de Lemos Prefácio Mark Sanderson era rico, poderoso, ainda jovem, vigoroso, irresistível para as mulheres. Mas não se sentia feliz. Como um homem inteligente, que tinha a coragem de se analisar a si mesmo, descobriu que desejava uma mulher que não se impressionasse com o seu poder e riqueza. Ao conhecer Angela Summers, descobriu o sonho de tantos anos. Mas havia obstáculos e Mark Sanderson achou que o seu dinheiro a tudo poderia superar. Mas ninguém pode prever os problemas que uma chuva acarreta... Harkishan Ram Lal saiu do Panjab, na Índia, a fim de estudar Medicina e poder depois servir a seu povo. Mas precisava desesperadamente de dinheiro para concluir o último ano da faculdade e por isso aceitou um emprego clandestino num trabalho de demolição. E quando um conflito surgiu, ele não sabia que não existiam cobras na Irlanda... Murgatroyd era gerente de uma agência bancária na Inglaterra, sufocado ao peso da mulher opressiva, num casamento sem filhos e sem felicidade. E quando o banco lhe ofereceu como prêmio uma semana de férias numa ilha tropical do Oceano Índico, sua vida mudou inteiramente, ao conhecer O Imperador... Bill Chadwick foi vítima de insinuações, num artigo de jornal, de que era cúmplice de operações fraudulentas de uma firma que faliu. Os amigos se afastaram, começou a perder negócios, sua vida ficou profundamente prejudicada. O jornal se recusava a retratar- se e um processo seria longo e dispendioso. Mas tinha de haver uma solução... Um jogo de pôquer num trem, entre passageiros que não se conheciam até aquele momento, pode ser uma distração perfeitamente inocente. Ou pode não ser. O Juiz Comyn não podia tirar qualquer conclusão de seu jogo de pôquer com um homenzinho magro e um

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FREDERICK FORSYTH

SEM PERDÃO Título original em inglês: NO COMEBACKS Tradução de Pinheiro de Lemos Prefácio Mark Sanderson era rico, poderoso, ainda jovem, vigoroso, irresistível para as

mulheres. Mas não se sentia feliz. Como um homem inteligente, que tinha a coragem de se analisar a si mesmo, descobriu que desejava uma mulher que não se impressionasse com o seu poder e riqueza. Ao conhecer Angela Summers, descobriu o sonho de tantos anos. Mas havia obstáculos e Mark Sanderson achou que o seu dinheiro a tudo poderia superar. Mas ninguém pode prever os problemas que uma chuva acarreta...

Harkishan Ram Lal saiu do Panjab, na Índia, a fim de estudar Medicina e poder depois servir a seu povo. Mas precisava desesperadamente de dinheiro para concluir o último ano da faculdade e por isso aceitou um emprego clandestino num trabalho de demolição. E quando um conflito surgiu, ele não sabia que não existiam cobras na Irlanda...

Murgatroyd era gerente de uma agência bancária na Inglaterra, sufocado ao peso da mulher opressiva, num casamento sem filhos e sem felicidade. E quando o banco lhe ofereceu como prêmio uma semana de férias numa ilha tropical do Oceano Índico, sua vida mudou inteiramente, ao conhecer O Imperador...

Bill Chadwick foi vítima de insinuações, num artigo de jornal, de que era cúmplice de operações fraudulentas de uma firma que faliu. Os amigos se afastaram, começou a perder negócios, sua vida ficou profundamente prejudicada. O jornal se recusava a retratar-se e um processo seria longo e dispendioso. Mas tinha de haver uma solução...

Um jogo de pôquer num trem, entre passageiros que não se conheciam até aquele momento, pode ser uma distração perfeitamente inocente. Ou pode não ser. O Juiz Comyn não podia tirar qualquer conclusão de seu jogo de pôquer com um homenzinho magro e um

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padre, durante uma viagem pela Irlanda... Este novo livro de Frederick Forsyth, que leva o título do primeiro dos dez

esplêndidos contos que o compõem, revela para o leitor brasileiro outra faceta do gênio do romancista inglês, que aqui se apresenta como um contista excepcional.

SEM PERDÃO Mark Sanderson gostava das mulheres. Da mesma forma como gostava dos steaks

do gado de corte Aberdeen Angus, sempre ao ponto, acompanhados por uma salada de alface. Consumia a ambos com igual prazer, se bem que passageiro. E cada vez que se sentia um pouco esfomeado, por uma coisa ou outra, telefonava para o fornecedor apropriado e encomendava o que precisava no momento, a ser enviado para a sua penthouse. Podia se dar a esse luxo, pois era várias vezes milionário. E em libras esterlinas, diga-se de passagem, o que sempre é válido destacar nestes tempos conturbados, pois custam cada uma pelo menos dois dólares.

Como a maioria dos homens ricos e bem-sucedidos, Mark Sanderson tinha três vidas: a vida pública e profissional, como o magnata que conquistara a City, o centro financeiro de Londres; a vida particular, que não é necessariamente o que nisso está implícito, pois alguns homens levam uma vida particular sob os refletores da publicidade; e a vida secreta.

A primeira era regularmente noticiada nas colunas financeiras dos jornais e nos programas de TV. Ao final dos anos 50, ele começara a trabalhar para um corretor imobiliário, no West End de Londres, com pouca educação formal, mas com um cérebro excepcional para descobrir um negócio lucrativo. Aprendera as regras do jogo em dois anos. E, o que era ainda mais importante, aprendera também a violá-las legalmente. Realizara o seu primeiro negócio sozinho aos 23 anos de idade, alcançando um lucro de 10 mil libras com a venda de uma propriedade residencial em St. John's Wood. Fundara a Hamilton Holdings, que 14 anos depois continuava a ser o centro de sua riqueza. Dera o nome à empresa em homenagem ao primeiro negócio próprio que realizara, pois a propriedade ficava em Hamilton Terrace. Fora a sua última atitude sentimental. No início dos anos 60, deixara o mercado de compra e venda de imóveis residenciais, com seu primeiro milhão de libras, passando a dedicar-se à incoporação de prédios de escritórios. Em meados dos anos 60, já valia quase 10 milhões de libras e começara a diversificar seus investimentos. Seu toque de Midas era tão atilado em atividades financeiras, bancárias, na indústria química ou em balneários do Mediterrâneo quanto fora em St. John's Wood. Os jornalistas financeiros noticiavam, as pessoas noticiavam e, em decorrência das ações de seu conglomerado de dez empresas, sob o comando da Hamilton Holdings, subiam constantemente.

O noticiário sobre a sua vida particular podia ser encontrado nos mesmos jornais, algumas páginas antes. Um homem com uma penthouse em Regent's Park, uma mansão elisabetana em Worcestershire, castelo no Vale do Loire, villa em Cap d'Antibes, iate, Lamborghini, Rolls Royce e uma sucessão aparentemente interminável de jovens e atraentes starlets fotografadas em sua companhia, ou imaginadas em sua cama redonda de quatro metros, tende a exercer um fascínio compulsivo sobre os colunistas sociais. Notícias sobre uma audiência de divórcio de um milhão de dólares de uma artista de cinema ou um processo de paternidade de uma obscura candidata a Miss Mundo poderiam tê-lo arruinado nos anos 50, mas no início dos anos 70 servia simplesmente para provar – se é que isso era necessário e aparentemente hoje em dia é – que ele era capaz de tais façanhas, o que constitui algo extraordinário o bastante para despertar admiração entre as pessoas "In" do

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West End de Londres. Mark Sanderson era de fato um homem que vivia nas colunas. A vida secreta era algo diferente e podia ser resumida numa só palavra: tédio. Mark

Sanderson sentia-se profundamente entediado com toda a caçada feminina. O lema que fizera para si mesmo, "O que Mark quer, Mark consegue", transformara-se num gracejo amargo. Aos 37 anos, até que era atraente, embora um tanto carrancudo, ao estilo Brando, fisicamente capaz e terrivelmente solitário. Sabia que queria apenas uma e não centenas de mulheres, uma só mulher que lhe desse filhos e uma casa no campo a que pudesse chamar de lar. Sabia também que era extremamente improvável encontrar uma mulher assim, pois tinha uma idéia definida do que queria e jamais encontrara nenhuma que correspondesse às suas expectativas, em mais de dez anos. Como a maioria dos conquistadores ricos, Mark Sanderson só ficaria impressionado por uma mulher que, sinceramente, não se impressionasse com ele. Ou, pelo menos, não se impressionasse com a sua personalidade pública, a que representava dinheiro, poder e reputação. Ao contrário da maioria dos conquistadores, ele ainda tinha capacidade suficiente de auto-análise para admitir isso, pelo menos para si mesmo. Admiti-lo publicamente significaria a morte pelo ridículo.

Ele tinha a certeza quase absoluta que jamais encontraria uma mulher assim, até o início do verão. Aconteceu numa festa de caridade, o tipo de coisa em que todos se entendem invariavelmente e o pequeno saldo que sobra do dinheiro do ingresso dá para enviar uma tigela de leite para Bangladesh. Ela estava do outro lado da sala, escutando um homem pequeno e gordo, que exibia um charuto imenso para compensar. O meio sorriso sereno que a mulher tinha no rosto não dava qualquer indicação se achara graça da anedota ou dos trejeitos do homem, que tentava dar uma olhada melhor em seu decote.

Sanderson aproximou-se e, graças ao aceno de cabeça para um produtor de documentários, conseguiu ser apresentado. Ela se chamava Angela Summers. A mão que apertou a dele era fria e comprida, com unhas perfeitas. A outra mão, segurando o que parecia ser um copo com gim e tônica, mas que no final das contas era apenas tônica, exibia uma fina aliança de ouro no terceiro dedo. Sanderson não se preocupou com isso, pois as mulheres casadas eram tão fáceis quanto quaisquer outras. Não demorou a enxotar o produtor e levou-a para um canto, querendo ter uma conversa mais sossegada. Fisicamente, Angela Summers o impressionara, o que era raro, além de excitá-lo, o que era comum.

Era uma mulher alta e empertigada, com um rosto sereno e atraente, se bem que não fosse uma beleza em moda. O corpo certamente estava fora de moda na obsessão pela magreza dos anos 70, com seios generosos, cintura fina, quadris amplos e pernas compridas. Os cabelos castanhos lustrosos estavam enrolados atrás da cabeça; pareciam ser mais saudáveis do que dispendiosos. Usava um vestido branco simples, que realçava o dourado da pele, não ostentava jóias e via-se apenas um toque de maquilagem em torno dos olhos, o que era mais do que suficiente para distingui-la das outras mulheres da sociedade presentes. Sanderson calculou que ela devia ter 30 anos e posteriormente descobriu que tinha 32 anos.

Presumiu que o bronzeado provinha das habituais férias de inverno nos centros de esquiação, prolongando-se até abril, ou de um cruzeiro de primavera pelas Caraíbas, indicando que ela ou o marido dispunham de dinheiro suficiente para viverem assim, o que também acontecia com outras mulheres na sala. Sanderson estava errado nas duas suposições. Descobriu mais tarde que ela e o marido viviam numa pequena casa na costa espanhola, com o pouco que ele conseguia ganhar com seus livros sobre pássaros, acrescido do dinheiro recebido pelas aulas de inglês que ela dava.

Por um momento, Mark Sanderson pensou também, pelos cabelos e olhos escuros, o porte altivo e a pele dourada, que Angela Summers era espanhola de nascimento. Mas ela era tão inglesa quanto ele. Angela contou que viera visitar os pais em Midlands e uma antiga colega de colégio sugerira que passasse uma semana em Londres, antes de voltar à Espanha. Era uma pessoa fácil de conversar. Não o lisonjeou, o que aprazia ao ânimo dele,

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assim como também não desatava a rir exageradamente ao ouvir algum comentário ligeiramente divertido.

– O que acha de nossa sociedade de West End? – perguntou Sanderson, os dois de costas para uma parede, observando a festa.

– Provavelmente o que eu não deveria pensar – respondeu Angela, pensativa. – Parecem um bando de periquitos – murmurou Sanderson, bruscamente. Angela alteou uma sobrancelha. – Sempre pensei que Mark Sanderson fosse um dos pilares dessa sociedade. Ela estava provocando-o, gentilmente, mas também com firmeza. – Será que os nossos feitos chegam até a Espanha? – Até mesmo na Costa Blanca podemos encontrar o Daily Express – respondeu

Angela, impassível. – Inclusive a vida e aventuras de Mark Sanderson? – Até mesmo isso. – Está impressionada? – Deveria ficar? – Não. – Pois então não estou. A resposta deixou Mark Sanderson aliviado. – Fico contente por isso. Mas eu poderia saber por quê? Angela pensou por um instante. – É um mundo falso, artificial. – Inclusive eu? Sanderson contemplou o suave subir e descer dos seios sob o vestido branco de

algodão, enquanto ela corria os olhos ao redor. – Não sei – disse Angela, muito séria. – Desconfio que, se tivesse uma

oportunidade, poderia se tornar uma boa pessoa. A resposta deixou Sanderson aturdido e ele disse, bruscamente: – Pode estar enganada. Mas Angela limitou-se a sorrir, tolerantemente, como se para um garotinho rebelde.

Os amigos de Angela vieram buscá-la alguns minutos depois e cumprimentaram Sanderson efusivamente.

Estavam de saída. No caminho para o saguão, Sanderson sussurrou um convite para jantarem fora na noite seguinte. Há anos que não fazia tal convite dessa maneira. Angela não fez qualquer comentário sobre os perigos de ser vista em sua companhia, certamente presumindo que ele a levaria a algum lugar que não houvesse fotógrafos. Ela pensou no convite por um momento e depois disse:

– Está certo. Acho que será agradável. Sanderson pensou nela durante toda aquela noite, ignorando a modelo esquelética e

esperançosa que encontrara no início da madrugada no Annabel's. Ficou deitado de costas, inteiramente nu, olhando para o teto, a mente povoada por uma visão de fantasia dos cabelos castanhos lustrosos estendidos sobre o travesseiro ao lado, a pele dourada se arrepiando ao seu contato. Estava disposto a apostar que ela dormia serenamente, como parecia fazer tudo o mais.

Sanderson estendeu a mão no escuro para acariciar os seios da modelo, mas encontrou apenas o peito achatado de uma mulher que passava fome em dietas, ouvindo uma exclamação exagerada de excitamento simulado. Deixou a cama e foi para a cozinha, preparando um café.

Foi tomá-lo na sala de estar às escuras. Ainda estava sentado ali, olhando sobre as árvores do parque, quando o sol se levantou acima dos distantes pântanos Wanstead.

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Uma semana não é muito tempo para se ter um romance, mas pode ser suficiente para mudar uma vida. Ou duas ou mesmo três. Na noite seguinte, Sanderson foi ao encontro de Angela, que desceu para encontrá-lo no carro. Os cabelos estavam presos no alto da cabeça, ela usava uma blusa branca franzida, com mangas bufantes, terminando em rendas nos punhos, o cinto preto largo e a maxissaia preta. O traje deixava-a com uma aparência eduardiana antiquada que Sanderson achou excitante, porque contrastava com os pensamentos que acalentara em relação a ela na noite anterior.

Angela falava com simplicidade, mas com inteligência. E sabia escutar quando ele falava a respeito de negócios, o que raramente acontecia com as mulheres. À medida que a noite foi avançando, Sanderson foi compreendendo que o que já sentia por ela não era uma atração passageira nem mesmo simples desejo. Admirava-a. Ela possuía uma grande calma interior, um equilíbrio e uma serenidade que deixavam-no descansado e relaxado.

Sanderson descobriu-se falando mais e mais livremente a respeito de coisas que geralmente guardava para si, como as suas atividades financeiras, o tédio com a sociedade permissiva, que ao mesmo tempo desprezava e desfrutava, como uma ave de rapina. Angela parecia não apenas saber como também compreender, o que é muito mais importante numa mulher do que o mero conhecimento. Ainda estavam conversando calmamente numa mesa do canto depois da meia-noite, enquanto o restaurante se preparava para fechar. Angela recusou, da maneira mais delicada possível, subir até a penthouse para um último drinque, o que há anos não acontecia com Sanderson.

No meio da semana, Sanderson já admitia para si mesmo que estava apaixonado como um garoto de 17 anos. Perguntou a Angela qual era o seu perfume predileto. Ela respondeu que era Miss Dior e que, às vezes, comprava um vidro pequeno no avião, livre de impostos. Sanderson mandou um subordinado a Bond Street e, naquela noite, presenteou-a com o maior vidro de Miss Dior que havia em Londres. Ela aceitou com um prazer em que não havia qualquer afetação e depois apressou-se em protestar por causa do tamanho.

– É muito exagerado. Sanderson sentiu-se embaraçado e murmurou: – Eu queria lhe dar algo especial... – Deve ter custado uma fortuna – disse Angela, em tom de censura. – Isso não faz qualquer diferença para mim. – Não duvido e acho muita gentileza da sua parte. Mas nunca mais deve comprar

coisas assim. É uma extravagância inadmissível. Sanderson telefonou para a sua mansão de Worcestershire antes do final da semana

e determinou que ligassem o sistema de aquecimento da piscina. No sábado, seguiram para lá de carro, a fim de passarem o dia. Tomaram um banho de piscina, apesar do vento frio de maio, que obrigou-o a mandar que instalassem telas de vidro móveis em torno de três quartos da piscina. Quando Angela saiu do vestiário, num maiô branco inteiro, Sanderson prendeu a respiração abruptamente. Ela era uma mulher sensacional, sob todos os aspectos, pensou ele.

A última noite em que saíram foi na véspera da partida de Angela para a Espanha. Na escuridão do Rolls, estacionado numa rua transversal nas proximidades do quarteirão em que ela estava hospedada na casa da amiga, beijaram-se por um longo tempo. Mas quando Sanderson tentou enfiar a mão sob o vestido, Angela tratou de tirá-la, gentil mas firmemente, largando-a no colo dele.

Sanderson propôs que ela largasse o marido e pedisse o divórcio, para se casarem. Como era evidente que ele estava falando a sério, Angela encarou a sugestão também a sério e sacudiu a cabeça.

– Eu não poderia fazer isso.

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– Eu a amo. E não é apenas uma paixão passageira, mas sim absoluta, total. Sou capaz de fazer qualquer coisa por você.

Angela olhou fixamente para a frente, através do pára-brisa, contemplando a rua escura.

– Não duvido, Mark. E é por isso mesmo que não deveríamos ter ido tão longe. Eu deveria ter percebido antes e parado de vê-lo.

– Você me ama? Pelo menos um pouco? – Ainda é muito cedo para dizer. Não posso ser pressionada a responder desse jeito. – Mas poderia me amar? Agora ou algum dia? E, novamente, Angela teve o senso feminino de encarar a pergunta a sério. – Acho que poderia. Ou melhor, poderia tê-lo amado. É muito diferente do que

aparenta e do que a sua reputação tenta estabelecer. Por baixo de todo o cinismo, é realmente um tanto vulnerável.

E isso é ótimo. – Pois então largue o seu marido e case comigo. – Não posso fazer isso. Sou casada com Archie e não posso deixá-lo. Sanderson sentiu um impulso de raiva contra o homem desconhecido na Espanha,

que se interpunha em seu caminho. – O que ele tem que eu não posso oferecer-lhe? Angela sorriu, um tanto tristemente. – Nada. Archie, na verdade, é um tanto fraco e não muito eficaz... – Então por que não o larga? – Porque ele precisa de mim. – Também preciso. Ela sacudiu a cabeça. – Não, não precisa realmente. Você me quer, mas pode sobreviver sem mim. Archie

não pode. Não tem forças suficientes para isso. – Não apenas a quero, Angela. Eu a amo, com uma intensidade maior do que

qualquer outra coisa que já me aconteceu antes. Eu a adoro e desejo. Depois de uma pausa prolongada, ela murmurou: – Não está compreendendo, Mark. As mulheres amam ser amadas, adoram ser

adoradas. E desejam ser desejadas. Mais do que todas essas coisas juntas, porém, necessitam ser necessárias. E Archie precisa de mim, como do ar que respira.

Sanderson esmagou o seu Sobranie no cinzeiro. – E por isso fica com ele... "até que a morte nos separe". Angela não reagiu à ironia, limitando-se a acenar com a cabeça e virar-se para fitá-

lo. – É justamente isso. Até que a morte nos separe. Lamento muito, Mark, mas é assim

que eu sou. Em outra ocasião, em outro lugar, e se eu não estivesse casada com Archie, poderia ter sido diferente e provavelmente seria. Mas sou casada com o meu marido e ponto final.

Angela partiu no dia seguinte. Sanderson mandou seu motorista levá-la ao aeroporto, a fim de pegar o avião para Valência.

Há muitas gradações entre amor e necessidade, paixão e desejo. Qualquer um desses sentimentos pode tornar-se uma obsessão na mente de um homem. No caso de Mark Sanderson, todas as quatro coisas foram se transformando em obsessão, que aumentou com a solidão crescente, enquanto maio virava junho. Nunca antes fora-lhe recusada qualquer coisa. E, como a maioria dos homens de poder, ampliado ao longo de uma década, tornara-se um aleijado moral. Para ele, havia etapas lógicas e precisas do desejo à determinação,

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concepção, planejamento e execução. E tudo terminava inevitavelmente em aquisição. No início de junho, Mark Sanderson decidiu adquirir Angela Summers. E a frase que lhe martelava incessantemente a cabeça, durante o estágio de concepção do método, era do ritual cristão: até que a morte nos separe. Se Angela fosse uma mulher diferente, impressionada por riqueza, luxo, poder, posição social, não haveria qualquer problema. Por um lado, ele poderia ofuscá-la com a riqueza suficiente para conquistá-la; por outro, Angela seria uma mulher diferente e ele não ficaria tão obcecado. Mas ele estava começando a dar voltas num círculo e isso acabaria por levá-lo à loucura. E só havia um meio de romper o círculo.

Sanderson alugou um pequeno apartamento no nome de Michael Johnson, entrando em contato com a administradora pelo telefone e pagando um mês de aluguel e um mês de depósito em dinheiro, através de uma remessa postal registrada. Explicando que chegaria a Londres de madrugada, pediu que deixassem a chave debaixo do capacho.

Usando o apartamento como base, entrou em contato com uma agência de investigação de Londres, do tipo que não queria saber se o objetivo era ou não legal, informando o que desejava.

Tomando conhecimento de que o cliente queria permanecer anônimo, a agência comunicou que precisava receber dinheiro adiantado. Sanderson mandou 500 libras em dinheiro, por entrega especial.

Uma semana depois, chegara uma carta para o Sr. Johnson, informando que a missão já fora concluída e que o custo se elevava a mais 250 libras. Sanderson enviou o dinheiro pelo correio e, três dias depois, recebeu o dossiê que encomendara. Havia uma biografia sumária que Sanderson leu rapidamente, uma fotografia tirada da capa de um livro sobre pássaros do Mediterrâneo, que há muito saíra de circulação, após vender apenas algumas dezenas de exemplares, várias outras fotos mais recentes, tiradas com uma teleobjetiva. Mostravam um homem pequeno, de ombros estreitos, bigode fino, queixo débil. O Major Archibald Clarence Summers ("Ela não podia abandonar o major!", pensou Sanderson, furiosamente, lembrando-se que fora apenas cabo durante o serviço militar), oficial britânico expatriado, vivia numa pequena villa a menos de um quilômetro da costa, nos arredores de uma aldeia espanhola que ainda não se transformara em atração turística, na metade do caminho entre Alicante e Valência. Havia diversas fotos da villa e finalmente um resumo da rotina ali: o café da manhã no pequeno pátio, as visitas matutinas da mulher ao Castillo, para ensinar inglês às três filhas da condessa, o seu banho de sol e mergulhos na praia entre três e quatro horas da tarde, invariavelmente, enquanto o major trabalhava em suas anotações sobre os pássaros da Costa Blanca.

Ele iniciou o estágio seguinte comunicando ao pessoal do escritório que permaneceria em casa até segunda ordem, mas mantendo um contato diário pelo telefone. A providência agora era mudar sua aparência.

Um cabeleireiro que anunciava no Gay News foi de extrema ajuda, cortando os cabelos compridos de Sanderson para um estilo bem rente, tingindo o castanho-escuro natural para um louro claro. A operação levou mais de uma hora, duraria por cerca de duas semanas e foi acompanhada por arrulhos de admiração do cabeleireiro.

Sanderson seguiu direto para a garagem subterrânea de seu prédio e tomou o elevador para o apartamento, evitando o porteiro do saguão. Telefonou para um contato em Fleet Street, a rua dos principais jornais ingleses, obtendo o nome e endereço de uma das mais eminentes bibliotecas de Londres, especializadas em assuntos contemporâneos. Possuía uma seção excepcional de obras de referências e uma abundante coletânea de recortes de jornais e revistas. Em três dias, Sanderson obteve uma licença de leitura, em nome de Michael Johnson.

Começou com o título geral de "Mercenários". Havia diversos subtítulos e índices

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remissivos, como "Mike Hoare", "Robert Denard", "John Peters" e "Jacques Schramme". Havia outras pastas sobre Catanga, Congo, Iêmen, Nigéria e Biafra, Rodésia e Angola. Sempre que um livro era mencionado, ele anotava o nome, ia à seção da biblioteca geral, retirava o volume e lia. Havia livros como History of Mercenaries, de Anthony Mockler, Congo Mercenary, de Mike Hoare, e Firepower, que tratava exclusivamente de Angola.

Depois de uma semana, um nome começou a emergir do emaranhado de retalhos. O homem participara de três campanhas e até mesmo o mais notório dos autores falava dele cautelosamente. Ele não dera entrevistas e não havia qualquer fotografia sua nos arquivos. Mas era inglês. Sanderson tinha de supor que ele se encontrava em algum lugar de Londres.

Anos antes, quando assumira o controle de uma companhia, cujo principal patrimônio era a participação em outros empreendimentos, Sanderson adquirira também diversas pequenas firmas comerciais, entre as quais uma importadora de charutos, um laboratório de processamento de filme e uma agência literária. Nunca se dera ao trabalho de livrar-se dessas firmas. Agora, foi na agência literária que descobriu o endereço particular do autor de um dos livros de memórias que lera na biblioteca. O editor original do homem não vira motivo para ficar desconfiado. O endereço era o mesmo para o qual os minguados cheques de direitos autorais eram outrora enviados.

Ao visitar o mercenário/escritor, sob o pretexto de ser da própria editora, Sanderson deparou com um homem que há muito desmoronara e se entregara à bebida, um homem em decadência, vivendo apenas de recordações. O antigo mercenário acalentou a esperança de que a visita pudesse anunciar uma reedição e mais cheques de direitos autorais. Ficou visivelmente desapontado quando soube que não era o caso. Mas voltou a se animar com a menção de uma substancial recompensa por uma informação.

Apresentando-se como Mr. Johnson, Sanderson explicou que a editora ouvira falar de um certo colega do antigo mercenário que estaria pensando em publicar sua própria história. O único problema era o paradeiro do homem...

O ex-mercenário soltou um grunhido ao ouvir o nome. – Com que então ele vai sair limpo, hem? Isso me surpreende. Ele não foi capaz de prestar qualquer ajuda até a sexta dose de uísque e a sensação

de um maço de notas na mão. Rabiscou num pedaço de papel e entregou-o a Sanderson. – Quando o filho da mãe está em Londres, sempre bebe neste lugar. Sanderson foi até lá naquela noite, um lugar tranqüilo, por trás da Earl's Court. O

homem que procurava apareceu na segunda noite. Sanderson não vira qualquer fotografia dele, mas havia uma descrição em um dos livros de memórias de mercenários, inclusive da cicatriz no queixo.

Além disso, o barman cumprimentou-o por um primeiro nome que também combinava. Era um homem alto e esguio, ombros largos, parecia estar em perfeitas condições físicas. No espelho por trás do bar, Sanderson observou o reflexo dos olhos sombrios e da boca mal-humorada, por cima da caneca de cerveja. Seguiu o homem até em casa, num quarteirão de apartamentos, a 400 metros de distância.

Quando bateu na porta, dez minutos depois de observar da rua a luz se apagar lá dentro, o mercenário estava de camiseta e calça escura. Sanderson notou que, antes de abrir a porta, o homem apagara a luz em seu próprio vestíbulo, ficando imerso nas sombras. A luz no corredor iluminava o visitante.

– Mr. Hughes? – indagou Sanderson. O homem alteou uma sobrancelha. – O que você quer? – Meu nome é Johnson... Michael Johnson. – Quero ver o mandado judicial – disse o homem, autoritariamente. – Não se preocupe. Sou um cidadão particular. Posso entrar?

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– Quem lhe disse onde poderia me encontrar? – indagou Hughes, ignorando a pergunta.

Sanderson forneceu o nome do seu informante. E acrescentou: – É verdade que ele não vai se lembrar disso por mais de 24 horas. Anda bebendo

tanto que atualmente não consegue recordar nem o próprio nome. Uma insinuação de sorriso apareceu no canto da boca de Hughes, mas não havia na

expressão qualquer humor. – Está certo. Isso combina com o que eu sei. Ele sacudiu a cabeça na direção do interior do apartamento. Sanderson passou por

ele, entrando na sala. Era esparsamente mobiliada, em péssimo estado, ao estilo de milhares de apartamentos de aluguel na região de Londres. Havia uma mesa bem no meio. Hughes, logo atrás dele, gesticulou para que Sanderson sentasse à mesa. E depois sentou-se em frente a Sanderson.

– Qual é o problema? – Preciso que me façam um trabalho. Um contrato. Creio que é assim que chamam

um assassinato. Hughes fitou-o atentamente, sem qualquer mudança de expressão. E perguntou,

depois de um momento: – Você gosta de música? Sanderson ficou aturdido. Acenou com a cabeça. – Pois então vamos ouvir alguma música. Hughes levantou e foi até um rádio portátil, numa mesa perto da cama, no canto.

Enquanto ligava o rádio, a outra mão tateava por baixo do travesseiro. Quando ele se virou, Sanderson descobriu-se a olhar para o cano de uma automática Colt 45. Ele engoliu em seco, respirou fundo. A música espalhou-se pela sala, enquanto Hughes aumentava o volume do rádio. O mercenário abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira, os olhos ainda fixados em Sanderson, por cima da automática. Pegou um bloco e um lápis, voltou para junto da mesa. Escreveu três palavras na folha de cima do bloco, virando na direção de Sanderson. A ordem era simples: "Tire as roupas".

Sanderson sentiu que o estômago se contraía. Ouvira falar que homens assim podiam ser pervertidos e cruéis. Hughes gesticulou com a arma para que Sanderson se afastasse da mesa.

Sanderson obedeceu. Tirou o paletó, a gravata e a camisa, largando no chão. Não estava de colete. A arma tornou a gesticular, para baixo. Sanderson desceu o zíper da calça e deixou-a cair no chão também. Hughes observava sem qualquer expressão. E finalmente falou:

– Muito bem, pode se vestir. Ainda empunhando a arma, mas apontando para o chão, ele foi até o canto e

abaixou o volume da música que saía pelo rádio. Voltou à mesa e acrescentou: – Jogue-me o paletó. Já vestido outra vez com a calça e a camisa, Sanderson pôs o paletó em cima da

mesa. Hughes apalpou-o. – Pode vesti-lo agora. Sanderson o fez e depois tornou a sentar. Estava mesmo precisando. Hughes sentou

diante dele, largou a automática em cima da mesa, perto da sua mão direita, acendeu um cigarro francês.

– Por que tudo isso? – indagou Sanderson. – Pensou que eu estava armado? Hughes sacudiu a cabeça lentamente. – Percebi logo que não estava. Mas se estivesse com um microfone escondido no

corpo, eu enrolaria o fio nos seus culhões e apertaria até o fim, depois mandaria a gravação

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para o seu patrão. – Acontece que não estou armado, não estou gravando coisa nenhuma e não tenho

patrão. Emprego a mim, às vezes a outros. E estou falando sério, tenho trabalho a fazer.

Estou disposto a pagar muito bem. E também sou discreto. Não tenho outro jeito. – Não é suficiente para mim. Parkhurst está cheia de homens duros que confiaram

em gente de fala macia, mas sem muito bom senso. – Não é a você que estou querendo – declarou Sanderson, calmamente, fazendo com

que Hughes novamente alteasse uma sobrancelha. – Não quero ninguém que viva na Inglaterra ou tenha raízes aqui. Eu próprio vivo aqui e isso já é suficiente. Quero um estrangeiro, para um trabalho no exterior. E estou disposto a pagar pelo nome.

Do bolso interno do paletó, Sanderson retirou um maço de 50 notas novinhas de 20 libras, pondo em cima da mesa. Hughes observava, impassivelmente. Sanderson dividiu as notas em duas pilhas, empurrando uma na direção de Hughes. Cuidadosamente, rasgou ao meio a outra pilha.

Meteu no bolso uma pilha das metades rasgadas das 25 notas. – As primeiras 500 libras são para tentar e as outras para conseguir. E quando falo

em conseguir, significa que o nome deve se encontrar comigo e concordar em aceitar o trabalho. E não precisa se preocupar que não tem nada de complexo. O alvo não é famoso. Ao contrário, é uma pessoa insignificante.

Hughes olhou para as 500 libras à sua frente. Não fez qualquer menção de recolhê-las.

– Posso conhecer um homem – disse ele. – Trabalhou comigo há alguns anos. Não sei se ainda continua no ramo. Terei de descobrir.

– Pode telefonar. Hughes sacudiu a cabeça. – Não gosto das ligações internacionais. Há gente demais na escuta. Especialmente

na Europa, hoje em dia. Terei de procurá-lo pessoalmente. Isso custa mais 200 libras. – Está certo. Contra a entrega do nome. – Como posso saber que você não está me trapaceando? – Não pode – disse Sanderson. – Mas se eu o fizer, tenho certeza de que vai querer

se vingar. E não preciso disso... não por 700 libras. – E como você pode saber que eu não vou trapaceá-lo? – Também não posso. Mas acabarei encontrando um homem para fazer o serviço. E

sou rico o bastante para pagar dois contratos, ao invés de um. Não gosto de ser enganado. Uma questão de princípio, entende?

Por dez segundos, os dois homens ficaram se olhando atentamente. Sanderson pensou que talvez tivesse ido longe demais. Depois, Hughes tornou a sorrir. Mais largo desta vez, com genuína satisfação. Recolheu as 500 libras em notas inteiras e mais a pilha de notas pela metade.

– Vou arrumar o nome que está querendo e marcar o encontro. Depois que se encontrar com o homem e combinar o serviço, pode me remeter pelo correio as outras metades das notas, mais as 200 libras pelas despesas. Mande para a caixa postal da agência dos correios de Earl's Court, em nome de Hargreaves. Correspondência comum, um envelope bem fechado. Não precisa ser registrada. Se não remeter nada uma semana depois do encontro, meu companheiro será avisado que você é um vigarista e romperá o acordo. Entendido?

Sanderson assentiu. – Quando terei o nome? – Dentro de uma semana. Como posso entrar em contato com você?

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– Não pode. Eu entrarei em contato com você. Hughes não se sentiu ofendido. – Telefone para o bar em que estive esta noite. Às 10 horas da noite. Sanderson telefonou na hora combinada, uma semana depois. O barman atendeu e

um minuto depois Hughes estava na linha. – Há um café na Rue Miollin, em Paris, onde se reúnem as pessoas do tipo que está

procurando. Esteja lá na próxima segunda-feira, ao meio-dia. O homem o reconhecerá. Fique

lendo o Figaro do dia, com a primeira página virada para o salão. Ele o conhecerá como Johnson. A partir desse momento, o problema será todo seu. Se você não aparecer na segunda-feira, o homem voltará ao café na terça e na quarta-feira, sempre ao meio-dia. Depois disso, não haverá mais negócio. E não se esqueça de levar dinheiro vivo.

– Quanto? – indagou Sanderson. – Cerca de cinco mil libras, para ter uma margem de segurança. – Como vou saber que não haverá pura e simplesmente um assalto a mão armada? – Não saberá. Mas ele também não saberá se você está com um capanga em algum

lugar do café. Houve um estalido e o telefone mudo ficou zumbindo na mão de Sanderson. Na segunda-feira seguinte, no café da Rue Miollin, Sanderson ainda estava lendo a

última página do Figaro cinco minutos depois do meio-dia, sentado de costas para a parede, quando a cadeira à sua frente foi puxada para trás e um homem se sentou. Era um dos que estavam no bar há meia hora.

– Monsieur Johnson? Sanderson baixou o jornal, dobrou-o e colocou-o ao seu lado. O homem era alto e

magro, de cabelos e olhos pretos, o queixo saliente típico dos corsos. Conversaram por cerca de 30 minutos. O corso apresentou-se apenas como Calvi, que era na verdade o nome de sua aldeia natal. Depois de 20 minutos, Sanderson entregou-lhe duas fotografias. Uma delas mostrava o rosto de um homem e no verso estava datilografado o seguinte: "Major Archie Summers, Villa San Crispin, Playa Caldera, Ondara, Alicante". A outra era de uma pequena villa toda pintada de branco, com as janelas amarelas. O corso acenou com a cabeça lentamente.

– Deve ser entre três e quatro horas da tarde – acrescentou Sanderson. O corso tornou a assentir. – Não há problema. Conversaram por dez minutos sobre questões financeiras. Sanderson acabou

entregando cinco maços de notas, com 500 libras em cada. O corso explicou que os trabalhos no exterior eram mais dispendiosos e que a polícia espanhola podia ser extremamente hostil a determinados tipos de turistas. Sanderson finalmente levantou-se para ir embora.

– Quanto tempo? – indagou ele, já de pé. O corso levantou a cabeça para fitá-lo e deu de ombros. – Uma semana, duas, talvez três. – Quero saber tão logo o trabalho seja realizado, está certo? – Então, terá de me indicar algum meio de entrar em contato com você – disse o

pistoleiro. Como resposta, o inglês escreveu o número de um telefone num pedaço de papel. – Dentro de uma semana, a contar de hoje, e por três semanas subseqüentes, pode

telefonar, entre sete e meia e oito horas da manhã, para esse número em Londres. Não tente descobrir de onde é o telefone e não falhe no trabalho.

O corso sorriu friamente.

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– Não vou falhar, porque quero a outra metade do dinheiro. – Uma última coisa – acrescentou o cliente. – Não quero que deixe alguma pista,

absolutamente nenhuma, não quero que nada fique para trás. O corso ainda estava sorrindo. – Tem que zelar por sua reputação, Monsieur Johnson. E eu tenho que zelar por

minha vida. Ou, pelo menos, 30 anos na Penitenciária de Toledo. Não se preocupe. Não haverá pistas, nada ficará para trás.

Depois que o inglês se foi, Calvi deixou o café, verificou se não estava sendo seguido e depois foi passar duas horas no terraço de outro café, no centro da cidade, ao sol do início de julho, imerso em pensamentos, a mente se concentrando nos problemas do trabalho para o qual fora contratado. O contrato propriamente dito não apresentava maiores dificuldades, era apenas um tiro direto contra um alvo que nada desconfiava. O problema era transferir a arma em segurança para a Espanha. Podia levá-la no trem de Paris a Barcelona, arriscando-se à verificação alfandegária. Mas se fosse apanhado, seria pela polícia espanhola e não pela francesa. Os espanhóis tinham atitudes antiquadas em relação aos pistoleiros profissionais. Os aviões estavam excluídos; graças aos seqüestradores palestinos, cada vôo que saía de Orly era meticulosamente verificado, em busca de armas de fogo. Ainda tinha contatos na Espanha, dos seus velhos tempos na Organização do Exército Secreto, que lutara para manter a Argélia francesa. Eram homens que preferiam viver ao longo da costa, entre Alicante e Valência, preferindo não correr o risco de voltar à França. O corso estava convencido de que poderia arrumar por empréstimo uma arma com um deles. Mas acabou chegando à conclusão de que era melhor evitar a todos; sem nenhuma atividade, no exílio, os homens certamente se tornavam propensos a fazerem comentários indevidos.

O corso finalmente se levantou, pagou a conta e foi fazer compras. Passou meia hora no balcão de informações do escritório turístico espanhol e outros dez minutos na loja da Ibéria. Terminou as suas compras numa livraria e papelaria na Rue de Rivoli e depois foi para seu apartamento nos subúrbios.

Naquela mesma noite, telefonou para o Hotel Metropol, o melhor de Valência, reservando dois quartos para uma noite apenas, dentro de duas semanas, nos nomes de Calvi e do que constava de seu passaporte. Apresentou-se pelo telefone como Calvi e concordou em confirmar as reservas por escrito imediatamente. Também reservou uma passagem de ida e volta entre Paris e Valência, chegando na noite para a qual fizera a reserva de hotel e voltando a Paris na manhã seguinte.

Enquanto aguardava que fosse concluída a ligação para Valência, ele já escrevera a carta de confirmação para o hotel. Era curta e objetiva. Confirmava as duas reservas e acrescentava que, como o signatário, Monsieur Calvi, estaria viajando constantemente, até sua chegada em Valência, determinara que um livro sobre a história da Espanha fosse encaminhado para o hotel, despachado de Paris. Solicitava que a gerência do hotel fizesse a gentileza de guardar o livro até a sua chegada.

Calvi calculava, corretamente, que se o livro fosse interceptado e aberto, no momento em que indagasse a respeito, com o seu nome verdadeiro, a expressão do recepcionista indicaria que alguma coisa estava errada, dando-lhe tempo suficiente para escapar. Mesmo que fosse apanhado, ainda poderia alegar que era perfeitamente inocente e que estava apenas fazendo um favor para um amigo, sem desconfiar de qualquer motivo escuso no pedido do ausente Calvi.

Com a carta assinada com a mão esquerda no nome Calvi, devidamente selada e pronta para ser remetida, ele começou a trabalhar no livro que comprara aquela tarde. Era mesmo uma história da Espanha, um livro pesado e grosso, em papel da melhor qualidade, com muitas fotografias, o que lhe aumentava o volume.

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Inclinou para trás as duas capas e prendeu-as com um elástico. Prendeu as 400 páginas como um bloco na mesa da cozinha, usando dois pequenos tornos.

Começou a trabalhar no bloco de papel com o bisturi fino e afiado que também comprara naquela tarde. Cortou por quase uma hora, meticulosamente, até fazer um quadrado a cerca de três centímetros da beirada das páginas, formando uma caixa com 15 centímetros de altura, por 12 de largura e seis de profundidade. Passou uma cola forte nos lados internos do quadrado oco e fumou dois cigarros enquanto esperava que secasse. Quando tal acontecesse, nunca mais se poderia abrir as 400 páginas.

Uma almofada de espuma de borracha, cortada no tamanho apropriado, foi ajeitada na cavidade, a fim de substituir os 700 gramas de papel que haviam sido removidos e que ele pesara na balança da cozinha. O corso desmontou em seguida a automática Browning de nove milímetros, adquirida numa viagem à Bélgica dois meses antes, quando usara e jogara fora, no Canal Albert, a sua arma anterior, um Colt 38. Era um homem cuidadoso e nunca usava a mesma arma duas vezes. O cano da Browning fora reduzido em meia polegada e a extremidade preparada para se adaptar um silenciador.

Um silenciador numa automática nunca abafa completamente o barulho, apesar dos esforços dos homens de efeitos sonoros dos filmes de televisão para simular o contrário. As automáticas, ao contrário dos revólveres, não têm uma culatra fechada. Quando o projétil deixa o cano, o ferrolho da automática é forçado para trás, a fim de expelir o cartucho vazio e inserir o novo no lugar. É por isso que são chamadas de automáticas. Mas na fração de segundo em que a culatra se abre para expelir o cartucho usado, metade do barulho da explosão sai pelo espaço aberto, tornando um silenciador na extremidade do cano apenas 50 por cento eficaz. Calvi teria preferido um revólver, com a culatra fechada durante o disparo. Mas precisava de uma arma achatada, para caber na cavidade do livro.

O silenciador, ajeitado ao lado das peças da Browning, era o componente maior, com 13 centímetros de comprimento. Como um profissional, Calvi sabia que os silenciadores do tamanho de rolhas de champanha, apresentados na televisão, adiantam tanto quanto um extintor de incêndio manual para apagar uma erupção do Vesúvio.

Colocadas lado a lado, sobre a almofada de espuma de borracha, as seis partes, inclusive o silenciador e um pente de balas, não se ajustavam direito no espaço disponível. Para resolver o problema, Calvi enfiou o pente de balas na arma. Marcou na almofada de espuma de borracha os contornos das quatro peças, com uma caneta de ponta de feltro. Em seguida, cortou a espuma de borracha, com um estilete especial. Por volta da meia-noite, os componentes da arma já estavam no fundo da almofada de espuma de borracha, o silenciador comprido ao longo da lombada do livro, o cano, a coronha e a câmara em três sulcos horizontais, de alto a baixo do livro.

Calvi cobriu tudo com uma camada fina de espuma de borracha, passou mais cola nas partes internas das capas e fechou o livro. Depois de uma hora comprimido entre o chão e uma mesa virada, o livro era um bloco sólido que exigiria uma faca para ser aberto. Calvi tornou a pesá-lo.

Estava apenas 14 gramas mais pesado que o original. Finalmente, ajeitou o livro de história da Espanha num invólucro de polietileno

aberto numa das extremidades, do tipo usado pelos editores de livros, de qualidade excepcional para proteger as capas de sujeira e arranhões. Coube com perfeição e Calvi fechou a extremidade aberta com a lâmina de seu canivete, esquentada no fogão. Caso o pacote fosse aberto, ele esperava que o inspetor se contentasse em comprovar, pelo polietileno transparente, que o conteúdo era mesmo um livro inofensivo, tornando a metê-lo no envelope.

E o envelope era grande, devidamente forrado por dentro, do tipo usado para se remeter livros, fechado apenas por um grampo de metal. Podia ser facilmente aberto,

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esticando-se as presilhas do grampo através da abertura do envelope. Com um jogo de impressão que se podia comprar em muitas lojas, Calvi imprimiu o rótulo com o nome de uma livraria bem conhecida, datilografando o nome e endereço do destinatário: Monsieur Alfred Calvi, Hotel Metropol, Calle de Jativa, Valência, Espanha. Com o mesmo jogo de impressão, fez um carimbo que aplicou no envelope, com as palavras "LIVROS – IMPRESSOS – LIVRES".

Na manhã seguinte, ele despachou a carta por via aérea e o pacote por terra, o que significava a remessa de trem e uma demora de dez dias.

O Caravelle da Ibéria desceu para o Campo de Manises e aterrissou no momento em que o sol mergulhava no horizonte. Ainda fazia muito calor e os 30 passageiros – a maioria constituída de proprietários de ville à beira-mar que chegavam de Paris para as férias de seis semanas – reclamaram contra a demora habitual na entrega da bagagem, no galpão da Alfândega.

Calvi levava apenas uma mala de tamanho médio, como bagagem de mão. Foi aberta e inspecionada cuidadosamente. Depois, deixou o terminal do aeroporto e passou pela fila de táxis. Foi até o estacionamento do aeroporto e ficou satisfeito ao constatar que ocupava uma área grande, fora das vistas do terminal por uma cortina de árvores. Os carros estavam estacionados em fileiras, debaixo das árvores, aguardando seus donos. Decidiu voltar ali na manhã seguinte, para pegar o transporte de que precisava.

Calvi pegou um táxi e seguiu para o centro da cidade. O recepcionista do hotel foi extremamente prestativo. Assim que o corso se apresentou e exibiu seu passaporte, o recepcionista prontamente se lembrou da reserva, da carta de confirmação enviada por Monsieur Calvi.

Passou para a sala dos fundos da área de recepção e voltou com o pacote que continha o livro.

O corso explicou que, infelizmente, o seu amigo Calvi não pudera vir a Valência, conforme estava previsto. Mas, evidentemente, ele pagaria as contas dos dois quartos reservados, quando partisse na manhã seguinte. Apresentou uma carta do ausente Calvi, autorizando-o a receber o livro que fora despachado para o hotel. O recepcionista examinou rapidamente a carta, agradeceu ao corso por se prontificar a pagar as contas dos dois quartos reservados e entregou o pacote.

Calvi examinou o envelope assim que chegou ao quarto. Fora aberto, o grampo de metal esticado a fim de passar pela abertura e depois enfiado de volta. O pingo de cola que pusera numa das presilhas do grampo desaparecera. Mas o livro ainda estava intacto, no invólucro de polietileno, que não podia ser aberto sem que o rasgassem.

E foi o que o corso fez, para depois separar as capas do livro com a lâmina do canivete. Tirou as partes da automática. Montou tudo e ajeitou o silenciador, verificando o pente de balas. Estava tudo no lugar, as suas balas especiais, com metade do explosivo removida, a fim de reduzir o barulho a um estampido baixo. Mesmo impelida pela metade da força normal, uma bala de 9mm ainda pode entrar facilmente numa cabeça humana, disparada a três metros de distância. E Calvi jamais atirava de uma distância maior, em qualquer contrato.

Trancou a arma no fundo do guarda-roupa, meteu a chave no bolso, fumou um cigarro na sacada do quarto, olhando para a arena de touros diante do hotel e pensando no que teria de fazer no dia seguinte. Desceu às nove horas, ainda com o terno cinza-escuro de um dos mais exclusivos alfaiates de Paris, que combinava perfeitamente com o ambiente sóbrio do velho e dispendioso hotel. Jantou na Terrassa del Rialto e foi dormir à meia-noite. O recepcionista informara que havia um avião para Madri às oito horas da manhã e Calvi pedira para ser acordado às seis.

Deixou o hotel às sete horas da manhã e pegou um táxi para o aeroporto. Parado no

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portão, observou a chegada de uma dúzia de carros, anotando a marca e a placa de cada um, assim como a aparência do motorista. Sete carros eram dirigidos por homens que estavam sozinhos e usando ternos tipicamente de executivos. Do terraço de observação do terminal do aeroporto, Calvi ficou observando os passageiros embarcarem no avião para Madri, entre os quais quatro motoristas dos carros. Consultando a relação no verso de um envelope, Calvi verificou que podia escolher entre um Simca, Mercedes, Jaguar e um pequeno Seat espanhol, a versão local do Fiat 600.

Depois que o avião decolou, Calvi foi para o banheiro dos homens e trocou o terno por um jeans creme, camisa esporte azul-clara e casaco de náilon azul, com um zíper na frente. Enrolou a arma numa toalha e meteu-a na bolsa de plástico de companhia aérea que tirara da mala.

Deixou a mala no depósito de bagagem, confirmou a reserva do vôo do início da noite para Paris e depois voltou para o estacionamento.

Optou pelo Seat, porque é o carro mais comum na Espanha e porque as maçanetas das portas facilitam o trabalho dos ladrões de carros. Dois homens entraram de carro no estacionamento, enquanto ele esperava. Assim que foram embora, Calvi aproximou-se do pequeno carro vermelho. Tirou o pedaço de cano que estava escondido na manga do blusão, ajeitou-o sobre a maçaneta da porta e deu um impulso firme para baixo. A fechadura cedeu, com um pequeno estalido. Ele levantou o capô e fez uma ligação direta. Sentando ao volante, ligou o carro ao toque de um botão e deixou o estacionamento, seguindo para Valência e pegando a nova estrada litorânea que levava a Alicante.

O percurso de Valência a Ondara é de 92 quilômetros, passando pelos centros produtores de laranja de Gandia e Oliva. Não se apressou, cobrindo o percurso em duas horas. A costa inteira reluzia ao sol da manhã, uma longa faixa de areia dourada, pontilhada por corpos morenos e banhistas que se jogavam ao mar. O calor era sufocante, não soprava a menor brisa. No mar, ao longo do horizonte, pairava uma névoa tênue.

Entrando em Ondara, Calvi passou pelo Hotel Palmera, onde sabia que vivia, com suas recordações, o antigo secretário do General Raoul Salan, outrora o chefe da Organização do Exército Secreto. No centro da cidade, não teve qualquer dificuldade em descobrir o caminho para a Playa Caldera, devidamente informado pelos prestativos habitantes da cidade, e que ficava três quilômetros adiante. Seguiu de carro para a área residencial de ville, a maior parte de expatriados, pouco antes do meio-dia. Foi avançando lentamente, procurando pela Villa San Crispin, que conhecia perfeitamente da fotografia há muito destruída. Perguntar o caminho para a praia era uma coisa, mas indagar onde ficava a villa podia mais tarde ser recordado por alguém.

Descobriu as janelas amarelas e as paredes de terracota pintadas de branco pouco antes de uma hora da tarde. Conferiu o nome pintado num ladrilho na pilastra do portão da frente e foi estacionar o carro 200 metros adiante. Andando a pé, com um ar despreocupado, dando a impressão de que era um turista a caminho da praia, verificou a entrada dos fundos. Não teve qualquer dificuldade. Um pouco além da estrada de terra em que ficava a villa, havia uma trilha que avançava por uma plantação de laranjas, por trás da fileira de casas. Sob a proteção das árvores, Calvi verificou que apenas uma cerca baixa separava o pomar do pátio descoberto nos fundos da casa de janelas amarelas. Pôde ver o homem que procurava movimentando-se pelo jardim com um regador. As portas de vidro que separavam a sala principal do jardim dos fundos estavam abertas, a fim de permitir a entrada de uma brisa, se alguma soprasse. Calvi consultou o relógio. Estava na hora de almoçar. Ele pegou o carro e voltou para Ondara.

Ficou sentado até três horas da tarde no Bar Valência, na Calle Doctor Fleming, comendo um prato de camarões fritos e tomando dois copos do vinho branco local. Depois, pagou a conta e foi embora.

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Ao voltar para a praia, as nuvens de chuva haviam finalmente avançado pelo mar e o barulho das trovoadas ressoava pela superfície serena do mar, o que era insólito para a Costa Blanca, em meados de julho. Calvi estacionou o carro perto da trilha para o laranjal, enfiou no cinto a Browning com o silenciador, fechou o blusão até o pescoço e avançou por entre as árvores.

Estava tudo muito quieto quando ele saiu do laranjal e passou pela cerca baixa, entrando no jardim dos fundos da villa. Os habitantes locais estavam todos tirando a siesta no calor. A chuva começou a cair sobre as folhas das laranjeiras. Algumas gotas bem grandes bateram nos ombros de Calvi, enquanto atravessava o pátio. E quando chegou às portas de vidro, o aguaceiro finalmente desabou com toda força, tamborilando sobre as telhas. Calvi ficou satisfeito, porque assim ninguém ouviria nada.

Ele ouviu uma máquina de escrever em uso num cômodo à esquerda da sala de estar. Tirou a arma do cinto, parado no meio da sala, empurrou a trava de segurança. E depois atravessou a esteira de juncos até a entrada do estúdio.

O Major Archie Summers não chegou a saber o que acontecera, ou por quê. Avistou um homem parado à porta de seu estúdio e meio que levantou-se para perguntar o que desejava. Foi nesse instante que divisou o que estava na mão do visitante e entreabriu a boca. Houve dois sons secos e as balas se cravaram no peito do major. O terceiro tiro foi disparado verticalmente, para baixo, a pouco mais de meio metro de distância, contra a têmpora do major. Mas ele não chegou a sentir esse tiro. O corso ajoelhou-se por um instante ao lado do corpo, encostando o dedo indicador no lugar em que deveria sentir o pulso, se ainda houvesse alguma coisa para sentir. E ainda estava nessa posição quando virou-se de repente, a fim de olhar para a porta da sala de estar...

Os dois homens se encontraram no bar da Rue Miollin na noite seguinte, o assassino e o cliente.

Calvi telefonara para transmitir a mensagem naquela manhã. Voltara de Valência na noite anterior, chegando a Paris pouco antes da meia-noite. Sanderson pegara um avião para a capital francesa assim que recebera o recado. O cliente parecia nervoso e entregou o resto das cinco mil libras.

– Não houve qualquer problema? – perguntou ele, mais uma vez. O corso sorriu tranqüilamente e sacudiu a cabeça. – Foi tudo muito fácil e seu major está morto. Duas balas no coração e uma na

cabeça. – Ninguém o viu? – indagou o inglês. – Não houve testemunhas? – Não. – O corso se levantou, apalpando os maços de notas no bolso do peito. –

Infelizmente, fui interrompido já no final do serviço. Estava chovendo forte e alguém apareceu e me viu ao lado do corpo.

O inglês ficou imediatamente com uma expressão horrorizada. – Quem? – Uma mulher. – Alta, de cabelos pretos? – Isso mesmo. Era muito bonita. O corso percebeu a expressão de pânico no rosto do cliente e afagou-lhe de leve o

ombro, acrescentando, para tranqüilizá-lo: – Mas não se preocupe, monsieur. Não haverá pistas, nada ficou para trás. Matei-a

também. NÃO HÁ COBRAS NA IRLANDA

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Foi com algum ceticismo que McQueen contemplou o novo candidato a um emprego. Nunca antes empregara alguém assim. Mas não era um homem insensível; se o candidato a emprego precisava do dinheiro e estava disposto a trabalhar, McQueen não era avesso a lhe dar uma oportunidade.

– Sabia que é um trabalho danado de duro? – disse ele, em seu sotaque carregado de Belfast.

– Sim, senhor. – É um emprego temporário. Sem perguntas, sem registro. Vai trabalhar no vazio.

Sabe o que isso significa? – Não, Sr. McQueen. – Significa que será bem pago, mas receberá em dinheiro. Sem burocracia.

Entendeu? O que ele estava querendo dizer era que não haveria o desconto do imposto de

renda, não haveria contribuições ao Programa Nacional de Saúde retidas na fonte. Poderia também acrescentar que não haveria cobertura do Plano Nacional de Seguro e que os padrões de saúde e segurança seriam completamente ignorados. Lucros rápidos para todos era a ordem do dia, com uma fatia maior para ele próprio, como empreiteiro. O candidato ao emprego acenou com a cabeça para indicar que havia entendido, embora isso não tivesse acontecido. McQueen fitou-o com uma expressão especulativa.

– Você disse que é um estudante de medicina, em seu último ano em Royal Victoria, não é mesmo? – Outro aceno de cabeça. – Nas férias de verão?

Outro aceno de cabeça. O candidato a emprego era obviamente um daqueles estudantes que precisavam de dinheiro acima e além da sua bolsa, a fim de concluir o curso. McQueen, sentado em seu escritório sujo em Bangor, dirigindo um negócio clandestino como empreiteiro de demolição, com um patrimônio que consistia de um caminhão velho e amassado e uma tonelada de marretas de segunda mão, considerava-se um homem que vencera na vida por seus próprios esforços e aprovava plenamente a ética de trabalho do Ulster protestante. Não era de repelir quem também pensava assim, não importando como parecesse.

– Está bem – disse ele. – É melhor arrumar alojamento aqui em Bangor. Não poderá fazer a viagem de ida e volta a Belfast todos os dias. Trabalhamos de sete horas da manhã até o sol se pôr. O trabalho é pago por hora. E é trabalho duro, mas bem pago. Mencione uma só palavra às autoridades e perderá o emprego no mesmo instante. Entendido?

– Sim, senhor. Por favor, quando começo e onde? – O caminhão pega a turma no pátio da estação às seis e meia da manhã. Esteja lá

na manhã de segunda-feira. O capataz é Big Billie Cameron. Vou avisá-lo de que o contratei.

– Está bem, Sr. McQueen. O candidato a emprego virou-se par ir embora. McQueen acrescentou, o lápis

levantado: – Só mais uma coisa. Qual é o seu nome? – Harkishan Ram Lal. McQueen olhou para o lápis, para a relação de nomes à sua frente e novamente para

o estudante de medicina. – Vamos chamá-lo de Ram – disse ele, sendo esse o nome que anotou na lista. O estudante saiu para o sol forte de julho em Bangor, na costa norte do Condado de

Down, na Irlanda do Norte. Ao cair da tarde de sábado, ele conseguira encontrar um quarto barato numa pensão

miserável no meio da Railway View Street, o coração da terra de cama-e-café-da-manhã em Bangor. Pelo menos ficava convenientemente perto da estação, de onde o caminhão partiria

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todas as manhãs, logo depois do nascer do sol. Pela janela suja de seu quarto, ele podia ver as linhas por onde passavam os trens de Belfast que chegavam à estação.

Ele fizera várias tentativas para conseguir um quarto. A maioria das casas com um aviso de quarto para alugar na janela pareciam estar inteiramente lotadas quando ele se apresentava.

Mas era verdade que muitos trabalhadores temporários instalavam-se na cidade no auge do verão. Era verdade também que a Sra. McGurk era uma católica e ainda tinha quartos vagos.

Ele passou a manhã de domingo trazendo os seus pertences de Belfast, a maior parte consistindo de livros de medicina. À tarde, ficou deitado em sua cama, pensando na luz intensa das colinas do Panjab, onde nascera. Mais um ano e estaria formado em medicina; outro ano de estágio como interno e poderia voltar à sua terra, a fim de cuidar das doenças do seu próprio povo. Calculava que poderia ganhar dinheiro suficiente naquele verão para agüentar até os exames finais na faculdade. Depois, teria um salário como interno.

Na manhã de segunda-feira, ele levantou 15 minutos antes das seis horas, ao toque do despertador. Lavou-se com água fria e chegou ao pátio da estação logo depois das seis horas.

Havia algum tempo de sobra. Encontrou um café que abria cedo e tomou duas xícaras de chá preto. Foi a única coisa que ingeriu. O caminhão velho, dirigido por um dos homens da turma de demolição, apareceu 15 minutos depois das seis horas. Uma dúzia de homens agruparam-se nas proximidades. Harkishan Ram Lal não sabia se devia aproximar-se e apresentar-se ou se era melhor ficar esperando à distância. Preferiu esperar.

Passavam 25 minutos das seis horas quando o capataz chegou, em seu próprio carro.

Estacionou numa rua transversal e avançou para o caminhão. Tinha na mão a lista de McQueen.

Olhou para a dúzia de homens, reconheceu a todos e acenou com a cabeça. O indiano aproximou-se. O capataz lançou-lhe um olhar furioso.

– Você é o escuro que McQueen empregou? Ram Lal estacou abruptamente. – Harkishan Ram Lal. Sou eu mesmo. Não havia necessidade de perguntar como Big Billie Cameron ganhara o apelido.

Tinha mais de 1,90m, a altura aumentada pelas botas imensas, de biqueiras de aço. Os braços pareciam troncos, pendendo de ombros imensos; a cabeça era encimada por cabelos avermelhados, abundantes e desgrenhados. Dois olhos pequenos, de pestanas claras, contemplaram rancorosamente o indiano magro. Era evidente que ele não estava muito satisfeito. Depois de cuspir no chão, Cameron disse:

– Pois entre logo na porra do caminhão. Na viagem para o local de trabalho, Cameron ficou sentado na cabine, que não tinha

qualquer divisória a separá-la da carroceria, onde os trabalhadores sentavam, em dois bancos de madeira nos lados. Ram Lal ficou lá atrás, ao lado de um homem pequeno, de olhos azuis que brilhavam intensamente, chamado Tommy Burns. Ele parecia cordial e perguntou, com uma curiosidade genuína:

– De onde você é? – – Da Índia – respondeu Ram Lal. – Do Panjab. – Qual dos dois lugares? – insistiu Tommy Burns. Ram Lal sorriu. – O Panjab é uma parte da Índia. Burns pensou por um momento e depois perguntou: – Você é protestante ou católico?

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– Nenhum dos dois – explicou Ram Lal, pacientemente. – Sou hindu. – Está querendo dizer que não é um cristão? – murmurou Burns, espantado. – Isso mesmo. Pertenço à religião hindu. – Ei, pessoal, o homem nem mesmo é um cristão! Burns não estava indignado, apenas curioso, como uma criança que depara com um

brinquedo novo e estranho. Cameron virou-se na cabine lá na frente e resmungou: – Ele é um pagão. O sorriso desvaneceu-se do rosto de Ram Lal. Ele ficou olhando para a lona que

constituía a parede no outro lado do caminhão. A esta altura, estavam bem ao sul de Bangor, avançando ruidosamente pela estrada para Newtownards. Depois de algum tempo, Burns começou a apresentá-lo aos outros trabalhadores. Havia um Craig, um Munroe, um Patterson, um Boyd e dois Browns. Ram Lal estava há tempo suficiente em Belfast para reconhecer os nomes como originalmente escoceses, os presbiterianos empedernidos que formavam a base protestante da maioria dos Seis Condados. Os homens pareciam cordiais e o cumprimentaram com acenos de cabeça.

– Não trouxe a sua marmita com o almoço, rapaz? – perguntou o homem mais velho, chamado Patterson.

– Não – respondeu Ram Lal. – Era cedo demais para pedir à minha senhoria que preparasse alguma coisa.

– Vai precisar almoçar – disse Burns. – E também do desjejum. Vamos acender um fogo para fazer o chá assim que chegarmos ao local.

– Comprarei uma marmita e trarei alguma comida amanhã – disse Ram Lal. Burns olhou para as botas de couro macio e solas de borracha do indiano, antes de

perguntar: – Nunca fez esse tipo de trabalho antes? – Ram Lal sacudiu a cabeça. – Vai precisar

também de um par de botas bem pesadas. Para proteger os pés. Ram Lal prometeu que compraria um par de botas pesadas, se encontrasse alguma

loja aberta até tarde, quando voltassem. Estavam atravessando Newtownards, ainda seguindo para o sul, pela A21, na direção da pequena cidade de Comber. Craig fitou Ram Lal e indagou:

– Qual é o seu verdadeiro trabalho? – Sou estudante de medicina no Royal Victoria. Espero me formar no ano que vem. Tommy Burns ficou deliciado. – Ei, mas isso é quase ser um médico de verdade! Você ouviu, Big Billie? Se um de

nós sofrer alguma coisa, o jovem Ram pode cuidar. Big Billie soltou um grunhido e comentou: – Em mim é que ele não vai encostar um dedo sequer! Isso acabou com a conversa, até chegarem ao local de trabalho. O motorista virara

para noroeste, depois de passar por Comber. Três quilômetros além, perto da estrada de Dundonald, o caminhão virou à direita, seguindo por uma trilha esburacada, indo parar no ponto em que as árvores acabavam. Puderam então contemplar o prédio a ser demolido.

Era uma antiga e imensa destilaria de uísque, as paredes lisas, há muito abandonada. Era uma das duas destilarias que outrora existiam na região, produzindo um bom uísque irlandês. Há anos que fora desativada. Ficava ao lado do Rio Comber, que outrora acionava a sua imensa roda hidráulica, ao correr de Dundonald para Cumber, antes de esvaziar-se no Lago Strangford.

O malte chegava em carroças puxadas por cavalos, pela trilha, e os barris de uísque partiam da mesma forma. A água doce que acionava as máquinas também era usada nas cubas. Mas a destilaria estava abandonada e vazia há anos.

Como se podia prever, as crianças locais tinham arrombado o prédio, ali

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encontrando um lugar ideal para brincar. Até que um garoto sofrera uma queda e quebrara a perna. O conselho do condado decidira então inspecionar a velha destilaria, chegando à conclusão de que constituía um risco. O proprietário fora então presenteado com uma ordem de demolição compulsória.

Descendente de uma antiga família de esquires, que já passara por melhores dias, ele resolvera que a demolição deveria ser efetuada pelo menor custo possível. Fora nesse ponto que McQueen entrara em cena. A demolição poderia ser realizada muito mais depressa com máquinas pesadas, mas também sairia bem mais caro. Big Billie e seus homens fariam a demolição com marretas e alavancas. McQueen acertara até a venda das melhores vigas e das centenas de toneladas de tijolos curtidos para um empreiteiro de construção. Afinal, os ricos desejavam atualmente que suas casas novas tivessem "classe", o que significava, entre outras coisas, que deviam parecer velhas. Havia assim uma grande procura de tijolos antigos, branqueados pelo sol, além de vigas genuinamente antigas, para adornar os "solares" novos-mas-parecendo-velhos dos ricos. McQueen se daria muito bem com aquele trabalho.

– Muito bem, rapazes – disse Big Billie, enquanto o caminhão se afastava ruidosamente, de volta a Bangor. – Aí está. Vamos começar pelas telhas. Já sabem o que fazer.

Os homens estavam parados ao lado da pilha de equipamentos. Havia imensas marretas, as cabeças pesando mais de três quilos; alavancas com dois metros de comprimento e mais de cinco centímetros de espessura; pés-de-cabra com um metro de comprimento, uma extremidade encurvada e bifurcada, para se arrancar pregos; marretas de cabo curto, em tamanhos diversos; e um amplo sortimento de serrotes. Ram Lal contemplou o prédio e engoliu em seco. Tinha uma altura correspondente a quatro andares e ele detestava alturas. Mas os andaimes saíam caro demais. E as únicas concessões à segurança humana eram cintos de urdume e dezenas de metros de corda.

Um dos homens foi até o prédio, arrancou uma porta de tábuas como se fosse um brinquedo e acendeu um fogo. Não demorou muito para que uma chaleira com água recolhida no rio estivesse na fogueira. O chá foi feito. Todos tinham as suas canecas esmaltadas, com exceção de Ram Lal. Ele registrou mentalmente que precisava comprar isso também. Seria um trabalho de muita poeira, provocando uma sede constante. Tommy Burns terminou de tomar o chá, tornou a encher a caneca e ofereceu a Ram Lal.

– Vocês costumam tomar chá na Índia? – perguntou ele. Ram Lal pegou a caneca estendida. Era um chá instantâneo, adocicado, muito claro.

Ele detestou. Naquela primeira manhã, trabalharam empoleirados no telhado. As telhas não

seriam revendidas e por isso os homens arrancavam-nas manualmente e jogavam no chão, longe do rio. Havia uma instrução para não bloquearem o rio com escombros. Assim, tudo tinha de cair no outro lado do prédio, na relva alta – mato, giesta e tojo – que cobria a área em torno da destilaria. Os homens estavam presos uns aos outros pelas cordas. Assim, se alguém perdia o equilíbrio e começava a escorregar pelo telhado, o homem seguinte poderia segurá-lo. À medida que as telhas foram desaparecendo, imensos buracos surgiram entre os caibros. Abaixo deles, estava o chão do último andar, o depósito de malte.

Às dez horas, os homens desceram pela frágil escada interna, a fim de comerem alguma coisa, com outra rodada de chá. Ram Lal nada comeu. Às duas horas da tarde, o trabalho foi novamente suspenso para o almoço. Os homens pegaram as suas pilhas de sanduíches. Ram Lal contemplou as próprias mãos. Estavam cortadas em diversos pontos e sangrando. Os músculos doíam, ele sentia uma fome intensa. Tornou a registrar mentalmente a necessidade de comprar luvas de trabalho. Tommy Burns tirou um sanduíche de sua caixa, estendendo-o.

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– Não está com fome, Ram? Pode ficar com este sanduíche. Tenho o bastante aqui. – Que diabo está querendo fazer? – gritou Big Billie, sentado no outro lado do fogo. Burns assumiu uma atitude defensiva, murmurando: – Estou apenas oferecendo um sanduíche ao rapaz. – Deixe que o escuro traga os seus próprios sanduíches. Trate de cuidar apenas de si

mesmo. Os homens baixaram os olhos para suas caixas de comida, permanecendo em

silêncio. Era evidente que ninguém se atrevia a discutir com Big Billie. – Obrigado, mas não estou com fome – disse Ram Lal a Burns. Ele afastou-se e foi sentar-se à beira do rio, molhando as mãos esfoladas na água

fria. Ao pôr do sol, quando o caminhão voltou para buscá-los, metade do telhado já

desaparecera. Mais um dia e começariam com os caibros, trabalho para os serrotes e pés-de-cabra. O trabalho prosseguiu ao longo da semana. O prédio outrora orgulhoso foi

despojado dos caibros, tábuas e vigas, até ficar todo oco e aberto, as janelas vazias, como olhos abertos contemplando a perspectiva de morte iminente. Ram Lal não estava acostumado àquele tipo de trabalho duro. Os músculos doíam sem parar, as mãos estavam empoladas. Mas ele continuou a trabalhar, pelo dinheiro de que precisava tão desesperadamente.

Adquirira uma merendeira de estanho, uma caneca esmaltada, botas pesadas e luvas grossas, que ninguém mais usava. As mãos dos outros estavam calejadas o bastante, de muitos anos de trabalho manual. Ao longo de toda semana, Big Billie espicaçou-o sem descanso, sempre lhe dando os trabalhos mais árduos e postando-o nos lugares mais altos, a partir do momento em que descobrira como Ram Lal detestava as alturas. O jovem indiano reprimia sua raiva, porque precisava do dinheiro. A crise veio no sábado.

As vigas já haviam sido removidas e estavam agora trabalhando na alvenaria. O método mais simples de fazer o prédio desmoronar longe do rio seria o de plantar cargas explosivas nos cantos da parede que dava para a clareira. Mas a dinamite era uma impossibilidade. Exigiria licenças especiais, principalmente na Irlanda do Norte, o que certamente alertaria os fiscais de renda. McQueen e todos os seus homens seriam obrigados a pagar elevadas quantias de imposto de renda. Além disso, McQueen teria de pagar o Plano Nacional de Seguro. Por isso, foram derrubando as paredes em pedaços, postando-se arriscadamente nos chãos inclinados, enquanto as paredes de apoio se lascavam e abriam, sob os golpes das marretas.

Durante o almoço, Cameron contornou o prédio duas vezes e depois voltou para junto do círculo de homens em torno da fogueira. Começou a descrever como iam derrubar um trecho considerável de uma parede externa, no nível do terceiro andar. Virou-se para Ram Lal e disse:

– Quero que você suba até lá. Quando a parede começar a cair, empurre para fora com os pés.

Ram Lal olhou para o trecho da parede em questão. Havia uma grande rachadura no fundo.

– Aquela parede vai cair a qualquer momento – disse ele, calmamente. – E qualquer pessoa que estiver lá em cima, vai cair junto.

Cameron fitou-o fixamente, o rosto ficando vermelho, os olhos rosados de raiva onde deveriam estar brancos.

– Não tente me ensinar o meu trabalho. E faça o que estou mandando, seu negro estúpido e fedorento!

Ele virou-se e afastou-se. Ram Lal levantou-se bruscamente. Quando sua voz tornou

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a soar, foi num grito ameaçador: – Senhor Cameron... Cameron tornou a virar-se, aturdido. Os homens ficaram boquiabertos. Ram Lal

avançou lentamente para o corpulento capataz. – Vamos deixar uma coisa bem clara – disse Ram Lal, incisivamente, a voz sendo

ouvida com clareza por todos os homens que ali estavam. – Sou do Panjab, no norte da Índia. Sou também um chátria, membro da casta dos guerreiros. Posso não ter dinheiro suficiente para pagar os meus estudos de medicina, mas meus ancestrais foram soldados e príncipes, soberanos e sábios, há dois mil anos, quando os seus ainda rastejavam, vestindo peles. Por favor, não me insulte mais.

Big Billie Cameron olhou fixamente para o estudante indiano. Os brancos de seus olhos haviam se transformado num vermelho brilhante. Os outros trabalhadores estavam completamente imóveis, atordoados.

– É mesmo? – disse Cameron, finalmente. – Está realmente dizendo a verdade? Pois saiba que as coisas estão agora diferentes, seu crioulo nojento. Vai querer fazer alguma coisa?

No instante em que pronunciava a última palavra, Big Billie desferiu um golpe violento, a mão aberta indo acertar no lado do rosto de Ram Lal. O rapaz foi lançado ao chão, a alguns metros de distância. A cabeça zunia. E ouviu Tommy Burns dizer:

– Fique no chão, rapaz. Big Billie vai matá-lo, se você se levantar. Ram Lal levantou os olhos para a claridade do sol. O gigante estava parado diante

dele, com os punhos cerrados. Ele compreendeu que não tinha a menor possibilidade numa luta contra aquele irlandês do Ulster. E foi invadido por sentimentos de vergonha e humilhação. Seus ancestrais haviam cavalgado, empunhando lanças e espadas, por planícies cem vezes maiores que aqueles seis Condados, conquistando a tudo o que encontravam.

Ram Lal fechou os olhos e ficou imóvel. Depois de vários segundos, ouviu o gigante se afastar.

Os outros homens iniciaram uma conversa em voz baixa. Ele comprimiu os olhos com toda a força, a fim de reprimir as lágrimas de vergonha. Na escuridão, contemplou as planícies crestadas pelo sol do Panjab, homens cavalgando, orgulhosos, inabaláveis, barbados, de turbantes, olhos pretos, os guerreiros da Terra dos Cinco Rios.

Há muito e muito tempo, no amanhecer do mundo, Iskander da Macedônia cavalgara por aquelas planícies, com seus olhos ardentes e sôfregos; Alexandre, o jovem deus, a quem chamara O Grande, que aos 25 anos chorara porque não havia mais mundos a conquistar.

Aqueles cavaleiros eram os descendentes de seus capitães e os ancestrais de Harkishan Ram Lal.

E Ram Lal estava caído na terra, enquanto os ancestrais passavam a cavalo e contemplavamno.

E cada um que passava lhe murmurava a mesma palavra. Vingança. Ram Lal levantou-se em silêncio. O que tinha de ser feito, seria feito. Era assim que

seu povo agia. Ele passou o resto do dia trabalhando no mais absoluto silêncio. Não falou com ninguém e ninguém lhe dirigiu uma palavra sequer.

Ao final da tarde, em seu quarto, ele começou os preparativos, com a noite prestes a cair. Tirou a escova e o pente da cômoda escalavrada, removeu também a toalha suja e o espelho do suporte. Pegou o seu livro de religião hinduística e cortou um retrato de página inteira da grande deusa Shatki, a deusa do poder e justiça. Pregou o retrato na parede, por cima da cômoda, convertendo-a num santuário.

Comprara um ramo de flores num stand diante da estação e agora uniu-as numa coroa. Num dos lados do retrato da deusa, colocou uma tigela rasa, cheia pela metade de

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areia, onde fixou uma vela, que acendeu. Tirou da mala um pano enrolado e dele extraiu meia dúzia de bastões de incenso. Pegou na estante um vaso ordinário, de gargalo estreito, ajeitou ali os bastões e acendeu-os. O odor forte e adocicado do incenso espalhou-se pelo quarto. Lá fora, nuvens escuras de tempestade aproximavam-se, vindas do mar.

Quando o santuário ficou pronto, Ram Lal postou-se diante dele, a cabeça abaixada, a coroa de flores nas mãos, começando a rezar por orientação. O primeiro ribombo de trovoada abateu-se sobre Bangor. Ele não usava o panjabi moderno, mas sim o antigo sânscrito, a língua da oração.

– Devi Shakti... Maa... Deusa Shakti... Grande Mãe... Nova trovoada ressoou e as primeiras gotas de chuva caíram. Ram Lal arrancou

uma flor e colocou-a diante do retrato de Shakti. – Fui cruelmente ofendido. Peço vingança contra o ofensor... Ele arrancou a segunda flor, colocou ao lado da primeira. Rezou durante uma hora,

enquanto a chuva caía. Tamborilava sobre as telhas por cima de sua cabeça e escorria pela janela atrás dele. Ram Lal terminou de orar enquanto a tempestade passava. Precisava saber qual a forma que a retaliação assumiria. Precisava que a deusa lhe enviasse um aviso.

Ao final, os bastões de incenso haviam-se consumido e o odor impregnava fortemente o quarto.

A vela estava quase no fim. Todas as flores estavam sobre a superfície laqueada da cômoda, diante do retrato. Shakti fitava-o, impassível.

Ram Lal virou-se e foi até a janela, olhando para fora. A chuva cessara, mas tudo lá fora estava gotejando. Enquanto ele observava, a água caiu da calha por cima da janela e um filete escorreu pelo vidro empoeirado, abrindo uma trilha na fuligem. Por causa da sujeira, a água não havia escorrido em linha reta, desviando-se para o lado e atraindo sua atenção para o canto da janela.

E logo ele estava olhando para o canto do quarto, onde estava seu chambre, pendurado num prego.

Ram Lal constatou que, durante a tempestade, o cordão do chambre caíra no chão. Estava enroscado, uma das pontas escondida, a outra visível sobre o tapete. Dos fios da borla, apenas dois estavam à mostra, como uma língua bifurcada. Ali no canto, o cordão enroscado do chambre parecia uma cobra. Ram Lal compreendeu. No dia seguinte, ele pegou o trem para Belfast e foi falar com o sikh.

Ranjit Singh era também estudante de medicina, só que mais afortunado. Os pais eram ricos e lhe mandavam uma mesada generosa. Ele recebeu Ram Lal em seu quarto bem mobiliado, na casa dos estudantes.

– Recebi notícias de casa – disse Ram Lal. – Meu pai está morrendo. – Sinto muito. Sofro com você. – Ele pede para me ver, pois sou o primogênito. Tenho de voltar. – Faz muito bem. A tradição mandava que o primogênito sempre ficasse ao lado do pai, quando este

morresse. – O problema é a passagem de avião – explicou Ram Lal. – Estou trabalhando e

ganhando um bom dinheiro. Mas ainda não disponho o suficiente. Se puder me emprestar o que falta, continuarei a trabalhar quando voltar e lhe pagarei tudo.

Os sikhs nunca foram avessos a emprestar dinheiro, se os juros eram apropriados e o pagamento certo. Ranjit Singh prometeu retirar o dinheiro do banco na manhã de segunda-feira.

Na tarde daquele domingo, Ram Lal foi procurar o Sr. McQueen, na casa dele, em Groomsport.

O empreiteiro estava diante da televisão, com uma lata de cerveja na mesinha ao

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lado. Era a sua maneira predileta de passar as tardes de domingo. Mas abaixou o volume quando Ram Lal foi introduzido na sala por sua mulher.

– Recebi notícias de meu pai – disse Ram Lal. – Ele está morrendo. – Lamento muito, rapaz. – Preciso voltar à Índia. O primogênito deve sempre estar ao lado do pai, nessa

ocasião. É o costume do nosso povo. McQueen tinha um filho no Canadá, a quem não via há sete anos. E ele disse: – O que me parece uma atitude muito justa e certa. – Peguei dinheiro emprestado para a passagem de avião. Se eu partir amanhã,

poderei estar de volta ao final da semana. O problema, Sr. McQueen, é que agora preciso do emprego mais do que nunca. Terei de pagar o empréstimo e também os meus estudos no próximo período. Se eu voltar até o final da semana, poderia me garantir o emprego?

– Está certo. Não posso pagá-lo pelo tempo em que estará ausente. Nem guardar a sua vaga por mais de uma semana. Mas se retornar até o final da semana, terá o seu emprego de volta. E nos mesmos termos.

– Obrigado, Sr. McQueen. É um homem muito generoso. Ram Lal manteve o seu quarto na Railway View Street, mas passou a noite em seus

alojamentos em Belfast. Na manhã de segunda-feira, acompanhou Ranjit Singh ao banco. O sikh retirou o dinheiro necessário e entregou-o ao hindu. Ram pegou um táxi para o aeroporto de Aldergrove e embarcou num avião da ponte aérea para Londres. Lá chegando, comprou uma passagem na classe econômica no primeiro vôo para a Índia. Vinte e quatro horas depois, estava ao calor sufocante de Bombaim.

Na quarta-feira, encontrou o que procurava no apinhado bazar da Grant Road Bridge. O Empório de Peixes e Répteis Tropicais do Sr. Chatterjee estava quase deserto quando o jovem estudante engrou, com seu livro sobre répteis debaixo do braço. O idoso proprietário estava sentado nos fundos da loja, na semi-escuridão, cercado pelos aquários com peixes e as caixas de vidro em que serpentes e lagartos dormiam, durante o dia quente.

O Sr. Chatterjee não era um estranho ao mundo acadêmico. Fornecia animais para estudo e dissecação a diversos centros médicos, ocasionalmente recebia um pedido lucrativo do exterior.

Acenou com a cabeça de barba branca, quando o estudante explicou o que procurava.

– Claro, claro – disse o velho mercador guzerate. – Conheço essa serpente. E você está com sorte. Recebi uma há poucos dias, vinda de Rajputana.

Ele levou Ram Lal para o seu santuário particular. Os dois homens ficaram olhando em silêncio, através do vidro da nova habitação da serpente.

Echis carinatus, dizia o livro. Mas é claro que o livro fora escrito por um inglês, que usara a nomenclatura latina. Era a víbora de cabeça escamada, a menor e a mais mortífera de toda a sua espécie letal.

Segundo o livro, era encontrada em muitos lugares, da África Ocidental para o leste e o norte, até o Irã, Índia e Paquistão. Era muito adaptável, capaz de se aclimatar a quase todos os ambientes, das savanas úmidas do oeste da África às frias colinas do Irã no inverno e às colinas escaldantes da Índia.

Alguma coisa se mexeu por baixo das folhas na caixa de vidro. No tamanho, dizia o livro, tinha entre 20 e 30 centímetros de comprimento, sendo

bastante fina. A cor era castanha, com algumas manchas mais claras, que às vezes mal dava para

se divisar, e uma linha ondulante mais escura, descendo pelo lado do corpo. Era noturna no tempo quente e seco, procurando um lugar para se refugiar durante o calor do dia.

As folhas na caixa tornaram a se mexer e uma pequena cabeça emergiu.

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Excepcionalmente perigosa de se manipular, dizia o livro, causando mais mortes do que outras cobras mais famosas, especialmente por causa de seu tamanho, o que tornava fácil tocá-la involuntariamente com a mão ou o pé. O autor do livro acrescentara uma nota de pé de página, informando que a serpente pequena mas mortífera mencionada por Kipling, em sua maravilhosa história Rikki-Tikki-Tavy, quase que certamente não era a Krait, com mais de meio metro de comprimento, mas sim provavelmente a víbora de cabeça escamada. O autor estava obviamente muito satisfeito por ter constatado uma falta de acurácia do grande Kipling.

Na caixa, uma pequena língua preta bifurcada projetou-se na direção dos dois indianos além do vidro.

Muito alerta e irritável, dissera o naturalista inglês, há muito desaparecido, concluindo o trecho relativo à Echis carinatus. Ataca rapidamente, sem qualquer aviso. As presas são tão pequenas que produzem uma picada quase imperceptível, como dois pequenos espinhos. Não há dor, mas a morte é quase inevitável, geralmente demorando entre duas e quatro horas, dependendo do tamanho do corpo da vítima e do nível de esforço físico na ocasião e depois. A causa da morte é invariavelmente uma hemorragia cerebral.

– Quanto quer por essa víbora? – sussurrou Ram Lal. O velho guzerate abriu os braços num gesto de desolação e disse, em tom pesaroso: – É um espécime extraordinário, muito difícil de se obter. Quinhentas rúpias. Ram Lal fechou o negócio em 350 rúpias e levou a víbora num jarro. Para a viagem de volta a Londres, Ram Lal comprou uma caixa de charutos,

esvaziou-a e fez 20 pequenos buracos na tampa, a fim de permitir a entrada do ar. Sabia que a pequena víbora não precisaria de alimento por uma semana nem de água por dois ou três dias. Podia respirar com um suprimento mínimo de ar. Assim, ele tornou a lacrar a caixa de charutos, com a víbora dentro, entre as suas folhas, enrolando-a em diversas toalhas felpudas, contendo ar suficiente, mesmo dentro de uma mala.

Ele viera com uma pequena valise, mas comprou agora uma mala ordinária de fibra de juta, enchendo-a com roupas de segunda mão compradas num bazar, a caixa ficando no meio. Só fechou e trancou a mala poucos minutos antes de deixar o hotel e seguir para o aeroporto de Bombaim. Despachou a mala para seguir no porão do Boeing, no vôo de volta a Londres. A valise que levava na mão foi revistada, sem que nada se encontrasse de interesse.

O jato da Air India pousou no aeroporto de Heatrow na manhã de sexta-feira. Ram Lal tomou lugar na fila comprida de indianos que tentavam entrar na Inglaterra. Pôde provar que era um estudante de medicina e não um imigrante, passando assim rapidamente pelas barreiras.

Chegou à esteira rolante de bagagem no momento em que as primeiras malas apareciam. A sua estava entre elas. Levou-a para o banheiro, retirando a caixa de charutos da mala e guardando-a na valise.

Detiveram-no na fila do Nada-a-Declarar, mas foi a mala que revistaram. O inspetor alfandegário olhou para a valise pendurada em seu ombro e deixou-o passar. Ram Lal atravessou Heatrow no ônibus gratuito, até o Terminal Número Um. Pegou o vôo do meio-dia para Belfast. Estava em Bangor na hora do chá e pôde finalmente examinar o que trouxera.

Pegou um vidro na mesinha-de-cabeceira e meteu-o cuidadosamente por baixo da tampa da caixa de charutos, antes de levantá-la inteiramente. Através do vidro, divisou a víbora dando voltas intermináveis lá dentro. A víbora parou por um instante e fitou-o com olhos pretos furiosos.

Ram Lal baixou a tampa da caixa, retirando o vidro. – Durma bem, minha pequena amiga, se é que sua espécie costuma dormir –

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murmurou Ram Lal. – Pela manhã, terá de fazer o trabalho que Shakti determinou. Antes do anoitecer, ele comprou um pequeno vidro de café com tampa de atarraxar,

despejando o conteúdo num bule em seu quarto. Pela manhã, usando as luvas grossas, transferiu a víbora da caixa para o vidro. A serpente furiosa mordeu a luva uma vez, mas ele não se importou.

Sabia que ela já teria recuperado todo o veneno por volta do meio-dia. Por um momento, contemplou-a enroscada dentro do vidro de café, antes de terminar de atarraxar a tampa e guardar na merendeira de estanho em que levava a sua comida. Saiu então para pegar o caminhão em que ia trabalhar.

Big Billie Cameron tinha o hábito de tirar o casaco no instante em que chegava ao local de trabalho, pendurando-o num prego ou num galho de árvore disponível. Na pausa para o almoço, como Ram Lal já constatara, o imenso capataz jamais deixava de ir até seu casaco, quando acabava de comer. Tirava o cachimbo e o saquinho de fumo do bolso do lado direito. A rotina não variava. Depois de fumar por algum tempo, ele limpava o cachimbo, se levantava e dizia:

– Muito bem, rapazes, vamos voltar ao trabalho. Ele tornava a guardar o cachimbo no bolso do casaco. Quando se virava, todos os

homens já estavam de pé. O plano de Ram Lal era simples, mas seguro. Durante a manhã, poria a víbora no

bolso direito do casaco pendurado. Depois de comer seus sanduíches, o arrogante Cameron se aproximaria do casaco e enfiaria a mão no bolso. A víbora faria o que a grande Shakti ordenara, realizaria a missão para a qual viajara por metade do mundo. Seria a víbora e não Ram Lal quem executaria o capataz do Ulster.

Cameron tiraria a mão do bolso com uma imprecação, a víbora pendurada de seus dedos, as presas cravadas bem fundo na carne. Ram Lal se levantaria de um pulo, arrancaria a víbora, jogaria no chão, pisotearia furiosamente. Não haveria qualquer perigo, pois o veneno estaria gasto. Finalmente, com um gesto de repulsa, Ram Lal lançaria a víbora morta no Rio Comber, que se encarregaria de levar toda e qualquer prova da ocorrência para o mar. Poderia haver suspeitas, mas jamais passaria disso.

Pouco depois das 11 horas, sob o pretexto de buscar uma outra marreta, Harkishan Ram Lal afastou-se do prédio em demolição. Foi pegar o vidro de café na lancheira, tirou a tampa e despejou o conteúdo no bolso direito do casaco pendurado. Estava de volta ao trabalho em menos de 60 segundos, sem que ninguém tivesse percebido o que acabara de fazer.

Teve a maior dificuldade em comer durante a pausa para o almoço. Os homens estavam sentados num círculo ao redor da fogueira, como sempre. A madeira velha estalava incessantemente, a água na chaleira borbulhava. Os homens estavam mais efusivos do que nunca, enquanto Big Billie mastigava a pilha de sanduíches que a mulher lhe preparara. Ram Lal tratara de escolher um lugar no círculo perto do casaco pendurado. Forçou-se a comer. Dentro do peito, o coração estava disparado. A tensão aumentava a cada instante que passava.

Big Billie finalmente amassou o papel que embrulhava os sanduíches devorados, jogou-o no fogo e depois arrotou. Levantou com um grunhido e encaminhou-se para o casaco. Ram Lal virou a cabeça para observar. Os outros homens não deram a menor atenção. Big Billie Cameron chegou ao casaco e enfiou a mão no bolso direito. Ram Lal prendeu a respiração. A mão de Cameron vasculhou por vários segundos, saindo depois, com o cachimbo e a bolsa de fumo. Começou a pôr fumo no cachimbo. Foi nesse momento que percebeu que Ram Lal fitava-o fixamente.

– O que você está olhando? – perguntou ele, belicoso. – Nada – balbuciou Ram Lal, tornando a virar o rosto para o fogo.

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Mas ele não podia ficar quieto. Levantou e espreguiçou-se, dando um jeito de se virar parcialmente, enquanto o fazia. Pelo canto do olho, viu Cameron tornar a guardar a bolsa de fumo e mais uma vez retirar a mão do bolso, desta vez segurando uma caixa de fósforos. O capataz acendeu o cachimbo e aspirou a fumaça, com um ar de satisfação. Voltou para junto da fogueira.

Ram Lal tornou a sentar e ficou olhando para as chamas, incrédulo. Por que a grande Shakti lhe fizera tal coisa?, perguntou a si mesmo. A víbora era um instrumento de Shakti, comprada por ordem dela. Mas ela se retivera, recusara-se a usar o seu próprio instrumento de retaliação. Ram Lal virou-se e lançou outro olhar furtivo para o casaco. No fundo do forro, na bainha, alguma coisa se mexeu e logo depois ficou imóvel. Ram Lal fechou os olhos, chocado. Um buraco, um buraco mínimo no forro, frustrara todo o seu planejamento. Ele trabalhou durante o resto da tarde num torpor de indecisão e preocupação.

No caminhão, de volta a Bangor, Big Billie Cameron sentou na frente, como sempre fazia. Mas como o calor era intenso, dobrou o casaco e ajeitou-o nos joelhos. Diante da estação, Ram Lal observou-o jogar o casaco ainda dobrado no banco traseiro do carro e afastar-se em seguida.

Ram Lal foi ao encontro de Tommy Burns, que estava esperando seu ônibus no ponto. E perguntou ao homenzinho:

– Sabe se o Sr. Cameron tem família? – Claro que tem – respondeu Burns, inocentemente. – Mulher e dois filhos. – Ele mora longe daqui, não é mesmo? Se vem de carro, deve morar longe. – Não é muito longe. Ele mora em Kilcooley. Se não me engano, em Ganaway

Gardens. Pretende visitá-lo? – Claro que não. Até segunda-feira. Voltando ao seu quarto, Ram Lal ficou olhando para a imagem impassível da deusa

da justiça. – Eu não queria levar a morte à mulher e aos filhos – murmurou ele. – Afinal, eles

nada me fizeram. A deusa não deu qualquer resposta. Harkishan Ram Lal passou o resto do fim de semana numa agonia de ansiedade. Ao

final daquela tarde, foi a pé até Kilcooley. Não teve qualquer dificuldade em encontrar Ganaway Gardens. Ficava ao lado de Owenroe Gardens, diante da Woburn Walk. Havia uma cabine telefônica na Woburn Walk. Ele ficou esperando ali por uma hora, fingindo dar um telefonema, enquanto observava atentamente a pequena rua do outro lado. Teve a impressão de avistar Big Billie Cameron numa das janelas e anotou a casa.

Uma moça adolescente saiu da casa e foi se encontrar com alguns amigos. Por um momento, Ram Lal sentiu-se tentado a abordá-la e revelar que havia um demônio dormindo no casaco do pai dela. Mas não teve coragem.

Pouco antes do crepúsculo, uma mulher saiu da casa, carregando uma sacola de compras. Ram Lal seguiu-a até o centro comercial de Clandeboye, que ficava aberto até tarde para as pessoas que recebiam seus salários aos sábados. A mulher que ele julgava ser a Sra. Cameron entrou no supermercado Stewarts. O estudante indiano foi contornando as gôndolas atrás dela, tentando reunir coragem suficiente para abordá-la, e revelar o perigo que estava à espreita em sua casa.

Mais uma vez, no entanto, faltou-lhe a coragem. Afinal, podia ser a mulher errada, talvez mesmo a casa errada. Nesse caso, acabaria sendo preso como louco.

Ram Lal dormiu mal aquela noite, atormentado por visões da víbora de cabeça escamada saindo de seu esconderijo no forro do casaco para se esgueirar, silenciosa e fatal, pela casa adormecida.

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No domingo, ele foi novamente para Kilcooley e identificou com toda certeza a casa da família Cameron, Divisou Big Billie claramente no quintal dos fundos. No meio da tarde, ele já estava atraindo a atenção dos moradores locais. Sabia que devia ir à porta da casa e confessar o que fizera, ou ir embora e deixar tudo nas mãos da deusa. A perspectiva de enfrentar o terrível Cameron com a notícia do perigo mortal que levara para tão perto de seus filhos era demais.

Ram Lal foi embora, voltando à Railway View Street. Na manhã de segunda-feira, manhã clara em agosto, a família Cameron despertou

15 minutos antes das seis horas. Por volta das seis horas, os quatro estavam tomando o café da manhã, na pequena cozinha nos fundos da casa, o filho, a filha e a mulher ainda de chambre, Big Billie já vestido para o trabalho. O casaco estava no mesmo lugar em que passara o fim de semana, num armário no corredor.

Pouco depois das seis horas, a filha Jenny se levantou, enfiando na boca um pedaço de torrada com geléia.

– Vou me lavar – disse ela. – Antes de ir, menina, pegue o meu casaco – pediu o pai, que comia um prato de

cereal. A moça voltou alguns segundos depois, segurando o casaco pela gola. Estendeu-o

para o pai, que nem levantou os olhos. – Pendure atrás da porta – disse ele. A moça obedeceu. Mas o casaco não tinha uma alça para pendurar e o lugar para

prendê-lo não era um prego enferrujado, mas sim cromado e liso. O casaco ficou pendurado ali por um instante e depois escorregou para o chão. O pai levantou os olhos quando a moça se retirava e gritou:

– Jenny, pendure direito o maldito casaco! Ninguém na família discutia com o chefe. Jenny voltou, pegou o casaco e procurou

prendê-lo direito. Ao fazê-lo, alguma coisa fina e escura esgueirou-se de suas dobras e deslizou para o canto, produzindo um farfalhar seco no linóleo. Ela ficou olhando com uma expressão de terror.

– Papai, o que é isso que estava no seu casaco? Big Billie Cameron ficou imóvel, a colher na metade do caminho para a boca. A

Sra. Cameron, que estava no fogão, virou-se no mesmo instante. Bobby, de 14 anos, parou de passar manteiga numa torrada e ficou olhando. A pequena criatura estava enroscada no canto, ao lado dos armários, defensiva, olhando furiosa para o mundo, a língua se movimentando rapidamente.

– Santo Deus, é uma cobra! – exclamou a Sra. Cameron. – Não diga bobagem, mulher. Será que não sabe que não há cobras na Irlanda?

Todo mundo sabe disso. – Big Billie largou a colher. – O que é aquilo, Bobby? Embora fosse um tirano dentro e fora de sua casa, Big Billie tinha um respeito

relutante pelos conhecimentos do filho, que era muito bom na escola e estava aprendendo coisas estranhas. O garoto examinou a cobra atentamente, através dos óculos grossos.

– Deve ser uma minhoca gigante, papai. Levaram algumas para a escola no período passado, para serem disecadas nas aulas de biologia. Vieram do outro lado das águas.

– Não me parece uma minhoca – comentou o pai. – E não é realmente uma minhoca. É um lagarto sem pernas. – E por que chamam de minhoca? – indagou o truculento pai. – Não sei. – Então, que diabo está fazendo na escola? A Sra. Cameron interveio, indagando, apreensiva: – Esse bicho morde?

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– Claro que não – respondeu Bobby. – É inofensivo. – Mate-o – disse o velho Cameron. – E jogue na lata de lixo. O filho se levantou, tirando uma das chinelas e empunhando-a numa das mãos.

Estava avançando para o canto, com o tornozelo exposto, quando o pai mudou de idéia. Big Billie levantou os olhos do prato com um sorriso exultante.

– Espere um instante, Bobby. Tenho uma idéia. Mulher, arrume-me um vidro. – Que espécie de vidro? – perguntou a Sra. Cameron. – Como vou saber que espécie de vidro? Quero um vidro que tenha tampa. A Sra. Cameron suspirou, contornou a víbora e foi abrir um dos armários.

Examinou o seu suprimento de vidros, anunciando em seguida: – Tenho um vidro de geléia cheio de ervilhas secas. – Guarde as ervilhas em outro lugar e me dê o vidro. Ela obedeceu e Bobby perguntou: – O que vai fazer, papai? – Temos um escuro lá no trabalho. Um pagão. Ele vem de uma terra em que há uma

porção de cobras. Estou pensando em me divertir à custa dele. Uma pequena brincadeira. Passe-me essa luva de forno, Jenny.

– Não vai precisar de luva – declarou Bobby. – Esse bicho não pode mordê-lo. – Não quero tocar nessa coisa nojenta. – Não tem nada de nojenta, papai. São criaturas muito limpas. – Você é um tolo, garoto, apesar de tudo o que aprende na escola. O Livro Santo

não diz "de barriga hás de andar e poeira hás de comer"? E pode estar certo de que essas coisas comem mais do que poeira. Não vou pôr a mão numa coisa tão nojenta.

Jenny entregou a luva ao pai. Com o vidro de geléia aberto na mão esquerda e a mão direita protegida pela luva, Big Billie Cameron aproximou-se da víbora. A mão direita desceu lentamente. Quando deu o golpe, foi bem rápida. Só que a pequena serpente foi ainda mais rápida. As pequenas presas cravaram-se inofensivamente na luva acolchoada, no meio da palma. Cameron nem percebeu, pois a ação ficou oculta de sua vista pela própria mão. Num instante, a serpente estava dentro do vidro, a tampa atarraxada. Todos viram a criatura se contorcer furiosamente lá dentro.

– Detesto essas coisas, inofensivas ou não – murmurou a Sra. Cameron. – Eu lhe agradeço se tirar isso da casa.

– É o que eu vou fazer agora mesmo, pois já estou atrasado – declarou o marido. Ele guardou o vidro de geléia na bolsa a tiracolo, onde já estava a caixa com o

lanche. Meteu o cachimbo e a bolsa de fumo no bolso direito do casaco e depois saiu para o carro. Chegou ao pátio da estação cinco minutos depois. Ficou surpreso ao constatar que o estudante indiano observava-o atentamente.

"Ele não pode ter clarividência", pensou Big Billie, enquanto seguiam para o sul, na direção de Newtownards e Comber.

Na metade da manhã, toda a turma já sabia da brincadeira que Big Billie pretendia fazer, com a ameaça de uma surra se contassem alguma coisa ao "escuro". Não havia a menor possibilidade de que isso acontecesse. Como o tal bicho era inofensivo, todos achavam que seria uma boa brincadeira. Somente Ram Lal continuou a trabalhar na mais completa ignorância, consumido por seus pensamentos e preocupações.

Ele deveria ter desconfiado de alguma coisa no intervalo para o almoço. A tensão era quase palpável. Os homens se sentaram em círculo ao redor da fogueira, como sempre, mas a conversa era pouca, quase nenhuma. Se não estivesse tão absorvido em suas preocupações, Ram Lal teria percebido os sorrisos disfarçados e os olhares rápidos lançados em sua direção.

Mas nada percebeu. Ajeitou a lancheira entre os joelhos e abriu-a. Enroscada entre

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os sanduíches e a maçã, a cabeça inclinada para trás, a fim de dar o bote, estava a víbora. O grito do indiano ressoou pela clareira, um momento antes da explosão de risadas

dos homens. E, ao mesmo tempo em que soltava o grito, Ram Lal arremessava a lancheira para

longe, com toda a sua força. Tudo o que havia lá dentro se espalhou em diversas direções, caindo pelo mato alto.

No instante seguinte ele estava de pé, berrando. Os homens riam incontrolavel-mente, Big Billie mais do que todos. Há muitos meses que ele não tinha a oportunidade de rir assim.

– É uma cobra, uma cobra venenosa! – berrou Ram Lal. – Saiam daqui, todos vocês! É uma cobra mortífera!

Os risos redobraram, os homens quase que não se agüentavam. A reação da vítima da brincadeira superava todas as expectativas.

– Por favor, creiam em mim! É uma serpente venenosa! O rosto de Big Billie estava avermelhado. Ele enxugou as lágrimas que escorriam

de seus olhos, sentado no outro lado da clareira, de frente para Ram Lal, que estava de pé, olhando ao redor freneticamente.

– Será que não sabe de nada, seu escuro ignorante? – disse ele. – Não há cobras na Irlanda.

Está me entendendo? Não há cobras na Irlanda. Os flancos doíam de tanto rir e Big Billie recostou-se na relva, estendendo as mãos

para trás, a fim de sustentar o corpo. Não percebeu as duas presas mínimas, como pequenos espinhos, cravando-se na veia na parte interior do pulso direito.

A brincadeira estava terminada e os homens famintos concentraram-se na comida. Relutantemente, Harkishan Ram Lal se sentou, correndo os olhos ao redor a todo

instante, uma caneca de chá fumegante pronta, comendo apenas com a mão esquerda, mantendo-se à distância da relva alta. Depois do almoço, todos voltaram ao trabalho. A velha destilaria estava quase no chão, as montanhas de escombros e vigas aproveitáveis estendidas ao sol de agosto, cobertas de poeira.

Eram três e meia quando Big Bille Cameron empertigou-se no meio do trabalho, encostou a picareta numa parede, passou a mão pela teta. Lambeu um pequeno inchaço na parte interna do pulso direito e depois recomeçou a trabalhar. Tornou a se empertigar cinco minutos mais tarde.

– Não estou me sentindo bem – disse ele a Patterson, que estava a seu lado. – Vou descansar um pouco na sombra.

Ficou sentado debaixo de uma árvore por algum tempo, depois apertou a cabeça entre as mãos.

Eram 16:15h quando, ainda apertando a cabeça, que dava a impressão que ia estourar a qualquer momento, Big Billie teve uma convulsão e tombou para o lado. Vários minutos se passaram antes que Tommy Burns o percebesse. Ele se adiantou e depois gritou para Patterson:

– Big Billie está doente. Não quer me responder. Os homens suspenderam o trabalho e se encaminharam para a árvore sob a qual o

capataz estava estendido. Os olhos vidrados contemplavam a relva a poucos centímetros de seu rosto.

Patterson inclinou-se para examiná-lo. Já estava há bastante tempo naquele negócio e tivera a oportunidade de ver vários homens mortos.

– Ram, você é que estuda medicina – disse ele. – O que acha? Ram Lal não precisava fazer um exame, mas tratou de fazê-lo. Nada falou quando

se empertigou, mas Patterson prontamente entendeu.

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– Fiquem todos aqui – disse ele, assumindo o comando. – Vou telefonar pedindo uma ambulância e avisar a McQueen.

Ele partiu pela trilha, a caminho da estrada. A ambulância chegou primeiro, meia hora depois.

Dois homens colocaram Cameron numa maca. Levaram-no para o Hospital Geral de

Newtownards, onde ficava a unidade de emergência mais próxima. O capataz foi ali registrado como morto ao chegar. Um McQueen extremamente preocupado chegou 30 minutos depois da ambulância.

Por causa das circunstâncias misteriosas da morte, era necessário realizar uma autópsia. E foi realizada pelo patologista da região de North Down, no necrotério municipal de Newtownards, para onde o corpo fora transferido. Isso aconteceu na terça-feira. Ao cair da tarde, o relatório do patologista estava a caminho do gabinete do juiz sumariante para a região de North Down, em Belfast.

O relatóri nada dizia de extraordinário. O morto era um homem de 41 anos, corpulento, muito forte. Havia diversos pequenos talhos e esfoladuras pelo corpo, especialmente nas mãos e pulsos, o que condizia perfeitamente com alguém que trabalhava em demolições. Nenhum deles estava, por qualquer forma, associado com a causa da morte. Não havia a menor dúvida de que esta fora uma intensa hemorragia cerebral, provavelmente provocada por um esforço extremo, em condições de grande calor.

Com base nesse relatório, o juiz sumariante normalmente não promoveria um inquérito, podendo emitir um atestado de óbito por causas naturais para o Registro Civil em Bangor. Mas havia uma coisa que Harkishan Ram Lal não sabia.

Big Billie Cameron fora um dos membros mais eminentes do conselho de Bangor da proscrita Força de Voluntários do Ulster, a organização paramilitar protestante da linha dura. O computador em Lurgan, para o qual são programadas todas as mortes na província do Ulster, por mais inocentes que possam parecer, destacou prontamente a de Big Billie. Alguém em Lurgan pegou o telefone e ligou para a Polícia Real do Ulster, sediada em Castlereagh.

Alguém de lá telefonou para o gabinete do juiz sumariante em Belfast e foi determinada a abertura de um inquérito formal. No Ulster, a morte não apenas devia ser acidental; era preciso que fosse também confirmada como acidental. O inquérito foi realizado no prédio da municipalidade em Bangor, na quarta-feira. Significava muita encrenca para McQueen, pois estava presente um fiscal de rendas. Também compareceram dois homens de convicções profundas, membros do conselho da Força de Voluntários do Ulster. Ficaram sentados nos fundos. A maioria dos colegas de trabalho do morto sentou-se na frente, perto da Sra. Cameron.

Somente Patterson foi chamado para prestar depoimento. Relatou os acontecimentos da segunda-feira, estimulado pelo juiz sumariante. Como não houvesse qualquer contestação, nenhum dos outros trabalhadores foi chamado, nem mesmo Ram Lal. O juiz sumariante leu em voz alta o relatório do patologista, que era bastante claro. Ao terminar, ele resumiu o caso, antes de apresentar seu veredicto:

– O relatório do patologista é bastante inequívoco. Já ouvimos o depoimento do Sr. Patterson sobre os acontecimentos do intervalo para o almoço, quando o falecido fez uma brincadeira talvez um tanto tola com o estudante indiano. Ao que tudo indica, o Sr. Cameron achou tanta graça, que riu a não mais poder, quase até a beira da apoplexia. O árduo trabalho subseqüente, com picareta e pá, ao sol intenso, fez o resto, provocando o rompimento de um grande vaso sangüíneo no cérebro. Ou, como diz o patologista, em termos mais médicos, uma hemorragia cerebral. Este tribunal apresenta suas condolências à viúva e aos filhos e declara que o Sr. William Cameron morreu de causas acidentais.

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Lá fora, no gramado que se estendia diante do prédio da municipalidade de Bangor, McQueen disse aos seus empregados:

– Serei justo com vocês, rapazes. A oferta de emprego ainda existe, mas não poderei mais deixar de descontar o imposto de renda e todo o resto, com os fiscais em cima de mim como estão. O enterro é amanhã e podem tirar o dia de folga. Os que quiserem continuar, podem se apresentar para o trabalho na manhã de sexta-feira.

Harkishan Ram Lal não compareceu ao funeral. Enquanto o enterro estava sendo realizado, no cemitério de Bangor, ele pegou um táxi e seguiu para Comber. Pediu ao motorista que ficasse esperando na estrada, enquanto descia rapidamente pela trilha. O motorista era um homem de Bangor e tomara conhecimento da morte de Cameron.

– Vai prestar homenagem ao morto no local, não é mesmo? – disse ele. – De certa forma, sim – respondeu Ram Lal. – É esse o costume do seu povo? – Pode-se dizer que sim. – Não vou dizer que é uma maneira melhor do que a nossa, à beira do túmulo –

comentou o motorista, acomodando-se para ler o jornal, enquanto esperava. Harkishan Ram Lal foi até a clareira e parou no lugar em que costumavam acender

a fogueira. Olhou ao redor, pela relva alta, o solo arenoso. – Visha serp – gritou ele, para a víbora escondida. – Ó, serpente venenosa, pode me

ouvir? Já cumpriu a missão para a qual eu a trouxe das colinas do Rajputana. Mas deveria ter morrido. Eu deveria tê-la matado pessalmente, se tudo tivesse transcorrido conforme planejei, jogando sua carcaça fétida no rio.

Ele fez uma pausa, esquadrinhando o terreno. – Está me ouvindo, ó mortífera? Pois então me escute. Pode viver mais algum

tempo, mas acabará morrendo, como todas as coisas morrem. E morrerá sozinha, sem qualquer fêmea para se acasalar, pois não há cobras na Irlanda.

A víbora de cabeça escamada não o ouviu; ou se ouviu, não deu o menor sinal de que entendera. No fundo de seu buraco, na terra quente por baixo dele, estava ocupada, totalmente absorvida em fazer o que a natureza determinava.

Na base da cauda de uma serpente existem duas escamas superpostas, que encobrem a cloaca. A cauda da víbora estava ereta, o corpo vibrava num ritmo primitivo. As escamas se entreabriram e da cloaca saíram, um a um, envoltos em sacos transparentes de três centímetros de comprimento, tão mortíferos ao nascer quanto a mãe, a dúzia de filhotes que ela estava pondo no mundo.

O IMPERADOR – E tem mais uma coisa – disse a Sra. Murgatroyd. Ao lado dela, no táxi, o marido disfarçou um pequeno suspiro. Com a Sra.

Murgatroyd, sempre havia mais uma coisa. Não importava o quanto tudo estivesse correndo bem, Edna Murgatroyd passava pela vida sob o acompanhamento de um rosário de queixas, uma litania interminável de insatisfação. Em suma, ela importunava o marido incessantemente, sem lhe dar um minuto de descanso.

No banco da frente, ao lado do motorista, Higgins, o jovem executivo da matriz, que fora escolhido para a semana de férias à custa do banco, por ter sido considerado "o mais promissor do ano", permaneceu em silêncio. Trabalhava no setor de câmbio, um jovem ambicioso, a quem eles haviam conhecido no aeroporto de Heathrow, 12 horas antes, cujo entusiasmo natural gradativamente se desvanecera, sob a investida avassaladora da Sra. Murgatroyd.

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O motorista creole, cheio de sorrisos e votos de boas-vindas quando escolheram seu táxi para a viagem até o hotel, alguns minutos antes, também ficara rapidamente contagiado pela disposição da passageira no banco traseiro, permanecendo igualmente em silêncio. Embora a sua língua natural fosse o francês creole, ele compreendia o inglês perfeitamente. Afinal a ilha Maurício fora uma colônia britânica por 150 anos.

Edna Murgatroyd continuou a falar, invariavelmente, uma fonte inesgotável de autocomiseração e indignação, alternadamente. Murgatroyd olhava pela janela, enquanto o aeroporto de Plaisance ficava para trás e a estrada seguia para Mahebourg, a antiga capital francesa da ilha, com os fortes em ruínas que haviam tentado defendê-la contra a esquadra britânica em 1810.

Murgatroyd estava fascinado pelo que via. Tomara a decisão de desfrutar plenamente aquelas pequenas férias numa ilha tropical, a primeira aventura verdadeira de sua vida. Antes da viagem, lera dois alentados guias turísticos sobre Maurício e estudara um mapa em larga escala da ilha.

Passaram por uma aldeia, no ponto onde começava a área de cultivo da cana-de-açúcar. Nos alpendres dos chalés à beira da estrada avistou indianos, chineses e negros, juntamente com os creoles métis, vivendo lado a lado. Templos hindus e santuários budistas erguiam-se a poucos metros de uma capela católica. Murgatroyd soubera, através de leituras, que Maurício era uma mistura de meia dúzia de grupos étnicos principais e quatro grandes religiões. Mas nunca antes vira nada assim, pelo menos convivendo em harmonia.

Passaram por outras aldeias, que não eram ricas e muito menos bem cuidadas. Mas os habitantes sorriram e acenaram. Murgatroyd acenou em resposta. Quatro galinhas esqueléticas pularam freneticamente diante do táxi, desafiando a morte por poucos centímetros. Quando ele olhou para trás, as galinhas estavam novamente no meio da estrada, bicando uma sobrevivência aparentemente impossível na poeira. O carro diminuía a velocidade ao se aproximar de uma esquina. Um garotinho tâmil saiu de uma cabana, usando bata, parou no meio-fio e levantou a roupa até a cintura. Estava inteiramente nu por baixo. Pôs-se a urinar na estrada, enquanto o táxi passava. Segurando a bata com uma das mãos, ele acenou com a outra. A Sra. Murgatroyd soltou um grunhido e exclamou:

– Mas que coisa repulsiva! – Inclinou-se para a frente e bateu no ombro do motorista, indagando:

– Por que ele não vai ao banheiro? O motorista jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Virou o rosto em

seguida, para responder. O carro fez as duas curvas seguintes por controle remoto. – Pas de toilette, madame. – O que isso significa? – Parece que a estrada é o banheiro – explicou Higgins. Ela fungou horrorizada. –

Ei, olhem só para o mar! – disse Higgins. À direita, ao passarem por um pequeno penhasco, o Oceano Índico estendia-se até o

horizonte, um azul deslumbrante ao sol da manhã. A cerca de um quilômetro da praia, havia uma linha branca de ondas a se desmancharem, indicando o grande recife que isola Maurício das águas mais turbulentas além. Por dentro dos recifes, a água era serena, de um verde claro, transparente, a tal ponto que se podia avistar claramente os conjuntos de coral, seis metros abaixo. Depois, o táxi tornou a se embrenhar pelos canaviais.

Cinqüenta minutos depois, passaram pela aldeia dos pescadores de Trou D'Eau Douce. O motorista apontou para a frente.

– Hôtel – disse ele. – Dix minutes. – Graças a Deus – resmungou a Sra. Murgatroyd. – Eu não agüentaria por muito

mais tempo neste calhambeque. Entraram no caminho do hotel, entre gramados bem cuidados e fileiras de

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palmeiras. Higgins virou-se para trás com um sorriso, comentando: – Uma grande distância de Ponder's End. Murgatroyd retribuiu o sorriso. – Tem toda razão. Não que ele não tivesse motivos para ser grato à comunidade suburbana londrina de

Ponder's End, onde era gerente de filial. Uma fábrica se instalara ali, quase seis meses antes. Num golpe de inspiração, Murgatroyd procurara tanto a direção como os operários, com a sugestão de que podiam atenuar o risco de um assalto ao dinheiro do pagamento, pagando-se os salários semanais em cheque, como se fazia com os executivos. Um pouco para sua surpresa, quase todos concordaram. Várias centenas de contas novas foram abertas em sua filial. Fora essa manobra bem-sucedida que atraíra a atenção na matriz. Alguém por lá sugerira um plano de incentivo a executivos regionais e juniores. Murgatroyd fora o escolhido no primeiro ano do plano. O prêmio era uma semana em Maurício, com tudo pago pelo banco.

O táxi finalmente parou diante da grande entrada em arcada do Hotel St. Geran. Dois empregados se adiantaram rapidamente para pegar a bagagem. A Sra. Murgatroyd saltou imediatamente do banco traseiro. Embora tivesse se aventurado apenas duas vezes a leste do estuário do Tâmisa, pois geralmente passavam as férias com a irmã dela em Bognor, a Sra. Murgatroyd começou no mesmo instante a reclamar com os carregadores, como se, numa vida anterior, tivesse a metade da população nativa à sua disposição.

Seguidos pelos carregadores e a bagagem, os três passaram pela entrada em arcada, penetrando no saguão fresco. A Sra. Murgatroyd seguia na vanguarda, o vestido estampado bastante amarrotado do vôo e da viagem de táxi. Higgins usava um elegante terno creme tropical, enquanto Murgatroyd estava com um austero terno cinzento. O balcão da recepção ficava à esquerda, guarnecido por um funcionário indiano, que exibiu um sorriso de boas-vindas.

Higgins assumiu o comando: – Sou o Sr. Higgins e meus companheiros são o Sr. Murgatroyd e sua mulher. O indiano consultou a lista de reservas. – Aqui estão seus nomes. Murgatroyd correu os olhos pelo saguão. Era feito de pedras locais, o teto muito

alto. Vigas escuras sustentavam o telhado. Estendia-se até as colunas na outra extremidade. Os lados também eram constituídos por colunas, permitindo a passagem de uma aragem fresca. Ao fundo, ele podia ver a claridade intensa do sol tropical, enquanto ouvia os ruídos e gritos de uma piscina em pleno uso. No meio do saguão, à esquerda, havia uma escada de pedra, que presumivelmente levava aos quartos do andar superior. No térreo, outra arcada levava às suítes que ali havia.

De uma sala por trás da recepção emergiu um jovem e louro inglês, de camisa bem passada e uma calça esporte clara.

– Bom-dia – disse ele, sorrindo. – Sou Paul Jones, o gerente-geral. – Sou Higgins. E esses são o Sr. Murgatroyd e sua mulher. – São muito bem-vindos – disse Jones. – E agora vou mostrar-lhes seus aposentos. Um vulto alto e magro aproximou-se pelo saguão. As pernas finas saíam por baixo

de um short, uma camisa florida bem folgada caía dos ombros. Não estava de sapatos, mas exibia um sorriso de felicidade e uma lata de cerveja na mão imensa. Parou a vários metros de Murgatroyd e fitou-o de alto a baixo.

– Recém-chegados, hem? – disse ele, com um evidente sotaque australiano. Murgatroyd ficou aturdido e balbuciou: – Hã... isso mesmo... – Qual é o seu nome? – perguntou o australiano, sem a menor cerimônia.

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– Murgatroyd – disse o gerente de banco. – Roger Murgatroyd. O australiano acenou com a cabeça, registrando a informação. – De onde você é? Murgatroyd interpretou a pergunta da maneira errada. Pensou que o homem

estivesse querendo saber como ele trabalhava. E foi por isso que respondeu: – Sou de Midland. O australiano levou a lata de cerveja aos lábios e tomou um gole. Soltou um arroto

antes de fazer outra pergunta: – Quem é ele: – É Higgins, da matriz. O australiano sorriu na maior felicidade. Piscou por várias vezes, procurando

focalizar melhor. E murmurou: – Gosto disso. Murgatroyd do Midland e Higgins da matriz. A esta altura, Paul Jones já vira a intromissão do australiano e saíra de trás do

balcão de recepção. Veio pegar o homem pelo cotovelo e afastou-o gentilmente. – Se quiser fazer a gentileza de voltar ao bar, Sr. Foster, para que eu possa instalar

confortavelmente os nossos novos hóspedes... Foster foi levado, gentil mas firmemente, para os fundos do saguão. Ao sair, acenou

com a mão cordialmente, gritando: – Prazer em conhecê-lo, Murgatroyd. Paul Jones tornou a se juntar aos hóspedes recém-chegados. A Sra. Murgatroyd

comentou, em tom gelado de desaprovação: – Aquele homem estava embriagado. – Ele está aqui de férias, minha cara – murmurou Murgatroyd. – Isso não é desculpa. Quem é ele? – Harry Foster – informou Jones. – De Perth. – Ele não fala como um escocês – declarou a Sra. Murgatroyd. – Perth, Austrália – explicou Jones. – E agora, permitam-me levá-los a seus

aposentos. Murgatroyd contemplou a vista do balcão do quarto com duas camas, no segundo

andar. E ficou deliciado. Lá embaixo, um pequeno gramado estendia-se até a areia branca, na qual as palmeiras dispersas projetavam sombras inconstantes, agitadas pela brisa. Dez cabanas abertas, de teto de colmo, proporcionavam uma proteção mais firme. As águas quentes, parecendo leitosas no ponto em que remexia a areia, desmanchavam-se suavemente na praia.

Mais além, era de um verde transparente, e ainda mais além parecia azul. A 500 metros de distância, ele pôde divisar a linha de recifes, onde a água se tornava espumante.

Um rapaz, o rosto cor de mogno por baixo dos cabelos louros, praticava windsurf, a uma centena de metros da praia. Equilibrado na pequena prancha, ele virava a vela na direção do vento, deslizando pela superfície da água sem qualquer esforço. Duas crianças bronzeadas, de cabelos e olhos pretos, brincavam na água rasa, gritando alegremente. Um europeu de meia-idade, barrigudo, o corpo brilhando de água, saía do mar em pés-de-pato, segurando a máscara e o respirador.

– Por Deus, há tanto peixe aqui que nem dá para acreditar! – gritou ele, com um sotaque sulafricano, para uma mulher que estava na sombra.

À direita de Murgatroyd, perto do prédio principal, homens e mulheres, envoltos em pareôs, seguiam para o bar da piscina, a fim de tomarem um drinque gelado antes do almoço.

– Vamos dar um mergulho – sugeriu Murgatroyd. – Poderemos fazer isso mais cedo, se você me ajudar a arrumar as coisas.

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– Deixe isso para depois. Só precisamos agora das roupas de banho, pelo menos até a hora do almoço.

– De jeito nenhum! – protestou a Sra. Murgatroyd. – Não pretendo almoçar como uma nativa.

Aqui estão o seu short e sua camisa. Em dois dias, Murgatroyd integrara-se no ritmo da vida de férias nos trópicos. Ou

pelo menos na medida em que lhe era permitido. Levantava cedo, como sempre fazia, mesmo quando estava em casa. Mas em vez de ser saudado pela perspectiva de ruas molhadas além das cortinas, sentava-se no balcão e ficava contemplando o sol se levantar do Oceano Índico, além dos recifes, fazendo as águas escuras e serenas brilharem subitamente, como vidro estilhaçado. Às sete horas ele descia para nadar um pouco, deixando Edna Murgatroyd na cama, com rolinhos nos cabelos, reclamando da lentidão no serviço do café da manhã, que, na verdade, era extremamente rápido e eficiente.

Ele passava uma hora na água quente. Em determinada ocasião, chegou a nadar quase 200 metros além da praia, ficando surpreso com a própria audácia. Nunca fora um grande nadador, mas estava melhorando rapidamente. Felizmente, a mulher não testemunhou a façanha, pois ela estava convencida de que tubarões e barracudas infestavam a enseada e nada era capaz de convencê-la que tais animais não podiam atravessar os recifes, que toda aquela área era tão segura quanto uma piscina.

Murgatroyd começou a tomar o café da manhã no terraço ao lado da piscina, juntando-se aos outros hóspedes madrugadores na escolha de melões, mangas e papaias, esquecendo os ovos com bacon, apesar de constarem do cardápio. Àquela hora, a maioria dos homens estava de calção e camisa de praia, enquanto as mulheres usavam túnicas de algodão ou pareôs por cima dos biquínis. Murgatroyd apegava-se a seus shorts, que desciam até os joelhos, e camisas de tênis, que trouxera da Inglaterra. A mulher se encontrava com ele na cabana de teto de colmo pouco antes das 10 horas, iniciando uma sucessão interminável de exigências de refrigerantes e aplicação de loção de bronzear, embora quase nunca se expusesse aos raios solares.

Ocasionalmente, ela baixava o corpo rosado na piscina do hotel, uma touca de babados protegendo a ondulação permanente. Nadava lentamente por alguns metros e logo saía da piscina.

Higgins, ficando sozinho, logo envolveu-se com um outro grupo de ingleses bem mais jovens. Os Murgatroyds quase nunca o encontravam. Higgins considerava-se um homem avançado e comprou na boutique do hotel um chapéu de palha de aba larga, como o que vira Hemingway usar numa fotografia. Também passava o dia de calção e camisa, aparecendo para jantar vestido como os outros, de calça esporte clara e blusão safári, de bolsos no peito. Depois do jantar, ele ia para o cassino ou a discoteca. E Murgatroyd ficava imaginando como seriam tais lugares.

Infelizmente, Harry Foster não guardara para si mesmo o seu senso de humor. Para os sulafricanos, australianos e britânicos, que constituíam o grosso da clientela, Murgatroyd do Midland tornou-se rapidamente conhecido. Higgins, no entanto, deu um jeito de perder o rótulo "da Matriz", através da assimilação dos hábitos locais. Involuntariamente, Murgatroyd tornou-se bastante popular. Ao atravessar o pátio na hora do café da manhã, de short comprido e sapatos de lona com solas de borracha, despertava alguns sorrisos e gritos joviais de "Bom-dia, Murgatroyd".

Encontrava-se de vez em quando com o inventor do seu rótulo. Harry Foster acenou-lhe por diversas vezes na passagem, absorvido numa nuvem pessoal. A mão direita parecia se abrir apenas para largar uma cerveja e pegar outra. A cada vez, o jovial australiano sorria efusivamente, levantava a mão livre num cumprimento e gritava:

– Prazer em vê-lo, Murgatroyd.

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Na terceira manhã, Murgatroyd saiu do mar depois do mergulho após a primeira refeição e foi se acomodar na cabana, apoiando as costas na estaca central. Olhou ao redor. O sol estava bem alto agora, o calor aumentava rapidamente, embora ainda fosse nove e meia. Murgatroyd examinou o seu corpo, que estava adquirindo uma tonalidade atraente de lagosta, apesar de todas as precauções e das advertências da mulher. Invejava as pessoas que conseguiam adquirir um bronzeado saudável a curto prazo. Ele sabia que a solução era manter o bronzeado, depois de adquirido, não revertendo ao branco de mármore entre as férias. Só que não havia a menor possibilidade em Bognor, pensou ele. As últimas três férias que lá haviam passado apenas lhes proporcionaram céus cinzentos e quantidades variáveis de chuva.

As pernas projetavam-se do calção grande, finas e cabeludas. Eram encimadas por uma barriga estofada. Os músculos do peito estavam flácidos. Anos sentado a uma mesa haviam lhe ampliado o traseiro, enquanto os cabelos escasseavam. Os dentes ainda eram todos seus e usava óculos apenas para ler, numa dieta que consistia quase que exclusivamente de relatórios de companhias e contas bancárias.

O rugido de um motor espalhou-se pela água. Murgatroyd levantou a cabeça e avistou uma pequena lancha aumentando a velocidade. Uma corda pendia na esteira da lancha, uma cabeça boiando na água ao final. Enquanto Murgatroyd observava, a corda ficou subitamente esticada e o esquiador emergiu da água, um jovem hóspede do hotel, espalhando espuma para os lados, deslizando pela água. Usava um único esqui, um pé na frente do outro, deixando para trás uma esteira de espuma. O homem na lancha virou a roda do leme e o esquiador descreveu uma grande curva, passando perto da praia, diante de Murgatroyd. Os músculos retesados, o corpo se equilibrando contra as ondulações produzidas pela lancha, ele parecia esculpido em carvalho.

O som de sua risada triunfante estendeu-se pela água, enquanto a lancha aumentava a velocidade. Murgatroyd ficou contemplando e invejando o rapaz.

Sabia que, aos 50 anos, era baixo, gordo e fora de forma, apesar das tardes de verão no clube de tênis. Faltavam apenas quatro dias para o domingo, quando ele embarcaria num avião e iria embora, para nunca mais voltar. Provavelmente passaria mais dez anos em Ponder's End e depois se aposentaria, talvez indo viver em Bognor.

Ele olhou ao redor e divisou uma moça andando pela praia, à sua esquerda. A boa educação deveria impedi-lo de ficar olhando para a moça. Mas ele não pôde evitar. Ela estava descalça, caminhava empertigada, com a graça intensa das moças da ilha. A pele era de um dourado intenso, sem a ajuda de óleos ou loções. Usava um pareô branco de algodão, com desenhos em vermelho, amarrado sob o braço esquerdo e caindo até pouco abaixo dos quadris. Murgatroyd calculou que ela devia estar usando alguma coisa por baixo. Uma lufada de vento grudou o pareô no corpo, delineando por um momento os seios firmes e a cintura estreita. Mas logo o vento se desvaneceu e o algodão se separou do corpo.

Murgatroyd percebeu que se tratava de uma creole clara, de olhos escuros, malares salientes, cabelos escuros lustrosos, que caíam em ondas pelas costas. Ao passar por ele, a moça virou-se e presenteou alguém com um sorriso feliz, Murgatroyd ficou aturdido. Não sabia que havia mais alguém por ali. Olhou ao redor, freneticamente, procurando a pessoa para quem a moça sorrira. Só que não havia ninguém. Quando ele tornou a virar-se para o mar, a moça sorriu outra vez, os dentes brancos rebrilhando ao sol da manhã. Ele tinha certeza de que não haviam sido apresentados. Portanto, o sorriso devia ser espontâneo. Para um estranho, Murgatroyd tirou os óculos e retribuiu o sorriso, gritando:

– Bom-dia. – Bonjour, m'sieu. A moça seguiu adiante e Murgatroyd continuou a observá-la. Os cabelos escuros

desciam até os quadris, que ondulavam gentilmente sob o algodão branco.

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– Para começar, pode parar de pensar nessas coisas – disse uma voz por trás dele. A Sra. Murgatroyd chegara e estava também olhando para a moça que se afastava. – Que garotinha vulgar! – acrescentou ela, sentando-se à sombra em seguida. Dez minutos depois, Murgatroyd olhou para a mulher. Ela estava absorvida em

mais um romance histórico, de uma autora popular, dos quais trouxera um amplo suprimento. Murgatroyd olhou novamente para o mar, imaginando como era possível que a mulher demonstrasse um apetite tão insaciável pelo romance de ficção, ao mesmo tempo em que o desaprovava intensamente na vida real. Era uma indagação que já se fizera muitas vezes antes. O casamento deles jamais se destacara por um amor ardente, mesmo nos primeiros dias, antes da mulher declarar que desaprovava aquele tipo de coisa e que ele estava redondamente enganado se pensava que havia alguma necessidade de insistir. Desde então, por mais de 20 anos, Murgatroyd ficara escravizado a um casamento sem amor, o tédio sufocante só animado ocasionalmente por uma aversão intensa.

Certa ocasião, ouvira alguém dizer a outro sócio, no vestiário do clube de tênis, que ele já deveria ter dado uma surra na mulher há muitos anos. Murgatroyd ficara furioso naquele momento, pensando inclusive em sair de trás dos armários e censurar com veemência o autor do comentário. Mas se controlara, reconhecendo que o homem provavelmente estava certo. O problema era que ele nunca fora o tipo de homem de dar uma surra em quem quer que fosse.

Além do mais, duvidava muito que isso fosse melhorar sua mulher de alguma forma. Sempre fora sossegado e manso, mesmo quando rapaz. Era perfeitamente capaz de dirigir um banco, mas em casa a mansidão degenerara em passividade e depois em submissão. O fardo dos pensamentos íntimos acabou por se manifestar num suspiro prolongado.

Edna Murgatroyd fitou-o por cima dos óculos e disse: – Se está com gases, é melhor tomar logo um remédio. Foi ao final da tarde de sexta-feira que Higgins abordou-o no saguão, enquanto ele

esperava que a mulher saísse do banheiro. – Preciso falar com você... a sós – sussurrou Higgins, pelo canto da boca, com um

ar furtivo suficiente para atrair as atenções gerais por quilômetros ao redor. – Não pode falar aqui? – Não – sussurrou Higgins, contemplando uma samambaia. – Sua mulher pode

voltar a qualquer momento. Siga-me. Ele afastou-se com uma exibição ostensiva de indiferença, avançando vários metros

pelo jardim, indo postar-se atrás de uma árvore, na qual se encostou e ficou esperando. Murgatroyd foi atrás dele.

– Qual é o problema? – perguntou ele, ao alcançar Higgins, na escuridão do jardim. Higgins olhou para o saguão iluminado, a fim de certificar-se que a cara-metade de

Murgatroyd não o estava seguindo. – O negócio é uma pescaria em alto-mar – disse ele finalmente. – Já fez alguma? – Claro que não. – Nem eu. Mas gostaria muito. Por uma vez que fosse. Só para experimentar. Três

empresários de Johannesburg reservaram um barco para amanhã de manhã. Mas não poderão mais sair. O barco está disponível, com a metade do custo paga, porque eles perderam o direito ao depósito adiantado. O que acha da idéia? Vamos aproveitar?

Murgatroyd ficou surpreso por ter sido convidado. E perguntou: – Por que não procura dois companheiros do grupo com quem está se divertindo? Higgins deu de ombros. – Eles preferem passar o último dia com suas garotas e elas não querem ir. Vamos

experimentar, Murgatroyd.

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– Quanto custa? – Normalmente, o preço é de cem dólares por cabeça. Mas como a metade do custo

já foi paga, dá apenas 50 dólares para cada um. – Por algumas horas? Isso dá 25 libras. – Exatamente 25 libras e 75 pence – disse Higgins, automaticamente, pois

trabalhava em câmbio. Murgatroyd fez alguns cálculos rápidos. Com o táxi de volta ao aeroporto e as

várias despesas extras para levá-lo até sua casa em Ponder's End, só lhe restava pouco mais do que essa quantia. O saldo seria requisitado pela Sra. Murgatroyd para compras livres de impostos e presentes para a irmã em Bognor. Ele sacudiu a cabeça.

– Edna jamais concordaria. – Não conte a ela. – Não contar? Murgatroyd ficou consternado com a idéia, mas Higgins insistiu: – Isso mesmo. – Ele inclinou-se para a frente e Murgatroyd pôde sentir o cheiro de

álcool. – Ela fará o diabo depois, mas isso sempre acontece, de qualquer maneira. Pense nisso.

Provavelmente nunca mais voltaremos aqui. Provavelmente nunca mais tornaremos a ver o Oceano Índico. Sendo assim, por que não?

– Não sei... – Será apenas uma manhã em alto-mar, numa pequena embarcação. O vento em

seus cabelos, as linhas estendidas para o bonito, atum e papa-terra. Podemos até pegar um peixe. Na pior das hipóteses, será uma aventura para contarmos a todos os amigos e conhecidos, quando voltarmos a Londres.

Murgatroyd empertigou-se. Estava pensando no rapaz do esqui, deslizando pela água.

– Está certo – disse ele. – Pode contar comigo. Quando vamos sair? Ele pegou a carteira e tirou três cheques de viagem no valor de 10 libras cada um,

deixando apenas mais dois. Assinou na última linha e entregou a Higgins. – Vamos partir bem cedo – sussurrou Higgins. – Temos de nos levantar às quatro

horas da madrugada. Saímos daqui de carro às quatro e meia. Chegamos no porto às cinco horas.

Zarpamos quando faltarem 15 minutos para as seis horas, a fim de chegarmos aos pesqueiros pouco antes das sete horas. É a melhor ocasião, ao amanhecer. O gerente de atividades especiais do hotel vai nos acompanhar. Ele sabe de tudo. Tornaremos a nos encontrar no saguão, às quatro e meia.

Ele voltou para o saguão e encaminhou-se para o bar. Murgatroyd seguiu-o, espantado com a própria ousadia. Encontrou a mulher a esperá-lo, irritada. Acompanhou-a ao restaurante.

Murgatroyd quase não dormiu naquela noite. Embora tivesse um pequeno despertador, não se atreveu a usá-lo, com receio de que a mulher pudesse acordar. Também não podia dormir demais e deixar que Higgins batesse na porta às quatro e meia. Cochilou por diversas vezes, até que viu os ponteiros luminosos se aproximando das quatro horas. Além das cortinas, a escuridão ainda era total.

Ele saiu da cama sem fazer qualquer barulho e olhou para a Sra. Murgatroyd. Ela estava de costas, como sempre, respirando ruidosamente, o arsenal de rolinhos mantidos no lugar por uma rede. Ele largou o pijama na cama silenciosamente e vestiu a cueca. Pegou os sapatos de lona, o short e a camisa, saiu do quarto e fechou a porta. Terminou de vestir-se no corredor às escuras, estremecendo com o frio inesperado.

No saguão, encontrou Higgins e o guia, um sul-africano alto e magro, chamado

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Andre Kilian, que estava encarregado de todas as atividades esportivas para os hóspedes. Kilian olhou para os trajes dele e disse:

– Faz muito frio no mar antes do amanhecer e fica terrivelmente quente depois que o sol aparece. O sol poderá fritá-lo por lá. Não tem uma calça comprida e um blusão de mangas compridas?

– Não pensei que fosse necessário – murmurou Murgatroyd. – De qualquer forma, não tenho.

Ele não se atreveria a voltar ao quarto agora. – Tenho um de sobra – disse Kilian, entregando-lhe um pulôver. – Vamos embora. Viajaram por 15 minutos pelos campos às escuras, passando por cabanas em que

uma luz indicava que alguém mais já estava desperto. Saíram finalmente da estrada principal para o pequeno porto de Trou d'Eau Douce, a Enseada da Água Doce, assim chamada por algum capitão francês, há muito desaparecido, que devia ter encontrado uma fonte de água potável ali.

As casas da aldeia estavam às escuras e silenciosas, mas Murgatroyd pôde divisar os contornos de uma embarcação no porto, com vultos trabalhando no convés, à luz de tochas. Pararam perto do cais de madeira. Kilian tirou um frasco de café quente do porta-luvas e ofereceu-o. O café caiu agradavelmente.

O sul-africano saltou do carro e foi até o barco atracado. Trechos de conversa em voz baixa, em francês creole, flutuaram até o carro. É estranho como as pessoas sempre falam em voz baixa na escuridão que antecede o amanhecer.

Ele voltou dez minutos depois. Havia agora uma listra pálida no horizonte a leste, umas poucas nuvens baixas brilhando debilmente por lá.

– Podemos embarcar agora – comunicou Kilian. Ele pegou uma caixa refrigerada na traseira do carro, que mais tarde proporcionaria

a cerveja gelada. Levou-a para o cais, junto com Higgins. Murgatroyd levou as mochilas com o lanche e mais dois frascos de café.

O barco não era um dos modelos novos, luxuosos, de fibra de vidro, mas sim uma velha embarcação, de casco de madeira e convés de tábuas de compensado. Tinha uma pequena cabine perto da proa, que parecia estar apinhada com os equipamentos mais diversos. A estibordo da porta da cabine havia uma cadeira estofada, de frente para a roda do leme e os controles básicos. Essa área era coberta. A área posterior era descoberta, com bancos de madeira nos dois lados. Na popa havia uma cadeira giratória, como as que se pode encontrar num escritório, só que esta tinha diversas correias pendendo soltas e estava aparafusada no convés.

Nos lados do convés de popa havia duas varas projetando-se para fora, inclinadas. Murgatroyd pensou a princípio que fossem caniços de pesca, mas soube posteriormente que eram outriggers para evitar que as linhas se emaranhassem.

Um velho estava sentado na cadeira do comandante, uma das mãos na roda do leme, observando em silêncio os últimos preparativos. Kilian ajeitou a caixa com a cerveja debaixo de um banco e gesticulou para que os outros sentassem. Um garoto mal entrado na adolescência desprendeu o cabo de atracação da popa e jogou-o no convés. Um aldeão fez a mesma coisa na proa e depois empurrou o barco para longe do cais. O velho ligou os motores e se pôde sentir um tremor intenso sob os pés. O barco virou a proa lentamente.

O sol subia depressa agora, estando apenas um pouco abaixo da linha do horizonte. Murgatroyd podia ver claramente agora as casas da aldeia, à beira da enseada, a fumaça se elevando, enquanto as mulheres preparavam o café da manhã. Mais alguns minutos e as últimas estrelas se desvaneceram. O céu adquiriu uma tonalidade azul-clara, hastes de luz projetaram-se pela água. Uma brisa repentina, procedente de lugar nenhum e indo para lugar nenhum, agitou a superfície da enseada, fazendo com que a luz se rompesse em fragmentos

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prateados. E logo a brisa desapareceu. A superfície voltou a ficar serena, rompida apenas pela longa esteira do barco, saindo da proa e estendendo-se até o cais. Murgatroyd olhou para o lado e pôde divisar as formações de corais, a quatro braças de profundidade.

– E agora vou fazer as apresentações. – Com a claridade aumentando, a voz de Kilian soava mais forte. – Este barco é o Avant, que em francês significa Para Frente. É velho, mas firme como um rochedo; já contribuiu para se pegar muitos peixes. O capitão é Monsieur Patient e esse é o seu neto, Jean-Paul.

O velho virou-se e acenou com a cabeça, cumprimentando os passageiros. Ele vestia uma camisa azul de lona e uma calça igual, da qual saíam os pés descalços e curtidos. O rosto era escuro e encarquilhado, como uma nogueira velha, encimado por um velho chapéu.

Contemplava o mar com olhos envoltos por coroas de rugas, de uma vida inteira observando as águas de uma claridade intensa.

– Monsieur Patient vem pescando nestas águas pelo menos há 60 anos – disse Kilian. – Nem ele próprio sabe com certeza há quanto tempo e ninguém mais é capaz de se lembrar. Conhece o mar o conhece o peixe. Esse é o segredo para apanhá-lo.

Higgins tirou uma câmara da sacola a tiracolo e disse: – Eu gostaria de tirar uma foto. – Acho melhor esperar alguns minutos – sugeriu Kilian. – E segure-se firme.

Estaremos passando pelos recifes daqui a pouco. Murgatroyd olhava fixamente para os recifes que se aproximavam. Do balcão do

seu quarto no hotel, parecia aprazível, a espuma como leite. De perto agora, no entanto, podia ouvir o rumor das ondas a se chocarem contra as formações de coral, desfazendo-se nas pontas afiadas que afloravam logo abaixo da superfície. Ele não conseguiu divisar qualquer abertura na linha dos recifes.

Pouco antes de chegar à linha dos recifes, o velho Patient deu uma guinada para a direita no leme. O Avant ficou paralelo à espuma branca, a cerca de 20 metros de distância. E de repente ele avistou o canal. Ficava entre duas formações de coral que se estendiam paralelas, com uma passagem estreita separando-as. Cinco segundos depois, estavam no canal, com ondas à esquerda e à direita, avançando paralelos à praia, para leste. Quando as ondas se esbatiam, o Avant sacudia-se todo.

Murgatroyd olhou para baixo. Havia ondas espumantes nos dois lados agora. Mas quando a espuma se retirava, no seu lado, podia divisar a formação de coral, a três metros de distância, parecendo muito frágil, mas afiada como navalha ao contato. Bastava roçar e era capaz de cortar ao meio barco ou homem, com uma facilidade desdenhosa. O capitão parecia nem estar olhando. Continuava sentado, uma das mãos na roda do leme, a outra na alavanca de controle, olhando fixamente para a frente através do pára-brisa, como se recebesse sinais de algum farol no horizonte, que apenas ele conhecia. Ocasionalmente, ele dava uma guinada na roda ou empurrava a alavanca para a frente, aumentando a velocidade e fazendo com que o Avant escapasse a alguma nova ameaça. Murgatroyd podia ver apenas as ameaças, que passavam, frustradas, diante de seus olhos.

Tudo acabou em 60 segundos que pareceram uma eternidade. À direita, a linha dos recifes continuava. No lado esquerdo, porém, terminava abruptamente. Haviam passado pela abertura.

O comandante do Avant virou a roda do leme, apontando a proa para alto-mar. No mesmo instante, foram apanhados pela terrível ondulação do Oceano Índico. Murgatroyd compreendeu que aquele não era um barco para homens de estômago delicado e rezou para não se desgraçar.

– Observou bem aquele maldito coral, Murgatroyd? – indagou Higgins. Kilian sorriu.

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– Uma coisa espetacular, não é mesmo? Querem café? – Acho que gostaria agora de algo mais forte – comentou Higgins. – Pensamos em tudo – informou Kilian. – Há conhaque aqui dentro. Ele destampou o segundo frasco térmico. O garoto começou a preparar os caniços.

Eram quatro, que ele tirou da cabine, caniços resistentes, de fibra de vidro, com cerca de dois metros e meio de comprimento, o meio metro inferior envolto em cortiça, para que se pudesse pegar mais firmemente. Cada caniço tinha uma imensa carretilha, contendo 800 metros de linha de náilon.

As pontas eram de latão, com uma depressão no meio para se ajustar aos encaixes da amurada, a fim de não girar. O garoto ajeitou cada caniço em seu encaixe, prendendo com cordas, para que não caíssem no mar.

A primeira beirada do sol ergueu-se do oceano e espalhou seus raios pelo mar revolto. Em poucos minutos, a água escura tornou-se azul, ficando mais clara e verde à medida que o sol subia.

Murgatroyd equilibrou-se contra o balanço do barco, enquanto tentava tomar o café, observando fascinado os preparativos que o garoto fazia. Ele pegou numa mesa vários pedaços de fio de aço, de comprimentos diversos, e uma seleção de iscas diferentes. Algumas pareciam como filhotes rosas ou verdes de lula, feitas em borracha mole. Havia penas de frango vermelhas e brancas, iscas que faiscavam na água a fim de atrair as atenções de predadores. Havia também chumbadas grossas, em formato de charuto, com um gancho na ponta, por onde se prendiam na linha.

O garoto perguntou alguma coisa em creole ao avô e o velho grunhiu uma resposta. O garoto selecionou duas iscas de lula, uma pena e uma isca que lembrava uma colher. Cada uma tinha um fio de aço a prendê-la, com cerca de um palmo de comprimento, tendo um ou três anzóis na outra extremidade. Havia também em cada anzol uma chumbada, a fim de manter a isca logo abaixo da superfície, enquanto corria pela água. Kilian notou as iscas que estavam sendo usadas e explicou:

– Aquela spinner, a que está faiscando, serve para pegar alguma barracuda. As lulas e a pena servem para os dourados e bonitos, talvez mesmo um grande atum.

Monsieur Patient alterou subitamente o curso e todos se inclinaram para descobrir o motivo. Não havia nada à frente, até o horizonte. Sessenta segundos depois, no entanto, eles divisaram o que o velho já havia percebido. Ao longe, pássaros marinhos mergulhavam e circulavam sobre o mar, pequenos pontos prateados na distância.

– São andorinhas-do-mar – explicou Kilian. – Avistaram um cardume de peixes pequenos e estão mergulhando para pegá-los.

– E nós estamos interessados em peixes pequenos? – indagou Higgins. – Claro que não. Mas outros peixes estão. Os pássaros constituem o nosso aviso do

cardume. Mas o bonito caça espadilha e o mesmo acontece com o atum. O capitão virou-se e acenou com a cabeça para o garoto, que começou a lançar as

linhas preparadas na esteira do barco. Enquanto cada uma balançava freneticamente na espuma, o garoto desprendia a carretilha a que estava ligada, deixando-a rodar livremente. A isca e a chumbada se afastavam pela esteira, até desaparecerem por completo. O garoto deixou a linha correr, até ter certeza de que estava a mais de 30 metros do barco. Depois, tornou a trancar a carretilha. A ponta do caniço inclinou-se ligeiramente, agüentando a pressão e pondo-se a rebocar a isca. Em algum ponto muito além, na água esverdeada, as iscas e os anzóis estavam correndo firmemente logo abaixo da superfície, como um peixe a nadar velozmente.

Havia dois caniços em encaixes na popa do barco, um no canto esquerdo, outro no direito. Os dois restantes estavam em encaixes nos lados. As linhas estavam presas a argolas

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grandes, ajustadas no alto dos outriggers. A inclinação dos outriggers evitaria que as linhas externas se misturassem com as internas, todas correndo paralelas pela água. Se um peixe mordesse a isca e houvesse um puxão, a linha se soltaria da argola. A pressão seria diretamente da carretilha para o peixe.

– Algum de vocês já pescou antes? – indagou Kilian. – Murgatroyd e Kilian sacudiram a cabeça e ele então acrescentou: – Neste caso, é melhor eu mostrar o que acontece quando um peixe morde a isca. Não vai demorar a acontecer. Venham dar uma olhada.

O sul-africano sentou na cadeira de pescaria e pegou um dos caniços. – Quando um peixe morde a isca, a linha é bruscamente puxada pela carretilha, que

emite um grito estridente. É assim que sabemos. Quando isso acontece, o homem que está na vez senta aqui e Jean-Paul ou eu lhe entregamos o caniço. Entendido?

Os ingleses assentiram. – A ponta do caniço é colocada neste encaixe entre as coxas. Prende-se o caniço em

seguida à cadeira, com esta corda. Assim, se o caniço for arrancado das mãos de quem estiver pescando no momento, não o perderemos e ao resto do equipamento. E agora olhem para isto aqui...

Kilian apontou para uma roda de latão com aros, no lado da carretilha. Murgatroyd e Higgins acenaram com a cabeça.

– Este é o controle. No momento, está armado para uma pressão muito leve, em torno dos três quilos. Assim, quando o peixe morde a isca, a linha vai correr. A carretilha gira rapidamente e o som que produz se assemelha a um grito. Quando um de vocês estiver em posição... e é melhor fazê-lo rapidamente, pois assim terá que puxar menos linha depois... deve empurrar o controle para a frente, bem devagar, deste jeito. O efeito é endurecer a carretilha, até que a linha páre de correr. O peixe passa a ser rebocado pelo barco, ao invés de ficar puxando a linha.

Kilian fez uma pausa, olhando para os dois ingleses, antes de continuar: – Depois disso, começa-se a recolher o peixe. Segurem na cortiça aqui com a mão

esquerda e rodem a carretilha. Se estiver muito pesado, segurem na cortiça com as duas mãos e levantem o caniço, até colocá-lo na vertical. Baixem então a mão direita para a carretilha e comecem a enrolar a linha, ao mesmo tempo em que descem lentamente a ponta do caniço, na direção da popa. Isso facilita tudo. Se necessário, repitam o processo, segurando na cortiça com as duas mãos, suspendendo o caniço, inclinando para a frente em seguida, ao mesmo tempo em que recolhem a linha. Acabarão vendo o peixe surgir na espuma por trás da popa. O garoto vai então arpoar o peixe e puxá-lo para bordo.

– O que representam as marcações na carretilha? – perguntou Higgins. – Indicam o máximo de pressão possível – informou Kilian. – Estas linhas têm uma

tensão máxima de 60 quilos. Com a linha molhada, podem fazer uma redução de 10 por cento. Como medida de segurança, a carretilha está armada de forma que, quando as marcas opostas estiverem no mesmo ponto, só dê linha quando a pressão na outra extremidade for de 45 quilos.

Mas agüentar uma pressão de 45 quilos por muito tempo, para não falar de puxá-lo, é suficiente para quase lhes arrancar os braços fora. Assim, acho que não precisamos nos preocupar com isso.

– Mas o que acontece se pegarmos um peixe grande? – insistiu Higgins. – Neste caso, a única coisa a fazer é tentar cansá-lo – respondeu Kilian. – É o

momento em que a batalha começa. É preciso dar linha, depois puxar, dar mais linha, puxar novamente, assim por diante, até que o peixe esteja tão exausto que não possa mais fazer força. Mas cuidaremos disso, se acontecer.

Enquanto ele falava, o Avant alcançou a área sobrevoada pelas aves marinhas,

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tendo percorrido a distância de cinco quilômetros em 30 minutos. Monsieur Patient reduziu a velocidade e foram deslizando através do cardume invisível lá embaixo. As pequenas aves circulavam incansavelmente a seis ou sete metros acima do mar, cabeças abaixadas, asas esticadas, até que os olhos aguçados divisavam algum brilho entre as colinas de água. Mergulhavam então, as asas esticadas para trás, o bico penetrando primeiro na água. Um segundo depois, a mesma ave emergia com uma mancha prateada a se debater no bico e desaparecendo pela goela um instante mais tarde. A busca daquelas aves era tão interminável quanto sua energia.

– Vamos decidir quem fica com o primeiro peixe, Murgatroyd – disse Higgins. – Vamos tirar a sorte.

Ele tirou uma rúpia mauriciana do bolso. A moeda foi jogada para o alto Higgins ganhou. Poucos segundos depois, um dos caniços interiores balançou violentamente. A carretilha emitiu um som que elevou-se de um ganido para um grito alto.

– É meu! – berrou Higgins, deliciado, acomodando-se rapidamente na cadeira giratória.

Jean-Paul entregou-lhe o caniço, a linha ainda se desenrolando, só que mais devagar agora.

Higgins ajeitou a ponta do caniço no encaixe e prendeu-o com a corda na cadeira. Depois, começou a fechar o controle da carretilha. A linha que se desenrolava parou quase que no mesmo instante. A ponta do caniço se inclinou. Segurando na cortiça com a mão esquerda, Higgins começou a rodar a carretilha, recolhendo a linha, com a mão direita. O caniço inclinou-se mais um pouco, mas ele continuou a recolher a linha.

– Posso sentir a pressão na linha! – balbuciou Higgins. Ele continuou a girar a carretilha. A linha era recolhida sem qualquer objeção. Jean-

Paul inclinou-se sobre a popa. Pegando a linha, ele suspendeu um pequeno peixe prateado para bordo.

– Um bonito, com quase dois quilos – comentou Kilian. O garoto pegou um alicate e tirou o anzol da boca do bonito. Murgatroyd viu que

por cima da barriga prateada o peixe era listrado, em azul e preto, como uma cavala. Higgins parecia desapontado. A nuvem de andorinhas-do-mar ficou para trás. Tinham passado pelo cardume.

Passava um pouco das oito horas e o convés estava esquentando, embora ainda fosse bastante agradável. Monsieur Patient virou o Avant lentamente, descrevendo um círculo, a fim de voltar para o meio do cardume e a nuvem de aves a sobrevoá-lo, enquanto o neto tornava a lançar a isca e o anzol no mar, para outra tentativa.

– Talvez possamos comê-lo no almoço – disse Higgins. Kilian sacudiu a cabeça, com uma expressão pesarosa, e explicou: – O bonito serve para isca. Os nativos comem em sopa, mas o gosto não é dos

melhores. Passaram novamente pelo cardume e outro peixe mordeu a isca. Murgatroyd pegou

no caniço com uma emoção intensa. Era a primeira vez que fazia aquilo e talvez nunca mais tornasse a fazer. Quando segurou na cortiça, pôde sentir a pressão do peixe 70 metros abaixo, como se estivesse bem perto dele. Empurrou para a frente o controle da carretilha, lentamente, até que a linha de correr ficou imóvel e silenciosa. A ponta do caniço curvou-se para a frente, na direção do mar. Com o braço esquerdo, agüentou a pressão, ficando surpreso com a força que era necessária para recolher a linha.

Retesando os músculos do braço esquerdo, ele começou a girar a carretilha metodicamente, com a mão direita. Foi recolhendo a linha, mas com um grande esforço. A força que puxava do outro lado surpreendeu-o. Talvez fosse um peixe grande, pensou ele, um peixe até muito grande. Compreendeu que era justamente essa a emoção. Nunca saber

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com certeza como era o gigante das profundezas que estava lutando freneticamente na esteira do barco. E se não fosse grande coisa, algo como o bonito que Higgins já pescara, então o próximo poderia ser um monstro. Murgatroyd começou a girar a carretilha lentamente, sentindo o peito arfar com o esforço. Quando o peixe estava a 200 metros do barco, pareceu desistir abruptamente.

Murgatroyd recolheu o resto da linha com a maior facilidade. Pensava ter perdido o peixe, mas lá estava. Deu um último puxão, ao chegar perto da popa, depois a luta acabou. Jean-Paul arpoouo e suspendeu-o. Era outro bonito, maior, com mais de quatro quilos.

– Bem grande, não é mesmo? – disse Higgins, muito excitado. Murgatroyd acenou com a cabeça e sorriu. Seria algo para contar quando voltasse a

Ponder's End. No leme, o velho Patient fixou um novo curso, seguindo para um trecho de água azul profunda, que podia divisar, a vários quilômetros de distância. Observou o neto tirar o anzol da boca do bonito e resmungou-lhe alguma coisa. O garoto tirou o fio de aço com a isca e guardou na caixa. Foi colocar o caniço no encaixe, a extremidade da linha solta. Adiantou-se em seguida e foi assumir a roda do leme. O avô disse-lhe mais alguma coisa e apontou pelo pára-brisa. O garoto assentiu.

– Não vamos mais usar aquele caniço? – perguntou Higgins. – Monsieur Patient deve ter outra idéia – disse Kilian. – Deixe tudo com ele. É um

homem que sabe o que faz. O velho avançou com a maior facilidade pelo balouçante convés até o lugar em que

eles estavam. Sem dizer nada, sentou-se ao lado do embornal, com as pernas cruzadas, pegando o bonito menor e começando a prepará-lo como isca. O pequeno peixe estava duro como uma tábua na morte, as barbatanas na cauda esticadas para cima e para baixo, a boca entreaberta, os olhinhos pretos fitando o nada.

Monsieur Patient tirou da caixa um anzol grande, cuja haste estava presa a um fio de aço com cerca de meio metro de comprimento, além de uma agulha de aço, com 30 centímetros de comprimento, parecendo uma agulha de tricô. Enfiou a agulha pelo orifício anal do peixe.

Continuou a empurrar até que a ponta ensangüentada saiu pela boca. Prendeu na outra extremidade da agulha o fio de aço e com um alicate puxou a agulha pelo corpo do bonito, até que a ponta do fio saiu pela boca.

O velho empurrou a haste do anzol bem fundo na barriga do peixe, até que tudo desapareceu, exceto a ponta curva e afiada do anzol. Ficou sobressaindo para fora e para baixo na base da cauda, a ponta virada para a frente. Puxou o resto do fio pela boca do peixe, até ficar esticado.

Pegou em seguida uma agulha bem menor, mais ou menos do tamanho que uma dona-de-casa usaria para cerzir as meias do marido, junto com um metro de fio de algodão. A barbatana dorsal única e as duas barbatanas ventrais do bonito estavam caídas. O velho passou a linha de algodão pela espinha levando à barbatana dorsal, por diversas vezes, depois passou a agulha pelos músculos por trás da cabeça. Ao puxar o fio, a barbatana dorsal se ergueu, assim como as diversas espinhas e membranas que proporcionavam estabilidade vertical na água. Fez a mesma coisa com as barbatanas ventrais e finalmente fechou a boca, costurando-a com pontos pequenos e perfeitos.

Quando acabou, o bonito parecia quase igual ao que fora em vida. As três barbatanas se projetavam numa simetria perfeita, impedindo que rolasse para a frente ou girasse. A cauda vertical proporcionava direção e velocidade. A boca fechada impediria a turbulência e borbulhas.

Somente o fio de aço passando entre os dentes cerrados e o anzol sinistro, pendendo da base do rabo, indicavam que se tratava de uma isca. Finalmente, o velho pescador prendeu o fio de aço pendente da boca do bonito ao outro fio que pendia da extremidade do

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caniço. Jogou a nova isca no mar. Ainda de olhos abertos, o bonito ricocheteou duas vezes na esteira da lancha e depois afundou, puxado pela chumbada, a fim de iniciar a sua última jornada pelo mar.

Ele deixou que o bonito na ponta da linha ficasse cerca de 70 metros além das outras iscas, antes de prendê-la. Voltou então para o seu posto de comando. A água em torno da lancha passara de um azul-cinzento para um azul-esverdeado brilhante.

Dez minutos depois, Higgins teve outro peixe a morder a isca. Ele puxou o caniço e recolheu a linha por mais de dez minutos. Qualquer que fosse o peixe que fisgara, estava lutando com uma fúria frenética para se desvencilhar. Todos pensavam que podia ser um atum de bom tamanho, pela pressão na linha. Quando o peixe foi içado para bordo, no entanto, descobriram que tinha quase um metro de comprimento, de corpo estreito, com uma coloração dourada na parte superior do corpo e nas barbatanas.

– Um dourado – disse Kilian. – Trabalhou muito bem. Esses peixes lutam de verdade. E são deliciosos. Vamos pedir ao cozinheiro do St. Geran que o prepare para o jantar.

Higgins estava corado e feliz, comentando: – A sensação que tive foi a de que estava tentando puxar um caminhão em alta

velocidade. O garoto tornou a ajustar a isca e jogou-a novamente no mar. Agora, o mar parecia

mais turbulento. Murgatroyd segurou numa das colunas do toldo de madeira, a fim de poder ver melhor. O Avant avançava entre grandes ondas. Ao baixarem, ficavam olhando para grandes muralhas de água por todos os lados, encostas em movimento, alegremente iluminadas pelo sol, parecendo negar a força terrível que havia por baixo. Nas cristas, podiam contemplar o mar por quilômetros ao redor, as espumas brancas no alto de cada onda. Para oeste, quase na linha do horizonte, podiam divisar os contornos de Maurício.

As ondas estavam vindo de leste, uma depois da outra, como gigantescos soldados esverdeados marchando contra a ilha e indo morrer na artilharia atrás dos recifes. Murgatroyd ficou surpreso por descobrir que não estava enjoado, pois isso já lhe acontecera numa prosaica viagem de lahcna de Dover a Boulogne. Mas acontecera numa embarcação bem maior, avançando pelas ondas com um barulho infernal, os passageiros respirando os odores de óleo, gordura da comida, vapores que saíam do bar e outras coisas. O Avant, um barco menor, não desafiava o mar. Ao contrário, navegava com ele, cedendo quando era preciso, para tornar a se erguer um instante depois.

Murgatroyd contemplou as águas e sentiu o respeito que paira à beira do medo, um companheiro quase constante dos homens que viajam em pequenas embarcações. Uma embarcação pode ser orgulhosa, impressiva, luxuosa e forte nas águas serenas de um porto elegante, admirada pela multidão que passa, a ostentação de seu rico proprietário. Em pleno oceano, no entanto, é irmã da traineira malcheirosa, do cargueiro enferrujado, uma pobre criatura unida por soldas e parafusos, um frágil casulo lançando a sua força mínima contra um poder inconcebível, um brinquedo na palma de um gigante. Mesmo com quatro outros seres humanos ali perto, Murgatroyd pôde sentir a própria insignificância, a pequenez impertinente do barco, a solidão que o mar sempre inspira. Os que já viajaram sozinhos pelo mar ou pelo céu, através de grandes planícies cobertas de neve ou por desertos intermináveis, conhecem a sensação. Tudo é vasto, implacável, mas o mais terrível é o mar, porque se mexe.

Pouco depois das nove horas, Monsieur Patient murmurou, sem se dirigir a ninguém em particular:

– Y'a quelque chose. Nous suit. – O que ele disse? – perguntou Higgins. – Disse que há alguma coisa lá atrás – explicou Kilian. – E está nos seguindo.

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Higgins correu os olhos pelas águas turbulentas. Não havia coisa alguma além das águas.

– Como ele pode saber? Kilian deu de ombros. – Da mesma forma como você sabe que há alguma coisa errada com uma coluna de

cifras. Instinto. O velho reduziu um pouco a velocidade e o Avant dava a impressão de não estar se

mexendo. O balanço parecia aumentar com a queda da velocidade. Higgins engoliu em seco por diversas vezes, a boca se enchendo de saliva. Passavam 15 minutos das nove horas quando um dos caniços vergou bruscamente e a linha começou a correr, não muito depressa, mas vigorosamente, o barulho da carretilha se transformando num troar cada vez mais alto.

– É seu – disse Kilian para Murgatroyd, tirando o caniço do encaixe na amurada e ajeitando-o na cadeira de pesca.

Murgatroyd deixou a sombra e foi sentar-se na cadeira. Prendeu o caniço com a corda e segurou na cortiça com a mão esquerda, firmemente. A carretilha, uma Penn Senator grande, como um barrilete de cerveja, ainda estava girando. Ele foi fechando o controle, lentamente.

A tensão em seu braço aumentou e o caniço vergou. Mas a linha continuava a correr.

– Segure firme ou o peixe vai levar toda a sua linha – disse Kilian. O gerente de banco retesou os músculos do bíceps e prendeu o controle com toda

força. A ponta do caniço foi abaixando, cada vez mais, até ficar no nível dos seus olhos. A velocidade da linha que corria diminuiu um pouco, parou por um instante, tornou a correr. Kilian inclinou-se para olhar os marcadores da carretilha. As marcas nos aros externo e interno estavam quase opostas.

– O peixe está puxando com uma pressão de 40 quilos – disse ele. – Terá de prender com mais força.

O braço de Murgatroyd começava a doer e os dedos que seguravam na cortiça ficaram dormentes. Foi virando o controle, até que as marcas opostas ficaram no mesmo nível.

– Não vai além disso – informou Kilian. – A pressão é de 45 quilos. O limite. Segure o caniço com as duas mãos e agüente firme.

Com algum alívio, Murgatroyd pôs a outra mão no caniço, apertando com toda força, ao mesmo tempo em que apoiava as solas de borracha na amurada, contraindo os músculos das coxas e das pernas, inclinando o corpo para trás. Nada aconteceu. A base do caniço estava vertical entre as suas coxas, mas a ponta dirigia-se diretamente para a esteira do barco. E a linha continuava a correr, lenta, inexoravelmente. A reserva na carretilha diminuía com rapidez diante de seus olhos.

– Santo Deus, ele é mesmo grande! – exclamou Kilian. – Está puxando com uma pressão de mais de 45 quilos! Agüente firme!

O sotaque sul-africano de Kilian estava se tornando cada vez mais acentuado, com o seu excitamento. Murgatroyd tornou a contrair os músculos das pernas, fazendo força com os dedos, pulsos, antebraços e bíceps, os ombros encolhidos, a cabeça inclinada. E resistiu. Nunca antes ninguém lhe pedira que agüentasse uma pressão de 45 quilos. Depois de três minutos, a carretilha finalmente parou de correr. O que quer que estivesse lá embaixo puxara mais de 600 metros de linha.

– É melhor prendê-lo nas correias – disse Kilian. Um braço depois do outro, ele prendeu as correias por cima dos ombros de

Murgatroyd. Mais duas correias contornaram a cintura e outra mais larga passou entre as coxas. Todas as cinco se prendiam em seu peito. Kilian apertou a todas firmemente. Houve

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algum alívio para as pernas, mas o couro esfolava Murgatroyd, através da camisa de tênis de algodão, na frente dos ombros.

Pela primeira vez, ele percebeu como o sol estava quente ali. A parte superior de suas coxas começou a arder.

O velho Patient se virara, manejando a roda do leme com apenas uma das mãos. Observara a linha correr desde o início e disse de repente, inesperadamente:

– Marlin. – Você está com sorte – comentou Kilian para Murgatroyd. – Parece que fisgou um

marlin. – E isso é bom? – perguntou Higgins, que empalidecera consideravelmente. – O marlin é o rei da pesca oceânica – explicou Kilian. – Homens ricos vêm para cá

ano após ano, gastando muito dinheiro no esporte, sem jamais conseguirem pegar um marlin. Mas ele vai lutar obstinadamente, como você nunca viu nada lutar tanto, em toda a sua vida.

Embora a linha tivesse parado de correr e o peixe nadasse junto com o barco, a pressão não cessara. A ponta do caniço continuava vergada para baixo, na direção da esteira. O peixe continuava a puxar, com uma pressão entre 30 e 40 quilos.

Os quatro homens ficaram observando em silêncio, enquanto Murgatroyd resistia à pressão. Ele ficou segurando o caniço, quase imóvel, por cerca de cinco minutos, o suor porejando da testa e das faces, escorrendo em gotas para o queixo. Lentamente, a ponta do caniço se levantou, enquanto o peixe aumentava a velocidade, a fim de aliviar a pressão na boca. Kilian agachou-se ao lado de Murgatroyd e passou a orientá-lo, como um instrutor de vôo faz com um aluno que se prepara para decolar sozinho pela primeira vez.

– Puxe a linha agora, devagar, mas com firmeza. Reduza a pressão na carretilha para 40 quilos, para o seu próprio bem e não por ele. Quando ele tentar novamente escapar, o que vai acontecer, não tenha a menor dúvida, deixe-o ir e leve a pressão na carretilha de volta a 45.

Jamais tente recolher a linha enquanto ele estiver lutando, pois poderia rompê-la facilmente. E se ele se aproximar do barco, enrole a linha o mais depressa que puder. Nunca lhe dê uma linha folgada, pois ele tentará cuspir o anzol.

Murgatroyd seguiu as instruções. Conseguiu recolher 50 metros de linha, antes que o peixe tentasse novamente escapar. E quando isso aconteceu, a força imensa quase lhe arrancou o caniço das mãos. Murgatroyd mal teve tempo de levar a outra mão para a cortiça e segurar com toda a firmeza. O peixe levou outros cem metros de linha, antes de parar a corrida e recomeçar a seguir o barco.

– Ele já levou 650 metros de linha até agora – disse Kilian. – Você só tem 800 metros.

– E o que vou fazer? – perguntou Murgatroyd, entre os dentes cerrados. A pressão diminuiu e ele tratou de recolher a linha outra vez, enquanto Kilian

respondia: – Reze. Não pode agüentá-lo além de uma pressão de 45 quilos. Assim, se ele

chegar ao fim da linha na carretilha, vai rompê-la sem muita dificuldade. – Está ficando muito quente – murmurou Murgatroyd. Kilian olhou para o short e a camisa fina. – Você vai fritar aqui fora – disse ele. – Espere um instante. Ele tirou a própria calça do traje de ginástica e meteu-a em Murgatroyd, uma perna

de cada vez. Levantou a calça ao máximo que podia. As correias impediam que a calça chegasse

à cintura de Murgatroyd, mas pelo menos as coxas e as pernas estavam cobertas. O alívio do sol foi imediato. Kilian foi pegar um suéter de manga comprida na cabine. Recendia a suor e

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peixe. – Vou meter a suéter por sua cabeça – disse ele a Murgatroyd. – Mas o único meio

de baixar mais é abrir as correias por alguns segundos. Vamos torcer para que o marlin não tente escapar nesses segundos.

Tiveram sorte. Kilian abriu as correias dos ombros e baixou a suéter até a cintura de Murgatroyd, depois tornou a prendê-las. O peixe continuava a correr com o barco, a linha esticada, mas sem muita pressão. Com a suéter, os braços de Murgatroyd já não doíam tanto. Kilian virou-se. Em sua cadeira, junto à roda do leme, o velho Patient estava estendendo o seu chapéu velho, de aba larga. Kilian colocou-o na cabeça de Murgatroyd. A sombra protegeu-lhe os olhos e proporcionou mais alívio. Mas a pele do rosto já estava quente e causticada. O reflexo do sol no mar podia queimar bem mais do que o sol propriamente dito.

Murgatroyd aproveitou a passividade do marlin para recolher mais um pouco de linha. Recolhera cem metros, cada metro fazendo os dedos doerem na manivela da carretilha, pois ainda havia uma pressão de 20 quilos na linha, quando o peixe tornou a tentar se libertar. O marlin recuperou os cem metros em apenas 30 segundos, com uma pressão de 45 quilos na carretilha.

Murgatroyd simplesmente se retesou todo e agüentou firme. As correias ardiam intensamente em seu corpo. Eram dez horas da manhã.

Durante a hora seguinte, ele começou a aprender o sentido da dor. Os dedos estavam dormentes, doíam intensamente. Os pulsos latejavam e os antebraços irradiavam espasmos de dor. Os bíceps estavam contraídos, os ombros pareciam prestes a estourar. Mesmo sob a calça e a suéter, o sol implacável estava outra vez lhe escaldando a pele. Por três vezes, nessa hora, ele recuperou cem metros de linha do peixe; por três vezes, o peixe tentou escapar, tomando de volta os cem metros.

– Acho que não vou conseguir agüentar por muito mais tempo – murmurou Murgatroyd, entre os dentes cerrados.

Kilian estava de pé ao lado dele, tendo na mão uma lata aberta de cerveja gelada. Ele estava com as pernas expostas, só que curtidas em muitos anos ao sol. Parecia não se queimar.

– Agüente firme, homem. A batalha é justamente isso. Ele tem a força, você conta com os equipamentos e a astúcia. Depois disso, é apenas uma questão de resistência, a sua contra a dele.

Pouco depois das 11 horas, o marlin aflorou à superfície pela primeira vez. Murgatroyd trouxera-o para 500 metros de distância. O barco ficou por um segundo na crista de uma onda. Lá embaixo, o peixe elevou-se pelo lado de uma muralha de água verde. Murgatroyd ficou atordoado. O bico afiado e comprido da mandíbula superior arremeteu para o céu. A mandíbula inferior, menor, estava entreaberta. Por cima e por trás do olho, a barbatana dorsal, lembrando uma crista de galo, estava estendida e ereta. A massa reluzente do corpo vinha atrás. Enquanto a onda se desvanecia, o marlin pareceu ficar suspenso por um instante sobre a cauda em formato de crescente, olhando para eles através das cristas espumantes. E depois tornou a cair, em outra muralha em movimento, mergulhando para o seu mundo, escuro e frio. O velho Patient foi o primeiro a falar, rompendo o silêncio:

– C'est l'Empereur. Kilian voltou-se rapidamente para fitá-lo. – Vous êtes sur? O velho limitou-se a assentir. – O que ele disse? – perguntou Higgins. Murgatroyd olhava para o local em que o peixe desaparecera. Depois, lentamente,

voltou a recolher a linha.

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– Eles conhecem aquele peixe por aqui – explicou Kilian. – Se é o mesmo... e ao que eu saiba, o velho nunca se enganou nessas coisas... trata-se de um marlin azul, que se calcula ser maior do que o recorde registrado de 500 quilos. O que significa que deve ser velho e astuto. Chamam-no de O Imperador. É um verdadeiro mito entre os pescadores.

– Mas como podem distinguir um peixe determinado? – insistiu Higgins. – Afinal, todos são iguais.

– Este marlin já foi fisgado duas vezes – disse Kilian. – E por duas vezes partiu a linha. Na segunda, porém, estava perto do barco, ao largo de Rivière Noire. Viram o primeiro anzol pendendo de sua boca. Depois, ele rompeu a linha no último minuto e ficou com outro anzol. Em cada vez que foi fisgado, ele se elevou acima da superfície por várias vezes, permitindo que todos o olhassem bem. Alguém chegou mesmo a tirar uma fotografia dele em pleno ar. Por isso é que se tornou tão conhecido. Eu não poderia identificá-lo a 500 metros de distância, mas o velho Patient tem olhos aguçados como os de uma gaivota, depois de tantos anos no mar.

Por volta de meio-dia, Murgatroyd parecia velho e extenuado. Estava encurvado sobre o caniço, num mundo exclusivamente seu, isolado em sua dor e uma determinação interior que nunca antes experimentara. A água escorria das bolhas estouradas nas palmas, as correias úmidas de suor laceravam horrivelmente os ombros fustigados pelo sol. Ele abaixava a cabeça e recolhia a linha.

Às vezes vinha fácil, como se o peixe estivesse descansando. Quando a tensão se desvanecia da linha, o alívio era um prazer tão intenso que mais tarde não foi capaz de descrevê-lo. Quando o caniço estava encurvado e todos os músculos doloridos se contraíam para resistir ao peixe, o sofrimento era diferente de tudo o que já imaginara.

Pouco depois do meio-dia, Kilian agachou-se ao lado dele e ofereceu-lhe outra cerveja.

Escute, homem, você está extenuado. Já se passaram três horas e não está realmente em boas condições. Não há necessidade de matar-se. Se precisar de alguma ajuda, um pequeno descanso, basta dizer.

Murgatroyd sacudiu a cabeça. Os lábios estavam rachados do sol e do sal. – Meu peixe – murmurou ele. – Deixem-me em paz. A batalha prosseguiu, enquanto o sol martelava o convés. O velho Patient estava

empoleirado como um velho e sábio corvo-marinho em sua cadeira, uma das mãos na roda do leme, os motores um pouco acima do ponto morto, virando a cabeça para esquadrinhar a esteira do barco, à procura de algum sinal do Imperador. Jean-Paul estava acocorado à sombra do toldo de madeira, tendo há muito recolhido as linhas e guardado os outros três caniços. Ninguém estava querendo pegar um bonito agora e as linhas extras poderiam se emaranhar com a mais importante. Higgins finalmente sucumbira ao balanço do barco e estava sentado, desesperado, a cabeça suspensa por cima de um balde, em que depositara os sanduíches que comera e mais duas latas de cerveja. Kilian estava sentado de frente para ele, tomando a sua quinta lata. De vez em quando, eles olhavam para o vulto encolhido na cadeira giratória, com o chapéu imenso na cabeça. Ficavam ouvindo o barulho da linha ao ser recolhida ou o zunido desesperador quando o marlin tornava a recuperá-la.

O marlin estava a 300 metros do barco quando tornou a emergir. Desta vez, o barco estava numa depressão e o Imperador aflorou à superfície, apontando para eles. Elevou-se num salto prodigioso, a espuma respingando de seu dorso. O salto foi na esteira do barco e a linha ficou de súbito completamente frouxa. No mesmo instante, Kilian estava de pé.

– Recolha a linha! – gritou ele. – O Imperador vai cuspir o anzol! Os dedos cansados de Murgatroyd trabalharam freneticamente na manivela da

carretilha para esticar a linha. Conseguiu fazê-lo bem a tempo. A linha estava esticada quando o marlin tornou a mergulhar para as profundezas e ele ganhara 50 metros. Mas o

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peixe prontamente recuperou tudo. Nas profundezas escuras e paradas, várias braças abaixo da superfície e do sol, o grande caçador pelágico, os instintos aguçados por um milhão de anos de evolução, voltou-se contra a pressão de seu inimigo, absorvendo tudo no canto da boca óssea e mergulhando.

Em sua cadeira, o pequeno gerente de banco contraiu-se todo no esforço, apertando os dedos doloridos sobre a cortiça úmida, sentindo as correias se comprimirem contra a sua carne, como se fossem arames em brasa. E agüentou firme, observando a linha de náilon ainda molhada correr diante de seus olhos. Cinqüenta metros se foram rapidamente e o peixe continuava a mergulhar.

– Ele terá de subir novamente – comentou Kilian, observando por cima do ombro de Murgatroyd.

– Será a ocasião para recolher a linha. Ele inclinou-se e observou o rosto avermelhado, já descascando. Duas lágrimas

saíram dos olhos semicerrados e escorreram pelo rosto flácido de Murgatroyd. O sul-africano pôs a mão gentilmente no ombro dele e disse:

– Você não pode mais agüentar. Por que não descansa um pouco? Apenas por uma hora, está bem? Poderá então reassumir, para a última parte da batalha, quando o peixe chega perto e se torna prestes a desistir.

Murgatroyd observava a linha a correr mais devagar agora. Abriu a boca para falar. Uma rachadura no lábio se abriu ainda mais e uma gota de sangue escorreu para o queixo. A empunhadura de cortiça estava ficando escorregadia, devido ao sangue que escorria de suas palmas.

– Meu peixe – balbuciou ele. – Meu peixe. Kilian levantou-se. – Está certo, inglês, é o seu peixe. Eram duas horas da tarde. O sol estava usando o convés posterior do Avant, como

se fosse a sua bigorna particular. O Imperador parou de mergulhar e a tensão na linha se atenuou para 20 quilos. Murgatroyd recomeçou a recolher a linha.

Uma hora depois, o marlin saltou do mar pela última vez. Estava a apenas cem metros de distância. O salto fez com que Kilian e Jean-Paul se adiantassem rapidamente para observar.

Por dois segundos, o peixe ficou suspenso acima da espuma, sacudindo a cabeça de um lado para outro, tentando se livrar do anzol que o atraía inexoravelmente para junto de seus inimigos.

Num canto da boca, um fio de aço faiscou ao sol, enquanto o peixe estremecia todo. Depois, com um estrondo de carne a se chocar com a água, ele tornou a mergulhar e desapareceu.

– É mesmo O Imperador – murmurou Kilian, com extrema reverência. – Pesa 550 quilos, tem mais de seis metros de uma extremidade a outra, aquele bico pode furar uma madeira de 25 centímetros, quando está se deslocando a toda velocidade de que é capaz, cerca de 40 nós. Um animal espetacular.

Ele virou-se e gritou para Monsieur Patient: – Vous avez vu? O velho assentiu. – Que pensez vous? Il va venir vite? Deux heures encore – respondeu o velho. – Mais il est fatigué. Kilian agachou-se ao lado de Murgatroyd. – O velho diz que ele está cansado agora. Mas ainda vai lutar, talvez por mais duas

horas. Quer continuar? Murgatroyd olhava fixamente para o ponto em que o peixe desaparecera. Sua visão

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estava toldada pelo cansaço e todo o seu corpo era uma única dor lancinante. Pontadas de dor mais intensas espalhavam-se pelo ombro direito, onde distendera um músculo. Nunca antes fora obrigado a recorrer às suas últimas e supremas reservas de vontade e, por isso, não sabia. Ele assentiu. A linha não estava mais correndo, o caniço se envergara um pouco. O Imperador continuava a puxar, mas não mais com uma pressão de 45 quilos. O banqueiro continuou sentado, segurando o caniço firmemente.

Prosseguiram na luta por mais 90 minutos, o homem de Ponder's End e o grande marlin. Por quatro vezes, o peixe arremeteu e recuperou uma parte da linha. Mas seus arrancos estavam se tornando mais curtos, à medida que o esforço de puxar 45 quilos ia minando até mesmo a sua força primitiva. Por quatro vezes, Murgatroyd recolheu a linha desesperadamente, ganhando uns poucos metros de cada vez. Sua exaustão estava beirando o delírio. Os músculos das pernas e das coxas tremiam incontrolavelmente. A visão se toldava com uma freqüência cada vez maior.

Às quatro e meia, ele já estava lutando há sete horas e meia, algo que não se podia pedir nem mesmo de um homem nas melhores condições físicas. Era apenas uma questão de tempo e não seria muito. Um deles teria de se render.

Quando faltavam 20 minutos para as cinco horas, a linha ficou frouxa de repente. Murgatroyd foi apanhado de surpresa. Começou a recolher rapidamente. E a linha vinha com bastante facilidade. O peso ainda estava ali, mas agora se tornara passivo. O tremor cessara. Kilian ouviu o barulho ritmado da carretilha e saiu da sombra, indo até a amurada da popa. Espiou para a esteira e gritou:

– Ele está vindo! O Imperador está vindo! O mar se acalmara com o final da tarde. As cristas brancas haviam desaparecido,

substituídas por uma ondulação suave. Jean-Paul e Higgins, que ainda estava enjoado, mas pelo menos parara de vomitar, adiantaram-se para observar. Monsieur Patient desligou os motores e prendeu a roda do leme. Desceu do seu posto e foi juntar-se aos outros. Em silêncio, o grupo observava atentamente a água além da popa.

Algo aflorou à superfície, rolando e balançando, mas deslocando-se na direção do barco, puxado pela linha de náilon. A barbatana serrilhada emergiu por um momento, depois rolou para o lado.

O bico comprido e pontudo apontou para cima e depois tornou a afundar abaixo da superfície.

A 20 metros, todos puderam divisar o corpo imenso do Imperador. A menos que ainda restasse uma última e violenta reserva de força em seus ossos e tendões, ele não mais lutaria pela liberdade. O Imperador se rendera. A seis metros de distância, a extremidade do fio de aço levantou-se na ponta do caniço. Kilian pôs uma luva grossa de couro e pegou-o. Foi puxando manualmente. Todos ignoraram Murgatroyd, arriado na cadeira.

Ele largou o caniço, pela primeira vez em oito horas, tombando para a frente. Lentamente, dolorosamente, abriu as correias. Apoiou o peso do corpo nos pés, tentou se levantar. As panturrilhas e as coxas estavam fracas demais e ele arriou ao lado do dourado morto. Os outros quatro estavam espiando por cima da amurada para o peixe que boiava na popa. Enquanto Kilian puxava lentamente o fio de aço com a mão enluvada, Jean-Paul pegou um gancho comprido e suspendeu-o por cima da cabeça, equilibrado na amurada. Murgatroyd olhou para o garoto suspenso ali, o gancho erguido.

E sua voz soou mais como um rangido rouco do que como um grito: – Não. O garoto ficou paralisado, olhou para baixo. Murgatroyd estava de quatro, olhando

para a caixa de equipamentos. Logo por cima havia um alicate de cortar arame. Pegou-o com o polegar e o indicador da mão esquerda, comprimiu-o contra a palma em carne viva da mão direita.

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Lentamente, os dedos empunharam o alicate. Com a mão livre, ele apoiou-se na amurada e ergueu o corpo.

O Imperador estava logo abaixo da popa, exausto quase ao ponto da morte. O corpo imenso estava de lado na esteira do barco, a boca entreaberta. Pendendo do canto da boca estava o fio de aço de uma luta anterior com pescadores. Na mandíbula inferior havia outro anzol, já enferrujado. O fio de aço estendia-se da mão de Kilian para o terceiro anzol, encravado na cartilagem da mandíbula superior. Apenas uma parte da haste do anzol estava à vista.

Ondas sucessivas passavam pelo corpo azul-escuro do marlin. A meio metro de distância, o peixe olhava para Murgatroyd, com um olho imenso. Estava vivo, mas não lhe restavam mais forças para lutar. O fio, de sua boca até a mão de Kilian, estava esticado. Murgatroyd inclinou-se para baixo, lentamente, estendendo a mão direita até a boca do marlin.

– Pode afagá-lo depois, homem – disse Kilian. – Vamos tratar de suspendê-lo agora. Deliberadamente, Murgatroyd ajeitou o alicate no fio de aço, no ponto em que se

ligava à haste do anzol. E apertou. O sangue esguichou da palma e se derramou sobre a água salgada que cobria a cabeça do marlin. Tornou a apertar e o fio de aço se partiu.

– O que está fazendo? – gritou Higgins. – Ele vai escapar! O Imperador ficou olhando para Murgatroyd, enquanto outra onda passava por seu

corpo. Sacudiu a cabeça velha e cansada, afundou o bico na água fria. A onda seguinte

rolou-o de barriga e ele afundou a cabeça ainda mais. A cauda grande se ergueu e tornou a cair, movimentando-se cansada na água. Impeliu o corpo para a frente e para baixo. A cauda foi a última coisa que eles viram, movimentando-se lentamente na fadiga, levando o marlin de volta à escuridão fria do seu lar.

– Mas que diabo! – explodiu Kilian. Murgatroyd tentou se levantar, mas sangue demais afluíra à sua cabeça. Lembrou-se

depois do céu girando lentamente e a escuridão se aproximava muito depressa. O convés elevou-se ao seu encontro, primeiro contra os joelhos e depois o rosto. Ele desmaiou. O sol estava suspenso sobre as montanhas de Maurício, a oeste.

O sol já se pusera há cerca de uma hora quando o Avant finalmente atravessou a enseada e atracou. A essa altura, Murgatroyd já recuperara os sentidos. Durante a viagem de volta, Kilian tirara a calça e a suéter que lhe emprestara, a fim de que o ar fresco do crepúsculo pudesse revigorar a pele escaldada. Murgatroyd tomara três cervejas seguidas e estava agora sentado num dos bancos, os ombros vergados, as mãos num balde de água salgada. Não deu a menor atenção quando o barco atracou e Jean-Paul saiu correndo para a aldeia.

O velho Monsieur Patient desligou os motores e verificou se os cabos de atracação estavam bem presos. Jogou o dourado grande e o bonito no cais, guardou a caixa de ferramentas e iscas.

Kilian levantou a caixa refrigerada para o cais e depois voltou ao convés. – Está na hora de irmos – disse ele. Murgatroyd se levantou e Kilian ajudou-o a desembarcar. A bainha do short caíra

abaixo dos joelhos, a camisa estava aberta, escura do suor ressequido. Os sapatos de lona rangiam.

Diversos habitantes da aldeia se agrupavam no cais estreito e por isso tiveram de avançar em fila indiana. Higgins seguiu na frente.

E a primeira pessoa com que depararam foi Monsieur Patient. Murgatroyd teria apertado a mão dele, se a sua não estivesse doendo tanto. Ele acenou com a cabeça e sorriu para o velho, murmurando:

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– Merci. O velho, que recuperara o seu chapéu, tirou-o da cabeça naquele momento e disse: – Salut, Maître. Murgatroyd foi avançando lentamente pelo cais. Todos os aldeões sacudiam a

cabeça e murmuravam: – Salut, Maître. Chegaram ao final do cais e começaram a subir pela rua de cascalho da aldeia.

Havia uma multidão maior agrupada em torno do carro e todos murmuraram respeitosamente "Salut, salut, salut, Maître".

Higgins estava guardando as roupas de reserva e a caixa vazia de comida. Kilian colocou a caixa refrigerada na traseira do carro e fechou-a. Encaminhou-se para o lado em que Murgatroyd esperava.

– O que eles estão dizendo? – sussurrou Murgatroyd. – Estão saudando-o – disse Kilian. – Chamando-o de mestre-pescador. – Por causa do Imperador? – Ele é um verdadeiro mito por aqui. – Porque eu peguei O Imperador? Kilian riu baixinho. – Não, inglês. Porque você devolveu-lhe a vida. Entraram no carro, Murgatroyd no banco traseiro, onde arriou agradecido nas

almofadas, as mãos em concha no colo, com as palmas ardendo terrivelmente. Kilian sentou-se ao volante, com Higgins ao seu lado.

– Ei, Murgatroyd, esses aldeões parecem pensar que você é algum astro! – disse Higgins.

Murgatroyd olhou pela janela para os rostos morenos sorridentes e as crianças que acenavam.

– Antes de voltarmos ao hotel, é melhor passarmos pelo hospital em Flacq e deixar que o médico dê uma olhada em você – sugeriu Kilian.

O jovem médico indiano pediu a Murgatroyd que se despisse e estalou a língua de preocupação pelo que viu. As nádegas estavam em carne viva dos movimentos para frente e para trás no assento da cadeira de pescaria. Vergões roxos profundos estendiam-se pelos ombros e costas, nos pontos contra os quais as correias se comprimiram. Braços, coxas e pernas estavam vermelhos e descascando das queimaduras de sol, o rosto estava inchado do calor. As duas palmas pareciam carne crua.

– Isso vai demorar algum tempo – murmurou o médico. – Posso vir buscá-lo dentro de duas horas? – perguntou Kilian. – Não precisa – respondeu o médico. – O Hotel St. Geran fica perto da minha casa.

Eu o levarei até lá quando acabar. Já eram quase 10 horas quando Murgatroyd passou pela porta principal do St.

Geran, entrando no saguão bem iluminado. O médico ainda estava em sua companhia. Um dos hóspedes viu-o entrar e correu para o restaurante, avisando aos outros que ainda estavam jantando. A notícia espalhou-se até o bar da piscina no terraço. Houve um barulho de arrastar de cadeiras, o retinido de talheres. Uma multidão avançou pelo saguão para saudar Murgatroyd. E todos pararam abruptamente.

Murgatroyd era uma estranha visão. Os braços e pernas estavam cobertos de loção de calamina, que já secara, transformando-se num branco opaco. As mãos estavam envoltas por ataduras brancas. O rosto estava vermelho e brilhando do creme que lhe fora aplicado. Os cabelos formavam um halo desgrenhado em torno do rosto, o short cáqui ainda estava caído até os joelhos. Parecia um negativo fotográfico. Recomeçou a andar, avançando para a multidão, lentamente, todos se afastando para lhe dar passagem.

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– Muito bem-feito, meu velho – disse alguém. – Uma atitude admirável – comentou outra pessoa. Apertos de mão era algo impossível. Alguém pensou em dar-lhe uma pancadinha

nas costas quando passou, mas o médico acenou para que não o fizesse. Algumas pessoas seguravam copos e levantaram-nos num brinde. Murgatroyd chegou à base da escada de pedra para o segundo andar e começou a subir.

Foi nesse momento que a Sra. Murgatroyd emergiu do cabeleireiro, atraída pelos comentários sobre a volta de seu marido. Passara o dia remoendo uma raiva monumental, desde a metade da manhã, quando ficara surpresa com a ausência do marido no lugar da praia em que geralmente se encontravam, saíra a procurá-lo e soubera que ele se fora. Ela estava com o rosto vermelho, embora mais de raiva do que de queimadura de sol. O permanente com que voltaria para casa ainda não ficara pronto e os rolinhos sobressaíam em sua cabeça.

– Murgatroyd! – Ela sempre o chamava pelo sobrenome, quando estava furiosa. – Onde você pensa que vai?

No patamar no meio da escada, Murgatroyd virou-se, olhou para a multidão e a mulher. Kilian contaria mais tarde que havia uma estranha expressão nos olhos dele. A multidão ficou silenciosa.

– E como você pensa que está parecendo? – gritou Edna Murgatroyd, cada vez mais indignada.

O gerente de banco fez então uma coisa que não fizera por muitos anos. Ele gritou: – Cale-se! Edna Murgatroyd abriu a boca, tão escancarada quanto a do peixe, mas não com

tanta dignidade. – Há 25 anos que você vem ameaçando sair de casa e ir viver com a sua irmã em

Bognor – disse Murgatroyd, calmamente. – Ficará feliz em saber que não vou mais impedi-la. Não voltarei com você amanhã. Vou ficar aqui, nesta ilha.

A multidão olhava para ele, aturdida. – Não passará por qualquer necessidade – continuou Murgatroyd. – Ficará com a

nossa casa e com as minhas economias investidas. Mas eu ficarei com os fundos de pensão e com o dinheiro da liquidação de meu exorbitante seguro de vida.

Harry Foster tomou um gole da sua lata de cerveja e arrotou. Higgins balbuciou: – Não pode se afastar de Londres, meu velho. Não terá como viver. – Claro que terei – garantiu o gerente de banco. – Tomei uma decisão e não

pretendo voltar atrás. Pensei em tudo no hospital, quando Monsieur Patient foi me visitar. Fizemos um trato. Ele me venderá o barco e ainda terei o suficiente para comprar uma cabana na beira da praia. Ele continuará como capitão e mandará o neto para a universidade. Serei o seu ajudante e por dois anos ele me ensinará tudo o que sabe do mar e dos peixes. Depois disso, passarei a levar os turistas em pescarias, ganhando a vida assim.

A multidão de hóspedes continuava a fitá-lo fixamente, todos espantados. E foi Higgins quem tornou a romper o silêncio:

– E o banco, meu caro Murgatroyd? E Ponder's End? – E eu? – gemeu Edna Murgatroyd. Ele pensou em cada pergunta criteriosamente. – O banco que vá para o inferno – disse ele, finalmente. – Ponder's End que vá para

o inferno. E você também, madame, pode ir para o inferno. Com isso, virou-se e subiu os últimos degraus. Houve uma explosão de aclamações

por trás dele. Ao avançar pelo corredor, a caminho de seu quarto, foi perseguido por uma despedida de bêbado:

– Prazer em conhecê-lo, Murgatroyd.

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HÁ CERTOS DIAS... A barca St. Kilian, procedente de Le Havre, avançou contra outra onda,

aproximando-se mais alguns metros da Irlanda. Em algum ponto do convés A, o motorista Liam Clarke estava debruçado sobre a grade da amurada, olhando para a frente, procurando divisar as colinas baixas do Condado de Wexford.

Mais 20 minutos e a barca da Linha Continental Irlandesa atracaria no pequeno porto de Rosslare, concluindo outra viagem européia. Clarke olhou para o relógio. Passavam 20 minutos das duas horas da tarde e ele estava ansioso em voltar a Dublin, chegando em casa a tempo de jantar com a família.

A barca estava novamente no horário. Clarke afastou-se da amurada e voltou ao salão de passageiros, pegando a sua valise. Não havia motivo para esperar por mais tempo e ele desceu para o convés de veículos, três níveis abaixo, onde o seu imenso caminhão esperava, junto com os outros. Os passageiros dos veículos não seriam chamados por mais dez minutos, mas ele achava que era melhor se instalar logo de uma vez na cabine do caminhão. Há muito que já se desgastara a novidade de observar a barca atracar. A página de corridas de cavalos do jornal irlandês que comprara a bordo, embora já tivesse saído há 24 horas, era muito mais interessante.

Clarke acomodou-se na cabine confortável do caminhão para esperar até o momento em que as portas grandes na proa se abririam, permitindo-lhe a passagem para o cais de Rosslare. Por cima do visor de sol, à sua frente, estavam os documentos para a alfândega, prontos para serem apresentados quando passasse pela barreira.

A St. Kilian passou pela ponta do molhe cinco minutos antes da hora. As portas se abriram pontualmente às duas horas. Já reinava um tumulto ensurdecedor no convés de veículos, com turistas impacientes ligando os motores de seus carros, muito antes do necessário. Era o que sempre acontecia. A fumaça saiu de uma centena de canos de descarga. Os caminhões maiores estavam na frente e seriam os primeiros a sair. Afinal, tempo era dinheiro.

Clarke apertou o botão de partida e o motor do imenso caminhão Volvo começou a funcionar.

Era o terceiro na fila quando foi dado o sinal para que avançassem. Os outros dois caminhões seguiram ruidosamente pela rampa de aço para o cais, os canos de descarga explodindo. Clarke seguiu-os. No sossego de sua cabine, podia ouvir os zumbidos dos freios hidráulicos sendo soltos e, um instante depois, a rampa de aço estava sob as rodas.

Com o troar dos outros motores e o clangor das placas de aço, ele não ouviu o estalo brusco que ocorreu em seu próprio caminhão, em algum ponto por baixo e por trás dele. Ele emergiu do porão da St. Kilian, percorreu os 200 metros do cais de calçamento de pedras e tornou a penetrar na semi-escuridão, desta vez do grande galpão da alfândega. Através do pára-brisa, avistou um dos inspetores fazendo sinais para que entrasse no boxe ao lado dos caminhões anteriores. Clarke seguiu a orientação. Quando estavam em posição, desligou o motor, pegou os documentos e desceu para o chão de concreto. Conhecia a maioria dos inspetores, pois estava sempre passando por ali. Mas aquele era um dos poucos que não conhecia. O homem acenou com a cabeça e estendeu a mão, a fim de pegar os documentos. Começou a examiná-los.

O inspetor precisou de apenas dez minutos para convencer-se de que estava tudo em ordem, licença, seguro, manifesto de carga, impostos pagos e todo o resto. Era toda uma gama de controles que se exigia para transferir a mercadoria de um país para outro, mesmo dentro do Mercado Comum Europeu. O inspetor já estava prestes a devolver tudo a Clarke

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quando alguma coisa atraiu-lhe a atenção. – Que diabo é aquilo? Clarke acompanhou o olhar dele e viu, por baixo da cabine do caminhão, uma poça

de óleo que aumentava rapidamente. Estava pingando de algum lugar perto do eixo traseiro da cabine.

– Oh, Deus! – murmurou, desesperado. – Parece que é o tubo do diferencial. O inspetor chamou um colega mais antigo, a quem Clarke conhecia. Os dois

homens abaixaram-se para verificar de onde o óleo estava pingando. Já havia cerca de um litro no chão do galpão e mais um e meio ainda iria escorrer. O inspetor mais antigo levantou-se, comentando:

– Não vai conseguir levar o caminhão muito longe. Ao que o colega mais novo acrescentou: – Teremos de afastá-lo para que os outros possam passar. Clarke rastejou para baixo do caminhão, a fim de fazer um exame mais acurado. Do

motor na frente descia um eixo até o meão de aço fundido, que constituía o diferencial. Dentro da caixa de aço, a força do eixo que girava era transmitida de lado para o eixo posterior, impelindo assim a cabine para a frente. Isso era efetuado por um conjunto complexo de rodas denteadas, girando permanentemente numa inundação de óleo lubrificante. Sem o óleo, as engrenagens não demorariam a emperrar. E o óleo estava vazando, através de uma rachadura na caixa de aço.

Era por cima do eixo que ficava o engate entre a cabine e o reboque da carreta. Clarke saiu de baixo do caminhão, dizendo:

– Quase todo o óleo já vazou. Terei de ligar para o escritório. Posso usar o telefone? O inspetor mais antigo sacudiu a cabeça na direção do escritório envidraçado e foi

examinar outros caminhões. Uns poucos motoristas debruçaram-se para fora das cabines e gritaram comentários jocosos para Clarke, enquanto ele seguia para o telefone.

Não havia ninguém no escritório em Dublin. Todos haviam saído para o almoço. Clarke ficou esperando no galpão, até que o último dos carros de turistas partiu. Às três horas, conseguiu entrar em contato com o gerente da Tara Transportation, a quem explicou o problema. O homem praguejou e disse a Clarke:

– Não tenho a peça no estoque. Terei de entrar em contato com o agente da Volvo. Volte a me telefonar dentro de uma hora.

Ainda não havia qualquer notícia às quatro horas. E às cinco horas os homens da alfândega queriam fechar, pois a última barca do dia, procedente de Fishguard, já chegara. Clarke ligou novamente para o escritório e informou que passaria a noite em Rosslare. E tornaria a telefonar dentro de uma hora, mesmo assim, para saber como estava a situação. Um dos inspetores deu-lhe uma carona até a cidade e indicou uma pensão. Clarke registrou-se para a noite.

Às seis horas, o gerente informou-o que estariam pegando uma peça nova às nove horas da manhã seguinte e a despachariam num furgão, junto com um mecânico da empresa. O homem deveria chegar em Rosslare por volta do meio-dia. Clarke telefonou para a mulher e avisou que chegaria em casa com um atraso de 24 horas. Ele tomou o seu chá e depois foi para um pub. No galpão da alfândega, a cinco quilômetros de distância, o caminhão verde e branco, as cores da Tara, estava silencioso e imóvel, por cima de sua poça de óleo.

Clarke permitiu-se dormir até tarde da manhã seguinte, só levantando às nove horas. Ligou para o escritório às dez e foi informado que a peça de substituição já fora apanhada e o furgão partiria para Rosslare dentro de cinco minutos. Ele voltou de carona ao porto às 11 horas. A companhia era precisa nas promessas e o pequeno furgão, dirigido pelo mecânico, chegou ao porto e entrou no galpão da alfândega ao meio-dia. Clarke estava esperando.

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O jovial mecânico meteu-se imediatamente debaixo do caminhão e Clarke pôde ouvi-lo cantarolando. Ao sair, o mecânico já estava todo sujo de óleo.

– É a caixa do diferencial – anunciou ele, desnecessariamente. – Está completamente rachada.

– Quanto tempo vai demorar? – Se me der uma ajuda, poderei tirá-lo daqui dentro de uma hora e meia. Demorou mais um pouco. Primeiro, tiveram que enxugar a poça de óleo, o que não

foi fácil, em se tratando de dois litros e meio de óleo. Depois, o mecânico pegou uma imensa chave de porca e cuidadosamente desatarraxou a caixa do diferencial. Isso feito, retirou os dois meios eixos e em seguida começou a afrouxar o eixo propulsor. Clarke ficou sentado no chão, observando-o e passando de vez em quando uma ferramenta que lhe era pedida. Os homens da alfândega observavam aos dois. Afinal, não acontece muita coisa num balcão de alfândega nos intervalos entre as chegadas de embarcações.

A caixa foi retirada em pedaços pouco antes de uma hora da tarde. Clarke estava ficando com fome e sentia vontade de subir a rua até um café próximo, para comer alguma coisa. Mas o mecânico preferia continuar no trabalho até o fim. Lá no mar, a St. Patrick, irmã menor da St. Kilian, surgiu no horizonte, encaminhando-se para Rosslare.

O mecânico passou a efetuar o mesmo processo outra vez, só que na ordem inversa. A nova caixa foi ajustada, o eixo propulsor ajustado em seu lugar, os outros eixos encaixados. À uma e meia, a St. Patrick era perfeitamente visível no mar, para quem quer que a estivesse observando.

Era o que acontecia com Murphy. Ele estava deitado de barriga para baixo, sobre a relva ressequida de um pequeno morro por trás do porto, invisível para quem estivesse a cem metros de distância... e não havia ninguém tão perto. Ele estava com um binóculo, observando a barca que se aproximava.

– Lá está ela – murmurou Murphy. – Bem no horário. Brendan, o homem forte, estendido na relva ao seu lado, soltou um grunhido. – Acha mesmo que vai dar tudo certo, Murphy? – Claro que sim. Planejei tudo como uma operação militar. Não pode falhar. Um criminoso mais profissional teria dito a Murphy, que operava como revendedor

de ferro-velho e tinha como atividade secundária o trabalho com carros roubados, que ele estava indo além de sua experiência com aquele empreendimento. Mas Murphy gastara alguns milhares de libras do seu próprio dinheiro para armar aquele golpe e estava absolutamente convencido de que tudo daria certo. Ele continuou a observar a barca que se aproximava.

No galpão, o mecânico apertou a última das porcas da caixa do diferencial, saiu de sob o caminhão, se levantou e espreguiçou-se.

– Já está tudo certo – disse ele. – Vamos pôr agora os dois litros e meio de óleo e depois você poderá partir.

Desatarraxou uma pequena tampa no lado da caixa do diferencial, enquanto Clarke ia buscar um galão de óleo e um funil no furgão. Lá fora a St. Patrick atracou suavemente, os cabos foram presos em seus lugares. As portas se abriram, a rampa foi baixada.

Murphy apertava o binóculo com força, observando o buraco escuro que era o porão da St. Patrick. O primeiro caminhão a sair era castanho-claro, com um letreiro em francês. O segundo a emergir para o sol claro da tarde era verde e branco. No lado do reboque estava escrita a palavra TARA, em imensas letras verdes. Murphy deixou o ar escapar dos pulmões, lentamente.

– Lá está o caminhão que estamos querendo – murmurou ele. – Vamos partir agora? – indagou Brendan, que não podia ver quase nada sem um

binóculo e estava se sentindo entediado.

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– Não há pressa. Vamos esperar primeiro que o caminhão saia do galpão da alfândega.

No galpão, o mecânico atarraxou a tampa de abastecimento de óleo e virou-se para Clarke.

– Ele é todo seu, prontinho para partir. Vou me lavar agora e provavelmente o alcançarei na estrada para Dublin.

Ele guardou o galão de óleo e as ferramentas no furgão, pegou um frasco de detergente líquido e encaminhou-se para o banheiro. O outro caminhão da Tara Transportation atravessou ruidosamente o cais e entrou no galpão. Um inspetor da alfândega fez-lhe sinal para que entrasse no boxe ao lado de seu companheiro. O motorista desembarcou.

– Que diabo lhe aconteceu, Liam? – perguntou ele. Clarke explicou o problema. Um inspetor aproximou-se para examinar os

documentos do novo caminhão. – Posso partir agora? – perguntou-lhe Clarke. – E já vai tarde – disse o inspetor. – Fez a maior confusão aqui por tempo demais. Pela segunda vez em 24 horas, Clarke subiu para a cabine, ligou o motor e soltou o

freio. Com um aceno para o colega da companhia, ele arrancou, a carreta saindo do galpão para a luz do sol.

Murphy ajustou o binóculo quando a carreta emergiu do galpão para o lado da terra, informando a Brendan:

– Ele já passou pela alfândega. Sem qualquer complicação. Está vendo? Passou o binóculo para Brendan, que ergueu-se um pouco no pequeno morro e

observou atentamente. A 500 metros de distância, a carreta estava fazendo as curvas que levavam para longe do porto, a caminho da estrada de Rosslare.

– Estou, sim, Murphy. – São 750 caixas do melhor conhaque francês que estão lá dentro – murmurou

Murphy. – O que dá nove mil garrafas. No mercado negro, cada garrafa está valendo mais de dez libras e eu ficarei com quatro. O que acha disso?

– É um bocado de conhaque – comentou Brendan, ansiosamente. – É um bocado de dinheiro, seu idiota. Vamos embora. Os dois homens desceram do alto do pequeno morro, correndo meio agachados para

o carro à espera, num caminho de terra. Ao chegarem à estrada do porto para Rosslare, tiveram de esperar apenas alguns

segundos e logo o motorista Clarke passou ruidosamente. Murphy avançou com o Ford Granada preto, roubado dois dias antes e agora com chapas frias, pondo-se a seguir a carreta.

Não houve paradas, pois Clarke estava querendo chegar em casa o mais breve possível.

Quando atravessou pela ponte sobre o Slanley e seguiu para o norte, passando por Wexford, na estrada de Dublin, Murphy decidiu que já estava na hora de dar o telefonema.

Ele escolhera a cabine antes e retirara a cápsula receptora do fone, a fim de ter certeza de que ninguém mais estaria usando o aparelho, no momento em que precisasse fazer a sua ligação. E não havia mesmo ninguém na cabine. Mas alguém antes ficara furioso ao descobrir que o telefone não funcionava e arrancara o fio da parede. Murphy praguejou e seguiu adiante.

Encontrou outra cabine ao lado de uma agência dos correios, um pouco ao norte de Enniscorthy.

Enquanto ele diminuía e freava, a carreta à sua frente desaparecia rapidamente. A ligação foi para outra cabine telefônica à beira da estrada, ao norte de Gorey,

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onde dois outros membros de sua quadrilha estavam esperando. – Onde diabo você se meteu? – gritou Brady. – Estou esperando aqui com Keogh há

mais de uma hora! – Não precisa ficar preocupado – disse Murphy. – Ele está a caminho e dentro do

horário. Ocupem suas posições por trás das moitas e fiquem esperando que ele pare e

desembarque. Desligou, voltou ao carro e seguiu em frente. Com sua velocidade superior,

alcançou o caminhão pouco antes da aldeia de Ferns, continuando a segui-lo pela estrada aberta. Antes de alcançarem Camolin, virou-se para Brendan e disse:

– Está na hora de nos tornarmos os guardiães da lei e da ordem. Tornou a sair da estrada, desta vez entrando num estreito caminho de terra, que já

verificara anteriormente. Estava deserto. Os dois homens saltaram, pegando uma valise no banco traseiro. Tiraram os blusões

com zíper na frente e pegaram dois casacos na valise. Já usavam sapatos, meias e calças pretas. Por baixo dos blusões, estavam com camisa azul e gravata preta, o uniforme da polícia. Os casacos que vestiram completaram o embuste. O de Murphy possuía as três listras de um sargento e o de Brendan nada tinha. Ambos exibiam o emblema da Garda, a força policial irlandesa. Dois quepes também saíram da valise e foram para suas cabeças.

Os últimos conteúdos da valise eram dois rolos de fita preta adesiva. Murphy desenrolou a fita e cortou dois pedaços, estendendo com as mãos e alisando, nas portas da frente do Granada. A fita adesiva se confundia com a tinta preta do carro. Em cada porta podia-se ler agora a palavra GARDA, em letras brancas. Ao roubar o carro, Murphy escolhera deliberadamente um Granada preto, porque era o carro de patrulha mais comum da polícia.

Da mala trancada do carro, Brendan retirou o último equipamento, um bloco com meio metro de comprimento e uma base triangular. Havia fortes ímãs na base, prendendo o bloco ao teto do carro. As laterais eram de vidro, com a palavra GARDA também impressa. Não havia qualquer lâmpada no interior, mas ninguém perceberia esse detalhe à luz do dia.

Os dois homens tornaram a embarcar no carro. Ao voltarem à estrada, qualquer observador pensaria certamente que eram uma dupla de patrulheiros, em serviço. Foram encontrar o caminhão parado num sinal, na cidadezinha de Gorey. Era Brendan quem estava agora ao volante do Granada, tendo o "sargento" Murphy ao seu lado.

Havia um novo trecho de pista dupla ao norte de Gorey, entre esta antiga cidade-mercado e Arklow. No meio desse trecho, seguindo para o norte, existe um desvio em que os carros podiam parar. Fora o local que Murphy escolhera para a emboscada. No momento em que a fileira de tráfego bloqueada pela carreta entrou no trecho de pista dupla, os outros motoristas trataram de fazer a ultrapassagem o mais depressa possível, na maior alegria. Murphy não teria testemunhas. Ele abaixou a janela e disse "Agora!" para Brendan.

O Granada avançou rapidamente e emparelhou com a cabine do caminhão, mantendo-se nessa posição. Clarke olhou para o carro de polícia ao seu lado e viu o sargento acenando-lhe. Ele baixou a janela e ouviu Murphy gritar, acima do barulho do vento:

– Está perdendo um pneu traseiro! É melhor parar no desvio! Clarke olhou para a frente, viu a placa que indicava um desvio de parada logo

adiante e acenou com a cabeça, reduzindo a velocidade. O carro da polícia seguiu na frente, entrou no desvio e parou. O caminhão seguiu e parou logo atrás do Granada. Clarke saltou.

– É lá atrás – disse Murphy. – Siga-me. Clarke seguiu-o obedientemente, contornando a frente do caminhão e seguindo pela

lateral até a traseira. Não pôde ver nenhum pneu furado, mas também quase não teve a

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chance de olhar. As moitas se entreabriram, e Brady e Keogh avançaram, usando macacões e capuzes. Uma mão enluvada tapou a boca de Clarke, um braço forte envolveu-lhe o peito, outro par de braços agarrou-lhe as pernas. Ele foi levantado como se fosse um saco e desapareceu entre os arbustos.

Um minuto depois, estava sem o seu macacão, com o logotipo da Tara no bolso do peito, os pulsos, boca e olhos presos com uma fita adesiva. Oculto dos motoristas que passavam pelo seu próprio caminho, foi levado para o banco traseiro do falso carro de polícia. Ali, uma voz ríspida disse-lhe que deitasse no chão e ficasse quieto.

Dois minutos depois, Keogh emergiu dos arbustos com o macacão da Tara, juntando-se a Murphy, que examinava a carteira de motorista do desditoso Clarke.

– Está tudo em ordem – disse Murphy. – Seu nome é Liam Clarke e os documentos devem estar todos em ordem, caso contrário não teria passado tão facilmente por Rosslare há duas horas.

Keogh, que fora motorista de caminhão antes de passar uma temporada como hóspede da república, em Mountjoy, soltou um grunhido e subiu para a cabine. Examinou rapidamente os controles e depois anunciou, enquanto ajeitava os documentos no visor por cima do volante:

– Não há problema. – Vejo-o na fazenda dentro de uma hora – disse Murphy. Ficou observando o caminhão seqüestrado deixar o desvio e tornar a entrar no fluxo

de tráfego para o norte, na estrada de Dublin. Depois, Murphy voltou ao carro da polícia. Brady estava no banco traseiro, com os

pés em cima de Clarke, deitado e vendado. Ele tirara o macacão e o capuz, usava agora um casaco de tweed.

Clarke podia ter visto o rosto de Murphy, mas apenas por alguns segundos e mesmo assim com o quepe da polícia enfiado na cabeça. Nunca veria os rostos dos outros três. Assim, se ele algum dia acusasse Murphy, os outros três estariam em condições de oferecer ao chefe um álibi forte.

Murphy olhou para um lado e outro da estrada. Estava vazia naquele momento. Ele olhou para Brendan e acenou com a cabeça. Os dois homens arrancaram as fitas adesivas com o letreiro GARDA das portas, enrolaram e jogaram no banco traseiro. Outro olhar. Um carro passou em alta velocidade, sem que o motorista lhes prestasse qualquer atenção. Murphy arrancou o bloco triangular da capota e entregou-o a Brady. Mais um olhar. Não havia qualquer tráfego. Os casacos do uniforme da polícia foram tirados e entregues a Brady. Os blusões voltaram a ser vestidos. Quando o Granada saiu do desvio, era outra vez apenas um carro de passeio, com três civis visíveis no interior.

Passaram pelo caminhão um pouco ao norte de Arklow. Murphy, novamente ao volante, deu uma buzinada discreta. Keogh levantou uma das mãos quando foi ultrapassado pelo Granada, o polegar levantado para indicar que tudo corria bem.

Murphy continuou seguindo para o norte até Kilmacanogue, quando então pegou a estradinha conhecida como Rocky Valley, na direção de Calary Bog. Não acontece muita coisa por aquela região. Mas ele descobrira uma fazenda abandonada no meio da charneca, que tinha a vantagem de oferecer um estábulo grande o bastante para deixar o caminhão invisível por algumas horas. Não precisariam mais do que isso. O acesso à fazenda era por um caminho lamacento, protegido por um agrupamento de coníferas.

Chegaram pouco antes do anoitecer, 50 minutos antes do caminhão e duas horas antes do encontro marcado com os homens do norte e seus quatro furgões.

Murphy achou que podia sentir-se orgulhoso com toda razão pelo golpe que acabara de desfechar. Não seria fácil livrar-se daquelas nove mil garrafas de conhaque no Sul. Estavam todas marcadas, cada caixa e garrafa numerada, mais cedo ou mais tarde seriam

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identificadas. Lá no Ulster, porém, no norte devastado pela guerra, a situação era muito diferente.

A região estava repleta de tavernas ilegais. Essas tavernas clandestinas eram rigorosamente segregadas, entre protestantes e

católicos, o controle firmemente nas mãos do submundo, que há muito tempo já fora dominado pelos patriotas idealistas que vivem lá pelo norte. Murphy sabia perfeitamente, assim como quase todo mundo, que uma parcela considerável das mortes sectárias pela glória da Irlanda estava na verdade diretamente relacionada com lutas entre quadrilhas, nada tendo a ver com patriotismo.

Assim, ele fechara negócio com um dos mais poderosos heróis do Norte, o principal fornecedor de uma vasta rede de tavernas clandestinas, nas quais o conhaque poderia ser servido e consumido sem perguntas. O homem viria com seus motoristas para encontrá-lo na fazenda, o conhaque seria transferido para os quatro furgões, o pagamento efetuado em dinheiro no local.

Ao amanhecer, os furgões seguiriam para o Norte, pelo labirinto de estradinhas rurais que cruzavam a fronteira, entre os lagos, ao longo da linha Fermanagh-Monaghan.

Murphy ordenou a Brendan e Brady que levassem o infeliz motorista do caminhão para a casa da fazenda. Lá dentro, Clarke foi jogado de qualquer maneira sobre uma pilha de sacos, num canto da cozinha em ruínas. Os três seqüestradores acomodaram-se para esperar. Às sete horas, o caminhão verde e branco aproximou-se pelo caminho lamacento, na semi-escuridão, com as luzes apagadas. Os três saíram correndo da casa. À luz de lanternas, abriram as portas do velho estábulo. Keogh entrou com o caminhão e as portas foram fechadas. Keogh saltou da cabine, murmurando:

– Acho que fiz jus à minha parte... e também a um trago. – Trabalhou muito bem – declarou Murphy. – Não precisará guiar o caminhão

novamente. Será descarregado por volta da meia-noite e eu mesmo o levarei até um ponto a cerca de 15 quilômetros daqui, onde o abandonarei. O que vai querer beber agora?

– Que tal um gole de conhaque? – sugeriu Brady. Todos riram, porque era uma boa piada. – Não vou abrir uma caixa só por causa de alguns tragos – disse Murphy. – E,

pessoalmente, prefiro uísque. Isto serve? Tirou um frasco do bolso e todos concordaram que servia perfeitamente. Aos quinze

minutos para as oito, a escuridão era total e Murphy foi até o final do caminho, levando uma lanterna, a fim de orientar os homens do Norte. Ele lhes fornecera instruções precisas, mas mesmo assim os homens podiam perder o caminho. Faltavam dez minutos para as oito horas quando ele voltou, guiando um comboio de quatro furgões fechados. Os veículos pararam no pátio e um homem imenso, de sobretudo de pêlo de camelo, desceu do lado do passageiro do veículo que vinha na frente. Carregava uma pasta, mas não tinha qualquer senso de humor visível.

– Murphy? – indagou ele. Murphy assentiu e o homem acrescentou: – Está com a minha mercadoria? – Fresquinha, saída da barca que chegou hoje da França – respondeu. – Ainda está

no caminhão, dentro do estábulo. – Se abriu o caminhão, vou querer examinar todas as caixas – ameaçou o homem. Murphy engoliu em seco. Estava satisfeito por ter resistido à tentação de contemplar

o saque. – O lacre da alfândega da França está intacto. Pode examinar pessoalmente. O homem do Norte soltou um grunhido e acenou com a cabeça para os seus

acólitos, que prontamente foram abrir as portas do estábulo. As tochas iluminaram os dois

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cadeados que trancavam a porta traseira do caminhão. O lacre estava intacto. O homem do Ulster soltou outro grunhido e assentiu num gesto de satisfação. Um dos seus homens pegou um pé-de-cabra e avançou para os cadeados. O homem do Norte sacudiu a cabeça bruscamente e disse:

– Vamos entrar primeiro. Murphy seguiu na frente, empunhando uma tocha, entrando no que fora outrora a

sala de estar da velha fazenda. O nortista pôs a pasta em cima da mesa, abriu-a e levantou a tampa. Maços de libras esterlinas saudaram o olhar de Murphy. Ele nunca antes vira tanto dinheiro junto.

– São nove mil garrafas, a quatro libras cada uma – murmurou ele. – Dá um total de 36 mil libras, não é mesmo?

– Dá 35 mil – grunhiu o nortista. – Gosto de números redondos. Murphy não discutiu. Tinha a impressão de que contestar aquele homem não era

muito sensato. De qualquer forma, estava satisfeito. Com três mil libras para cada um dos seus

homens e o seu investimento recuperado, ainda teria um lucro de mais de 20 mil libras. – Está certo. Um dos outros nortistas apareceu na janela quebrada e disse simplesmente ao chefe: – É melhor vir dar uma olhada. E depois ele se afastou. O chefe fechou a pasta bruscamente, segurou-a pela alça e

saiu da casa. Os outros nortistas, juntamente com Keogh, Brady e Brendan, estavam agrupados diante das portas abertas do caminhão, dentro do estábulo. Seis tochas iluminavam o interior do veículo. Em vez das fileiras de caixas impecavelmente empilhadas, exibindo o nome mundialmente famoso do produtor de conhaque, estavam olhando para outra coisa.

Havia fileiras de sacos de plástico empilhados, cada um ostentando o nome de um famoso fabricante de acessórios de jardinagem. Por baixo do nome, estavam as palavras "Fertilizante de Rosas". O homem do Norte ficou olhando fixamente para a carga, sem que sua expressão se alterasse.

– Que história é essa? – resmungou ele. Murphy teve de levantar a mandíbula inferior de algum lugar na altura da garganta. – Não sei – balbuciou. – Juro que não sei. Ele estava dizendo a verdade. Sua informação fora fidedigna... e custara muito

dinheiro. Tinha o nome certo da barca, o nome certo da transportadora. Sabia que havia apenas um caminhão daquela transportadora na St. Patrick naquela tarde.

– Onde está o motorista? – rosnou o homem do Norte. – Na casa – murmurou Murphy. – Vamos falar com ele. Murphy seguiu na frente outra vez. O infeliz Liam Clarke ainda estava manietado,

por cima dos sacos, no canto da cozinha. – Que diabo de carga é essa que você trouxe? – perguntou o homem do Norte,

bruscamente. Clarke murmurou furiosamente por trás da mordaça. O grandalhão acenou com a

cabeça para um dos seus cúmplices, que adiantou-se e arrancou violentamente a fita adesiva que cobria a boca de Clarke. O motorista continuava com um pedaço de fita adesiva sobre os olhos.

– Eu perguntei que diabo de carga é essa que você trouxe – repetiu o grandalhão. Clarke engoliu em seco e balbuciou: – Fertilizante de rosa. Está no manifesto de carga. O grandalhão iluminou com a tocha os papéis que tomara de Murphy. Parou no

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manifesto de carga e empurrou-o para o rosto de Murphy. – Não olhou para isto, seu idiota? Murphy procurou descarregar seu pânico crescente no motorista, dizendo-lhe: – Por que não me falou isso antes? A indignação proporcionou alguma audácia a Clarke, diante de seus algozes

invisíveis. E ele gritou em resposta: – Não falei nada porque estava com uma maldita mordaça na boca! – Lá isto é verdade, Murphy – disse Brendan, que sempre tomava as coisas ao pé da

letra. – Cale-se! – rosnou Murphy, que estava ficando cada vez mais desesperado. Ele

inclinou-se para Clarke. – Não há nenhum conhaque por baixo daqueles sacos? O rosto de Clarke deixou transparecer a sua total ignorância do assunto. – Conhaque? Por que deveria haver algum conhaque? Não se fabrica conhaque na

Bélgica. – Bélgica? – uivou Murphy. – Você chegou a Le Havre vindo de Cognac, na

França! – Nunca estive em Cognac em toda a minha vida! – berrou Clarke. – Estava

transportando uma carga de fertilizante de rosa. É feito de musgo e estrume de vaca ressequido. Exportamos da Irlanda para a Bélgica. Levei essa carga na semana passada. Eles abriram em Antuérpia, examinaram e chegaram à conclusão de que estava abaixo das especificações. Meus chefes em Dublin mandaram-me buscá-la de volta. Custou-me três dias em Antuérpia, cuidando de todos os documentos. Está tudo aí.

O homem do Norte estivera iluminando com a tocha os documentos que tinha na mão.

Confirmavam a história de Clarke. Ele jogou tudo no chão, com um grunhido de raiva.

– Venha comigo – disse ele a Murphy. O homem do Norte deixou a casa e Murphy foi atrás, protestando sua inocência. Na escuridão do pátio, o grandalhão interrompeu bruscamente os protestos de

Murphy. Largou a pasta no chão, virou-se e agarrou-o pelo blusão, levantando-o com a maior facilidade e empurrando-o contra a porta do estábulo.

– Preste muita atenção, seu filho da puta católico! Murphy se perguntava a que lado da vida criminosa do Ulster pertencia o homem

com quem estava lidando. Sabia agora. E o homem do Norte continuou, num sussurro que gelou o sangue de Murphy:

– Você seqüestrou uma carga de bosta... literalmente. E também desperdiçou um bocado do meu tempo, do tempo dos meus homens, do meu dinheiro...

– Eu juro... – balbuciou Murphy, que começava a ter dificuldades para respirar – ...pela sepultura de minha mãe... deve estar na próxima barca, chegando às duas horas da tarde de amanhã.

Posso começar tudo de novo... – Não para mim, porque o negócio entre nós está encerrado. E mais uma coisa: se

algum dia tentar me pregar novamente uma piada dessas, mandarei dois dos meus homens até aqui para inverter as posições de suas rótulas. Entendido?

Santo Deus, pensou Murphy, esses nortistas são mesmo uns animais. Bem que merecem os ingleses. Mas ele sabia que, por sua própria vida, era melhor não manifestar o pensamento.

Limitou-se a assentir. Cinco minutos depois, o homem do Norte e seus quatro furgões vazios haviam partido.

Na casa da fazenda, à luz de uma tocha, Murphy e sua desconsolada quadrilha

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terminaram de tomar o uísque. – O que vamos fazer agora? – indagou Brady. – Vamos tratar de apagar as pistas – respondeu Murphy. – Nada ganhamos, mas

também nada perdemos. Isto é, eu fui o único que saiu perdendo em toda essa história. – O que tem a dizer sobre as nossas três mil libras? – perguntou Keogh. Murphy pensou por um momento. Não queria outra rodada de ameaças, agora

partindo de seus próprios homens, depois do pavor a que fora levado pelo gigante do Ulster. – Rapazes, terão de aceitar 1.500 libras por cabeça. E também terão de esperar até

que eu arrume o dinheiro. Fiquei liso nos preparativos para este golpe. Eles pareceram ficar satisfeitos, se não mesmo felizes. – Vocês devem limpar tudo por aqui. Eliminem todas as pistas, apaguem cada

pegada e marca de pneus na lama. Quando acabarem, peguem o carro e deixem o motorista em algum lugar ao sul daqui, à beira da estrada, sem sapatos. E com a fita adesiva na boca, olhos e pulsos. Assim, ele vai demorar algum tempo para conseguir dar o alarme. Depois, virem para o norte e voltem para casa. – Murphy fez uma breve pausa, antes de acrescentar: – Cumprirei a palavra que lhe dei, Keogh. Levarei o caminhão e o abandonarei em algum ponto das colinas, perto de Kippure.

Descerei a pé e talvez possa pegar uma carona na estrada para Dublin. Concordam? Todos concordaram. Não havia outra saída. Os homens do Norte haviam destruído

inteiramente os cadeados na traseira do caminhão. Por isso, eles tiveram que procurar por pedaços de madeira para unir os fechos. Fecharam as portas sobre a carga desalentadora e prenderam-na com os pedaços de madeira. Com Murphy ao volante, o imenso veículo desceu pelo caminho lamacento da fazenda e virou à esquerda, na direção da Floresta Djouce e das colinas de Wicklow.

Passava um pouco das nove e meia e Murphy já estava além da floresta, na estrada de Roundwood, quando deparou com o trator. Era de se imaginar que fazendeiros jamais sairiam à noite em tratores com um farol quebrado e o outro coberto de lama, com dez toneladas de fardos de feno num reboque. Mas era justamente o que aquele fazendeiro estava fazendo.

Murphy avançava entre dois muros de pedra quando divisou o trator e o reboque se aproximando em sentido contrário. Pisou no freio um tanto abruptamente.

Uma coisa inevitável nos caminhões de reboque é que podem manobrar em curvas nas quais um caminhão inteiro do mesmo porte não poderia passar, mas também são terríveis quando se trata de frear. Se a seção da cabine, que faz o reboque, e a seção posterior, que contém a carga, não estiverem praticamente na mesma linha, tendem a se entortar, como um canivete. O reboque mais pesado tenta alcançar a cabine, empurrando-a para o lado, numa derrapagem. Foi justamente o que aconteceu com Murphy.

Foram os muros de pedra, tão comuns nas colinas de Wicklow, que impediram que ele rolasse para fora da estrada. O fazendeiro disparou o trator por um portão convenientemente próximo, deixando os fardos de feno no reboque para receberem qualquer impacto. A cabine de Murphy começou a derrapar para a frente, ao ser alcançada pelo reboque. A carga de fertilizante aumentou a pressão, enquanto ele calcava o freio, em pânico, batendo de lado contra os fardos de feno, que felizmente caíram sobre a cabine, quase enterrando-a. A traseira do reboque bateu num muro de pedra e foi arremessada de volta à estrada, indo bater também no muro do lado oposto.

Quando o rangido de metal na pedra cessou, o reboque do fazendeiro ainda estava de pé, mas fora arrastado por três metros, rompendo-se o engate com o trator. O impacto arrancara o fazendeiro do assento e lançara-o numa pilha de esterco. Ele estava travando uma ruidosa conversa pessoal com o seu criador. Murphy estava sentado na semi-escuridão de uma cabine coberta por fardos de feno.

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O impacto com os muros de pedra arrebentara os pedaços de madeira que seguravam as portas da traseira do caminhão. Uma parte da carga de fertilizante para rosas estava espalhada pela estrada, por trás do caminhão. Murphy abriu a porta da cabine, tendo de fazer o maior esforço para atravessar os fardos de feno e alcançar um ponto desobstruído da estrada. Só tinha um instinto, que era o de escapar dali imediatamente, o mais depressa que fosse possível. O fazendeiro jamais o reconheceria na escuridão. Mas no instante mesmo em que começou a afastar-se, lembrou-se de que não tivera tempo de apagar todas as suas impressões digitais na cabine do caminhão.

O fazendeiro conseguira sair da pilha de esterco e estava parado na estrada, ao lado da cabine de Murphy, exalando um odor que jamais poderia fazer algum sucesso na indústria de loções masculinas. Era evidente que ele gostaria de dispor de alguns minutos do tempo de Murphy. E Murphy tratou de pensar rapidamente. Apaziguaria o fazendeiro, oferecendo-se para ajudá-lo a recarregar os fardos de feno. Na primeira oportunidade, limparia as suas impressões digitais no interior da cabine, aproveitando a segunda oportunidade para desaparecer na escuridão.

Foi nesse momento que o carro da polícia apareceu. É uma coisa estranha o que acontece com os carros da polícia; quando se precisa, são como morangos na Groenlândia. Mas basta arranhar-se um pouco a pintura de outro carro e a polícia no mesmo instante aparece. Aquele carro da polícia escoltara um ministro de Dublin até a casa de campo dele, perto de Annamoe, e estava agora voltando à capital. Ao ver os faróis, Murphy pensou que se tratasse simplesmente de mais um motorista comum. Mas quando os faróis se apagaram, ele pôde constatar que era a coisa autêntica. Tinha até o triângulo da Garda no teto, com a diferença de que este acendia de verdade.

O sargento e o guarda aproximaram-se lentamente, passando pelo trator e caminhão imobilizados e indo contemplar os fardos de feno derrubados ao redor. Murphy compreendeu que não lhe restava alternativa senão tentar encontrar uma saída no blefe. Na escuridão, talvez ainda lhe fosse possível escapar.

– É seu? – perguntou o sargento, acenando com a cabeça na direção do caminhão. – É, sim – respondeu Murphy. – Está muito longe das estradas principais – comentou o sargento. – E também muito atrasado – disse Murphy. – A barca chegou tarde hoje em

Rosslare. Eu queria entregar a carga o mais depressa possível e voltar para minha casa. – Seus documentos. Murphy foi até a cabine, pegou os documentos de Liam Clarke e entregou-os. – Liam Clarke? – indagou o sargento. Murphy assentiu. Os documentos estavam em perfeita ordem. O guarda estava

examinando o trator e voltou agora para falar com o sargento. – Um dos faróis do trator está quebrado e o outro está coberto de lama – informou

ele. – Não daria para ser visto a mais de dez metros de distância. O sargento devolveu os documentos de Murphy e transferiu sua atenção para o

fazendeiro. Este, indignado até um momento antes, caiu prontamente na defensiva. Murphy reanimou-se.

– Não quero criar caso, mas o guarda está certo – disse ele. – O trator e o reboque estavam completamente invisíveis.

– Está com a sua carteira? – perguntou o sargento ao fazendeiro. – Deixei em casa. – E certamente deixou o seguro também. Espero que esteja tudo em ordem. É o que

veremos daqui a pouco. Mas agora não pode guiar com os faróis como estão. Leve o reboque para o campo e retire os fardos de feno da estrada. Pode recolhê-los ao amanhecer. Vamos levá-lo à sua casa e aproveitar para examinar os documentos.

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Murphy sentiu-se ainda mais animado. Eles iriam embora dentro de mais alguns minutos. O guarda pôs-se a examinar os faróis do caminhão. Estavam em perfeita ordem. Ele foi inspecionar as luzes traseiras.

– Qual é a sua carga? – perguntou o sargento. – Fertilizante – informou Murphy. – Uma parte de musgo, uma parte de estrume de

vaca. Muito bom para rosas. O sargento desatou a rir. Virou-se para o fazendeiro, que já levara o reboque para

fora da estrada e estava agora removendo os fardos de feno. A estrada estava quase desobstruída.

– Este está carregando esterco, mas foi você quem afundou nele até o pescoço! – disse o sargento, rindo ainda mais do gracejo.

O guarda voltou da traseira do caminhão e disse: – As portas se abriram com o impacto. Alguns sacos caíram na estrada e

arrebentaram. Acho melhor vir dar uma olhada, sargento. Os três encaminharam-se para a traseira do caminhão. Uma dúzia de sacos caíra

pelas portas abertas. Quatro sacos haviam arrebentado. O luar iluminava as pilhas de fertilizante, entre o plástico rasgado. O guarda projetou o facho da lanterna sobre a confusão. Como Murphy disse mais tarde ao seu companheiro de cela, há certos dias em que nada dá certo, absolutamente nada.

Ao luar e à luz da lanterna, não havia como se equivocar com o vasto cano da bazuca que sobressaía entre o fertilizante. Também eram inconfundíveis os contornos das metralhadoras que se projetavam dos sacos rasgados. O estômago de Murphy se contraiu todo.

A polícia irlandesa normalmente não porta armas. Mas sempre o faz quando está escoltando algum ministro. A automática do sargento estava apontada para a barriga de Murphy.

Murphy suspirou. Era um daqueles dias. Ele não apenas fracassara no seqüestro de nove mil garrafas de conhaque, mas também conseguira interceptar o contrabando de armas de alguém... e não tinha a menor dúvida de quem poderia ser esse "alguém". E ele podia pensar em vários lugares nos quais gostaria de estar nos próximos dois anos e sabia que as ruas de Dublin não estavam incluídas entre os lugares mais seguros.

Murphy levantou as mãos lentamente, murmurando: – Tenho uma pequena confissão a fazer... DINHEIRO SOB AMEAÇA Se Samuel Nutkin não tivesse deixado o estojo dos óculos cair entre as almofadas

seu assento no trem que o levava de Edenbridge para o trabalho em Londres, naquela manhã, nada teria jamais ocorrido. Mas aconteceu que ele largou e enfiou a mão entre as almofadas para recuperá-lo. A sorte estava lançada.

Os dedos que procuravam encontraram não apenas o estojo dos óculos, mas também uma revista fina, evidentemente metida ali pelo ocupante anterior do assento. Pensando que se tratava de um horário dos trens, ele tirou a revista, despreocupadamente. Não que precisasse de um horário dos trens. Depois de 25 anos a pegar o mesmo trem, no mesmo horário, na pequena e inocente comunidade suburbana de Edenbridge para ir até a estação de Charing Cross, voltando no mesmo trem, no mesmo horário, da estação de Cannon Street para Kent, ao final da tarde, ele não tinha a menor necessidade de um horário de trens. Era simplesmente uma curiosidade passageira.

Ao olhar para a capa da revista, o rosto do Sr. Nutkin ficou imediatamente

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vermelho. Apressadamente, ele tornou a enfiar a revista entre as almofadas. Correu os olhos

pelo compartimento, para verificar se alguém notara o que descobrira. À sua frente, dois Financial Times, um Times e um Guardian acenaram-lhe em resposta, com o balanço do trem, os leitores invisíveis por trás das seções de cotações. À sua esquerda, o velho Fogarty estava concentrado no problema de palavras cruzadas; à direita, além da janela, a estação de Hither Green passou rapidamente, indiferente. Samuel Nutkin respirou, aliviado.

A revista era pequena, com uma capa lustrosa. Em cima, estavam as palavras New Circle, evidentemente o título da publicação. Na base da capa havia uma frase explicativa: "Solteiros, Casais, Grupos – a revista de contato para os que são sexualmente conscientes". Entre os dois blocos impressos, no meio da capa, havia a fotografia de uma mulher avantajada, com seios volumosos, o rosto oculto por um quadrado branco, que apresentava-a como "Anunciante H. 331". Nutkin nunca antes vira uma revista assim, mas pensou nas implicações de sua descoberta por todo o percurso até Charing Cross.

Quando as portas do trem se abriram ao mesmo tempo, para despejar a carga de passageiros no turbilhão da Plataforma Seis, Samuel Nutkin retardou a sua saída deliberadamente, mexendo na pasta, enrolando o guarda-chuva e ajeitando o chapéu-coco, até ser o último a deixar o compartimento. Finalmente, aterrado com a própria audácia, tirou a revista do seu lugar entre as almofadas e meteu-a rapidamente na pasta. Juntou-se ao mar de outros chapéus-cocos, todos se encaminhando para a saída.

Foi uma caminhada inconfortável de Charing Cross até a estação do metrô em Mansion House, depois a subida de escada rolante até a Great Trinity Lane e a travessia da Cannon Street até o prédio da companhia de seguros em que Samuel Nutkin trabalhava como escriturário. Lembrava-se da história que ouvira sobre um homem que fora atropelado por um carro e levado ao hospital; ao lhe esvaziarem os bolsos, encontraram um maço de fotografias pornográficas. A recordação atormentava Samuel Nutkin. Como se poderia explicar uma coisa dessas? A vergonha e o constrangimento seriam insuportáveis. Seria terrível ficar deitado numa cama, com a perna imobilizada, sabendo que todo mundo conhecia os seus gostos secretos. Ele foi especialmente cuidadoso ao atravessar as ruas naquela manhã, até chegar ao escritório da companhia.

Pelo que se pode prontamente adivinhar, o Sr. Nutkin não estava acostumado a esse tipo de coisa. Houve outrora um homem que imaginara que os seres humanos tendem a imitar os apelidos que lhes são dados em momentos despreocupados. Chamem um homem de "Butch" e ele vai andar se bamboleando arrogantemente. Chamem um homem de "Killer" e ele vai se mostrar com os olhos semicerrados, tentando falar como Bogart. Os homens considerados engraçados sentem-se na obrigação de continuarem interminavelmente a contar piadas e bancar o palhaço, até finalmente desmoronarem da tensão constante. Samuel Nutkin tinha apenas 10 anos quando um colega de escola, que lia as histórias de Beatrix Potter, apelidara-o de Esquilo.

E ele não teve mais escapatória. Trabalhava na City, o centro financeiro de Londres, desde os 25 anos de idade,

quando deixara o Exército, ao final da guerra, no posto de cabo. Naquela ocasião, tivera muita sorte de conseguir o emprego, um lugar seguro, com uma pensão no final. Tornara-se escriturário da companhia de seguros, gigantesca, com filiais no mundo inteiro, tão segura quanto o Banco da Inglaterra, que ficava a menos de 500 metros de distância. A obtenção do emprego assinalara o ingresso de Samuel Nutkin na City, a área urbana de três quilômetros quadrados que é o quartelgeneral de um vasto polvo econômico, comercial e bancário, com tentáculos se estendendo a todos os cantos do globo.

Adorava a City naquele tempo, ao final dos anos 40. Aproveitava a hora do almoço para passear pelas ruas antigas, a Bread Street, Cornhill, Poultry e London Wall, que

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remontavam à Idade Média, quando realmente ali se vendia pão, trigo e aves, onde se erguia de fato a muralha da cidade de Londres. Sempre ficava impressionado ao pensar que foram naquelas austeras pilastras de pedra que mercadores-aventureiros haviam obtido o apoio financeiro necessário para navegarem até as terras dos homens pardos, pretos e amarelos, a fim de comerciar, extrair riquezas minerais e pilhar em geral, enviando os botins de volta à City, para segurar, bancar e investir, até um ponto tal que as decisões tomadas naqueles três quilômetros quadrados de salas de reuniões e casas de contabilidade podiam determinar se um milhão de seres inferiores iriam ter trabalho ou passariam fome. O fato de que esses homens eram na verdade os saqueadores mais bem-sucedidos do mundo nunca lhe ocorrera. Samuel Nutkin era um homem extremamente leal.

O tempo fora passando e, depois de um quarto de século, a magia se desvanecera. Samuel Nutkin tornara-se simplesmente um membro do imenso rebanho de escriturários de terno cinza, guarda-chuva enrolado e chapéu-coco que, todos os dias, se dirigia submissamente para a City, a fim de trabalhar durante oito horas, voltando em seguida para as comunidades-dormitórios dos condados próximos.

Na floresta da City, ele era como o seu apelido, uma criatura amistosa e inofensiva, que se tornara o complemento de uma escrivaninha com o passar dos anos, um homem simpático e rechonchudo, que acabara de chegar aos 50 anos, óculos equilibrados sobre o nariz para ler ou ver as coisas de perto, de maneiras suaves e sempre polido com as secretárias, que o achavam gentil e tratavam-no de modo maternal. Não era absolutamente um homem acostumado a ler ou que costumasse levar em sua pasta revistas obscenas. Mas foi justamente isso que Samuel Nutkin fez naquela manhã. E, assim que chegou ao escritório, trancou-se no banheiro e leu todos os anúncios que apareciam no New Circle.

E ficou espantado. Alguns dos anúncios estavam acompanhados por fotografias, quase sempre poses amadoras que eram, obviamente, donas-de-casa em trajes íntimos. Outros anúncios não tinham fotografias, mas apresentavam textos mais explícitos, oferecendo serviços que não faziam qualquer sentido, pelo menos para Samuel Nutkin. Ele leu todos os anúncios, guardou a revista no fundo de sua pasta e apressou-se em voltar para a sua escrivaninha.

Ao final do dia, conseguiu levar a revista de volta para sua casa em Edenbridge, sem ser detido e revistado pela polícia. Escondeu-a debaixo do tapete, junto à lareira, onde nunca seria descoberta por Lettice.

Lettice era a Sra. Nutkin. Passava a maior parte do tempo confinada ao leito, alegando que sofria de artritismo intenso e coração fraco, embora o Dr. Bulstrod opinasse que se tratava de uma dose forte de hipocondria. Era uma mulher frágil e macilenta, nariz fino, voz lamurienta. Fazia muitos anos que não proporcionava qualquer alegria física a Samuel Nutkin, na cama ou fora dela. Mas ele era um homem leal e honrado e seria capaz de fazer qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, para não afligi-la. Felizmente, Lettice raramente saía da cama e nunca se abaixava, por causa das costas. Assim, não havia o risco de ela descobrir o que havia sob o tapete, perto da lareira.

O Sr. Nutkin passou três dias absorvido em seus pensamentos, a maior parte sobre uma determinada anunciante da revista, que era bem acima da altura média e possuía um corpo generoso, a julgar pelos breves detalhes que relacionara. No terceiro dia, reunindo toda a sua coragem, Nutkin sentou-se e escreveu-lhe uma resposta. Isso foi feito num pedaço de papel comum, de escritório, e ele foi sucinto e objetivo. Escreveu: "Prezada Madame" e explicou em seguida que vira o anúncio e gostaria muito de conhecê-la.

A página central da revista explicava como os anúncios deveriam ser respondidos. A carta deveria ser remetida num envelope comum, junto com um envelope com o endereço do remetente e já selado. O número de anúncio a que se estava respondendo deveria ser indicado no verso do envelope, a lápis. O envelope externo, sem endereçamento, deveria ser

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remetido para a revista, juntamente com a taxa de encaminhamento. O Sr. Nutkin fez exatamente o que era determinado, só que indicou como remetente o nome de Henry Jones, aos cuidados de Acacia Avenue, 27, que era o seu verdadeiro endereço.

Durante os seis dias seguintes, ele se encaminhava para a porta assim que o carteiro se aproximava. Foi no sexto dia que recebeu o envelope endereçado para Henry Jones. Meteu-o no bolso e tornou a subir a escada, para recolher a bandeja do desjejum da mulher.

Naquela manhã, no trem para a cidade, foi trancar-se no banheiro e abriu o envelope com os dedos trêmulos. O conteúdo era a sua própria carta e no verso estava escrita a resposta:

"Prezado Henry, obrigada por sua resposta ao meu anúncio. Tenho certeza que podemos nos divertir muito juntos. Por que não me telefona para...? Com amor, Sally."

Não havia mais nada no envelope. Samuel Nutkin anotou o telefone num pedaço de papel e depois jogou a carta e o envelope no vaso, puxando a descarga. Ao voltar para o seu lugar, sentia borboletas esvoaçando no estômago e tinha a sensação de que todo mundo se poria a fitá-lo. Mas o velho Fogarty empacara em 15 horizontal e nenhum jornal foi baixado.

Nutkin fez a ligação na hora do almoço, de uma cabine telefônica na estação do metrô mais próxima. Uma voz áspera de mulher disse:

– Alô? O Sr. Nutkin empurrou a moeda pela fenda, limpou a garganta e disse: – Hã... Alô. É a Srta. Sally? – Sou eu mesma. Quem está falando? – Meu nome é Henry Jones. Recebi uma carta sua esta manhã, sobre uma resposta

que mandei para o seu anúncio... Houve um barulho de papel no outro lado do fio e depois a mulher voltou a falar: – Ah, sim, estou lembrada, Henry. E agora, querido, não gostaria de me ver? Samuel Nutkin teve a sensação de que sua língua parecia couro velho e balbuciou: – Sim, por favor... – Isso é maravilhoso – murmurou a mulher. – Só tem mais uma coisinha, Henry

querido. Sempre espero um presentinho dos meus amigos, apenas para ajudar no aluguel. Sempre peço dez libras. Mas não precisa se apressar. Está bem assim?

Nutkin assentiu e depois murmurou: – Está, sim. – Ótimo. Quando vai querer me visitar? – Teria que ser na hora do almoço. Trabalho na City e vou para casa de noite. – Não há problema. Amanhã cedo está bom para você? Ótimo. Ao meio-dia e meia?

Anote o endereço... Ele ainda sentia o estômago revirado, só que as borboletas haviam se transformado

em pombos irrequietos, quando chegou ao apartamento de porão perto de Westbourne Grove, em Bayswater, no dia seguinte, ao meio-dia e meia. Bateu nervosamente e ouviu o barulho de saltos de sapatos no corredor do outro lado da porta.

Houve uma pausa, enquanto alguém olhava pelo vidro no painel central da porta. E depois a porta se abriu e uma voz disse:

– Entre. A mulher estava parada atrás da porta e fechou-a assim que Samuel Nutkin entrou e

virou-se para fitá-la. – Você deve ser Henry – disse ela, suavemente. O Sr. Nutkin assentiu. – Vamos até

a sala para conversarmos. Nutkin seguiu-a pelo corredor até a primeira sala à esquerda, o coração batendo

forte como um tambor. Ela era mais velha do que imaginara, já chegando ao final da casa

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dos 30 anos, o rosto todo rebocado. Era pelo menos uns 15 centímetros mais alta do que ele, mas uma boa parte disso podia ser atribuída aos saltos altos. A largura do traseiro, por baixo do chambre que descia até o chão, contemplada por ele enquanto ela o precedia no corredor, indicava que o corpo era de fato opulento. Quando a mulher se virou para introduzi-lo na sala, a frente do chambre se entreabriu por um segundo, proporcionando uma visão de náilon preto e de um espartilho vermelho. A mulher deixou a porta aberta.

A sala tinha móveis ordinários e dava a impressão de não conter mais que um punhado de pertences pessoais. A mulher sorriu-lhe de modo encorajador.

– Trouxe o meu presentinho, Henry? Samuel Nutkin assentiu e estendeu as dez libras que guardara no bolso da calça. Ela

pegou o dinheiro e meteu na bolsa que estava em cima da cômoda. – E agora sente-se e fique à vontade, Henry. Não há necessidade de ficar nervoso. O

que posso fazer por você? Nutkin sentou na beira da poltrona. Tinha a sensação de que a boca estava cheia de

cimento que secava depressa. – É difícil explicar... – murmurou ele. A mulher tornou a sorrir. – Não precisa ficar inibido. O que gostaria de fazer? Hesitante, ele acabou falando. A mulher não demonstrou qualquer surpresa. – Não há problema. Muitos cavalheiros gostam desse tipo de coisa. E agora tire o

paletó, a calça e os sapatos e vamos para o quarto. Nutkin fez o que lhe era mandado e seguiu-a novamente pelo corredor, até o quarto

que, surpreendentemente, era bastante iluminado. Depois que entraram, ela fechou a porta, trancou, largou a chave no bolso do chambre, tirou-o e pendurou-o atrás da porta.

Quando o envelope pardo comum chegou na Acacia Avenue, 27, três dias depois, Samuel Nutkin recolheu-o de cima do capacho da porta da frente, juntamente com o resto da correspondência da manhã, seguindo para a mesa do café. Havia apenas três cartas, uma para Lettice, enviada pelo irmão, a conta por algumas plantas e o envelope pardo, despachado de Londres e enviado para Samuel Nutkin. Ele olhou o envelope sem desconfiar de nada, pensando que se tratasse de uma circular comercial. Mas não era.

O Sr. Nutkin ficou olhando para as fotografias que caíram sobre a mesa, sem compreender do que se tratava por um momento. E quando a compreensão subitamente surgiu, foi no mesmo instante substituída por um horror intenso. As fotos não ganhariam prêmios por definição ou foco, mas eram mais do que óbvias. Em todas, o rosto da mulher era bastante claro e pelo menos em duas o rosto de Nutkin podia ser facilmente reconhecido. Freneticamente, ele vasculhou o envelope, mas não havia mais nada lá dentro. Virou as seis fotografias, mas não havia qualquer mensagem no verso delas. A mensagem estava na frente, em preto e branco, sem necessidade de palavras.

Samuel Nutkin estava dominado por um pânico cego ao meter as fotografias debaixo do tapete, perto da lareira, no mesmo lugar em que ainda estava a revista. Depois, num segundo impulso, pegou tudo e levou para fora, queimando atrás da garagem e calcando as cinzas na terra úmida com o calcanhar. Voltando para casa, pensou em não trabalhar naquele dia, alegando doença.

Mas logo compreendeu que isso despertaria a suspeita de Lettice, já que estava perfeitamente bem. Mal teve tempo de levar-lhe a carta da irmã, remover a bandeja do café da manhã e correr para pegar o trem e ir para a City.

A mente ainda estava em turbilhão ao olhar pela janela do seu lugar no canto, procurando definir as implicações do choque que tivera naquela manhã. Só quando estava passando por New Cross é que compreendeu como fora feito. E balbuciou:

– O paletó... o paletó e a carteira!

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O velho Fogarty, que estava estudando a Sete vertical, sacudiu a cabeça. – Não dá. Tem letras demais. Samuel Nutkin continuou a olhar pela janela, angustiado, enquanto os subúrbios do

sudeste de Londres desfilavam pelo trem. Simplesmente não estava acostumado àquele tipo de coisa. Um horror frio lhe comprimia o estômago. Não conseguiu se concentrar no trabalho durante toda a manhã, assim como não seria capaz de voar.

Na hora do almoço, ligou para o telefone que Sally lhe dera. Mas o telefone foi atendido por uma voz ríspida de homem, que disse não haver nenhuma Sally naquele número e que a ligação só podia estar errada. Nutkin tentou novamente, desta vez por intermédio da telefonista. Mas o número estava correto e o mesmo homem atendeu.

Nutkin tentou descobrir o endereço através da telefonista de informações, mas não estava relacionado no catálogo e só poderia ser divulgado com uma ordem judicial.

Pegou um táxi e foi até o apartamento de porão em Bayswater, mas estava todo trancado com um aviso de "Aluga-se" pendurado na grade ao nível da calçada. No meio da tarde, Nutkin já chegara à conclusão de que nem mesmo adiantaria procurar a polícia. Quase que certamente a revista enviara as respostas àquele anúncio para um endereço que não passava de um quarto alugado e que há muito já fora desocupado, sem que ficasse qualquer vestígio. O apartamento de porão em Bayswater provavelmente fora alugado por uma semana apenas, sob um nome falso. O telefone provavelmente pertencia a um homem que alegaria que passara o último mês fora e encontrara a porta arrombada ao voltar. Desde então, já recebera diversos telefonemas para uma tal de Sally, o que o deixara completamente aturdido. E, um dia depois, esse homem também iria desaparecer.

Ao chegar em casa, Nutkin descobriu que Lettice estava mais lamurienta do que habitualmente.

Houvera três telefonemas, à procura dele, o que perturbara o descanso vespertino de Lettice.

O quarto telefonema foi logo depois das oito horas. Samuel Nutkin pulou da cadeira, deixando Lettice a assistir televisão, e foi atender no vestíbulo. A voz era de um homem. Mas seria o mesmo com quem Samuel Nutkin falara na hora do almoço? Era impossível determinar. A voz estava abafada, como se houvesse um lenço envolvendo o bocal.

– Sr. Nutkin? – Sou eu mesmo. – Sr. Samuel Nutkin? – Isso mesmo. – Ou devo chamá-lo de Henry Jones? Samuel Nutkin sentiu o estômago revirar. – Quem está falando? – O nome não importa, amigo. Recebeu o meu presentinho esta manhã? – O que você quer? – Fiz uma pergunta, amigo. Recebeu as fotos? – Recebi. – Deu uma boa olhada nelas, hem? Samuel Nutkin engoliu em seco, com o horror da recordação. – Isso mesmo. – Andou bancando o menino levado, hem? Não sei como posso evitar o envio de

cópias de fotos para o seu chefe no escritório. E se quer saber, sei tudo a respeito do escritório em que trabalha, até mesmo o nome do seu chefe. E posso também enviar outras cópias para a Sra. Nutkin. Ou para o secretário do clube. Leva muita coisa em sua carteira, Sr. Nutkin...

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– Não faça isso, por favor! A voz interrompeu bruscamente os protestos de Nutkin. – Não vou continuar neste telefone por muito tempo. Não se dê ao trabalho de

procurar a polícia. Eles nem mesmo saberiam como me procurar. Mantenha o controle, amigo, e

poderá ficar com tudo, os negativos e o resto. Pense nisso. A que horas parte para o trabalho pela manhã?

– Oito e vinte. – Voltarei a lhe telefonar às oito horas da manhã. Durma bem. E o telefone foi desligado. Nutkin não dormiu bem. Teve uma noite horrível. Depois que Lettice foi deitar-se,

ele apresentou a desculpa de abafar o fogo para se retardar na sala e aproveitou para examinar tudo o que tinha na carteira. Os passes de trem, talão de cheques, carteira de sócio do clube, duas cartas que lhe eram destinadas, carteira de motorista, carteira de sócio do clube social da companhia. Havia mais do que suficiente para identificá-lo e ao lugar em que trabalhava. A carteira tinha até duas fotografias, de Lettice e dele.

À débil claridade do lampião aceso na Acacia Avenue e que entrava pelas cortinas, Samuel Nutkin contemplou o rosto desaprovador de Lettice na outra cama – ela sempre insistira em camas separadas – e tentou imaginá-la abrindo um envelope pardo que lhe era endereçado, entregue na segunda passagem do carteiro, enquanto ele estava no escritório. Tentou imaginar o Sr. Benson, no andar da diretoria da companhia, recebendo as mesmas fotos. Ou o comitê social do clube examinando as fotos, numa reunião especial convocada para "reconsiderar" a situação de Samuel Nutkin. Não conseguiu. Era demais para a sua imaginação. Mas de uma coisa tinha certeza: o choque mataria a pobre Lettice. Inevitavelmente a mataria e isso era algo que não poderia deixar que acontecesse.

Pouco antes de cair num cochilo irrequieto, quase ao amanhecer, ele disse a si mesmo pela centésima vez que simplesmente não estava acostumado a esse tipo de coisa.

O telefonema chegou às oito horas em ponto. Samuel Nutkin estava esperando no vestíbulo, vestido como sempre num terno cinza-escuro, camisa branca de colarinho engomado, chapéu coco, guarda-chuva enrolado e pasta, antes de partir para a sua pontual caminhada matutina até a estação.

– Pensou bastante no caso? – indagou a voz. – Pensei – balbuciou Samuel Nutkin. – E vai querer os negativos? – Claro que vou, por favor. – Infelizmente, amigo, terá de comprá-los. O suficiente para cobrir nossas despesas

e talvez lhe dar uma pequena lição. O Sr. Nutkin engoliu em seco por diversas vezes. E suplicou: – Não sou um homem rico. Quanto vai custar? – Quinhentas libras – respondeu o homem, sem a menor hesitação. Samuel Nutkin ficou aturdido. – Mas não tenho 500 libras! – Pois então é melhor arrumar – disse a voz no outro lado da linha,

desdenhosamente. – Pode pedir um empréstimo, dando a sua casa como garantia, o carro, ou qualquer outra coisa. Mas trate de providenciar o dinheiro e depressa. Até esta noite. Voltarei a lhe telefonar às oito horas da noite.

Novamente o homem desligou abruptamente e o fone ficou zumbindo no ouvido de Samuel Nutkin. Ele subiu, deu um beijo no rosto de Lettice e partiu para o trabalho. Mas, naquele dia, não embarcou no trem de 8:31 para Charing Cross. Em vez disso, foi sentar-se no parque, sozinho num banco, um vulto estranho e solitário, vestido para o trabalho na

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City, mas parecendo um gnomo entre as árvores e as flores, de chapéu-coco e terno escuro. Sentia que precisava pensar e não poderia fazê-lo de maneira apropriada, ao lado do velho Fogarty e de seus intermináveis problemas de palavras cruzadas.

Calculava que poderia obter as 500 libras, se tentasse, mas provocaria algum espanto no banco.

E mesmo isso nada seria em comparação com a reação do gerente, quando pedisse o dinheiro em notas já usadas. Poderia dizer que precisava do dinheiro para pagar uma dívida de jogo, mas ninguém acreditaria. Todos sabiam que ele não jogava. E não bebia, com exceção de um copo de vinho de vez em quando. Também não fumava, a não ser um charuto no Natal. Pensariam que era uma mulher. Mas Samuel Nutkin prontamente descartou a possibilidade. Saberiam que ele não seria capaz de manter uma amante. O que fazer, o que fazer, indagou a si mesmo, interminavelmente, em meio ao tumulto mental.

Podia ir à polícia. Eles poderiam descobrir os chantagistas, apesar dos nomes falsos e apartamentos alugados. O caso seria então levado aos tribunais e ele teria de prestar depoimento. Lera no jornal que sempre se referiam à vítima da chantagem como Mister X. Mas o círculo pessoal da vítima acabava descobrindo quem era. Não se podia ir ao tribunal dia após dia sem que ninguém desconfiasse, muito menos depois de se levar uma vida de rotina invariável durante 25 anos.

Nutkin deixou o banco do parque às nove e meia e foi a uma cabine telefônica, ligando para o chefe de seu departamento e comunicando que estava indisposto e só iria trabalhar de tarde.

Seguiu a pé para o banco. No caminho, vasculhou o cérebro à procura de uma solução, recordando as descrições que já lera sobre julgamentos de casos de chantagem. Como era mesmo a expressão legal? Exigir dinheiro com ameaças. Isso mesmo. Uma bela frase legal, pensou Nutkin amargamente, mas não adiantava muito para a vítima.

Se ele fosse solteiro e mais jovem, iria direto à polícia. Mas estava velho demais para mudar de emprego e tinha também de pensar em Lettice, a pobre e frágil Lettice. Não tinha a menor dúvida de que o choque a mataria. Acima de tudo, tinha de proteger Lettice. Era uma determinação inabalável.

À entrada do banco, faltou-lhe coragem. Jamais poderia confrontar o gerente com um pedido tão estranho e inexplicável. Seria a mesma coisa que anunciar:

– Estou sendo vítima de chantagem e preciso de um empréstimo de 500 libras. Além disso, quem poderia garantir que os chantagistas não pediriam mais dinheiro,

depois daquelas 500 libras iniciais? Não iriam explorá-lo ao máximo, arrancar tudo o que era possível, antes de mandarem as fotografias? Podia acontecer. De qualquer forma, não podia levantar o dinheiro no banco local. Relutantemente, já que era um homem honesto e gentil, chegou à conclusão de que a resposta estava em Londres. E foi para lá que seguiu, no trem das 10:31h.

Chegou à City cedo demais para se apresentar no escritório. Por isso, para passar o tempo, decidiu fazer algumas compras. Sendo um homem previdente, não podia admitir carregar uma quantia tão vultosa quanto 500 libras no bolso, desprotegida. Não seria natural. Entrou numa loja de equipamento de escritório e comprou uma pequena caixa de aço, com chave. Em diversas outras lojas, comprou meio quilo de glacê (explicou que era para o bolo de aniversário da mulher), uma lata de fertilizante para rosas, uma ratoeira para a cozinha, alguns fios de cobre para a caixa elétrica debaixo da escada, duas lanternas, pilhas, um ferro de solda para consertar a chaleira e diversos outros artigos inofensivos, como qualquer cidadão respeitador da lei poderia perfeitamente ter em sua casa.

Estava em sua escrivaninha às duas horas da tarde. Assegurou ao chefe do departamento que estava se sentindo muito melhor e começou a trabalhar nas contas da companhia. Felizmente, a idéia de que Samuel Nutkin pudesse sequer pensar em efetuar

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uma retirada ilegítima da contabilidade da companhia nem mesmo foi acalentada. Às oito horas daquela noite, ele estava outra vez diante da televisão, ao lado de

Lettice, quando o telefone tocou no vestíbulo. Nutkin foi atender e ouviu novamente a voz abafada, que foi logo indagando, sem qualquer preâmbulo:

– Arrumou o dinheiro, Sr. Nutkin? – Eu... hã... consegui. – E, antes que o homem pudesse falar qualquer coisa, Nutkin

acrescentou: – Escute, por favor! Por que não me manda os negativos e esquecemos de vez todo esse lamentável incidente?

Houve um silêncio que só podia ser de espanto no outro lado da linha. Finalmente, o homem disse:

– Será que perdeu o juízo? – Não – respondeu Nutkin muito sério. – Mas gostaria que compreendesse as

aflições que isso tudo vai causar, se insistir em continuar. – Agora é você quem vai prestar atenção, seu maluco! – disse o homem, a voz

áspera de tanta raiva. – Vai fazer direitinho o que eu lhe mandar, ou posso até remeter as fotos para seu chefe e sua mulher só para me divertir!

O Sr. Nutkin deixou escapar um suspiro. – Era o que eu receava. Continue, por favor. – Amanhã, durante a hora do almoço, vá de táxi até a Albert Bridge Road. Entre no

Battersea Park e siga a pé pelo West Drive, afastando-se do rio. No meio do caminho, vire à esquerda e passe para o Central Drive. Continue andando até chegar ao lugar em que há dois bancos. Não haverá ninguém por perto, nesta época do ano. Ponha o dinheiro, num embrulho de papel pardo, debaixo do primeiro banco. E depois continue andando até sair do outro lado do parque. Entendido?

– Entendido. – Ótimo. Só mais uma coisa: estará sendo observado a partir do momento em que

entrar no parque. Estará sendo vigiado quando colocar o pacote debaixo do banco. Não pense que os tiras poderão ajudá-lo. Sabemos como você é, mas não me conhece. O menor indício de encrenca e iremos embora. E já sabe o que acontecerá depois, não é mesmo, Nutkin?

– Sei – murmurou o Sr. Nutkin, debilmente. – Ótimo. Trate de cumprir direitinho as instruções e não cometa erros. E o homem desligou. Alguns minutos depois, Samuel Nutkin apresentou uma desculpa à mulher e foi

para a garagem, no lado da casa. Queria ficar a sós por algum tempo. No dia seguinte, Samuel Nutkin fez exatamente o que lhe fora ordenado. Estava

seguindo pelo West Drive no lado oeste do parque e chegara ao desvio para a esquerda, a fim de passar para o Central Drive, quando foi cumprimentado por um motociclista, sentado em sua máquina, a alguns metros de distância, examinando um mapa rodoviário. O homem estava de capacete, óculos de proteção e um lenço encobrindo o rosto. E foi através do lenço que indagou:

– Ei, companheiro, pode me dar uma ajuda? O Sr. Nutkin hesitou por um instante. Mas como era um homem polido, cobriu os

poucos metros que o separavam da motocicleta, encostada no meio-fio, e inclinou-se para espiar o mapa. Uma voz sibilou em seu ouvido nesse instante:

– Vou ficar com o embrulho, Nutkin. O Sr. Nutkin sentiu que o embrulho lhe era arrancado, ouviu o motor ser acionado,

viu o pacote cair numa cesta aberta no guidom. E, segundos depois, a motocicleta estava se afastando, entrando no tráfego da hora do almoço na Albert Bridge Road. Tudo acabou rapidamente.

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Mesmo que a polícia estivesse vigiando, dificilmente poderia ter apanhado o homem, tão rápido que ele agira. Nutkin sacudiu a cabeça tristemente e voltou para o seu escritório na City.

O homem com a teoria sobre nomes e apelidos estava inteiramente errado no caso do Sargento-Detetive Smiley do Departamento de Investigações Criminais. Quando foi procurar Nutkin na semana seguinte, o rosto comprido e os olhos castanhos tristes com uma expressão sombria, sem qualquer vestígio do sorriso implícito em seu nome. Ficou parado na porta, na escuridão do inverno, metido num casaco preto comprido, como um agente funerário.

– Sr. Nutkin? – Sou eu mesmo. – Sr. Samuel Nutkin? – Isso mesmo. – Sou o Sargento-Detetive Smiley, senhor. Gostaria que concedesse alguns minutos

do seu tempo, se fosse possível. Ele estendeu a sua identidade, mas Nutkin sacudiu a cabeça, indicando que a

palavra dele era suficiente. – Não quer entrar? O Sargento Smiley estava visivelmente constrangido. – Bem... o que tenho de falar, Sr. Nutkin, é de natureza um tanto particular, talvez

mesmo um tanto embaraçosa. – Ora, sargento, não há a menor necessidade de se sentir constrangido. Smiley ficou aturdido. – Não há necessidade...? – Mas claro que não. Certamente veio me vender alguns ingressos para o baile da

polícia. Nós, do clube de tênis, sempre compramos alguns todos os anos. E já estava esperando...

Smiley engoliu em seco. – Infelizmente, senhor, não vim tratar do baile da polícia. Estou aqui em caráter

oficial, em função de uma investigação. – De qualquer forma, sargento, não há necessidade de se sentir embaraçado. Os músculos do queixo de Smiley contraíram-se espasmodicamente. – Estava pensando no seu constrangimento, senhor, não no meu – disse ele,

pacientemente. – Sua mulher está em casa, senhor? – Está, sim, mas já foi se deitar. Ela se retira cedo, por causa de sua saúde... Como se fosse uma deixa, uma voz irritada flutuou do andar superior até o

vestíbulo. – Quem é, Samuel? – É um agente da polícia, minha querida. – Da polícia? – Não precisa se preocupar, minha querida – gritou Samuel Nutkin, em resposta. –

Ele veio apenas tratar de um torneio de tênis com o grêmio esportivo da polícia. O Sargento Smiley assentiu, em aprovação ao subterfúgio, e depois seguiu Nutkin

até a sala de estar. Assim que a porta se fechou, o Sr. Nutkin disse: – Agora talvez possa me explicar qual é o problema e por que eu deveria me sentir

constrangido. – Há alguns dias, meus colegas da Polícia Metropolitana estiveram num

apartamento no West End de Londres. Revistando-o, encontraram diversos envelopes numa gaveta trancada.

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Samuel Nutkin fitava-o com um interesse indulgente. – Cada envelope, num total aproximado de 30, continha um cartão-postal no qual

fora escrito o nome de um homem, todos diferentes, com os endereços residenciais e em alguns casos com o endereço do emprego. Os envelopes também continham até uma dúzia de negativos fotográficos. Todos os negativos mostravam homens, geralmente já bem maduros, no que só se pode descrever como uma situação extremamente comprometedora, junto com uma mulher.

Samuel Nutkin empalideceu e passou a língua pelos lábios, nervosamente. A expressão de Smiley era agora de desaprovação.

– Em todas as fotografias, a mulher era a mesma, uma mulher já fichada na polícia como prostituta. Devo informá-lo, senhor, que um dos envelopes continha o seu nome e endereço, além de seis negativos, nos quais aparecia empenhado numa certa atividade com essa mulher.

Já determinamos com certeza que essa mulher era um dos ocupantes do apartamento visitado pela Polícia Metropolitana. O homem envolvido no caso era o outro ocupante. Está começando a entender agora?

Samuel Nutkin ocultava o rosto atrás das mãos, envergonhado. Finalmente, deixou escapar um suspiro fundo.

– Oh, meu Deus! Fotografias! Alguém deve ter tirado fotografias. Ah, mas que vergonha quando tudo for revelado! Mas lhe juro, sargento, que não tinha a menor idéia de que era ilegal.

O Sargento Smiley piscou diversas vezes, aturdido. – Sr. Nutkin, permita-me deixar uma coisa bem clara. O que quer que tenha feito,

não foi ilegal. Sua vida particular é da sua própria conta, pelo menos no que diz respeito à polícia,

enquanto não violar nenhuma lei. E visitar uma prostituta não constitui nenhuma infração à lei.

– Mas não estou entendendo – balbuciou Samuel Nutkin. – Disse que estava investigando...

– Mas não a sua vida particular, Sr. Nutkin. Posso continuar? Obrigado. A Polícia Metropolitana está convencida de que os homens eram atraídos ao apartamento dessa mulher, através de contato pessoal ou por intermédio de anúncios, sendo secretamente fotografados e identificados, com o objetivo de submetê-los à chantagem posteriormente.

Samuel Nutkin fitava agora o detetive com os olhos arregalados. Não estava acostumado àquele tipo de coisa.

– Chantagem... – murmurou ele. – Oh, Deus, isso é até pior! – Exatamente, Sr. Nutkin. Agora... – O detetive retirou uma fotografia do bolso do

casaco. – Reconhece essa mulher? Samuel Nutkin descobriu-se a contemplar uma razoável semelhança com a mulher

que conhecera como Sally. Assentiu, aturdido. O detetive guardou a fotografia. – Está certo. E agora, senhor, gostaria que me contasse como conheceu essa mulher.

Não precisarei tomar anotações agora e tudo o que disser será considerado confidencial, a menos que fique comprovado que tem alguma relação com o caso.

Hesitante, envergonhado, mortificado, Samuel Nutkin relatou o caso, desde o início, a descoberta da revista, a leitura no banheiro do escritório, a luta consigo mesmo durante três dias para decidir se escrevia ou não, como acabara sucumbindo à tentação e enviar uma carta sob o nome de Henry Jones. Falou da carta que recebera em resposta, como anotara o telefone e destruíra a carta, o telefonema na hora do almoço naquele mesmo dia, como ficara marcado o encontro para o dia seguinte, ao meio-dia e meia. Narrou o encontro com a mulher no apartamento no porão, como ela o persuadira a deixar o paletó na sala enquanto o

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levava para o quarto, como fora a primeira vez em sua vida em que fizera tal coisa, como ao voltar para casa naquela noite queimara a revista e prometera que nunca mais voltaria a se comportar daquela maneira.

Depois que Nutkin concluiu, Smiley disse: – O que vou falar agora é muito importante, senhor. Desde aquela tarde, recebeu

algum telefonema ou teve conhecimento de algum telefonema em sua ausência que pudesse estar relacionado com uma exigência de pagamento de chantagem, em decorrência das fotografias que foram tiradas?

Samuel Nutkin sacudiu a cabeça. – Não, não houve qualquer telefonema assim. Parece que a minha vez ainda não

chegou. Smiley finalmente sorriu, embora fosse um sorriso sombrio. – Sua vez ainda não chegou, senhor, nem vai chegar. Afinal, a polícia está com as

fotografias. Samuel Nutkin levantou a cabeça bruscamente, com um brilho de esperança nos

olhos. – Mas é claro! A sua investigação! Eles devem ter sido descobertos antes de chegar

a minha vez. Poderia me dizer, sargento, o que vai acontecer agora com essas... fotografias horríveis?

– Assim que eu comunicar à Scotland Yard que as suas fotografias não estão relacionadas com as nossas investigações, elas serão queimadas.

– Não pode imaginar como me sinto contente, como fico aliviado. Mas, entre os vários homens contra os quais esse casal tinha provas que podiam propiciar uma chantagem, devem ter tentado arrancar dinheiro de alguém.

– Não resta a menor dúvida de que tentaram – disse o Sargento Smiley, levantando-se para ir embora. – E diversos outros policiais, a pedido da Scotland Yard, estão interrogando os homens que aparecem nas fotografias. Certamente os interrogatórios vão revelar os nomes de todos os que já haviam sido abordados por ocasião do início da investigação.

– Mas como poderiam saber quem foi procurado e quem não foi? – indagou Nutkin. – Afinal, um homem pode ter sido procurado e pago o dinheiro, mas ficando assustado demais para revelar, muito menos à polícia.

O Sargento Smiley sacudiu a cabeça, a expressão sempre sombria. – Pelos extratos bancários, senhor. A maioria dos homens só tem conta em um ou

dois bancos. Para levantar uma quantia vultosa, um homem teria de recorrer a seu banco ou

vender alguma coisa de valor. Sempre há um vestígio. A essa altura, já haviam chegado à porta da frente. – Devo dizer que admiro o homem que foi à polícia e denunciou esses patifes –

comentou o Sr. Nutkin. – Se me procurassem para pedir dinheiro, como indubitavelmente aconteceria, mais cedo ou mais tarde, não sei se eu teria coragem suficiente para fazer a mesma coisa. Por falar nisso, terei de prestar depoimento? Sei que essas coisas são feitas em sigilo, mas sempre acabam transpirando.

– Não precisará prestar depoimento, Sr. Nutkin. – Tenho pena do pobre homem que os denunciou e que terá agora de arfcar com

todo o ônus. – Ninguém da relação de homens comprometidos terá de prestar depoimento,

senhor. – Não estou entendendo. Os dois foram denunciados e existem provas. Certamente

vão prendê-los, se é que já não o fizeram. E as investigações... – Não estamos investigando um caso de chantagem, Sr. Nutkin, mas sim um caso

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de homicídio. O rosto de Samuel Nutkin era uma máscara de espanto. – Homicídio? Está querendo dizer que eles também mataram alguém? – Eles quem? – Os chantagistas. – Não, senhor, eles não mataram ninguém. Foram assassinados por uma das vítimas

da chantagem. O problema é descobrir quem foi. Isso sempre acontece com os chantagistas. Podem fazer chantagem contra centenas de pessoas, até que finalmente uma das

vítimas acaba descobrindo o seu esconderijo. Fazem todos os contatos através de ligações de cabines telefônicas. Nada fica no papel, exceto as provas incriminadoras contra as vítimas atuais. Por isso, é difícil até saber por onde começar a investigar.

– Tem razão – murmurou Samuel Nutkin. – Eles foram... mortos a tiros? – Não, senhor. Quem quer que seja o assassino, simplesmente enviou-lhes um

pacote. Por isso é que calculamos que conhecia o endereço dos chantagistas. O pacote continha uma caixa de metal para se guardar dinheiro, com a chave aparentemente presa na tampa por adesivo.

Quando a chave foi usada, a tampa se abriu bruscamente, pela pressão de uma mola de ratoeira, segundo deduziram os técnicos do laboratório da polícia. Com isso, a bomba dentro da caixa foi acionada e explodiu, matando os dois chantagistas.

O Sr. Nutkin olhava para o detetive como se ele tivesse acabado de descer do Monte Olimpo.

– Incrível! – murmurou ele. – Mas onde um cidadão respeitável poderia obter uma bomba?

Smiley sacudiu a cabeça. – Atualmente, senhor, isso é muito fácil, com tantos irlandeses, árabes e outros

estrangeiros por toda parte. E há também livros a respeito. Hoje em dia, se tiver os materiais apropriados, praticamente qualquer estudante de química de 16 anos pode fabricar uma bomba. E agora boanoite, Sr. Nutkin. Não creio que voltarei a incomodá-lo.

No dia seguinte o Sr. Nutkin passou pela Gusset's e pegou a fotografia que lá deixara duas semanas antes, para trocar a moldura. Combinaram que ficariam com a fotografia até que voltasse a procurá-los. E naquela noite a fotografia estava de volta a seu lugar de honra, na mesa ao lado da lareira.

Era uma fotografia antiga, mostrando dois jovens no uniforme da Unidade de Remoção de Bombas do Corpo de Engenharia Militar. Estavam sentados sobre uma bomba alemã de cinco toneladas, conhecida como Big Fritz. Diante deles estava estendida uma manta, sobre a qual se viam dezenas de componentes dos seis mecanismos independentes de disparo da bomba.

Podia-se avistar ao fundo uma igreja da aldeia. Um dos jovens era magro e de queixo saliente, com as divisas de major nos ombros. O outro era um tanto gordo, óculos equilibrados sobre o nariz. Sob a fotografia, havia a inscrição: "Aos Magos da Bomba, Major Mike Halloran e Cabo Sam Nutkin, com a profunda gratidão dos habitantes de Steeple North. Julho de 1943."

Nutkin contemplou a fotografia, dominado por um orgulho imenso. E depois murmurou:

– Apenas 16 anos... USADO COMO PROVA – Não está obrigado a dizer qualquer coisa, mas qualquer coisa que disser será

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devidamente anotada e poderá ser usada como prova. Parte dos termos da advertência oficial aos suspeitos, usada pelas forças policiais

britânica e irlandesa. O carro grande da polícia foi parar junto ao meio-fio, a cerca de 15 metros do ponto

em que o cordão de isolamento se estendia pela rua, mantendo os curiosos à distância. O motorista manteve o motor ligado, os limpadores de pára-brisa continuando a funcionar ritmadamente de um lado para outro, a fim de afastar a chuva insistente. Do banco traseiro, o Superintendente-Chefe William J. Hanley olhou através do pára-brisa para os grupos de curiosos de um lado do cordão de isolamento e para os policiais indecisos do outro lado.

– Espere aqui – disse ele ao motorista, preparando-se para sair. O motorista ficou satisfeito. O interior do carro estava aconchegante e quente e ele

achava que aquela não era uma manhã para ficar andando por uma rua de cortiços, sob a chuva incessante.

Ele assentiu e desligou o motor. O chefe do distrito policial saltou do carro e bateu a porta, encolhendo-se ainda

mais dentro do sobretudo azul-escuro. Encaminhou-se em passos firmes para a abertura no cordão de isolamento, onde um guarda todo molhado vigiava os que entravam e saíam. Ao reconhecer Hanley, ele fez continência, deu um passo para o lado e deixou-o passar.

Big Bill Hanley estava há 27 anos na polícia, começando pela ronda nas ruas e gradativamente se elevando até seu cargo atual. Tinha o físico para isso, com mais de 1,80m de altura e um corpo largo, que lembrava um caminhão. Trinta anos antes, fora considerado o melhor jogador de rúgbi que já saíra do Condado de Athlone. Integrara a melhor equipe que a Irlanda já produzira, a equipe que Karl Mullen levara à vitória por três anos consecutivos na Tríplice Coroa, derrotando ingleses, galeses, escoceses e franceses. E, apesar da rivalidade, isso não prejudicara as suas chances de promoção quando ingressara na polícia.

Hanley gostava do que fazia, encontrando alguma satisfação, apesar da péssima remuneração e das muitas horas de trabalho. Mas todo e qualquer emprego tem as suas obrigações que ninguém pode gostar. E aquela manhã trouxera para Hanley uma dessas obrigações. Um caso de despejo.

Há dois anos que o Conselho Municipal de Dublin vinha demolindo inexoravelmente as casas pequenas e coladas que formavam a área conhecida como Gloucester Diamond.

Por que fora chamada assim era um verdadeiro mistério. Não possuía a riqueza e muito menos os privilégios da real Casa de Gloucester da Inglaterra, como também não exibia o brilho dispendioso de um diamante. Não passava de um bairro industrial miserável, por trás da zona do porto, na praia ao norte de Liffey. Agora, a maior parte arrasada, os moradores alojados em prédios de apartamentos, cujos contornos desenxabidos podiam ser vistos a um quilômetro de distância, através da chuva.

Ficava no coração do distrito policial sob o comando de Bill Hanley e por isso o problema a ser resolvido naquela manhã era de responsabilidade dele, por mais que o detestasse.

A cena entre os dois cordões de isolamento, por trás dos quais as multidões se comprimiam, no que fora um trecho da Mayo Road, era tão desoladora naquela manhã quanto o tempo de novembro. Num lado da rua, havia apenas pilhas de escombros, que os tratores estariam em breve removendo, para depois escavarem as fundações do novo complexo comercial. O outro lado era o centro das atenções. Por dezenas de metros, não restava uma única casa de pé.

Toda a área estava plana, a chuva rebrilhando na pavimentação preta do novo estacionamento de dois acres, destinado aos carros dos que viriam trabalhar e fazer compras

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nos edifícios que seriam construídos no local. Toda a área de dois acres estava delimitada por uma cerca de arame de dois metros e meio de altura. Isto é, quase toda a área.

Bem no meio, de frente para a Mayo Road, restava uma única casa, como um velho coto de dente quebrado numa gengiva lisa. Nos dois lados, as outras casas haviam sido demolidas. E a casa que restava precisava ser escorada por grossas vigas de madeira. Todas as casas que outrora apoiavam aquela última sobrevivente haviam desaparecido e a onda preta do estacionamento envolvia a casa por três lados, como o mar rodeando um solitário castelo de areia na praia. Aquela casa e mais o velho assustado que ela abrigava seriam o centro da ação daquela manhã, o foco da diversão dos grupos expectantes do novo conjunto habitacional, que tinham vindo assistir ao despejo do último dos seus antigos vizinhos.

Bill Hanley encaminhou-se para o lugar em que estava parado o grupo principal de autoridades, diretamente em frente ao portão da casa solitária. Estavam todos olhando para a casa miserável, como se não soubessem o que fazer, agora que o momento finalmente chegara. Não havia muito o que ver. De frente para a rua, havia um muro baixo de tijolos, separando a pavimentação do que deveria ser o jardim. Só que não havia ali jardim algum, apenas umas poucas touceiras de mato emaranhado. A porta da frente ficava no lado da casa, lascada e amassada pelas muitas pedras que haviam arremessado. Hanley sabia que por trás daquela porta havia um vestíbulo de um metro quadrado, diante da escada estreita que levava ao quarto único do segundo andar. À direita, ficava a porta para a sala única, cuja janela quebrada e protegida por papelões flanqueava a porta da frente. Entre o vestíbulo diminuto e a sala, ficava o corredor que levava à cozinha pequena e imunda, com uma porta para o quintal dos fundos e o banheiro externo. A sala devia possuir uma pequena lareira, pois a chaminé ainda subia pelo lado da casa, elevando-se para o céu que chorava. Por trás da casa, conforme Hanley já vira pelo lado, havia um quintal da largura da casa e com cerca de oito metros de comprimento. O quintal era protegido por uma cerca de madeira de dois metros de altura. Hanley fora informado pelos que tinham espiado por cima da cerca que o quintal era todo de terra, com os excrementos de quatro galinhas pintadas que o velho guardava num galinheiro pequeno, encostado na cerca dos fundos. E isso era tudo.

O Conselho Municipal fizera o possível pelo velho. Ofereceram-lhe um apartamento novo e limpo, até mesmo uma pequena casa que lhe pertenceria, em algum outro lugar. Assistentes sociais e sacerdotes tinham sido acionados para persuadi-lo. Argumentaram e lisonjearam, foram marcando um prazo final depois de outro. Mas o velho recusara-se obstinadamente a sair dali. A rua fora demolida, ao redor, atrás e na frente dele. O velho insistia em permanecer. O trabalho continuara, com o estacionamento sendo nivelado, pavimentado e cercado. E mesmo assim o velho não se mudara.

A imprensa local estava se divertindo a valer com o "Eremita da Mayo Road". E o mesmo acontecia com a garotada, que já apedrejara a casa, arremessara bolas de lama, quebrando a maioria dos vidros, enquanto o velho, para alegria dos meninos, gritava obscenidades.

O Conselho Municipal finalmente emitira uma ordem de despejo e o juiz autorizara a remoção compulsória do ocupante da casa. E agora, naquela chuvosa manhã de novembro, todo o poderio da cidade estava alinhado diante da porta da frente.

O chefe do departamento habitacional da cidade cumprimentou Hanley e comentou: – Uma missão das mais desagradáveis. É sempre assim. Detesto esses despejos. – Tem razão. Hanley observou o grupo. Lá estavam os dois meirinhos que executariam o despejo,

homens grandes, corpulentos, parecendo constrangidos. Havia mais dois funcionários do conselho, dois guardas de Hanley, alguém do departamento de saúde e bem-estar, um médico local, diversas outras pessoas de menor importância. Barney Kelleher, o veterano fotógrafo do jornal local, estava presente, exibindo a tiracolo um repórter foca ainda

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imberbe. Hanley mantinha boas relações com a imprensa local e um relacionamento amistoso, se bem que cauteloso, com seus representantes mais antigos. Todos tinham de realizar seus respectivos trabalhos e não precisavam se guerrear por causa disso. Barney piscou um olho e Hanley acenou com a cabeça em resposta. O foca encarou o cumprimento como um indício de intimidade e apressou-se a perguntar:

– Vão tirá-lo da casa à força? Barney Kelleher lançou-lhe um olhar furioso. Hanley fixou seus olhos castanhos no

jovem, mantendo-os assim até que o pobre coitado desejou jamais ter dito coisa alguma. E só depois é que Hanley falou, gravemente:

– Seremos tão gentis quanto possível. O foca apressou-se em escrever furiosamente, mais para ter o que fazer do que pela

possibilidade de não se recordar mais tarde de uma frase tão curta. A autorização do juiz especificava nove horas para o despejo. E passavam dois

minutos das nove horas. Hanley acenou com a cabeça para o chefe do departamento habitacional, determinando:

– Pode começar. O homem aproximou-se da porta da casa e bateu com força. Não houve resposta. – Está em casa, Sr. Larkin? Também não houve resposta. Ele olhou para Hanley, que assentiu com a cabeça.

Limpando a garganta, o homem leu a ordem de despejo em voz alta o bastante para ser ouvida por quem estivesse dentro de casa. Mesmo assim, não houve resposta. Ele voltou para junto do grupo na rua e perguntou:

– Vamos lhe dar mais cinco minutos? – Está certo – concordou Hanley. Por trás da barreira, começou um murmúrio crescente entre os antigos moradores de

Gloucester Diamond. Finalmente, alguém no meio da multidão tornou-se mais ousado e gritou:

– Deixem o pobre velho em paz! Hanley encaminhou-se lentamente na direção da multidão de onde partira o grito.

Sem qualquer pressa, desfilou diante dos curiosos, fitando a maioria dos rostos. Quase todos desviaram os olhos e ficaram em silêncio.

– É compaixão que estão querendo oferecer ao velho? – indagou Hanley, suavemente. – A mesma compaixão que levou-os a quebrar todas as janelas no inverno passado, deixando-o a congelar lá dentro? A mesma compaixão que levou as crianças a arremessarem-lhe pedras e lama, enquanto os adultos ficavam olhando de braços cruzados? – Houve um silêncio comprido e Hanley arrematou, antes de voltar para junto do grupo diante da porta da frente: – Não adianta falar agora.

A multidão permaneceu calada. Hanley acenou com a cabeça para os dois meirinhos, que olhavam para ele, aguardando uma determinação.

– Podem seguir em frente. Os dois homens empunhavam alavancas de ferro. Um deles contornou a casa,

passando entre a cerca de arame e a beira da casa. Com a maior facilidade, desprendeu três tábuas da cerca de madeira e entrou no quintal. Foi até a porta dos fundos e bateu com a alavanca. Ao ouvir o barulho, seu colega bateu na porta da frente. Também não houve resposta. O homem na frente enfiou a ponta da alavanca entre a porta e o umbral e arrombou com a maior facilidade. A porta se abriu alguns centímetros e depois parou. Havia móveis por trás. O meirinho sacudiu a cabeça tristemente. Arrancou as duas dobradiças no outro lado da porta e depois removeu-a sem qualquer dificuldade, largando-a no jardim. Começou a tirar cadeiras e mesas empilhadas no vestíbulo, até que o espaço ficou completamente limpo. Entrou finalmente na casa e gritou:

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– Sr. Larkin? Dos fundos, veio o barulho de madeira lascada, indicando que seu colega entrava na

cozinha. Houve silêncio na rua, enquanto os homens vasculhavam o andar térreo. Um rosto

pálido apareceu na janela do quarto superior. A multidão avistou-o e três ou quatro pessoas gritaram:

– Ele está lá em cima! Era como espectadores avistando a raposa diante dos caçadores. Estavam apenas

querendo ajudar. Um dos meirinhos apareceu na porta da frente. Hanley acenou com a cabeça para cima, na direção da janela do quarto. Os dois homens subiram a escada estreita. O rosto desapareceu da janela. Não houve luta. Eles desceram um minuto depois, o chefe carregando nos braços um velho frágil. Ele saiu para a chuva e parou, indeciso. Um assistente social adiantou-se apressadamente, segurando um cobertor seco. O meirinho pôs o velho no chão e o assistente social envolveu-o com o cobertor. O velho parecia desnutrido e ligeiramente atordoado. Acima de tudo, porém, estava assustado. Hanley tomou uma decisão. Virou-se para o seu carro e fez sinal para que o motorista avançasse. O conselho podia depois despachar o homem para um asilo de velhos, mas primeiro tinha de servir-lhe uma boa refeição, uma xícara de chá bem quente.

– Ponha-o no banco de trás – disse Hanley ao meirinho. Depois que o velho estava acomodado no banco, no interior quente do carro, Hanley

entrou e sentou-se ao seu lado, dizendo a seu motorista: – Vamos sair daqui. Há um café a cerca de um quilômetro daqui, à esquerda. Leve-

nos até lá. Enquanto o carro passava pela barreira e atravessava a multidão curiosa, Hanley

observou o seu insólito convidado. O velho vestia uma calça imunda e um casaco fino, sobre a camisa desabotoada. Dizia-se que há anos ele não cuidava de si de maneira apropriada. O rosto era fino e macilento. Ele fitava em silêncio o encosto do banco da frente do carro, sem retribuir o olhar de Hanley.

– Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde – disse Hanley, gentilmente. – E você sabia disso, desde o início.

Apesar do seu tamanho e da capacidade de usar o corpo para subjugar os mais rudes vilões da zona do porto, quando era necessário, Big Bill Hanley era um homem muito mais afável e bondoso do que se podia julgar pelo nariz duas vezes quebrado e rosto carnudo. O velho virou a cabeça lentamente e fitou-o, sem dizer nada.

– Estou falando da sua saída da casa – acrescentou Hanley. – Mas vão lhe arrumar um ótimo lugar para morar, aquecido no inverno, com bastante comida. Vai ver só.

O carro parou diante do café. Hanley saltou e disse ao motorista: – Leve-o para dentro. Dentro do café quente e enfumaçado, Hanley acenou com a cabeça para uma mesa

vazia num canto. O motorista da polícia levou o velho até lá e sentou-o, de costas para a parede. O velho não disse nada, nem em agradecimento nem em protesto. Hanley olhou para o cartaz por trás do balcão. O dono do café enxugou as mãos num pano de prato limpo e ficou esperando, com uma expressão inquisitiva.

– Dois ovos, bacon, tomates, salame e batatas fritas – disse Hanley. – Ali no canto. Para o velho.

E pode começar com uma caneca de chá quente. – Ele tirou do bolso e colocou no balcão duas notas de uma libra, antes de acrescentar: – Voltarei para pegar o troco.

O motorista aproximou-se de Hanley, que lhe disse: – Fique aqui, vigiando-o. Guiarei o carro pessoalmente. O motorista estava achando que aquele era o seu dia de sorte: primeiro um carro

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aquecido, agora um café quente. E teria tempo para tomar uma xícara de chá e fumar. – Devo ficar sentado com ele, senhor? O homem cheira terrivelmente. – Fique vigiando-o. Hanley voltou ao local da demolição na Mayo Road. A turma da demolição já estava preparada, à espera, e não perdia tempo, agora que

podia trabalhar à vontade. Diversos homens da empreiteira entravam e saíam da casa com esquálidos bens do velho, que eram depositados na rua, sob a chuva agora mais forte. O homem do departamento habitacional abrira seu guarda-chuva e observava. Dentro do estacionamento, duas pás mecânicas, com rodas de borracha, aguardavam o momento de começarem a recolher os escombros da casa, a privada externa, a cerca. Por trás delas, havia dez caminhões esperando para transportar o entulho. O fornecimento de água, gás e eletricidade fora suspenso muitos meses antes. Não havia esgoto sanitário e era esse o motivo da privada externa, servida por uma fossa que seria em breve enchida de terra e concretada para sempre. Assim que Hanley saltou do carro, o representante do departamento habitacional aproximou-se dele.

Apontou na direção da traseira aberta de um furgão e disse: – Salvei o que foi possível do que podia ter algum valor sentimental. Fotografias

antigas, moedas, fitas de medalhas, algumas roupas, uns poucos documentos numa caixa de charutos, quase tudo mofado. Quanto aos móveis... – E ele indicou uma pilha de bricabraque sob a chuva.

– ...estão bichados. O representante do departamento de saúde aconselhou queimar tudo.

Ninguém daria nada por essas coisas. – Está certo – disse Hanley. O homem tinha toda razão, mas isso era problema dele. Como ele parecia estar

querendo algum apoio moral, não custava nada atendê-lo. – Vão pagar alguma indenização por isso? – perguntou Hanley. – Mas claro que vamos! – disse o homem apressadamente, ansioso em demonstrar

que seu departamento não era tão desalmado quanto se podia imaginar. – Pela casa, que pertencia ao velho, além de uma avaliação justa para os móveis e outros pertences, além dos bens pessoais que possam ter sido danificados ou perdidos. E pagaremos ainda uma indenização pela inconveniência da mudança... embora, para ser franco, ele tenha nos custado muito mais que o total a ser pago, recusando-se a sair daqui por tanto tempo.

Nesse momento, um homem veio dos fundos da casa, carregando uma galinha em cada mão, de cabeça para baixo.

– Que diabo vou fazer com essas galinhas? – indagou ele, sem se dirigir a ninguém em particular.

Um dos seus companheiros deu-lhe uma resposta. Barney Kelleher bateu uma chapa. Era uma boa foto, pensou ele. As duas últimas amigas do Eremita da Mayo Road. E uma boa legenda também. Um terceiro operário disse que também tinha um galinheiro e podia levar aquelas duas.

Providenciaram uma caixa de papelão para meter as galinhas molhadas dentro e levaram para o furgão de mudança, esperando o momento de transportá-las para a casa do operário.

Tudo estava acabado uma hora depois. A pequena casa ficara inteiramente vazia. Um corpulento capataz, metido numa capa amarela brilhante, aproximou-se do representante do conselho e perguntou:

– Podemos começar a demolição? O chefe está querendo que o estacionamento fique logo pronto e cercado. Se pudermos concretar ainda esta noite, faremos a pavimentação amanhã de manhã.

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O homem suspirou e disse: – Está certo, podem começar. O capataz virou-se e acenou na direção de um guindaste móvel, de cujo braço

pendia uma bola de ferro de meia tonelada. O guindaste avançou suavemente até o lado da casa, onde parou, erguendo-se sobre os pés mecânicos com um silvo. A bola começou a balançar, gentilmente a princípio, depois mais depressa. A multidão observava, fascinada. Todos tinham visto suas próprias casas serem demolidas da mesma forma, mas nem por isso o espetáculo perdera o interesse. A bola finalmente bateu no flanco da casa, não muito longe da chaminé, estilhaçando uma dúzia de tijolos e abrindo duas rachaduras na parede. A multidão soltou uma exclamação de admiração. Não há nada como uma boa demolição para animar uma multidão entediada. No quarto golpe, duas janelas do andar superior saltaram de seus caixilhos e foram cair na parte já pronta do estacionamento. Um canto da casa desligou-se do resto, girou lentamente em meia espiral e depois desabou no quintal dos fundos. Momentos depois, a coluna da chaminé, uma parede sólida de tijolos, partiu-se ao meio, a parte superior caindo no telhado e passando pelo chão do segundo andar até o térreo. A velha casa estava desmoronando. E a multidão estava adorando. Hanley tornou a entrar em seu carro e voltou para o café.

O interior estava ainda mais quente e fumegante do que antes. O motorista de Hanley estava sentado ao balcão, diante de uma xícara de chá quente. Apagou o cigarro quando Hanley entrou e prontamente levantou-se. O velho parecia bastante ocupado no canto.

– Ele ainda não acabou? – perguntou Hanley. – Está demorando um bocado, senhor – respondeu o motorista. – E o pão com

manteiga está desaparecendo como se não houvesse um fundo. Hanley olhou o velho ajeitar um pouco da comida frita gordurosa num pão branco,

dar uma mordida e começar a mastigar. – Vai ter de pagar o pão extra – disse o dono do café. – Ele já comeu três porções. Hanley olhou para o relógio. Passavam alguns minutos das 11 horas. Suspirou e

sentou-se num banco ao balcão, pedindo: – Quero uma xícara de chá. Disseram ao homem do departamento de saúde que fosse ao seu encontro dentro de

30 minutos, a fim de levar o velho. Poderia então voltar ao seu escritório e despachar vários papéis à sua espera. Ficaria contente quando pudesse encerrar aquela missão.

Barney Kelleher e seu foca entraram no café. Barney disse: – Está pagando a comida para o velho, hem? Vou cobrar depois – respondeu Hanley, embora Barney soubesse que isso jamais

aconteceria. – Tirou boas fotos? – Não foram das piores. Acho que a melhor foi a das galinhas. Outra boa foto foi a

da chaminé caindo. E também do velho saindo, envolto num cobertor. O fim de uma era. Ainda me lembro da época em que 10 mil pessoas viviam em Diamond. E todas trabalhando. Ganhavam mal, é verdade, mas todo mundo trabalhava. Naquele tempo, levava 50 anos para se criar uma favela.

Agora, conseguem fazê-lo em apenas cinco. – É o progresso – murmurou Hanley. Um segundo carro da polícia parou diante do café. Um dos guardas que estivera na

Mayo Road saltou, olhou pela janela, viu que seu chefe estava com os representantes da imprensa e parou, indeciso. O foca não percebeu coisa alguma. E Barney Kelleher fingiu que não notava. Hanley saiu do banco e foi até a porta. Lá fora, sob a chuva, o guarda informou-o:

– É melhor vir, senhor. Eles... encontraram uma coisa.

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Hanley chamou seu motorista, que saiu para a calçada. – Vou voltar ao local da demolição. Continue de olho no velho. Ele deu uma olhada para o interior do café. Lá no canto, o velho parara de comer.

Segurava o garfo numa das mãos e um pedaço de pão com salame na outra, perfeitamente imóvel, olhando em silêncio para os três policiais uniformizados na calçada.

Na casa, todo o trabalho cessara. Os homens da demolição, em suas capas amarelas e capacetes, estavam agrupados num círculo, nos escombros da casa. Hanley saltou do seu carro e foi avançando entre as pilhas de escombros até o lugar em que os homens estavam. Por trás dele, entre o que restara da multidão, alguém murmurou:

– É o tesouro do velho. – Houve um murmúrio de assentimento e a mesma voz acrescentou: – Ele tinha uma fortuna enterrada na casa. Por isso é que não queria ir embora.

Hanley chegou ao centro do grupo e olhou para o que atraía a atenção de todos. A base da chaminé demolida ainda estava de pé, com cerca de dois metros de altura, cercada por pilhas de destroços. Ainda se podia ver a lareira enegrecida. Ao lado, cerca de um metro da parede externa da casa ainda estava de pé. E ali, no lado de dentro da casa, havia uma pilha de tijolos caídos, da qual sobressaía, encolhida e mirrada, mas ainda reconhecível, a perna de um ser humano. Um farrapo do que parecia ter sido uma meia de náilon ainda estava preso no joelho.

– Quem encontrou? – indagou Hanley. O capataz se adiantou. – Tommy aqui estava trabalhando na chaminé. Removeu alguns tijolos para poder

desferir um golpe melhor com a picareta. Viu isso aí e no mesmo instante me chamou. Hanley era capaz de reconhecer prontamente uma boa testemunha e sabia que esse

era o caso do capataz. – Quer dizer que estava por baixo das tábuas do assoalho? – Não. Todas as casas desta área foram construídas sobre um pântano e os chãos

eram cimentados, por baixo dos assoalhos. – Onde estava então? O capataz inclinou-se e apontou para a base da lareira. – Pelo lado de dentro da sala, a lareira parecia alinhada com a parede. Mas não era. Originalmente, a lareira e a chaminé ficavam para fora da parede. Mais tarde,

alguém construiu uma parede de tijolos entre a parte dianteira da chaminé e a extremidade da sala, formando uma cavidade com cerca de 30 centímetros de profundidade, que subia até o teto. E fez a mesma coisa do outro lado da lareira, para manter a simetria. Só que o outro lado estava vazio. O corpo estava deste lado, entre a parede falsa e a verdadeira parede da casa. Mudaram até o papel de parede para ocultar o trabalho. O papel na frente da chaminé é o mesmo que está na parede falsa.

Hanley observou o que o capataz indicava. Farrapos do mesmo papel de parede mofado aderiam à parte externa da chaminé e aos tijolos que cercavam e cobriam parcialmente o corpo.

Era um papel antigo, um padrão de rosas. Mas no lado de dentro da parede original da casa, ao lado da lareira, podia se discernir um papel ainda mais antigo, listrado. Hanley levantou-se e disse:

– Certo. Este é o fim do trabalho de vocês por hoje. Pode dispensar os seus homens. Vamos cuidar de tudo, daqui por diante.

Os operários de capacete começaram a se afastar da pilha de tijolos. Hanley virou-se para os dois guardas e disse:

– Mantenham os cordões de isolamento. Vamos precisar de mais homens e outras barreiras.

Quero que este lugar fique inacessível por todos os lados. Vou convocar mais gente

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e também a turma técnica. Nada pode ser tocado enquanto eles não autorizarem. Entendido? Os dois guardas assentiram. Hanley voltou para o seu carro e seguiu para a

delegacia. Deu diversas ordens e depois ligou para a Seção Técnica do Serviço de Investigações, alojado num velho quartel vitoriano, por trás da estação ferroviária de Heuston. Teve sorte, pois falou com o Detetive-Superintendente O'Keefe, a quem conhecia há muitos anos. Hanley contou o que descobrira e informou o que precisava.

– Vou mandá-los para lá imediatamente – disse O'Keefe. – Quer que o pessoal da divisão de homicídios entre no caso?

Hanley fungou com desdém. – Não, obrigado. Acho que podemos perfeitamente cuidar do caso no nível da

delegacia distrital. – Quer dizer que já tem um suspeito? – Exatamente. Hanley seguiu para o café, passando por Barney Kelleher, que tentava em vão

passar novamente pela barreira. Desta vez, o guarda de serviço ali não estava se mostrando tão prestativo quanto antes.

No café, Hanley encontrou seu motorista ainda no balcão, com outra xícara de café. O velho continuava sentado no canto, terminada a refeição, tomando também um chá. Ficou olhando Hanley se aproximar.

– Nós a encontramos – disse Hanley, inclinando-se sobre a mesa e falando tão baixo que ninguém mais no café podia ouvi-lo. – Não acha que já podemos partir, Sr. Larkin? Não gostaria de conhecer a nossa delegacia? Precisamos ter uma conversinha, não é mesmo?

O velho se levantou e, com a mão firme de Hanley a segurá-lo pelo cotovelo, saiu para o carro.

O motorista seguiu-os e sentou-se ao volante. A chuva cessara e um vento frio soprava papéis de bala, como folhas de outono, pela rua em que não existiam árvores. O carro arrancou. O velho estava encurvado, olhando para a frente, em silêncio.

– Vamos voltar à delegacia – disse Hanley ao motorista. Não há qualquer país do mundo em que a investigação de um homicídio se resolva

com palpites inspirados, como acontece na televisão. Cerca de 90 por cento da investigação tratam-se de rotinas meticulosas, formalidades a serem cumpridas, métodos padronizados a serem seguidos.

Big Bill Hanley mandou que metessem o velho numa das celas nos fundos da delegacia. Ele não ensaiou qualquer protesto, não pediu para falar com um advogado. Hanley não tinha intenção de acusá-lo... por enquanto. Podia manter o velho detido por suspeita de homicídio pelo menos por 24 horas e queria primeiro obter mais fatos. Foi sentar-se à sua mesa e começou a trabalhar pelo telefone.

– Siga as regras, rapaz, siga as regras – seu velho sargento costumava dizer, anos antes. – Afinal, não somos Sherlock Holmes.

Um bom conselho. Mais casos já se haviam perdido nos tribunais por erros nos procedimentos policiais do que ganhos pelo brilho intelectual.

Hanley comunicou formalmente ao médico-legista a ocorrência de uma morte, falando-lhe no momento em que ele estava saindo para almoçar. Depois, avisou ao necrotério municipal, na Store Street, logo atrás do terminal rodoviário, que haveria uma autópsia complexa naquela tarde. Conseguiu localizar o patologista oficial, Professor Tim McCarthy, qu escutou calmamente as informações num telefone no saguão do Kildare Club, suspirou ao pensar que iria perder o excelente peito de faisão que constava do cardápio e concordou em ir imediatamente.

Era preciso organizar diversas coisas, designar homens com pás e picaretas para a Mayo Road.

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Hanley convocou os três detetives da delegacia para uma reunião em sua sala. Eles tinham acabado de almoçar na cantina e Hanley substituiu o seu próprio almoço por dois sanduíches e meio litro de leite.

– Sei que andam muito ocupados – disse ele. – Todos nós andamos. É por isso que quero que este caso seja resolvido o mais depressa possível. Não deve demorar muito.

Hanley designou o detetive-inspetor-chefe para investigar a cena do crime e despachou-o prontamente para a Mayo Road. Os dois jovens sargentos-detetives foram designados para trabalhos separados. Um deles foi encarregado de investigar a casa propriamente dita. O representante do conselho municipal dissera que o velho era o proprietário, mas o Registro de Impostos da prefeitura devia conter informações sobre a história e propriedade no passado. E o Cartório de Escrituras Públicas poderia fornecer os detalhes finais.

O segundo sargento-detetive foi encarregado do chamado trabalho de "bater pernas". Devia procurar os antigos moradores da Mayo Road, a maioria vivendo agora no conjunto habitacional.

Teria de conversar com os vizinhos, donos de lojas, os guardas que tinham feito a ronda na Mayo Road nos últimos 15 anos antes de sua demolição, o padre local, qualquer um que tivesse conhecido a Mayo Road e o velho por tantos anos quanto possível. E isso, acrescentou Hanley com toda a ênfase, inclui também qualquer um que tenha conhecido a Sra... isto é, a falecida Sra. Larkin.

Hanley despachou também um sargento uniformizado com um furgão para pegar todos os objetos retirados da casa demolida naquela manhã, inclusive os móveis abandonados, com pulgas e cupins, trazendo tudo para o pátio da delegacia.

Já passavam alguns minutos das duas horas quando Hanley finalmente se levantou e espreguiçou-se. Determinou que o velho fosse levado para a sala de interrogatório, acabou de tomar o leite e esperou cinco minutos. Foi para a sala de interrogatório e encontrou o velho sentado à mesa, com as mãos cruzadas à frente, olhando para a parede. Um guarda estava de pé na porta.

– Ele falou alguma coisa? – perguntou Hanley ao guarda. – Não, senhor. Não disse nada. Hanley acenou com a cabeça para que o guarda se retirasse. Depois, sentou-se à

mesa, diante do velho. O nome dele era Herbert James Larkin, segundo os arquivos municipais.

– E agora vamos conversar, Sr. Larkin. Não acha que seria mais sensato me contar tudo logo de uma vez?

A experiência dizia a Hanley que de nada adiantaria tentar pressionar o velho. Não se tratava de um criminoso comum do submundo. Ele já tivera em suas mãos três uxoricidas, todos homenzinhos humildes e passivos, que logo pareceram aliviados ao contarem os detalhes horríveis do crime ao homem grandalhão e compreensivo do outro lado da mesa. O velho levantou a cabeça lentamente para fitá-lo, sustentou-lhe o olhar por um momento e depois tornou a baixar os olhos para a mesa. Hanley tirou do bolso um maço de cigarros e abriu-o.

– Fuma? – O velho não se mexeu. – Para dizer a verdade, eu também não fumo. Mas Hanley deixou o maço em cima da mesa, convidativamente aberto, com uma

caixa de fósforos ao lado. – Até que foi uma brava tentativa – acrescentou Hanley. – Não foi fácil resistir na

casa daquele jeito durante tantos meses. Mas o conselho tinha de vencer, mais cedo ou mais tarde. Sabia disso, não é mesmo? Deve ter sido uma espera angustiante, sabendo que os meirinhos acabariam aparecendo inevitavelmente para despejá-lo.

Hanley ficou esperando por um comentário, qualquer sinal de comunicação do

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velho. Não houve nenhum. Não tinha importância. Ele era tão paciente quanto um boi quando queria que um homem falasse. E todos acabavam falando, mais cedo ou mais tarde. Para se aliviarem. Para se livrarem do fardo. A Igreja há muito que conhecia o alívio da confissão.

– Quantos anos, Sr. Larkin? Quantos anos de ansiedade, de espera? Quantos meses desde que os primeiros tratores chegaram a Gloucester Diamond? Deve ter passado por momentos aflitivos.

O velho tornou a levantar a cabeça e fitou Hanley nos olhos, talvez procurando por alguma coisa, outro ser humano, depois de anos de isolamento voluntário, ou então um pouco de simpatia e compaixão. Os olhos do velho logo se afastaram, por cima do ombro de Hanley, para a parede atrás.

– Está acabado, Sr. Larkin. Está tudo acabado. Vamos descobrir tudo, mais cedo ou mais tarde.

Vamos voltar pelos anos, lentamente, meticulosamente, investigando tudo, até descobrirmos o que aconteceu. Sabe disso perfeitamente. Era a Sra. Larkin, não é mesmo? Por quê? Outro homem? Ou apenas uma discussão? Não teria sido apenas um acidente? Mas entrou em pânico e se condenou a viver como um eremita pelo resto dos seus dias.

O lábio inferior do velho se mexeu. Ele passou a língua por cima. Estou começando a penetrar na couraça, pensou Hanley. Não falta muito agora.

– Esses últimos anos devem ter sido horríveis. Sentado sozinho naquela casa, sem ter amigos como antes do acontecimento, sabendo que ela ainda estava ali, não muito longe, emparedada ao lado da lareira.

Um brilho súbito surgiu nos olhos do velho. De choque pela recordação? Talvez o tratamento de choque funcionasse melhor. Ele piscou duas vezes. Estou quase conseguindo, pensou Hanley.

Mas quando os olhos do velho tornaram a se encontrar com os de Hanley estavam novamente impassíveis. E ele não disse nada.

Hanley insistiu por mais uma hora, mas o velho não disse absolutamente nada. – FIque à vontade – disse Hanley finalmente, levantando-se. – Voltarei mais tarde

para retomarmos a conversa. Quando ele chegou à Mayo Road, a atividade no local era ainda mais intensa e a

multidão maior, embora agora pudessem ver bem menos. Todos os quatro lados da casa demolida estavam protegidos por telas de lona, fustigadas pelo vento, impedindo que os curiosos vissem o que se passava além. Dentro do quadrado formado pelas lonas, que abrangia uma parte da rua, 20 policiais corpulentos estavam removendo os escombros com as mãos, um a um. Cada tijolo e telha, cada pedaço de madeira da escada e do corrimão, cada ladrilho e viga do teto, tudo era puxado com cuidado, examinado em busca de alguma coisa e depois jogado para a beira da rua, onde a pilha de escombros ia se tornando cada vez mais alta. O que restava das paredes era inspecionado meticulosamente à procura de cavidades, antes de ser desmontada, tijolo por tijolo.

Em torno da lareira, dois homens trabalhavam com um cuidado especial. Os escombros por cima do cadáver eram removidos cuidadosamente, até que ficou coberto apenas por uma grossa camada de poeira. O corpo estava curvado na posição de um feto, de lado, embora provavelmente estivesse numa posição sentada dentro da cavidade. O Professor McCarthy, inspecionando o que restava da parede da casa, orientava o trabalho dos dois homens. Depois que tudo foi feito, para sua satisfação, ele entrou na cavidade entre os tijolos restantes e, com uma escova macia, como se fosse uma dona-de-casa meticulosa, começou a remover a poeira que cobria a argamassa antiga.

Depois de remover a maior parte, McCarthy examinou o corpo mais atentamente, batendo nas partes expostas, da coxa e do braço superior, para depois sair da cavidade e

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dizer a Hanley: – É uma múmia. – Uma múmia? – Exatamente. Com um chão de tijolos ou concreto, o local fechado por todos os

seis lados e o calor da lareira a meio metro de distância, a mumificação acabou ocorrendo. Houve desidratação, mas com preservação. Os órgãos podem estar praticamente intactos, mas duros como madeira. Não vai adiantar tentar a autópsia esta noite. Vou precisar primeiro de um banho de glicerina quente. E que vai demorar.

– Quanto tempo? – No mínimo 12 horas. Talvez mais. Conheço casos que se prolongam por dias. – O

professor olhou para o relógio. – São quase quatro horas. O corpo poderá estar imerso por volta das cinco horas. Amanhã de manhã, em torno das nove horas, irei ao necrotério para verificar se já poderei começar a autópsia.

– Mas que azar! Eu queria liquidar o caso o mais depressa possível. – Farei o melhor possível. E posso dizer-lhe desde já que não creio que os órgãos

possam nos revelar muita coisa. Pelo que pude reparar, há uma ligadura no pescoço. – Estrangulamento? – Possivelmente. O agente funerário que sempre se encarregava daqueles casos já estava com o seu

furgão estacionado além das telas de lona. Sob a supervisão do patologista oficial, dois de seus homens ergueram o cadáver rígido, ainda de lado, colocando-o numa maca, coberto por um lençol, e levando-o para o carro à espera. Seguidos pelo professor, eles partiram para a Store Street, onde ficava o necrotério municipal. Hanley encaminhou0se para o especialista em impressões digitais e perguntou-lhe:

– Encontrou alguma coisa? O homem deu de ombros. – A casa ficou praticamente reduzida a escombros, senhor. Não há uma única

superfície limpa. Hanley virou-se para o fotógrafo da polícia. – E você? – Vou esperar mais um pouco, senhor. Só depois que os homens retirarem os

escombros até o chão é que poderei verificar se há alguma coisa para mim. Se não houver, irei para casa.

O capataz da empreiteira se aproximou. Ficara ali por sugestão de Hanley, como um técnico em demolição, caso houvesse ameaça de desmoronamento. E comentou, em seu sotaque de Dublin, com um sorriso:

– Fizeram um excelente trabalho por aqui. Não vai sobrar muita coisa para meus homens fazerem.

Hanley apontou para a rua, onde estava agora a maior parte da casa, numa única pilha de escombros.

– Pode começar a remover isso, se quiser. Acabamos com toda essa parte. O capataz olhou para o relógio, na escuridão que se adensava. – Resta uma hora de trabalho. Dará para remover a maior parte. Podemos cuidar do

resto da casa amanhã? O chefe está querendo acabar logo o estacionamento. – Fale comigo às nove horas da manhã. Poderei então dar a informação. Antes de ir embora, Hanley chamou seu detetive inspetor-chefe, que estava

organizando todo o trabalho. – Os refletores não devem demorar. Mande os homens removerem tudo até o nível

do chão e examine a superfície à procura de indícios de interferência depois que foi construído.

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O detetive assentiu, comentando: – Até agora, a cavidade ao lado da lareira é o único esconderijo. Mas continuarei a

procurar até o final. De volta à delegacia, Hanley teve a primeira oportunidade de examinar algo que

poderia revelar-lhe informações sobre o velho que estava na cela. Em sua mesa, estavam os objetos que os meirinhos haviam removido da casa demolida naquela manhã e posto no furgão municipal.

Verificou cuidadosamente cada documento, usando uma lente de aumento para ler as letras antigas e desbotadas.

Havia uma certidão de nascimento com o nome do velho, indicando que ele nascera em Boston, em 1911. Portanto, estava com 67 anos. Havia algumas cartas antigas, mas de pessoas que nada significavam para Hanley. O conteúdo das cartas não tinha aparentemente qualquer relação com o caso. Mas havia duas coisas que despertavam algum interesse. Uma era a fotografia desbotada, manchada e entortada que estava numa moldura ordinária, sem vidro.

Mostrava um soldado no que parecia ser um uniforme do Exército britânico, sorrindo meio indeciso para a câmera. Hanley reconheceu uma versão muito mais jovem do velho. Em seu braço, havia uma moça gorducha, segurando um buquê de flores. Não usava um vestido de noiva, mas um costume de duas peças, de cor neutra, com ombros altos e retos, como estava em moda em meados dos anos 40.

A outra caixa era a de charutos. Continha mais cartas, também irrelevantes para o caso, três fitas de medalha presas por alfinete numa barra e uma caderneta de pagamento do Exército britânico. Hanley pegou o telefone. Passavam 20 minutos das cinco horas, mas podia ter sorte. E teve. O adido militar da Embaixada britânica em Sandyford ainda estava em seu escritório.

Hanley explicou o problema. O Major Dawkins disse que teria o maior prazer em ajudar, se pudesse, extra-oficialmente. O que era muito melhor. As solicitações oficiais tinham de ser encaminhadas pelos chamados canais competentes. Extra-oficialmente, os contatos eram muito mais rápidos e eficientes. O Major Dawkins combinou que passaria pela delegacia a caminho de casa, muito embora tivesse que fazer um desvio e tanto.

Há muito que já escurecera quando o primeiro dos dois jovens sargentos-detetives voltou à delegacia. Era o que fora verificar os registros municipais. Sentado no outro lado da mesa de Hanley, ele abriu seu caderninho de anotações e pôs-se a relatar o que descobrira.

A casa da Mayo Road fora comprada por Herbert James Larkin em 1954, do espólio do proprietário anterior, falecido pouco antes. Ele pagara 400 libras pela casa. Não havia registro de uma hipoteca, o que indicava que ele dispunha do dinheiro necessário. Desde então, a casa lhe pertencera e fora ocupada por ele e pela Sra. Violet Larkin. Não havia registro da morte ou partida da mulher. Mas não haveria mesmo registro da saída de um ocupante de uma casa, a menos que o outro, o que continuasse, apresentasse a informação por escrito. O que não acontecera no caso. Uma busca dos registros de óbitos, desde 1945, não revelara qualquer vestígio da morte de alguma Sra. Violet Larkin, daquele endereço ou de qualquer outro.

Os registros do Departamento de Saúde e Bem-Estar indicavam que Larkin vinha recebendo uma pensão do governo há dois anos, e jamais solicitara qualquer benefício adicional. Antes da aposentadoria, ele fora aparentemente comerciário e vigia noturno. O sargento-detetive acrescentou uma última informação: os registros de contribuição de Larkin, começando em 1954, indicavam um endereço anterior em North London, Inglaterra.

Hanley deu uma olhada na caderneta de pagamento em cima da mesa, enquanto o sargento-detetive comentava:

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– Com que ele esteve no Exército britânico. – O que nada tem de excepcional. Cinqüenta mil irlandeses lutaram nas forças

armadas britânicas durante a Segunda Guerra Mundial. Ao que tudo indica, Larkin fora um deles.

– Talvez a mulher fosse inglesa. Ele voltou para Dublin com ela em 1954, vindo de North London.

– É bem provável – disse Hanley, estendendo a fotografia de casamento para o detetive. – Ele casou ainda de uniforme.

O telefone interno tocou. Hanley atendeu. O adido militar da Embaixada britânica tinha chegado.

Hanley acenou com a cabeça para o detetive, que se levantou para se retirar. – Mostre o caminho ao adido militar britânico, por favor – pediu Hanley. O Major Dawkins foi a melhor fonte de informações de Hanley no dia. Ele cruzou

as pernas elegantemente, apontando a biqueira do sapato reluzente para Hanley. Escutou atentamente, em silêncio. Depois, examinou a fotografia de casamento por algum tempo.

Finalmente, levantou-se, contornou a mesa e parou ao lado de Hanley, com a lente de aumento numa das mãos e a caneta de ouro na outra. Apontou o emblema do quepe usado por Larkin na fotografia, declarando, com absoluta convicção:

– Guarda de Dragões do Rei. – Como sabe? O Major Dawkins entregou a lente a Hanley, dizendo: – Por causa da águia de duas cabeças. É o emblema da Guarda de Dragões do Rei.

Não há qualquer outro parecido. – Mais alguma coisa? Dawkins apontou para as três medalhas no uniforme do recém-casado. – Esta aqui é a Estrela 1939-1945 e a terceira, no outro lado, é a Medalha da

Vitória. A do meio é a Estrela da África, com a passadeira que parece ser do VIII Exército. O que faz sentido. A Guarda de Dragões do Rei lutou contra Rommel na África do Norte. Em carros blindados, para ser mais exato.

Hanley pegou as três fitas. Na fotografia, apareciam as medalhas cerimoniais. Eram representadas por aquelas fitas, usadas normalmente com o uniforme interno. O Major Dawkins deu uma olhada e confirmou:

– É de fato o que falei. Com a lente de aumento, Hanley podia agora verificar que o padrão era realmente o

mesmo. Ele entregou a caderneta de pagamentos ao oficial inglês. Os olhos de Dawkins se iluminaram ao folheá-la.

– Ele se apresentou como voluntário em Liverpool, em outubro de 1940. Provavelmente na Burton.

– E que lugar era esse? – Uma alfaiataria em que funcionava, na ocasião, o centro de recrutamento de

Liverpool. Muitos voluntários irlandeses desembarcavam no porto e eram encaminhados para lá. Deu baixa em janeiro de 1946. É estranho...

– O que é estranho? – Ele se apresentou como voluntário em 1940. Participou de combates com carros

blindados na África do Norte. Permaneceu no Exército até 1946. Mas continuou como soldado. Jamais ganhou qualquer divisa. Nunca foi promovido sequer a cabo.

– Talvez ele fosse um mau soldado – sugeriu Hanley. – É possível. – Pode descobrir mais alguns detalhes sobre a história dele na guerra? – Será a primeira coisa que farei pela manhã.

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Dawkins anotou alguns detalhes da caderneta e depois foi embora. Hanley jantou na cantina e ficou esperando pela volta do segundo sargento-detetive. O homem chegou depois das 10:30h, bastante cansado, mas triunfante.

– Falei com 15 pessoas que conheceram Larkin e a mulher na Mayo Road e três me prestaram ótimas informações. A primeira foi a Sra. Moran, que morava na casa ao lado. Ela viveu na Mayo Road por 30 anos e ainda se lembra da mudança dos Larkins. A segunda foi o carteiro que serviu na Mayo Road até o ano passado. E a terceira foi o Padre Byrne, agora aposentado, vivendo num asilo para sacerdotes em Inchicore. Estou voltando de lá e por isso demorei tanto.

Hanley recostou-se na cadeira, enquanto o jovem sargento-detetive abria o caderninho de anotações e começava a relatar suas descobertas:

– A Sra. Moran disse que, em 1954, o viúvo que vivia na casa número 38 morreu e logo depois puseram ali um cartaz de VENDE-SE. O cartaz foi retirado cerca de 15 dias depois. E os Larkins se mudaram duas semanas mais tarde. Larkin devia estar então com 43 anos, enquanto a mulher era bem mais jovem. Ela era inglesa, uma londrina. Contou à Sra. Moran que tinham vindo de Londres, onde o marido trabalhava numa loja. E no verão de 1963, pelo que lembra a Sra. Moran, a Sra. Larkin desapareceu subitamente.

– Como ela pôde saber? – perguntou Hanley. – Kennedy foi assassinado em novembro de 1963. A notícia foi ouvida primeiro no

bar da esquina, onde havia um aparelho de televisão. Vinte minutos depois, todos os moradores da Mayo Road estavam na rua, falando sobre o caso. A Sra. Moran estava tão excitada que entrou na casa de Larkin para contar. Não bateu, simplesmente abriu a porta e foi entrando na sala.

Larkin estava cochilando numa poltrona. Ele se levantou sobressaltado, visivelmente alarmado, apressou-se em expulsá-la da casa. A esta altura, a Sra. Larkin já desaparecera. Mas ainda estava na casa na primavera e início de verão. Costumava tomar conta dos filhos dos Morans nas noites de sábado. O segundo filho da Sra. Moran nasceu em janeiro de 1963. Por isso é que ela pode afirmar que a Sra. Larkin desapareceu no final do verão de 1963.

– E qual foi a razão apresentada para o desaparecimento? – Ela abandonou o marido – respondeu o sargento-detetive, sem qualquer hesitação.

– Ninguém duvidou da explicação. Ele era muito trabalhador, mas jamais queria sair de noite, nem mesmo aos sábados. Era por isso que a Sra. Larkin estava sempre disponível para tomar conta dos filhos de outros. Os dois brigavam por causa disso. E havia rumores de que ela era uma mulher frívola. Quando fez as malas e largou o marido, ninguém ficou surpreso. Algumas mulheres achavam que Larkin mereceu, pela maneira como tratava a mulher. Ninguém desconfiou de nada.

"Depois disso, Larkin ficou ainda mais retraído do que antes. Quase não saía, deixou de cuidar de si mesmo ou da casa. As pessoas se ofereciam para ajudá-lo, como acontece nas pequenas comunidades. Mas ele rejeitava todas as ofertas. As pessoas acabaram deixando-o em paz.

Cerca de dois anos depois, perdeu o emprego na loja e virou vigia noturno, saindo de casa depois do anoitecer e voltando ao nascer do sol. Mantinha a porta muito bem trancada: de noite, porque estava fora; de dia, porque queria dormir. Ou, pelo menos, era o que dizia. Começou a criar animais. Primeiro furões, num telheiro no quintal dos fundos. Mas os bichos acabaram fugindo. Passou a criar pombos, que também fugiram ou foram mortos a tiros em outros lugares.

E finalmente galinhas, pelos últimos dez anos. O padre da paróquia havia confirmado a maior parte das recordações da Sra. Moran.

A Sra. Larkin era inglesa, mas católica e devota. Confessava-se regularmente. Desaparecera

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em agosto de 1963 e a maioria das pessoas dissera que fora embora com um homem. O Padre Byrne não tinha motivos para duvidar. Não ia quebrar o sigilo de confessionário, mas podia dizer que não tinha qualquer dúvida sobre essa versão. Ele visitara a casa diversas vezes, mas Larkin não era um devoto e recusara todo e qualquer conforto espiritual. Comentara inclusive que a mulher desaparecida não passava de uma sem-vergonha.

– Tudo se ajusta – comentou Hanley. – Ela podia estar prestes a abandoná-lo quando Larkin descobriu e espancou-a com força excessiva. Deus sabe que isso está sempre acontecendo.

O carteiro não acrescentara muita coisa. Freqüentava um bar local. A Sra. Larkin gostava de tomar uma pequena caneca de cerveja lá, nas noites de sábado, chegara mesmo a trabalhar como garçonete num verão. Mas o marido descobrira e acabara com isso. O carteiro lembrava que ela era bem mais jovem que Larkin, alegre e exuberante, não se mostrando avessa a algum flerte.

– Houve alguma descrição? – indagou Hanley. – Ela era baixa, com menos de 1,60m de altura, mais para gorda. Ou, pelo menos,

com as curvas bem acentuadas. Cabelos pretos encaracolados. Vivia rindo. E seios grandes. O carteiro lembrou que era um espetáculo e tanto observá-la tirando cerveja de uma dessas bombas antigas. Larkin ficou furioso na noite em que descobriu que ela estava trabalhando no bar. Entrou lá de supetão e praticamente arrastou-a para casa. Ela deixou-o, ou desapareceu, logo depois.

Hanley levantou e espreguiçou-se. Já era quase meia-noite. Ele bateu no ombro do jovem detetive e disse:

– Já é bem tarde. Pode ir para casa. Escreva o relatório de manhã. O último visitante de Hanley foi o inspetor-chefe, o homem que ficara investigando

o local do crime. – Está tudo limpo – informou ele. – O último tijolo já foi removido e não

encontramos sinal de qualquer coisa que pudesse ajudar. – Então, o corpo da pobre mulher é que terá de nos contar o resto do que precisamos

saber – comentou Hanley. – Ou o próprio Larkin. – Ele já falou? – Ainda não, mas vai falar. Todos acabam falando. O inspetor-chefe foi para casa. Hanley telefonou para a mulher e avisou que

passaria a noite na delegacia. Foi para a cela pouco depois da meia-noite. O velho estava acordado, sentado na beira do catre, olhando para a parede do outro lado. Hanley acenou com a cabeça para o guarda que o acompanhava e foram todos para a sala de interrogatório. O guarda ficou num canto, com o caderninho de anotações na mão, pronto para registrar tudo o que fosse dito. Hanley fitou o velho e disse as palavras de advertência:

– Herbert James Larkin, não está obrigado a dizer qualquer coisa, mas qualquer coisa que disser será devidamente anotada e poderá ser usada como prova.

Depois, sentou-se diante do velho. – Quinze anos, Sr. Larkin. É um bocado de tempo para se viver com uma coisa

assim. Foi em agosto de 1963, não é mesmo? Os vizinhos lembram, o padre lembra, até mesmo o carteiro lembra. Por que não me conta logo tudo de uma vez?

O velho levantou a cabeça, sustentou o olhar de Hanley por alguns segundos, depois tornou a baixar os olhos para a mesa. Não disse nada. Hanley persistiu no interrogatório infrutífero até o amanhecer. Larkin parecia não estar cansado, enquanto o guarda no canto bocejava repetidamente. Hanley recordou que Larkin fora vigia noturno por vários anos. Provavelmente ficaria mais desperto e alerta durante a noite que no decorrer do dia.

Uma luz cinzenta começava a se infiltrar pela janela de vidro fosco da sala de interrogatório.

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– Seja como quiser – disse Hanley finalmente. – Pode não falar, mas sua Violet vai falar.

Estranho isso, não é mesmo? Ela falará do seu túmulo por trás da parede, 15 anos depois. Mas falará para o patologista oficial, dentro de algumas horas. Pode estar certo de que ela falará.

Contará a ele, no laboratório, tudo o que lhe aconteceu, quando aconteceu, talvez mesmo por que aconteceu. E, depois disso, voltaremos a procurá-lo e será formalmente acusado.

Por mais difícil que fosse ele se irritar, a verdade é que Hanley estava começando a ficar nervoso com o silêncio do velho. Não que ele falasse pouco; o velho simplesmente não dizia absolutamente nada. Ficava apenas olhando para a parede atrás de Hanley, com aquela estranha expressão nos olhos. O que significava aquela expressão?, perguntou Hanley a si mesmo. Apreensão? Medo dele, Hanley? Remorso? Alívio? Os assassinos freqüentemente ficavam aliviados, mas nesses casos geralmente falavam. Ironia? Não, não era ironia. O velho não era disso.

Hanley levantou-se, passou a mão imensa pela barba que despontava no queixo, voltou para sua sala. Larkin foi conduzido de volta à cela.

Hanley dormiu por três horas em sua cadeira, a cabeça inclinada para trás, os pés levantados, roncando sonoramente. Acordou às oito horas, foi para o banheiro, lavou-se, fez a barba. Dois surpresos cadetes da polícia encontraram-no ali às oito e meia, ao chegarem para seu plantão, passando a se movimentarem com extrema cautela, procurando não fazer barulho. Às nove horas Hanley já havia comido e estava trabalhando numa montanha de trabalho burocrático acumulado. Às 9:30h, o capataz na obra da Mayo Road telefonou. Hanley pensou por um momento no pedido dele e depois disse:

– Está certo. Pode cercar e despejar o concreto. Vinte minutos depois, o Professor McCarthy estava no telefone, dizendo

jovialmente: – Já consegui esticar os braços e pernas. E a pele está macia o bastante para o

bisturi. Estamos agora esvaziando o tanque e secando o corpo. Começarei a autópsia dentro de uma hora.

– Quando poderá me dar um relatório? – Depende do que vai querer. O relatório oficial levará dois ou três dias. Extra-

oficialmente, já poderei lhe contar alguma coisa depois do almoço. Pelo menos, a causa da morte. Já confirmamos a ligadura no pescoço. E era mesmo uma meia de náilon, conforme desconfiei ontem.

O patologista concordou em ir do necrotério na Store Street até a sala de Hanley na delegacia, uma distância de menos de dois quilômetros, por volta das 2:30h.

Não houve qualquer outra interrupção na manhã, exceto ao meio-dia, quando o Major Dawkins telefonou.

– Tive alguma sorte. Encontrei um velho amigo nos arquivos do Departamento de Guerra e ele meu deu prioridade.

– Obrigado, major. Pode falar, que já estou com papel e caneta nas mãos. – Não há muita coisa, mas confirma o que pensamos ontem. O que você pensou, disse Hanley para si mesmo. Ah, essa meticulosa cortesia

inglesa! – O soldado Herbert James Larkin desembarcou da barca de Dublin em Liverpool

em outubro de 1940, apresentando-se como voluntário para o Exército. O treinamento básico foi no Campo Catterick, Yorkshire. Foi transferido para a Guarda de Dragões do Rei, sendo despachado para o Egito em março de 1941. Chegamos então ao motivo pelo qual ele nunca foi promovido a cabo.

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– E qual foi? – Ele foi capturado. Caiu prisioneiro dos alemães na ofensiva de outono de Rommel

naquele ano. Passou o resto da guerra trabalhando como lavrador num campo de prisioneiros de guerra na Silésia, na região oriental do Terceiro Reich. Foi libertado pelos russos e repatriado em abril de 1945, dias antes do final da guerra na Europa, em maio.

– Alguma informação sobre o casamento dele? – perguntou Hanley. – Há, sim. Ele casou quando ainda era soldado e por isso a informação está também

anotada em sua ficha. Casou na igreja católica de Santa Maria Salvadora, em Edmonton, North London, a 14 de novembro de 1945. A noiva era Violet Mary Smith, camareira de hotel, que tinha 17 anos na ocasião. Como já se sabe, ele deu baixa em janeiro de 1946 e continuou em Edmonton até 1954, trabalhando numa loja. Depois disso, o Exército não teve mais notícias dele.

Hanley agradeceu a Dawkins e desligou. Larkin estava com 34 anos, beirando os 35, quando casara com uma moça de 17 anos. Ela estava com 26 anos quando tinham ido morar na Mayo Road, ainda viçosa, enquanto ele não devia ser tão viçoso assim, aos 43 anos. Por ocasião de sua morte, em agosto de 1963, Violet devia ser ainda atraente e possivelmente sensual, aos 35 anos, enquanto Larkin seria um homem desinteressante e desinteressado de 52 anos. Claro que isso poderia causar problemas. Hanley ficou aguardando impacientemente a visita do Professor McCarthy.

O patologista oficial era um homem pontual e exatamente às 2:30h estava sentado na cadeira diante de Hanley. Pegou o cachimbo e começou a enchê-lo meticulosamente, comentando, à guisa de desculpas:

– Não posso fumar no laboratório. Além do mais, a fumaça encobre o cheiro do formol. Tenho certeza de que vai preferi-la.

E ele puxou uma baforada, visivelmente satisfeito. – Já tenho o que queria – disse o Professor McCarthy, tranqüilamente. – Não resta a

menor dúvida de que foi mesmo um homicídio. Estrangulamento com o uso de uma meia de náilon, causando asfixia, somado ao choque. O osso hióide foi quebrado aqui... – Apontou para a região entre o pomo-de-adão e o queixo. – ...em três lugares. Antes da morte, foi aplicado um golpe na cabeça, causando laceração da pele, mas não a morte. Provavelmente, o golpe foi suficiente para atordoar a vítima e permitir o estrangulamento.

Hanley recostou-se na cadeira. – Sensacional! Pode me dizer alguma coisa sobre o ano em que ocorreu a morte? – Ah, sim! – exclamou o professor, pegando a sua pasta. – Tenho um presentinho. Tirou um saco de plástico, contendo o que parecia ser um fragmento de jornal,

amarelado e desbotado, com cerca de 15 por 10 centímetros. – O ferimento no couro cabeludo deve ter sangrado um pouco. Para impedir que o

tapete ficasse todo manchado de sangue, nosso assassino deve ter posto um jornal embaixo da cabeça. Sem dúvida, enquanto construía seu esconderijo por trás da parede falsa. Por sorte nossa, ainda dá para reconhecer o fragmento como de um jornal, diário, com a data perfeitamente legível.

Hanley pegou o saco de plástico transparente e examinou o fragmento de jornal com a lente de aumento. E, de repente, empertigou-se bruscamente.

– É claro que se trata de um pedaço de jornal velho. – É claro que é velho – concordou McCarthy. – Já era velho, um número atrasado, quando foi usado para absorver o sangue do

ferimento na cabeça. McCarthy deu de ombros. – É bem possível. Com esse tipo de corpo mumificado, não se pode ter certeza

quanto ao ano exato da morte. Só podemos chegar a uma aproximação.

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Hanley relaxou, dizendo com alívio: – Larkin deve ter apanhado o jornal que forrava uma gaveta ou um armário e que já

eestava lá há anos, sem ser tocado. É por isso que a data no jornal é 13 de março de 1943. – O cadáver data dessa mesma época – disse McCarthy. – Calculo que a morte

ocorreu entre 1941 e 1945. Provavelmente, algumas semanas antes ou depois da data nesse pedaço de jornal.

Hanley fitou-o em silêncio por um longo tempo, antes de finalmente murmurar: – A Sra. Violet Mary Larkin morreu em agosto de 1963. McCarthy fitou-o sustentando o olhar enquanto reacendia o cachimbo. E disse

gentilmente: – Acho que estamos falando de coisas diferentes. – Estou falando do cadáver no necrotério – declarou Hanley. – Eu também. – Larkin e a mulher chegaram a Londres em 1954 – disse Hanley, falando bem

devagar. – Compraram a casa de no. 38 da Mayo Road depois da morte do proprietário-morador anterior.

Foi anunciado que a Sra. Larkin fugiu de casa, abandonando o marido, em agosto de 1963.

Ontem, encontramos o corpo escondido por trás de uma parede falsa, quando a casa estava sendo demolida.

– Não me disse por quanto tempo os Larkins ficaram na casa. Pediu-me para fazer um exame patológico de um corpo virtualmente mumificado. Exatamente o que eu fiz.

– Mas estava mumificado! – insistiu Hanley. – Nessas condições, pode haver uma variação ampla no ano possível da morte!

– Mas não de 20 anos – disse McCarthy, calmamente. – Não há qualquer possibilidade do corpo estar vivo depois de 1945. Os testes nos órgãos internos não deixam qualquer dúvida a respeito.

É claro que as meias de náilon podem ser analisadas, assim como o fragmento de jornal.

Podiam ter 20 anos de existência, na ocasião em que foram usados. Mas não pode haver tal diferença nos cabelos, unhas e órgãos.

Hanley tinha a sensação de que estava vivendo um pesadelo, embora estivesse acordado. Era um pesadelo antigo. Estava avançando para a linha do gol, usando a força para abrir caminho através dos defensores ingleses, durante a partida final da Tríplice Coroa de 1951. Estava quase chegando e a bola começou a escorregar-lhe das mãos. Por mais que tentasse, não conseguia segurá-la direito...

Ele recuperou-se bruscamente e perguntou: – Além da diferença no ano, o que mais pode dizer? A mulher era baixa, com

menos de 1,60m de altura? McCarthy sacudiu a cabeça. – Lamento, mas o comprimento dos ossos não se altera, mesmo depois de 35 anos

por trás de uma parede de tijolos. A mulher tinha mais de 1,70m de altura, ossos grandes, angulosa.

– Cabelos pretos encaracolados? – Lisos e louros. Ainda estão grudados na cabeça. – E tinha cerca de 35 anos de idade por ocasião da morte? – Não. Tinha bem mais de 50 anos e tivera filhos, eu diria que dois. E houve uma

intervenção cirúrgica reparadora depois do segundo parto. – Está querendo dizer que desde 1954 e até Violet Larkin sair de casa, deixando o

marido sozinho pelos últimos 15 anos, havia um cadáver emparedado na sala da casa?

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– Isso mesmo. Um corpo num estado de mumificação, o que ocorreria pouco depois da morte, num ambiente quente, não emitiria qualquer odor. Em 1954, presumindo que ela fora morta em 1943, como acredito, o corpo há muito que já teria alcançado o mesmo estado em que foi encontrado ontem. Por falar nisso, onde Larkin estava em 1943?

– Num campo de prisioneiros de guerra na Silésia. – Neste caso – disse McCarthy, levantando-se – ele não matou e emparedou a

mulher ao lado da lareira. Então, quem o fez? Hanley pegou o telefone interno e ligou para a sala dos detetives. Um dos jovens

sargentos atendeu. – Quem era o homem que possuía e ocupava a casa da Mayo Road antes de 1954 e

morreu naquele ano? – perguntou Hanley. – Não sei, senhor. – Por quanto tempo ele morou na casa? – Não tomei notas a respeito, senhor. Mas, pelo que posso lembrar, ele ficou na casa

por cerca de 30 anos. Era viúvo. – Claro que era – grunhiu Hanley. – E como se chamava? Houve uma pausa. – Não pensei em perguntar, senhor. O velho foi solto duas horas depois, deixando a delegacia pela porta dos fundos,

para o caso de haver alguém da imprensa na frente. Desta vez, não havia carro da polícia para levá-lo, nenhum guarda para vigiá-lo. Ele tinha no bolso o endereço de um albergue municipal. Sem dizer uma só palavra, ele foi se arrastando pelas calçadas e voltou a Diamond.

Na Mayo Road, a parte que faltava da cerca de metal, onde a casa antes se erguia, estava agora no lugar, com todo o estacionamento fechado. Dentro da área, no lugar em que antes estavam a casa e o jardim, havia uma camada de concreto, nos últimos estágios de secagem. Na semi escuridão do final da tarde, o capataz e dois operários estavam alisando o concreto.

De vez em quando, o capataz cutucava as partes já prontas do concreto com a biqueira de metal das botas. E comentou:

– Já está quase seco. O chefe quer que esteja tudo pronto e pavimentado ainda esta noite.

No outro lado da rua, na pilha de escombros, um fogo consumia o que restava dos degraus da escada, corrimão, vigas do teto, tábuas do assoalho, armários, janelas, portas, a antiga cerca de madeira, a privada externa e o galinheiro. Mesmo ao clarão do fogo, nenhum dos operários notou o velho que os observava por trás da cerca de metal.

O capataz terminou de aprontar a camada de concreto e encaminhou-se par os fundos do terreno, onde ficava antes a velha cerca de madeira. Olhou para o chão.

– O que é isso? Não é uma coisa nova. Ao contrário, parece bastante antiga. Ele apontou para a laje de concreto a seus pés, com cerca de dois metros de

comprimento por meio metro de largura. O operário que espalhara o concreto naquela manhã informou:

– Era o piso do velho galinheiro. – E não pôs outra camada de concreto por cima? – Não. O nível teria ficado mais alto. – Se houver algum afundamento aqui, o chefe vai nos mandar fazer o trabalho de

novo e exigir que paguemos – disse o capataz, sombriamente. Ele se afastou alguns metros e voltou com uma barra de ferro pontuda. Levantou-a

acima da cabeça, bateu com a ponta na velha laje de concreto. A barra de ferro ricocheteou. O capataz soltou um grunhido.

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– Está certo. Esta laje parece bastante sólida. – Virando-se para o buldôzer à espera, gritou: – Pode começar, Michael.

A pá do buldôzer baixou por trás da pilha de macadame com piche fumegante e começou a empurrar a montanha quente, desmoronando como açúcar mole e úmido, para o retângulo de concreto. Em poucos minutos, a área passou de cinzento para preto. E, logo depois, o rolo compressor entrou em ação. Enquanto a última claridade se desvanecia do céu, os operários seguiram para suas casas, deixando o estacionamento finalmente concluído.

No outro lado da cerca, o velho virou-se e afastou-se. Não disse nada, absolutamente nada.

Mas, pela primeira vez, ele sorriu, um sorriso comprido e feliz, de puro alívio. PRIVILÉGIO O telefone tocou pouco depois das oito e meia. Como era manhã de domingo, Bill

Chadwick ainda estava na cama. Tentou ignorar a campainha do telefone, mas o barulho persistiu. Depois de dez toques, ele finalmente saiu da cama e desceu a escada até o vestíbulo.

– Alô? – É você, Bill? Aqui é Henry. Era Henry Carpenter, que morava ali perto, a quem Chadwick conhecia

socialmente, mas não muito bem. – Bom-dia, Henry. Não gosta de ficar na cama até tarde numa manhã de domingo? – Hã... não. Para dizer a verdade, saio cedo de casa para dar uma corrida pelo

parque. Chadwick soltou um grunhido. Devia ser mesmo verdade. Ele era do tipo ansioso.

Reprimindo um bocejo, Chadwick perguntou: – Em que posso servi-lo a essa hora, numa manhã de inverno? No outro lado da linha, Carpenter parecia hesitante. – Já leu os jornais da manhã, Bill? Chadwick olhou para o capacho da porta, onde geralmente ficavam os seus dois

jornais. – Ainda não. Por quê? – Costuma receber o Sunday Courier? – Não. Houve uma pausa prolongada, antes que Carpenter acrescentasse: – Pois acho que deveria dar uma olhada no Sunday Courier hoje. Há uma notícia a

seu respeito. – É mesmo? – falou Chadwick, o interesse subitamente despertado. – E o que diz? Carpenter ficou ainda mais hesitante. O constrangimento dele era patente no tom de

voz. Era evidente que imaginara que Chadwick já lera o artigo e poderia conversar a respeito.

– É melhor verificar pessoalmente, meu velho. Carpenter desligou e Chadwick ficou olhando aturdido para o aparelho em sua mão,

por um momento, antes de desligar também. Como todas as pessoas que são informadas que foram mencionadas num artigo de jornal que ainda não viram, ele estava curioso.

Voltou ao quarto com o Express e o Telegraph, entregou-os à mulher e vestiu uma calça e um suéter de gola rulê por cima do pijama.

– Onde você vai? – perguntou a mulher.

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– Vou até a rua comprar outro jornal. Henry Carpenter acaba de avisar que saiu uma notícia a meu respeito.

– Ora, ora, a fama finalmente! Vou descer para aprontar o café da manhã. A banca de jornais na esquina ainda tinha dois exemplares do Sunday Courier, um

jornal maçudo, de muitos suplementos, escrito por pretensiosos para pretensiosos, na opinião de Chadwick. Fazia bastante frio na rua e por isso ele se absteve de vasculhar as diversas seções e suplementos ali mesmo, preferindo reprimir a curiosidade por mais alguns minutos e deixar para fazê-lo no conforto de sua casa. Quando chegou, a mulher já pusera suco de laranja e café na mesa da cozinha.

Chadwick se lembrou, ao começar a ler o jornal, que Carpenter não lhe fornecera o número da página. Assim, iniciou a leitura pela seção de notícias gerais. Já vira tudo, ao terminar a segunda xícara de café. Passou por cima da seção de arte e cultura e descartou igualmente a seção de esportes. Restavam a revista colorida e o suplemento financeiro. Como tinha uma pequena empresa, sediada nos subúrbios de Londres, Chadwick tentou primeiro o suplemento financeiro.

Na terceira página, um nome atraiu-lhe a atenção. Não era o seu, mas sim o de uma companhia que falira recentemente e com a qual mantivera um relacionamento curto, que se tornara altamente prejudicial com a falência. O artigo era de uma coluna que se gabava de suas intenções investigativas.

Enquanto lia, Chadwick largou a xícara de café na mesa, ficou boquiaberto. E murmurou:

– Ele não pode dizer uma coisa dessas a meu respeito. Não é verdade. – O que houve querido? A mulher estava obviamente preocupada com a expressão abalada do marido. Sem

dizer nada, ele entregou-lhe o jornal, dobrado, a fim de que ela não perdesse o artigo. A mulher leu atentamente, deixando escapar um murmúrio de espanto ao chegar no meio.

– Mas isto é terrível! – murmurou ela, ao terminar. – Esse homem está insinuando que você de alguma forma foi cúmplice de uma fraude.

Bill Chadwick se levantara e andava de um lado para outro da cozinha.E disse, a raiva se sobrepondo ao choque:

– Ele não está simplesmente insinuando, mas sim dizendo abertamente. A conclusão é inevitável. E fui vítima dessa gente, não um cúmplice que sabia de tudo. Vendi os produtos dele de boa fé. A falência custou-me tanto quanto a qualquer outra pessoa.

– Isso pode prejudicá-lo, querido? – indagou a mulher, o rosto vincado de preocupação.

– Se pode me prejudicar? É bem capaz de me arruinar completamente! E o pior é que nada disso é verdade. Nunca me encontrei com o homem que escreveu esse artigo. Qual é mesmo o nome dele?

– Gaylord Brent – respondeu a mulher, lendo a assinatura do artigo. – Jamais falei com esse homem. Ele nem se deu ao trabalho de entrar em contato

comigo, para conferir os fatos. E não pode dizer essas coisas a meu respeito. Chadwick falou a mesma coisa quando se encontrou com seu advogado, na tarde de

segundafeira. O advogado manifestara a inevitável repulsa pelo que lera e escutara com

compreensão a explicação de Chadwick sobre o que realmente acontecera em sua associação com a companhia agora liquidada.

– Com base no que acaba de me dizer – declarou o advogado – parece não restar a menor dúvida de que você foi vítima de uma calúnia nesse artigo.

– Então, eles serão obrigados a se retratarem e pedirem desculpas! – exclamou Chadwick, veementemente.

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– Em princípio, sim. Acho que, como primeiro passo, seria aconselhável que eu escrevesse ao editor, em seu nome, explicando que, em nossa opinião, você foi caluniado pelo empregado dele e está desejando uma reparação, sob a forma de uma retratação e um pedido de desculpas, evidentemente numa posição de igual destaque no jornal.

A carta foi finalmente escrita e remetida. Por duas semanas, não houve qualquer resposta do editor do Sunday Courier. Por duas semanas, Chadwick teve de suportar os olhares maliciosos de seus poucos empregados e evitar os associados nos negócios sempre que podia. E perdeu dois contratos que estava prestes a fechar.

A carta do Sunday Courier finalmente chegou às mãos do advogado. Estava assinada por uma secretária, em nome do editor, o tom era polido e frio, categórico.

Dizia que o editor analisara cuidadosamente a carta do advogado em nome do Sr. Chadwick.

Estava disposto a cogitar da publicação de uma carta do Sr. Chadwick na seção de correspondência. Mas é claro que a carta estaria sujeita ao direito inalienável do editor de publicá-la conforme lhe aprouvesse.

– Em outras palavras, ele reduziria a carta a frases insignificantes – disse Chadwick, reunido novamente com o advogado. – É uma recusa, não é mesmo?

O advogado pensou por um momento. Decidiu ser franco. Afinal, há anos que conhecia aquele cliente.

– É, sim. Só lidei uma única vez antes com um jornal de circulação nacional, numa questão desse tipo. Essa carta é mais ou menos uma resposta padronizada. Eles detestam publicar uma retratação, muito menos um pedido de desculpas.

– O que posso fazer, então? O advogado fez um gesto. – Há o Conselho de Imprensa. Pode apresentar uma reclamação. – E o que eles fariam? – Não muita coisa. Tendem a só aceitar as alegações contra os jornais quando se

pode provar incontestavelmente que houve prejuízos causados desnecessariamente pela negligência do jornal na publicação ou por clamorosa inacurácia por parte do repórter. Tendem também a evitar as alegações de calúnia, deixando que tais casos sejam tratados pelos tribunais. De qualquer forma, eles só podem proclamar uma censura e nada mais.

– O Conselho não pode insistir numa retratação e num pedido de desculpas? – Não. – E o que isso nos deixa? O advogado suspirou. – Receio que só nos reste uma ação judicial. Uma ação no Tribunal Superior,

alegando calúnia e pedindo indenização por perdas e danos. É claro que, se a ação judicial for iniciada, o jornal pode chegar à conclusão de que não deseja levar o caso adiante, publicando o pedido de desculpas que você está pedindo.

– Isso é possível? – Claro que é, mas pode também não acontecer. – Claro que vai acontecer. Eles não têm alternativa. É um caso líquido e certo. – Vou ser bastante franco com você – disse o advogado. – Nos processos de calúnia,

não existe o que se pode chamar de caso líquido e certo. Por um lado, porque não existe nenhuma lei sobre a calúnia. Isto é, a calúnia se enquadra no direito consuetudinário, uma grande massa de precedentes legais, estabelecidos ao longo dos séculos. Esses precedentes podem estar sujeitos a interpretações divergentes. O seu caso... ou qualquer outro caso... será diferente dos anteriores, em algum pequeno detalhe ou mudança. – O advogado fez uma pausa, fitando Chadwick nos olhos. – Em segundo lugar, o que vai se discutir é um estado de percepção da sua parte, um estado da mente, do que havia na mente de um homem

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em determinado momento, a existência do conhecimento e, portanto, da intenção, contra a ignorância e portanto a inocência da intenção. Está me entendendo?

– Acho que sim. Mas não preciso provar a minha inocência, não é mesmo? – Na realidade, será isso mesmo o que vai acontecer – disse o advogado. – Você

será o autor; o jornal, o editor e o Sr. Gaylord Brent seriam os réus. Você teria de provar que estava inocente de qualquer conhecimento da falta de escrúpulos da companhia agora liquidada, quando a ela se associou. Somente então ficaria demonstrado que você foi caluniado pela sugestão de que estava implicado numa atividade fraudulenta.

– Está me aconselhando a não processar o jornal? – indagou Chadwick. – Está realmente me sugerindo que devo aceitar ser tratado com uma porção de mentiras por um homem que nem se deu ao trabalho de conferir os fatos, antes de publicá-los? Acha mesmo que devo aceitar a ruína nos meus negócios sem me queixar?

– Vou ser muito franco, Sr. Chadwick. Comenta-se às vezes que os advogados costumam estimular os clientes a iniciar ações judiciais a torto e a direito, porque isso obviamente nos permite ganhar muito dinheiro em honorários. Na verdade, é o inverso que acontece, quase sempre. São geralmente os amigos, parentes e colegas do litigante que o instigam a lançar-se a uma ação judicial. O problema é que não são eles que vão arcar com os custos. Para quem está por fora, um bom caso no tribunal mais parece um circo. Mas nós, que exercemos a advocacia, conhecemos muito bem os custos de uma ação judicial.

Chadwick pensou por um instante na questão do custo da justiça, algo que raramente considerara antes.

– A quanto montam as custas de um processo? – Podem deixá-lo arruinado. – Sempre pensei que neste país todos os homens fossem iguais perante a lei. – Em teoria, sim. Na prática, porém, muitas vezes é totalmente diferente. É um

homem rico, Sr. Chadwick? – Não. Tenho uma pequena empresa. Isso significa que, atualmente, tenho de me

manter numa corda bamba, à beira da liquidez. Trabalhei duro durante toda a minha vida e consegui sobreviver. Tenho uma casa própria, um carro, roupas, um plano de pensão para autônomo, um seguro de vida, uns poucos milhares de libras de economias. Sou apenas um homem comum, obscuro.

É justamente o ponto a que estou querendo chegar. Hoje em dia, somente os ricos podem processar os ricos. E nunca no campo da calúnia, em que um homem pode vencer o caso, mas ser obrigado a pagar as próprias custas. Depois de um processo prolongado, para não falar de uma possível apelação, as custas podem ser dez vezes maiores do que a indenização concedida.

"Os grandes jornais, assim como as grandes editoras e outras empresas do ramo, sempre têm seguro contra os processos de calúnia. Podem contratar os melhores advogados. Assim, quando enfrentam... se me permite a expressão... um homem sem maior importância, não lhe dão a menor importância. Com um pouco de habilidade, pode-se protelar o julgamento de um processo até por cinco anos. E, durante todo esse tempo, as custas legais para os dois lados vão subindo incessantemente. Somente o preparativo do processo pode custar milhares e milhares de libras.

Se chega ao tribunal, o custo dispara rapidamente, pois os advogados cobram honorários e ainda pedem uma contribuição diária pelo seu trabalho. E o advogado pode também decidir que precisa de um auxiliar no caso.

– A quanto as custas podem montar? – perguntou Chadwick. – Para um processo prolongado, mesmo excluindo-se uma possível apelação, sobem

a várias dezenas de milhares de libras. E mesmo isso não é o fim. – O que mais devo saber?

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– Se você vencer, recebendo a indenização e as custas dos réus, isto é, do jornal, não haverá qualquer problema. Mas se o juiz não fizer qualquer determinação em relação às custas, o que costuma acontecer nos piores casos, você teria de arcar com as suas próprias custas. Se perder, o juiz pode atribuir-lhe as custas dos réus, além das suas. Mesmo que você ganhe, o jornal pode apelar. Isso acontecendo, você pode dobrar as custas. E mesmo que ganhe na apelação, se não houver uma decisão quanto às custas, ficaria completamente arruinado.

"Há também o problema do descrédito. Depois de dois anos, as pessoas há muito que já esqueceram o artigo original do jornal. O processo repete tudo, com uma enxurrada de matérias e alegações adicionais. Você pode ser o autor, mas o advogado do jornal se empenharia em destruir sua reputação, como um meio de defender o cliente. Atire bastante lama e alguma há de grudar. Já houve muitos homens, numerosos demais para mencioná-los, que ganharam os processos, mas acabaram com as reputações irremediavelmente prejudicadas. Todas as alegações apresentadas no tribunal podem ser publicadas sem a necessidade de serem comprovadas.

– E o que me diz da justiça gratuita? Como muitas pessoas, Chadwick já ouvira falar a respeito, mas nunca se preocupara

em saber como funcionava. – Provavelmente não é o que você está pensando. Para obtê-la, teria que demonstrar

que não dispõe de recursos. O que não se aplica ao seu caso. Antes de poder desfrutar da justiça gratuita, teria de perder a casa, o carro e todo o resto.

– Ou seja, seria também a ruína. – Lamento profundamente. Poderia encorajá-lo a iniciar uma ação judicial

prolongada e custosa. Mas, sinceramente, estou convencido de que o melhor conselho que posso dar-lhe

nestas circunstâncias é ressaltar os riscos de um processo. Muitas pessoas que entraram com o maior entusiasmo num litígio judicial viveram para se arrepender amargamente. Algumas pessoas nunca mais se recuperaram dos anos de tensão e preocupação financeira.

Chadwick levantou-se. – Foi bastante franco e eu agradeço. Mais tarde, naquele mesmo dia, Chadwick ligou de seu escritório para o Sunday

Courier e pediu para falar com o editor. Uma secretária atendeu. Em resposta a uma indagação dela, Chadwick deu seu nome.

– O que deseja falar com o Sr. Buxton? – Poderia marcar um encontro para falar-lhe pessoalmente? Houve um silêncio na linha e Chadwick ouviu um telefone interno ser usado. A

secretária voltou a falar-lhe: – Sobre o que deseja falar com o Sr. Buxton? Chadwick explicou rapidamente que queria se encontrar com o editor para explicar

o seu lado nas insinuações feitas por Gaylord Brent, num artigo publicado duas semanas antes.

– Lamento muito, mas o Sr. Buxton não pode receber no escritório todas as pessoas que desejam falar-lhe. Se fizer a gentileza de escrever uma carta, ele poderá conceder a atenção apropriada.

A secretária desligou. Na manhã seguinte, Chadwick pegou o metrô e foi para o centro de Londres, apresentando-se na recepção do Courier.

Preencheu um formulário diante de um funcionário uniformizado, informando seu nome, endereço, a pessoa com quem desejava falar e a natureza da visita. Levaram o formulário, enquanto ele sentava e começava a esperar.

Meia hora depois, a porta de um elevador se abriu e um jovem esbelto e elegante

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saiu, envolto por uma aura de loção pós-barba. Ergueu uma sobrancelha para a recepcionista, que acenou com a cabeça na direção de Bill Chadwick. O jovem adiantou-se. Chadwick se levantou.

– Sou Adrian St. Clair, o assistente pessoal do Sr. Buxton. Em que posso ajudá-lo? Chadwick falou sobre o artigo assinado por Gaylord Brent, disse que desejava

explicar pessoalmente ao Sr. Buxton que não era verdade o que fora escrito a seu respeito, além de ameaçá-lo com a ruína nos negócios. St. Clair mostrou-se pesaroso, mas não ficou muito impressionado.

– Claro que se pode compreender a sua preocupação, Sr. Chadwick. Mas, infelizmente, uma entrevista pessoal com o Sr. Buxton é impossível. Trata-se de um homem muito ocupado. Soube que um advogado já se comunicou com o editor, em seu nome.

– Foi escrita uma carta e a resposta era assinada por uma secretária – disse Chadwick. – Dizia apenas que talvez pudessem aceitar uma carta para a seção de correspondência. O que estou pedindo agora é que ele ouça pelo menos o meu lado da história.

St. Clair sorriu. – Já expliquei que isso é impossível. A carta ao editor é o máximo que podemos

admitir. – Neste caso, eu não poderia falar pessoalmente com o Sr. Gaylord Brent? – Não creio que isso seria conveniente. Se o seu advogado desejar nos escrever

novamente, tenho certeza de que a carta seria considerada por nosso departamento jurídico, como sempre acontece. Afora isso, nada mais poderei fazer para ajudá-lo.

O empregado uniformizado acompanhou Chadwick até as portas giratórias. Almoçou um sanduíche num café perto da Fleet Street, imerso em pensamentos. No

princípio da tarde, estava sentado numa das bibliotecas de referências que existem no centro de Londres, especializada em arquivos contemporâneos e recortes de jornais. Uma pesquisa dos processos recentes de calúnia revelou que o advogado não exagerara.

Havia um caso que deixou-o impressionado. Um homem de meia-idade fora profundamente caluniado num livro por um escritor em voga. Processara o escritor e ganhara, recebendo 30 mil libras como indenização, as custas devendo ser pagas pela editora. Mas a editora apelara e o Tribunal de Apelações suspendera a indenização e determinara que cada parte deveria pagar as suas próprias custas. Enfrentando a perspectiva de ruína financeira, depois de quatro anos de litígio, o autor levara o caso à Câmara dos Lordes. E os lordes revogaram a decisão do Tribunal de Apelações, concedendo-lhe a indenização, mas não fazendo qualquer determinação quanto às custas. Ele ganhara a indenização de 30 mil libras, mas depois de cinco anos tinha de pagar 45 mil libras de despesas com o processo. A editora tivera despesas iguais e mais a indenização, perdendo 75 mil libras. Só que a maior parte dessa quantia estava coberta pelo seguro. O autor ganhara o processo, mas estava arruinado pelo resto da vida. As fotografias mostravam-no no primeiro ano da ação judicial como um homem empertigado e vigoroso. Cinco anos depois, era um velho alquebrado, encovado e angustiado, atormentado pela tensão interminável e as dívidas crescentes. Morrera completamente falido, embora com a reputação restaurada.

Bill Chadwick decidiu que isso nunca lhe aconteceria. Foi para a Biblioteca Pública de Westminster. Retirou-se para uma sala de leitura com um exemplar das Leis da Inglaterra, de Halsbury.

Como seu advogado dissera, não havia qualquer estatuto legal escrito sobre a calúnia, como havia, por exemplo, uma Lei do Tráfego Rodoviário. Mas havia a Lei do Ato de Emeda de Calúnia, de 1888, proporcionando uma definição geral aceita do que constituía uma calúnia:

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"Uma acusação caluniosa ou difamatória é a declaração que tende a rebaixar uma pessoa na estima dos membros virtuosos da sociedade em geral, fazer com que seja repelido ou evitado, expô-lo ao ódio, desprezo ou ridículo, ou atribuir-lhe uma imputação absurda ou injuriosa em seu escritório, profissão, fé, ofício ou negócio."

"Essa última parte pelo menos se aplica para mim", pensou Bill Chadwick. Algo que o advogado dissera em sua dissertação sobre os tribunais não lhe saía da

cabeça: "Todas as alegações apresentadas no tribunal podem ser publicadas sem a

necessidade de serem comprovadas." Seria mesmo possível? Mas o advogado estava certo. A mesma lei de 1888 deixava isso bem claro.

Qualquer coisa que se diga durante uma sessão do tribunal pode ser publicada sem que repórter ou editor receiem um processo de calúnia, desde que o relato seja "justo, contemporâneo e acurado".

Chadwick pensou: "Deve ser para proteger os juízes, testemunhas, policiais, advogados e até mesmo os réus, que podem ficar com receio de declararem o que julgam ser verdade, independente do resultado do caso."

Essa isenção de qualquer reação por parte de qualquer pessoa, por mais que fosse insultada, difamada ou caluniada, desde que a alegação fosse apresentada num tribunal em sessão, assim como a isenção para quem publicasse as declarações, desde que o fizesse acuradamente, era o que se chamava de "privilégio absoluto".

No metrô, de volta aos subúrbios londrinos, o germe de uma idéia começou a se expandir na mente de Bill Chadwick.

Depois de quatro dias de pesquisa, finalmente descobriu que Gaylord Brent vivia numa rua elegante em Hampstead. Foi lá que Chadwick apresentou-se, na manhã do domingo seguinte.

Calculava que um jornalista de um jornal dominical não estaria trabalhando num domingo e contava com a sorte, esperando que a família Brent não tivesse ido passar o fim de semana no campo. Subiu os degraus e apertou a campainha.

Dez minutos depois, a porta foi aberta por uma mulher atraente e simpática, de trinta e poucos anos.

– O Sr. Brent está? – perguntou Chadwick, logo acrescentando, sem fazer qualquer pausa: – É sobre o artigo dele no Courier.

Não era mentira, mas o suficiente para convencer a Sra. Brent de que o visitante era do escritório na Fleet Street. Ela sorriu, virou-se e gritou "Gaylord". Voltou-se para Chadwick e disse:

– Ele virá recebê-lo dentro de um minuto. Ela se afastou, na direção dos gritos de crianças pequenas em algum lugar da casa,

deixando a porta aberta. Chadwick ficou esperando. Um minuto depois, Gaylord Brent apareceu na porta, de calça esporte clara e camisa

clara, um homem elegante, de 40 e poucos anos. – O que deseja? – É o Sr. Gaylord Brent? – Isso mesmo. Chadwick abriu o recorte que tinha na mão e suspendeu-o. – É sobre este artigo que escreveu no Sunday Courier. Gaylord Brent examinou o recorte por vários segundos, sem tocá-lo. Sua expressão

era de perplexidade, misturada com arrogância. – Esse artigo foi publicado há quatro semanas – disse ele. – Qual é o problema? – Lamento incomodá-lo numa manhã de domingo, mas parece que se trata de um

risco que todos devemos assumir. Caluniou-me neste artigo e o fez de uma maneira terrível.

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Prejudicou-me consideravelmente nos negócios e na vida social. A perplexidade permaneceu no rosto de Brent, mas foi substituída logo depois por

uma irritação crescente. – Quem diabos é você? – Oh, desculpe. Meu nome é William Chadwick. A compreensão finalmente estampou-se no rosto de Gaylord Brent, ao ouvir o

nome. A irritação dominou-o por completo. – Escute aqui, você não tem o direito de aparecer na minha casa para reclamar.

Deve seguir os canais apropriados. Peça ao seu advogado para escrever uma carta... – Já fiz isso, mas de nada adiantou. Também tentei falar com o editor, mas ele se

recusou a receber-me. Resolvi então vir procurá-lo pessoalmente. – Mas isso é inadmissível! – exclamou Gaylord Brent, fazendo menção de fechar a

porta. – É que eu tenho uma coisa para você – explicou Chadwick, suavemente. Brent ficou imóvel. – O que é? – Isto. Chadwick levantou a mão direita e acertou um soco no nariz de Gaylord Brent, um

golpe firme, embora não muito violento. Não era um soco que pudesse fraturar um osso ou sequer afetar a cartilagem, mas fez com que Gaylord Brent recuasse um passo e soltasse um grito de espanto, levando a mão ao nariz. As lágrimas afloraram a seus olhos e ele fungou, reprimindo o primeiro filete de sangue. Ficou olhando aturdido para Chadwick por um segundo, como se estivesse diante de um louco, batendo com a porta em seguida. Chadwick ouviu passos se afastando rapidamente pelo vestíbulo.

Ele encontrou um guarda na esquina de Heath Street, um jovem que parecia apreciar a tranqüilidade da manhã fria de domingo, embora estivesse visivelmente entediado. Chadwick abordou-o.

– Seu guarda, é melhor me acompanhar. Acaba de ser cometida uma agressão contra um morador local.

O jovem guarda empertigou-se. – Uma agressão, senhor? Onde? – A duas ruas daqui. Acompanhe-me, por favor. Sem esperar, para não dar tempo de haver mais perguntas, Chadwick virou-se e

voltou apressadamente pelo caminho que acabara de percorrer. Por trás dele, ouviu o guarda falando pelo rádio portátil e o barulho das botas na calçada.

O guarda emparelhou com Chadwick na esquina da rua em que residia a família Brent. Para evitar mais perguntas, Chadwick acelerou os passos, ao mesmo tempo em que dizia:

– É aqui, seu guarda, no número 23. A porta estava fechada quando lá chegaram. Chadwick apontou-a e disse: – Lá dentro. Depois de uma pausa, com um olhar desconfiado para Chadwick, o guarda subiu os

degraus e apertou a campainha. Chadwick foi juntar-se a ele no último degrau. A porta foi aberta, cautelosamente. A Sra. Brent apareceu, arregalando os olhos ao deparar com Chadwick. Antes que o guarda pudesse falar qualquer coisa, Chadwick apressou-se em falar.

– Será que este guarda poderia falar por um momento com seu marido, Sra. Brent? Ela acenou com a cabeça e afastou-se rapidamente pelo interior da casa. Chadwick

e o guarda puderam ouvir uma conversa sussurrada lá dentro. As palavras "polícia" e "aquele homem" soaram perfeitamente nítidas. Depois de um minuto, Gaylord Brent

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apareceu na porta. Com a mão esquerda, comprimia uma toalha de prato úmida contra o nariz. E fungava repetidamente.

– O que é agora? – Esse é o Sr. Gaylord Brent – disse Chadwick. – É mesmo o Sr. Gaylord Brent? – perguntou o guarda. – Sou, sim. – Há poucos minutos – disse Chadwick – o Sr. Brent foi deliberadamente

esmurrado no nariz. – É verdade? – perguntou o guarda a Brent. – É, sim – respondeu Brent, lançando um olhar furioso para Chadwick. – Estou entendendo – murmurou o guarda, embora obviamente não estivesse. – E

quem fez isso? – Fui eu – respondeu Chadwick. O guarda virou-se para ele, com uma expressão de total incredulidade. – Como disse? – Fui eu que acertei um soco no nariz do Sr. Brent. Trata-se de uma agressão

comum, não é mesmo? – É verdade? – perguntou o guarda a Brent. O rosto por trás da toalha assentiu. – Posso saber por quê? perguntou o guarda a Chadwick. – Estou disposto a explicar tudo num depoimento, mas só quando chegar à

delegacia. O guarda ficou completamente atordoado e demorou um pouco para tornar a falar: – Está bem, senhor. Neste caso, devo pedir-lhe que me acompanhe à delegacia. A esta altura, havia um carro da polícia na Heath Street, chamado pelo guarda cinco

minutos antes. Ele falou rapidamente com os dois colegas uniformizados que estavam no carro, embarcando em seguida no banco traseiro, junto com Chadwick. O carro levou-os à delegacia local em apenas dois minutos. Chadwick foi conduzido à presença do sargento de plantão.

Permaneceu em silêncio, enquanto o jovem guarda explicava ao sargento o que acontecera. O sargento, um homem de meia-idade, veterano, paciente, olhou para Chadwick com algum interesse.

– Quem é o homem que você agrediu? – Gaylord Brent. – Não gosta dele, não é mesmo? – Não muito. – Por que se apresentou ao guarda e contou o que acabara de fazer? Chadwick deu de ombros. – Não é a lei? Uma violação da lei foi cometida e a polícia devia ser informada. – É assim que se deve pensar. – O sargento virou-se para o guarda. – O Sr. Brent

ficou muito ferido? – Parece-me que não. Não deve ter sido mais que um golpe de leve no nariz. O sargento suspirou. – Qual é o endereço? O guarda forneceu-o e o sargento acrescentou: – Fiquem esperando aqui. Ele retirou-se para uma sala nos fundos. O telefone de Gaylord Brent não constava

na lista, mas o sargento obteve-o na companhia sem qualquer dificuldade. Fez a ligação. Depois de algum tempo, voltou à frente da delegacia, informando:

– O Sr. Gaylord Brent não está muito ansioso em apresentar uma queixa.

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– Não é isso que importa – disse Chadwick. – Não compete ao Sr. Brent apresentar uma queixa.

Não estamos na América. O fato é que uma agressão foi cometida, violando as leis desta terra.

Compete à polícia decidir se vai ou não formular uma acusação. O sargento fitou-o com evidente antipatia. – Entende um bocado de leis, não é mesmo, senhor? – Já li alguma coisa. – Não é o que todos fazemos? – O sargento tornou a suspirar. – Pois a polícia pode

resolver não levar o caso adiante. – Se é assim, não me resta alternativa, a não ser informá-lo que voltarei àquela casa

e repetirei a agressão. Lentamente, o sargento puxou um bloco de formulários pela mesa, dizendo: – Isso encerra a questão. Nome? Bill Chadwick forneceu seu nome e endereço, foi levado à sala de indiciação.

Recusou-se a prestar depoimento, dizendo apenas que gostaria de explicar o seu ato ao magistrado, quando chegasse o momento devido. Tais palavras foram datilografadas e ele assinou por baixo. Foi formalmente indiciado, sendo a fiança fixada em cem libras pelo sargento. Foi intimado a comparecer perante os magistrados de North London na manhã seguinte, retirando-se em seguida.

Na manhã seguinte, Chadwick compareceu ao tribunal. A audiência demorou apenas dois minutos. Ele se recusou a apresentar qualquer alegação, sabendo que tal recusa seria interpretada pelo tribunal como uma indicação de possível alegação de inocência numa audiência posterior. A nova audiência foi marcada para duas semanas depois e a fiança renovada em cem libras. Como se tratava de uma simples audiência preliminar, o Sr. Gaylord Brent não precisara comparecer ao tribunal. Como se tratava de uma acusação de agressão comum, não houve mais que duas linhas de notícia num jornal local. Ninguém no distrito em que Bill Chadwick morava, a quilômetros de distância, lia aquele jornal. Assim, ninguém soube.

Na semana anterior à audiência, houve diversos telefonemas anônimos para as redações dos principais jornais diários, matutinos e vespertinos, assim como os jornais dominicais, da Fleet Street e arredores.

O homem que telefonava avisava ao chefe de reportagem que o astro da reportagem investigativa do Courier, Gaylord Brent, iria comparecer ao tribunal de North End na segunda-feira seguinte, envolvido num caso de agressão, Regina versus Chadwick. Poderia haver acontecimentos inesperados na audiência e era melhor que o chefe de reportagem enviasse o seu próprio homem para fazer a cobertura, ao invés de se basear exclusivamente no noticiário do serviço jornalístico do tribunal, mantido pela Associação de Imprensa.

A maioria dos chefes de reportagem conferiu a lista de julgamentos para aquele dia, constatou que o nome Chadwick realmente lá estava e enviou um repórter. Ninguém sabia o que estava para acontecer, mas todos esperavam o melhor. Como acontece no movimento sindical, a teoria da camaradagem na Fleet Street acaba muito aquém da solidariedade, na prática.

Bill Chadwick apresentou-se no tribunal às 10 horas da manhã em ponto e pediram-lhe que aguardasse, até que o seu caso entrasse em julgamento. O que aconteceu, cerca de 15 minutos depois das 11 horas. Ao entrar na sala do tribunal, lançou um olhar rápido para a bancada de imprensa, constatando que estava lotada. Não notara que Gaylord Brent, convocado como testemunha, estava sentado impacientemente fora da sala do tribunal, num dos bancos do corredor. Pela lei britânica, nenhuma testemunha pode entrar no recinto do tribunal enquanto não for convocada para depor. Somente após o depoimento é que pode se

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sentar nos fundos do tribunal e escutar o resto da audiência. Isso provocou um momento de perplexidade em Chadwick. Ele resolveu o dilema declarando que era inocente.

Chadwick rejeitou a sugestão obrigatória do juiz de que o julgamento poderia ser adiado, até que ele contasse com um advogado. Explicou que desejava fazer a sua própria defesa. O juiz não podia deixar de concordar.

O promotor expôs os fatos do caso, ou pelo menos os que eram conhecidos. Algumas sobrancelhas se levantaram de surpresa quando ele disse que fora o próprio Chadwick quem procurara o Guarda Clarke em Hampstead, naquela manhã, com a notícia da agressão. Sem mais comentários, convocou o Guarda Clarke para prestar depoimento.

O jovem guarda prestou juramento e depois relatou a ocorrência da prisão. Chadwick foi convidado a reinquirir a testemunha, mas recusou. Foi instado outra vez, tornou a recusar. O Guarda Clarke foi dispensado, indo sentar-se nos fundos do tribunal. Gaylord Brent foi convocado. Depois que ele prestou juramento, Chadwick levantou-se e disse ao juiz, em voz clara e firme:

– Meritíssimo, estive pensando a respeito e gostaria de mudar minha alegação. Declaro-me culpado.

O juiz ficou aturdido. O promotor, que se levantara para interrogar a testemunha, tornou a sentar-se.

No banco das testemunhas, Gaylord Brent permaneceu em silêncio. – Tem certeza de que é isso mesmo o que quer, Sr. Chadwick? – perguntou o juiz. – Tenho sim, meritíssimo. Certeza absoluta. – Tem alguma objeção, Sr. Cargill? – perguntou o juiz ao promotor. – Não tenho qualquer objeção, meritíssimo. Devo presumir que o réu não mais

contesta os fatos do caso que apresentei. – Claro que não contesto – declarou Chadwick. – Foi exatamente o que aconteceu. O juiz virou-se para Gaylord Brent. – Lamento o incômodo, Sr. Brent, mas parece que não será mais necessário como

testemunha. Pode ir embora ou sentar-se no fundo do tribunal. Gaylord Brent acenou com a cabeça e deixou o banco das testemunhas. Trocou

outro aceno com a bancada da imprensa e foi se sentar no fundo, perto do guarda que já prestara depoimento. O juiz virou-se para Chadwick.

– Sr. Chadwick, mudou a sua declaração para culpado. Isso significa que admite a agressão ao Sr. Brent. Deseja chamar alguma testemunha em sua defesa?

– Não, meritíssimo. – Pode chamar uma testemunha de caráter, se desejar. Ou prestar depoimento

pessoalmente, apresentando circunstâncias atenuantes. – Não desejo chamar qualquer testemunha, meritíssimo. Quanto a circunstâncias

atenuantes, quero fazer uma declaração oficialmente. – É seu privilégio e direito. Chadwick, que estava de pé para se dirigir ao juiz, tirou do bolso um recorte

dobrado. – Meritíssimo, há seis semanas o Sr. Gaylord Brent publicou este artigo no jornal

em que trabalha, o Sunday Courier. Agradeceria se o meritíssimo o lesse. Um meirinho se levantou, foi pegar o recorte e levou-o para o juiz, que perguntou: – Este artigo tem alguma relação com o caso que está sendo julgado neste tribunal? – Posso lhe assegurar que tem, meritíssimo. – Está certo. O juiz pegou o recorte e leu-o rapidamente. Ao terminar, olhou novamente para

Chadwick e disse:

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– Continue. – Neste artigo, Gaylord Brent perpetrou contra mim uma calúnia insidiosa e

altamente prejudicial. Deve ter observado, meritíssimo, que o artigo versa sobre uma empresa comercial

que entrou em liquidação, prejudicando a muitas pessoas. Infelizmente, fui uma dessas pessoas iludidas pela referida companhia. Acreditei, como tantos outros, que se tratava de uma companhia sólida, vendendo um produto que merecia toda a confiança. A verdade é que também perdi dinheiro por esse engano. Mas não passou de um engano. Nesse artigo, fui vilmente acusado de alguma cumplicidade indefinida no escândalo, acusado por um jornalista mercenário, desleixado, preguiçoso e incompetente, que nem mesmo se dá ao trabalho de fazer as coisas da maneira certa.

Murmúrios de espanto espalharam-se pelo tribunal e depois houve um momento de silêncio. Em seguida, os lápis na bancada de imprensa deslizaram freneticamente pelos blocos. O promotor levantou e indagou:

– Isso é realmente necessário para as circunstâncias atenuantes, meritíssimo? Chadwick tratou de intervir: – Posso lhe assegurar, meritíssimo, que estou apenas tentando explicar os

antecedentes do caso. Acho que o meritíssimo poderá julgar melhor o meu ato ilegal, se compreender os motivos que me levaram a isso.

O juiz olhou em silêncio para Chadwick por um instante, antes de dizer: – O réu está certo. Pode continuar. – Obrigado, meritíssimo. Como eu estava dizendo, esse suposto repórter

investigativo nem se deu ao trabalho de entrar em contato comigo, antes de escrever tanto lixo. Eu poderia ter-lhe mostrado todos os meus arquivos, contas e declarações bancárias, para demonstrar, sem a menor sombra de dúvida, que fui tão iludido e prejudicado quanto os compradores. E que tive prejuízos vultosos. Mas ele não podia se dar ao trabalho de entrar em contato comigo, embora meu nome conste da lista telefônica. Parece que por trás do verniz de pretensão, esse impávido repórter é mais propenso a dar ouvidos a conversas de bar do que a conferir os fatos...

Gaylord Brent, o rosto pálido de indignação, levantou-se no fundo do tribunal. – Ei, espere um pouco... – Silêncio! – gritou o meirinho, também se levantando. – Silêncio no tribunal! O magistrado disse para o réu, solenemente: – Posso compreender o seu sentimento de raiva, Sr. Chadwick, mas gostaria de

saber o que isso tem a ver com as circunstâncias atenuantes. – Meritíssimo – disse Chadwick, humildemente – apelo para o seu senso de justiça.

Quando um homem levou uma vida pacífica, respeitando as leis, mas subitamente agride outro ser humano, claro que é pertinente compreender os motivos para um ato tão inesperado. Posso presumir que isso deve afetar o julgamento do homem cujo dever é determinar uma sentença?

– Está bem, explique seus motivos – disse o juiz. – Mas, por favor, modere sua linguagem.

– Pois não, meritíssimo. Depois da publicação dessa mixórdia de mentiras, disfarçada com jornalismo sério, meus negócios foram bastante afetados. Era evidente que algumas pessoas com quem me relacionava, ignorando que as supostas denúncias do Sr. Gaylord Brent derivam menos de uma investigação e mais do fundo de uma garrafa de uísque, estavam até dispostas a acreditarem na calúnia.

No fundo do tribunal, Gaylord Brent estava fora de si. Cutucou o guarda a seu lado e sussurrou:

– Ele não pode escapar impune com uma coisa assim, não é mesmo?

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– Fique quieto – sussurrou o guarda. Brent se levantou. – Meritíssimo, eu gostaria de dizer... – Silêncio! – gritou o meirinho. – Se houver mais algum tumulto no recinto deste tribunal – declarou o juiz –

determinarei que o responsável seja removido. – Como pode imaginar, meritíssimo, comecei a pensar numa porção de coisas –

continuou Chadwick. – Perguntei-me com que direito um palhaço mal-informado, preguiçoso demais para verificar suas alegações, pode esconder-se por trás dos recursos legais e financeiros proporcionados por um grande jornal, dispondo-se, com tais vantagens, a arruinar um homem comum e sem qualquer importância, que nunca se deu ao trabalho de conhecer, um homem que trabalhou arduamente por toda a sua vida e sempre com o máximo de honestidade.

– Há outros recursos para uma suposta calúnia – comentou o juiz. – Tem razão, meritíssimo. Mas, como um homem da lei, deve saber que atualmente

são bem poucos os que podem arcar com o imenso fardo de tentar desafiar todo o poderio de um jornal de circulação nacional. Assim, tentei falar com o editor, a fim de explicar, com fatos e documentos, que seu empregado se enganara redondamente e nem ao menos fizera qualquer tentativa para ser acurado. Ele recusou-se a me receber. Por isso, fui procurar Gaylord Brent pessoalmente. Como não me deixaram vê-lo no jornal, fui procurá-lo em sua residência.

– Para esmurrá-lo no nariz? – interveio o juiz. – Pode ter sido gravemente caluniado, mas a violência nunca pode ser a resposta.

– Oh, meritíssimo, claro que não era essa a minha intenção! – disse Chadwick prontamente, parecendo surpreso. – Não fui até lá para agredi-lo e sim para tentar argumentar. Pedir-lhe que examinasse as provas, demonstrando cabalmente que tudo o que escrevera a meu respeito era inverídico.

– Ah... – murmurou o juiz, interessado. – O motivo, finalmente. Foi até a casa dele para fazer um apelo?

– Isso mesmo, senhor. Ele estava tão consciente quanto o promotor de que não prestara juramento e por

isso não podia ser reinquirido. – E por que não argumentou com ele? – indagou o juiz. Os ombros de Chadwick vergaram. – Bem que tentei, meritíssimo. Mas ele tratou-me com o mesmo desdém com que

eu fora recebido nos escritórios do jornal. Ele sabia que eu era pequeno demais, um homem sem qualquer importância, que não poderia enfrentar o poderoso Courier.

– O que aconteceu então, Sr. Chadwick? – Confesso que alguma coisa dentro de mim se rompeu, meritíssimo. Cometi um

ato imperdoável. Acertei-lhe um golpe no nariz. Por apenas um instante, em toda a minha vida, perdi o controle.

Chadwick sentou-se. O juiz correu os olhos pelo tribunal, pensando: "Tenho certeza de que perdeu o controle, meu amigo, da mesma forma como um Concorde voa impulsionado por elásticos."

O juiz não podia deixar de recordar um incidente que ocorrera anos antes, quando fora violentamente atacado pela imprensa, por causa de um julgamento em outro tribunal. Sua raiva aumentara porque mais tarde ficara comprovado que estava certo. Em voz alta, o juiz disse:

– Este é um caso muito grave. O tribunal deve aceitar que sentiu ter sido vítima de um erro e que não seguiu de sua casa para Hampstead naquela manhã com a violência em

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mente. Não obstante, agrediu o Sr. Brent na porta da casa dele. Como uma sociedade, não podemos permitir que cidadãos particulares sintam-se no direito de sair pelas ruas a agredir os jornalistas eminentes do país. Está multado em cem libras e as custas são fixadas em 50 libras.

Bill Chadwick preencheu o cheque, enquanto a bancada de imprensa se esvaziava, os repórteres correndo para telefones e táxis. Ao descer a escadaria do prédio do tribunal, Chadwick foi agarrado pelo braço.

Virou-se para deparar com Gaylord Brent, pálido de raiva e tremendo de choque. – Seu miserável, não pode escapar impune com o que disse lá dentro! – Claro que posso – respondeu Chadwick. – Falando oficialmente, no tribunal,

posso dizer tudo o que quiser, sem que nada me aconteça. É o que se chama de privilégio absoluto.

– Mas não sou todas aquelas coisas de que me chamou! – protestou o jornalista. – Não pode falar tais coisas de um homem!

– Por que não? – disse Chadwick suavemente. – Foi justamente o que você fez. DEVER* * Já me foi apontado que esta história não está de acordo com as outras que se

encontram nesta coletânea e, na verdade, não se enquadra em qualquer categoria conhecida. É pura idiossincrasia da minha parte, mas resolvi inclui-la mesmo assim. Foi-me contada por um amigo irlandês e ele jurou que era absolutamente verdadeira e lhe acontecera. Por esse motivo, ao contrário do que ocorre com as outras histórias, resolvi relatá-la na primeira pessoa. (N. do A.)

O motor do carro estava rateando há mais de três quilômetros e quando finalmente

começou a morrer foi numa subida íngreme e sinuosa. Rezei a todos os meus santos irlandeses para que não enguiçasse ali, deixando-me perdido em meio às belezas selvagens do interior da França.

Ao lado, Bernadette lançava-me olhares alarmados, enquanto eu me debruçava sobre o volante, calcando o acelerador e tentando arrancar as últimas reservas de energia do motor que engasgava. Era evidente que alguma coisa estava errada por baixo do capô e eu era o homem mais ignorante do mundo naqueles mistérios tecnológicos.

O velho Triumph Mayflower mal conseguiu chegar ao topo do morro, quando finalmente tossiu pela última vez e depois ficou em silêncio. Desliguei a ignição, puxei o freio de mão e saltei do carro. Bernadette saltou também e veio postar-se ao meu lado. Ficamos olhando para o outro lado do morro, contemplando a estradinha rural que descia para o vale.

Era inegavelmente uma paisagem deslumbrante, ao final daquela tarde de verão, no início dos anos 50. Aquela região de Dordogne ainda não fora "descoberta" inteiramente naquele tempo... pelo menos para o chamado smart set. Era uma região rural da França que pouco mudara ao longo dos séculos. Não havia chaminés de fábricas ou torres de transmissão de energia elétrica apontando para o céu, não havia auto-estradas abrindo uma cicatriz pelo vale verdejante.

Pequenos povoados se aninhavam ao lado de caminhos estreitos, subsistindo dos campos ao redor, dos quais as colheitas eram trazidas em rangentes carroças de madeira, puxadas por parelhas de bois. Era essa região que Bernadette e eu decidíramos explorar em nossa excursão daquele ano, as primeiras férias no exterior; isto é, além da Irlanda e

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Inglaterra. Peguei o mapa rodoviário no carro, examinei-o e apontei para um ponto ao norte do

vale do Dordogne. – Estamos mais ou menos aqui... ou pelo menos é o que imagino. Bernadette estava espiando atentamente pela estrada à nossa frente. – Há uma aldeia lá embaixo. Acompanhei o olhar dela. – Tem razão. Podia-se avistar a torre de uma igreja entre as árvores, assim como um trecho de um

telhado de celeiro. Olhei em dúvida para o carro e depois para a estrada. – Acho que podemos chegar lá embaixo sem o motor, mas não conseguiremos ir

além. – É melhor do que passar a noite inteira aqui – comentou a minha cara-metade. Voltamos ao carro. Pus em ponto morto, apertei a embreagem e soltei o freio de

mão. O Mayflower começou a descer lentamente, depois foi adquirindo velocidade. Num estranho silêncio, fomos descendo pela colina, na direção da torre distante.

A força da gravidade levou-nos até os arredores do que descobrimos ser um pequeno povoado, de duas dúzias de construções. O impulso do carro levou-nos até o meio da rua da aldeia. O carro tornou a parar. Saltamos outra vez. O crepúsculo já estava baixando.

A rua parecia estar inteiramente vazia. Junto à parede de tijolos de um estábulo, uma galinha solitária ciscava na terra. Havia duas carroças de feno abandonadas, os eixos caídos na terra, à beira da estrada. Era evidente que os donos estavam em algum outro lugar. Eu já tomara a decisão de bater numa das casas e tentar explicar, apesar da minha completa ignorância da língua francesa, o apuro em que nos encontrávamos, quando um vulto emergiu de trás da igreja, a cem metros de distância, avançando em nossa direção.

Quando chegou mais perto, percebi que era o padre da aldeia. Naquele tempo, os padres ainda usavam a batina preta comprida, a faixa na cintura e o chapéu de aba larga. Procurei me lembrar da palavra em francês com que deveria chamá-lo. Não consegui. Assim, quando ele chegou mais perto, falei em inglês, mesmo:

– Padre. Foi o bastante. Ele parou, virou em nossa direção, sorrindo inquisitivamente.

Apontei para o carro. Ele ficou radiante, acenou com a cabeça, como a dizer "Belo carro". Como explicar-lhe que eu não era o orgulhoso proprietário procurando admiração por seu carro, mas sim um turista que estava com o seu veículo enguiçado?

O recurso era o latim, pensei. Era um padre idoso, mas devia lembrar ainda um pouco de latim dos tempos do seminário. Mais importante do que isso, será que eu poderia recordar? Vasculhei o cérebro. Os Irmãos Cristãos haviam passado anos tentando me incutir um pouco de latim.

Mas, além da missa, eu nada usara de latim desde então... e nos missais não há referências suficientes aos problemas de Triumphs enguiçados.

Apontei para o capô do carro e disse: – Currus meus fractus est. A expressão significa na verdade "Minha carruagem está quebrada". Mas,

aparentemente, deu certo. Uma expressão comprensiva estampou-se no rosto redondo do padre.

– Ah, est fractus currus teus, filius meus? – In veritate, Pater meus. Ele pensou por um momento e depois fez sinal para que ficássemos ali, à sua

espera. Afastou-se apressadamente pela rua e entrou num prédio que mais tarde descobri ser

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o café da aldeia, evidentemente o centro da vida local. Deveria ter pensado nisso antes. O padre voltou poucos minutos depois, acompanhado por um homem grandalhão,

que usava calça de lona azul e uma camisa típica de camponês. As sandálias de solas de corda se esfregavam pela terra, enquanto avançava em nossa direção, acompanhando o padre.

Quando chegou perto de nós, o padre desatou a falar rapidamente, em francês, gesticulando para o carro, apontando para um lado e outro da rua. Tive a impressão de que ele estava dizendo a seu paroquiano que o carro não podia ficar bloqueando o caminho durante a noite inteira. Sem dizer nada, o camponês acenou com a cabeça e tornou a se afastar. O padre, Bernadette e eu ficamos sozinhos, de pé, ao lado do carro. Bernadette foi se sentar à beira da estrada, em silêncio.

Os que já passaram algum tempo esperando que qualquer coisa desconhecida aconteça, na presença de alguém com quem não se pode trocar uma só palavra, podem saber qual é a sensação. Acenei com a cabeça e sorri. O padre acenou com a cabeça e sorriu. Ambos acenamos com a cabeça e sorrimos. O padre finalmente rompeu o silêncio:

– Anglais? Sacudi a cabeça, pacientemente. Um dos fardos do irlandês é passar pela história

sendo confundido com o inglês. – Irlandais – respondi, esperando estar pronunciando direito. O rosto do padre prontamente se iluminou. – Ah, hollandais. Tornei a sacudir a cabeça. Peguei-lhe o braço, levei-o à traseira do carro e apontei.

O adesivo no lado apresentava as letras maiúsculas, preto sobre branco, IRL. Ele sorriu, como se estivesse lidando com uma criança difícil:

– Irlandais? Assenti e sorri. – Irlande? Mais acenos de cabeça e sorrisos da minha parte. – Partie d'Angleterre. Suspirei. Há algumas lutas que não se pode vencer e aquele não era o momento nem

o lugar apropriados para explicar ao bom padre que a Irlanda, graças em parte aos sacrifícios do pai e do tio de Bernadette, não era parte da Inglaterra.

Àquela altura, o camponês emergiu de uma viela estreita, entre dois estábulos de paredes de tijolos, em cima de um trator velho e resfolegante. Num mundo de charretes puxadas por cavalos e carroças puxadas por bois, podia muito bem ser o único trator da aldeia. Só que o motor parecia apenas um pouco melhor do que o motor do Mayflower, um instante antes de enguiçar.

Mas o trator veio descendo a rua ruidosamente e parou diante do meu carro. Com uma corda grossa, o fazendeiro de azul prendeu meu carro ao gancho de

reboque do trator. O padre indicou que deveríamos entrar no carro. Dessa forma, com o padre andando ao nosso lado, fomos rebocados pela rua, viramos uma esquina e entramos num pátio.

Na escuridão que se adensava, pude divisar uma placa descascando, por cima do que parecia ser outro estábulo de tijolos. Dizia "Garage". O prédio estava evidentemente fechado e trancado.

O padre apontou para o relógio e a garagem trancada. Indicou que abriria às sete horas da manhã seguinte. quando então o mecânico ausente veria qual era o problema com o meu carro.

– E o que vamos fazer até lá? – sussurrou-me Bernadette. Atraí a atenção do padre, uni as palmas das mãos e encostei no lado do rosto,

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inclinando a cabeça, no gesto internacional de quem deseja dormir. O padre compreendeu. Iniciou-se outra conversa rápida entre o padre e o camponês. Não consegui entender

nada, mas vi o camponês levantar um braço e apontar. Pude apreender a palavra "Preece", que nada significava para mim. O padre acenou com a cabeça em concordância. Depois, virou-se para mim e indicou que deveríamos pegar uma valise no carro e subir na plataforma traseira do trator, segurando-nos firmemente, com as suas mãos.

Foi o que fizemos. O trator fez a manobra no pátio e saiu para a estrada. O bondoso padre acenou em despedida. Foi a última vez que o vimos. Sentindo-nos profundamente ridículos, lá fomos nós, lado a lado, na plataforma traseira do trator, eu segurando uma valise com roupas numa das mãos.

O silencioso tratorista foi seguindo pela estrada no outro lado da aldeia, atravessou um córrego, subiu outra colina. Perto do topo, entrou no pátio de uma fazenda, cuja superfície era uma mistura de poeira de verão e pilhas de estrume. Foi parar perto da porta da casa da fazenda e indicou que saltássemos. O motor continuou ligado, fazendo o maior barulho.

O camponês encaminhou-se para a porta e bateu. Um minuto depois, uma mulher baixa, de meia-idade, usando um avental, abriu a porta, ficando emoldurada pela luz do lampião às suas costas. O homem falou com ela, apontando para nós. Ela acenou com a cabeça. O camponês, satisfeito, voltou ao trator e apontou-nos a porta aberta. E depois foi embora.

Enquanto os dois conversavam, eu correra os olhos pelo pátio da fazenda, aproveitando o que ainda restava da luz do dia. Era típico de muitos que eu já vira, uma pequena fazenda, com um pouco de tudo. Havia um pequeno estábulo para vacas, outro para cavalos e bois, um cocho de madeira ao lado de uma bomba manual, uma pilha de fertilizante misturado, com que as galinhas subsistiam. Tudo parecia velho e descorado pelo sol, nada havia de moderno, nada havia de eficiente. Era a típica pequena propriedade rural francesa, como centenas de milhares de outras, constituindo a espinha dorsal da economia agrícola da nação.

Em algum lugar além das nossas vistas soava o barulho ritmado de um machado subindo e descendo, cravando-se na madeira, o rangido das achas se partindo. Alguém estava aprontando a lenha para os fogos de inverno que ainda estava para chegar. A mulher na porta fazia sinal para que entrássemos.

Podia haver uma sala de visita ou de estar, como quer que se queira chamar, mas fomos levados para a cozinha, que era evidentemente o centro da vida familiar, um cômodo de lajes de pedra, contendo uma pia, mesa de jantar e duas poltronas velhas, diante da lareira aberta. Outra bomba manual, perto da pia de pedra, indicava que toda a água vinha do poço. A iluminação era proporcionada por um lampião de parafina. Larguei a valise no chão.

Nossa anfitriã era adorável, o rosto redondo, as faces coradas, cabelos grisalhos presos num coque, as mãos calejadas do trabalho, vestido cinza comprido, avental branco, um sorriso jovial de boas-vindas. Apresentou-se como Madame Preece e demos os nossos nomes, que ela não conseguiu pronunciar. Era evidente que a conversa ficaria limitada a mais acenos e sorrisos, mas senti-me grato por ter um lugar em que passar a noite, levando-se em consideração a nossa precária situação na colina, uma hora antes.

Madame Preece indicou que Bernadette gostaria de ir ao quarto para lavar-se; ao que parecia, tais delicadezas não eram necessárias para mim. As duas mulheres desapareceram no segundo andar, levando a valise. Fui até a janela, que estava aberta para o ar quente do princípio da noite. Dava para outro pátio, nos fundos da casa, onde havia uma carroça entre o mato, perto de um pequeno galpão de madeira. Uma cerca de estacas saía desse galpão e se estendia por alguma distância, com cerca de um metro e meio de altura.

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Acima da cerca, dava para se ver um machado grande subir e descer, ouvindo-se o barulho da lenha sendo cortada.

Bernadette desceu dez minutos depois, parecendo refrescada, tendo se lavado numa bacia de porcelana, a água fria tirada de um vaso de pedra. A água caindo da janela superior para o pátio explicava o estranho barulho que eu ouvira pouco antes. Levantei as sobrancelhas e Bernadette disse:

– É um quarto muito simpático. Madame Preece, que estava observando, ficou radiante e acenou com a cabeça.

Nada compreendera, mas aprovava o tom. Bernadette acrescentou, com o mesmo sorriso jovial:

– Espero que não haja bichos. Eu receava que pudesse haver. Minha mulher sempre sofreu terrivelmente com

pulgas e mosquitos, que produzem imensos caroços em sua alva pele céltica. Madame Preece gesticulou para que sentássemos nas velhas poltronas, o que fizemos. Ficamos conversando em voz baixa, enquanto ela se ocupava nos preparativos para o jantar. Alguma coisa de cheiro apetitoso estava sendo cozinhada. O odor aguçou-me o apetite.

Dez minutos depois, ela gesticulou para que sentássemos à mesa. Colocou à nossa frente tigelas de porcelana, colheres de sopa e um pedaço de pão branco para cada um, comprido e delicioso. Finalmente, colocou uma imensa terrina no centro da mesa, da qual emergia o cabo de uma concha de aço. Indicou que deveríamos nos servir.

Servi a Bernadette uma porção do que era uma sopa de legumes, grossa, nutritiva e saborosa, à base de batatas, suficiente para saciar o apetite de qualquer um, o que era ótimo para nós.

Aquele era o jantar. Estava tão gostoso que Bernadette e eu acabamos repetindo três vezes.

Ofereci-me para servir a Madame Preece, mas ela não aceitou. Obviamente, não era esse o costume.

– Servez-vouz, monsieur, servez-vouz. Assim, enchi a minha tigela até a borda e tratamos de comer. Não se haviam

passado cinco minutos quando cessou o barulho de cortar lenha. Segundos depois, a porta dos fundos foi empurrada e o fazendeiro entrou para o jantar. Levantei-me para cumprimentá-lo, enquanto Madame Preece falava rapidamente, explicando a nossa presença. Como ele não demonstrasse o menor interesse por dois estranhos à sua mesa de jantar, tornei a sentar-me.

Era um homem imenso, a cabeça quase roçando o teto da cozinha. Arrastava-se mais do que andava, dando imediatamente a impressão... mais tarde confirmada... de uma força enorme, aliada a uma inteligência um tanto lerda.

Devia ter 60 anos de idade, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos, e os cabelos grisalhos eram cortados bem curtos. Notei que tinha as orelhas pequenas e redondas e que os olhos, contemplando-nos sem qualquer brilho de saudação, eram azuis, vazios, inocentes.

O gigante sentou-se em sua cadeira habitual, sem dizer uma única palavra. A mulher serviu-lhe a sopa imediatamente, enchendo a tigela até quase transbordar. As mãos dele estavam escuras de terra e, pelo que se podia imaginar, de outras substâncias. Mas ele não fez qualquer menção de lavá-las. Madame Preece tornou a sentar-se, lançou-nos outro sorriso jovial e presenteou-nos com outro aceno de cabeça. Continuamos a comer. Pelo canto dos olhos, observei o fazendeiro encher a boca com colheradas rápidas de sopa, acompanhadas por imensos nacos de pão.

Não houve qualquer conversa entre o homem e sua mulher. Mas notei que ela lançava olhares afetuosos e indulgentes para o marido de vez em quando, embora ele não

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desse o menor sinal de que percebia. Bernadette e eu tentamos conversar, pelo menos entre nós dois. Era mais o alívio de

romper o silêncio do que para transmitir qualquer informação. – Espero que o carro possa ser consertado pela manhã – comentei. – Se for algo

sério, talvez eu precise ir à cidade mais próxima para pegar uma peça sobressalente ou chamar o reboque.

Estremeci só de pensar no que isso poderia representar para nosso pequeno orçamento turístico do pós-guerra.

– Qual é a cidade mais próxima? – perguntou Bernadette, entre duas colheradas de sopa.

Tentei recordar o mapa que deixara no carro. – Acho que é Bergerac. – E fica muito longe? – Creio que a uns 60 quilômetros daqui. Não havia mais nada o que dizer e por isso o silêncio voltou a reinar. Persistiu por

um minuto inteiro, até que de repente uma voz disse em inglês: – Quarenta e quatro. Ambos estávamos com as cabeças abaixadas nesse momento e Bernadette fitou-me.

Eu parecia tão aturdido quanto ela. Olhei para Madame Preece. Ela sorriu na maior felicidade e continuou a comer. Bernadette fez um aceno de cabeça quase imperceptível na direção do fazendeiro. Virei-me para ele. O homem continuava a devorar a sopa e o pão.

– Perdão, mas o que foi mesmo que disse? Ele não deu a menor indicação de que ouvira. Várias outras colheradas de sopa,

juntamente com nacos de pão, desceram pela goela dele. Foi só 20 segundos depois da minha pergunta que ele falou claramente, em inglês:

– Quarenta e quatro. Para Bergerac. Quilômetros. Quarenta e quatro. Ele não olhou para nós, simplesmente continuou a comer. Olhei para Madame

Preece. Ela exibiu um sorriso feliz, como a dizer "Ah, sim, meu marido possui talentos lingüísticos". Bernadette e eu largamos nossas colheres, espantados:

– Você fala inglês? – perguntei ao fazendeiro. Mais segundos se passaram. E, finalmente, ele limitou-se a responder-me com um

aceno de cabeça. – Você nasceu na Inglaterra? O silêncio prolongou-se, sem que houvesse uma resposta. Mais segundos se

passaram desde a pergunta. – Gales – disse ele, enchendo a boca com um outro pedaço de pão. Devo explicar aqui que, se não acelerar um pouco o diálogo no relato desta história,

o leitor vai acabar morrendo de tédio. Mas não foi assim que aconteceu na ocasião. A conversa que lentamente foi se desenvolvendo entre nós levou séculos para se consumar, por causa dos intervalos excepcionalmente prolongados entre as minhas perguntas e as respostas dele.

Pensei a princípio que ele podia ter problemas de audição. Mas não era esse o caso. Ele podia ouvir perfeitamente bem. Pensei em seguida que talvez fosse um homem cauteloso e astuto, analisando todas as implicações de suas respostas, da mesma forma como um enxadrista calcula as conseqüências dos seus lances. Também não era isso. Tratava-se simplesmente de um homem destituído de qualquer astúcia, com um processo de pensamento tão lento que muitos segundos transcorriam, às vezes até um minuto inteiro, enquanto absorvia uma pergunta, imaginava uma resposta e a oferecia.

Talvez eu não estivesse interessado o bastante para agüentar o tédio da conversa que ocupou as duas horas seguintes, mas estava curioso para saber o que um homem de Gales

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fazia ali, um fazendeiro nas profundezas do interior francês. Lentamente, aos arrancos, o motivo foi se esclarecendo. E era encantador o bastante para deliciar a Bernadette e a mim.

O nome dele não era Preece, mas Price, pronunciado à maneira francesa como Preece. Evan Price. Era do Vale do Rhondda, no sul de Gales. Quase 40 anos antes, fora um soldado raso num regimento galês, durante a Primeira Guerra Mundial.

Participara da segunda grande batalha do Marne, que precedera o fim da guerra. Fora gravemente ferido e passara semanas num hospital do Exército britânico, enquanto o Armistício era proclamado. Quando o Exército britânico voltou para casa, ele ainda estava muito mal para ser levado também. Foi transferido para um hospital francês.

Foi cuidado por uma enfermeira francesa, que acabou se apaixonando por ele. Casaram-se e foram para o sul, instalando-se na pequena fazenda dos pais dela, em Dordogne. Ele nunca mais voltara a Gales. Depois da morte dos pais, a mulher herdou a fazenda, sendo filha única.

Era onde estávamos sentados agora. Madame Preece permanecera em silêncio durante todo o relato extremamente lento,

encontrando aqui e ali uma palavra que podia reconhecer, sorrindo jovialmente sempre que isso acontecia. Tentei imaginá-la como devia ter sido em 1918, esguia, como um pardal incansável, olhos escuros, impecável em seu trabalho, jovial.

Bernadette também estava comovida pela imagem da pequena enfermeira francesa que cuidara e se apaixonara pelo gigantesco bebê adulto, obtuso e desamparado, internado num hospital em Flanders. Ela inclinou-se e tocou no braço de Price.

– É uma história maravilhosa, Sr. Price. Ele não demonstrou o menor interesse. – Somos da Irlanda – comentei, como a oferecer alguma informação em troca. Ele permaneceu em silêncio, enquanto a mulher o servia de sopa pela terceira vez. – Já esteve na Irlanda? – perguntou Bernadette. Mais segundos transcorreram. Ele soltou um grunhido e assentiu. Bernadette e eu

nos entreolhamos, numa surpresa deliciada. – Trabalhou lá? – Não. – Por quanto tempo esteve lá? – Dois anos. – E quando foi? – perguntou Bernadette. – 1915... a 1917. – O que estava fazendo lá? Mais tempo transcorreu. – No Exército. Eu deveria ter imaginado. Ele não entrara no Exército em 1917. Alistara-se antes e

fora despachado para Flanders em 1917. Antes disso, integrara a guarnição do Exército britânico na Irlanda.

A atitude de Bernadette tornou-se um tanto fria. Ela pertence a uma família de republicanos irredutíveis. Talvez eu não devesse ter insistido no assunto, não sondado mais nada. Minha experiência de jornalista, porém, forçava-me a continuar fazendo as perguntas.

– Onde esteve baseado? – Em Dublin. – Ah... Nós somos de Dublin. Gostou da cidade? – Não. – Ah... Lamento saber disso. – Nós, dublineses, sentimos o maior orgulho de nossa cidade. E gostamos quando

os estrangeiros, até mesmo os soldados da guarnição britânica, apreciam as qualidades da

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cidade. A primeira parte da carreira do ex-soldado Price foi sendo revelada como a parte

posterior, lentamente, muito lentamente. Ele nascera no Vale do Rhondda, em 1897, de pais muito pobres.

Era uma vida difícil e desolada. Em 1914, aos 17 anos, mais para garantir comida, roupa e um teto para viver do que por fervor patriótico, se alistara no Exército. Nunca fora além de soldado raso.

Passara 12 meses em campos de treinamento, enquanto outros soldados partiam para o front em Flanders, seguindo depois para um depósito militar em Gales. Ao final de 1915, fora transferido para a guarnição na Irlanda, ficando alojado no frio do quartel em Islandbridge, no lado sul do Rio Liffey, em Dublin.

Eu não podia deixar de imaginar que a vida devia ter sido tediosa o bastante para que ele não gostasse de Dublin. Os alojamentos eram deficientes, o pagamento ínfimo mesmo naquele tempo, uma sucessão interminável e monótona de dias a polir botões, engraxar botinas, arrumar camas, horas extenuantes de serviço de sentinela nas noites frias, patrulhas pela cidade debaixo da chuva. E como diversão... não havia muito que se pudesse fazer com a remuneração de um soldado. Cerveja na cantina, pouco ou nenhum contato com uma população católica. Price provavelmente sentira-se contente quando fora transferido para o exterior, depois de dois anos na Irlanda. Ou será que aquele homem tão obtuso não ficava contente ou triste com qualquer coisa?

– Nunca aconteceu nada de interessante? – perguntei finalmente, com algum desespero.

– Só uma vez – respondeu ele, depois de uma pausa longa. – E o que foi? – Uma execução – disse ele, concentrado na sopa. Bernadette largou a colher e ficou rígida. Havia um súbito frio no ar. Somente

Madame Price, que não entendia uma só palavra do que se estava dizendo, e o marido, que era insensível demais, estavam indiferentes. Eu deveria ter parado por aí, não insistido.

Afinal, muitas pessoas haviam sido executadas naquele tempo. Os assassinos comuns eram enforcados em Mountjoy. Mas enforcados pelos guardas da prisão. Precisariam de soldados para isso? E soldados britânicos deviam ter sido executados também, por homicídio e estupro, nos termos dos regulamentos militares, depois de uma corte marcial. Seriam enforcados ou fuzilados? Eu não sabia dizer.

– Lembra-se de quando foi essa execução? – perguntei. Bernadette estava completamente imóvel. Price levantou os olhos azuis para os

meus. Sacudiu a cabeça e disse: – Há muito tempo. Pensei que ele pudesse estar mentindo, mas não era o caso. Simplesmente

esquecera. – Esteve no pelotão de fuzilamento? Ele esperou pelo período habitual, enquanto pensava. Só depois é que acenou com a

cabeça. Tentei imaginar como seria integrar um pelotão de fuzilamento; cerrar o olho pela

alça de mira de um rifle, na direção de outro ser humano, amarrado a um poste a 20 metros de distância; focalizar na mancha branca sobre o coração e manter a mira firmemente sobre aquele homem vivo; à palavra de comando puxar o gatilho, ouvir o estampido, sentir o coice do rifle; ver o corpo amarrado sob o rosto pálido sacudir-se bruscamente e depois derrear sobre as cordas. A seguir, voltar aos alojamentos, limpar o rifle, tomar o café da manhã. Graças a Deus que eu nunca soubera o que era isso e jamais saberia.

– Tente se lembrar de quando foi – insisti.

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Ele bem que tentou. Tentou de verdade. Quase que se podia sentir o esforço. E disse, finalmente.

– Foi em 1916. Acho que no verão. Inclinei-me para a frente e toquei em seu antebraço. Ele tornou a levantar os olhos

para os meus. Não havia qualquer malícia em seu olhar, apenas uma indagação paciente. – Lembra-se... tente lembrar... quem era o homem que fuzilou? Mas isso era pedir muito. Por mais que tentasse, ele não foi capaz de recordar. E

acabou sacudindo a cabeça e murmurando: – Faz muito tempo. Bernadette levantou abruptamente. Lançou um sorriso tenso e polido para Madame

Price. E disse para mim: – Vou deitar. Não demore. Subi 20 minutos depois. O Sr. Price estava em sua poltrona, ao lado do fogo, sem

fumar, sem ler. Olhando para as chamas. E perfeitamente satisfeito. O quarto estava às escuras e eu não queria mexer no lampião de parafina. Despi-me

à luz da lua que entrava pela janela e meti-me na cama. Bernadette permanecia imóvel e silenciosa, mas eu sabia que ela estava acordada. E

o que estava pensando. A mesma coisa que eu. Naquela primavera de sol de 1916, quando no Domingo de Páscoa um grupo de homens devotado à noção então impopular de que a Irlanda devia ser independente da Inglaterra invadira a Agência dos Correios e vários outros grandes prédios públicos.

Estava pensando também nas centenas de soldados que foram lançados para desalojá-los, com fogo e rifles e de artilharia... mas não o Soldado Price, em seu tedioso quartel em Islandbridge, caso contrário ele teria mencionado a ocasião. A fumaça e o barulho, os escombros nas ruas, os mortos e agonizantes, irlandeses e britânicos. E os rebeldes sendo finalmente arrancados da Agência dos Correios, derrotados e renegados. A estranha bandeira tricolor, verde, laranja e branca, que eles haviam hasteado no alto do prédio, sendo desdenhosamente retirada e substituída pela bandeira britânica.

É claro que não ensinam isso nas escolas agora, pois não faz parte dos mitos necessários, mas é verdade, apesar de tudo: quando os rebeldes foram levados, acorrentados, para o porto de Dublin, a caminho da prisão de Liverpool, no outro lado do mar, os dublinenses, entre os quais uma maioria de católicos pobres, arremessaram-lhes refugos e insultos, por terem acarretado tantos problemas para a cidade.

Provavelmente tudo terminaria por aí, se não fosse pela decisão estúpida e absurda das autoridades britânicas de executar os 16 líderes do levante, entre os dias 3 e 12 de maio, na Prisão de Kilmainham. Em apenas um ano, o clima mudou inteiramente. Nas eleições de 1918, o partido que defendia a independência teve uma vitória esmagadora. Depois de dois anos de guerrilhas, a independência foi finalmente concedida.

Bernadette remexeu-se ao meu lado. Ela estava rígida, imersa em seus pensamentos. E eu sabia quais eram esses pensamentos. Estava se recordando daquelas manhãs frias de maio, quando as botas dos pelotões de fuzilamento ressoavam, ao marcharem dos alojamentos para a cadeia, na escuridão que antecedia o amanhecer. Dos soldados esperando pacientemente no pátio grande da prisão, até que o prisioneiro era levado para a estaca no muro do outro lado.

E pensava também em seu tio. O irmão mais velho de seu pai, idolatrado, embora morto antes que ela tivesse nascido, recusando-se a falar inglês com os carcereiros, só falando em irlandês na corte marcial, cabeça erguida, ar altivo, olhando para os canos dos rifles, enquanto o sol se insinuava no horizonte. E pensava nos outros... O'Connel, Clarke, MacDonough e Padraig Pearse. Não podia deixar de pensar em Pearse.

Soltei um grunhido de irritação por minha própria tolice. Tudo aquilo era absurdo.

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Houvera outros, estupradores, saqueadores, assassinos, desertores do Exército britânico, também fuzilados depois de submetidos à corte marcial. Era assim naquele tempo. Havia toda uma gama de crimes para os quais a sentença de morte era automática. E havia uma guerra sendo travada, acarretando ainda mais sentenças de morte.

Price falara "no verão". Era um período bastante prolongado. De maio ao final de setembro. Os incidentes daquela primavera de 1916 haviam sido grandes eventos na história de uma pequena nação. Soldados estúpidos não tinham qualquer participação em grandes acontecimentos. Bani os pensamentos da minha mente e tratei de dormir.

Acordamos cedo, pois o sol já estava entrando pela janela logo depois do amanhecer, enquanto, no pátio, as aves domésticas faziam barulho suficiente para despertar os mortos. Ambos nos lavamos e fiz a barba da melhor forma possível, com a água da bacia, jogando-a depois no pátio, pela janela. Serviria para reduzir um pouco a secura da terra. Vestimos as mesmas roupas do dia anterior e descemos.

Madame Price serviu-nos tigelas de café com leite fumegante, pão e manteiga, tudo muito saboroso. Não havia o menor sinal do seu marido. Mal terminara de tomar o café quando Madame Price chamou-me à frente da casa. E lá estava, no pátio cheio de estrume, o meu Triumph, com um homem que descobri ser o dono da oficina. Pensei que o Sr. Price poderia ajudar-me como intérprete, mas não o vi em qualquer parte.

O mecânico foi loquaz em suas explicações. Só compreendi uma palavra: "carburateur", que ele repetia algumas vezes, soprando em seguida, como se fosse num tubo para retirar alguma partícula. Então era aquilo, algo muito simples. Prometi a mim mesmo que faria um curso básico de mecânica de automóveis. Ele cobrou mil francos, o que naquele tempo, antes de De Gaulle inventar o franco novo, equivalia a uma libra esterlina. Entregou-me as chaves do carro e se despediu.

Acertei as contas com Madame Price, dando-lhe também mil francos (podia-se realmente passar as férias no exterior com pouco dinheiro, naquele tempo) e chamei Bernadette. Guardamos a valise e embarcamos. O motor pegou no mesmo instante. Com um aceno final, Madame Price desapareceu no interior da casa. Dei marcha à ré, fazendo a manobra, depois segui para a estrada, passando pela entrada da fazenda.

Acabara de alcançar a estrada quando fui detido por um berro ensurdecedor. Pela janela aberta do lado do motorista, avistei o Sr. Price correndo em nossa direção, através do pátio, girando o machado imenso por cima da cabeça, como se fosse um palito.

Fiquei boquiaberto, pois pensei que ele estava prestes a nos atacar. Ele poderia destruir o carro inteiramente, se tivesse tal intenção. Mas logo percebi que o rosto dele brilhava de exultação. O grito e o machado que brandia eram para atrair a nossa atenção, antes que nos afastássemos demais.

Ofegando, ele alcançou o carro, metendo o rosto grande e redondo pela janela. – Eu lembrei – disse ele. – eu lembrei. Fiquei completamente aturdido. Ele estava radiante como uma criança que fez algo

muito especial para agradar aos pais. – Lembrou? – murmurei. Ele assentiu. – Lembrei. Quem era o homem que fuzilei naquela manhã. Era um poeta chamado

Pearse. Bernadette e eu ficamos atordoados, imóveis, sem qualquer expressão, fitando-o

fixamente, incapazes de uma reação. A exultação esvaiu-se do rosto dele. Empenhara-se a fundo em agradar e descobrira agora que fracassara. Encarara a minha pergunta muito a sério e vasculhara o seu pobre cérebro durante a noite inteira, em busca de uma informação que para ele não fazia o menor sentido. Dez segundos antes, finalmente lhe ocorrera, depois de tanto esforço. Alcançara-nos bem a tempo e agora o fitávamos fixamente, sem expressão

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nem palavras. Os ombros dele vergaram. Virou-se e voltou para o lugar em que estava cortando

lenha, por trás da casa. Não demorou muito para que a cadência dos golpes recomeçasse. Bernadette estava imóvel, olhando pelo pára-brisa. Estava muito pálida, os lábios

contraídos. Tive uma imagem mental de um rapaz grande e obtuso do Vale do Rhondda,

pegando um rifle e uma única bala na intendência de um quartel em Islandbridge, há tantos e tantos anos.

Bernadette finalmente murmurou: – Um monstro... Olhei através do pátio para o lugar em que o machado subia e descia, manejado por

um homem que, com um único tiro, desencadeara uma guerra e lançara uma nação na estrada para a sua independência.

– Não, menina – murmurei – ele não é nenhum monstro. Apenas um soldado cumprindo o seu dever.

Dei novamente a partida e fomos seguindo pela estrada para Bergerac. UM HOMEM CUIDADOSO Timothy Hanson era um homem que enfrentava todos os problemas da vida com

uma atitude calma e objetiva. Orgulhava-se desse comportamento habitual, a análise serena seguida pela seleção da opção mais favorável e finalmente a consumação determinada dessa opção.

Chegara assim, no vigor da meia-idade, à riqueza e proeminência de que agora desfrutava.

Naquela manhã fria de abril, ele parou por um momento no alto da escada da casa de Devonshire Street, o coração da elite médica de Londres, enquanto a porta preta reluzente se fechava às suas costas, com toda deferência.

O médico, um velho amigo, que há anos era o seu médico pessoal, teria sido um modelo de preocupação e pesar, mesmo com um estranho. Por se tratar de um amigo, tinha sido ainda mais difícil para ele. Sua angústia fora evidentemente bem maior que a do paciente.

– Timothy, apenas três vezes em minha carreira tive de transmitir uma notícia assim – dissera ele, pousando as mãos sobre a pasta com radiografias e relatórios. – E peço-lhe para acreditar quando falo que é a mais terrível experiência na vida de qualquer médico.

Hanson assegurara que acreditava nele. – Se fosse um homem diferente do que sei que é – acrescentara o médico – poderia

sentir-me tentado a mentir-lhe. Hanson lhe agradeceu pelo elogio e franqueza. O médico o acompanhara

pessoalmente até a porta da sala de consulta. – Se há alguma coisa... sei como isso parece banal... mas entende o que estou

querendo dizer... qualquer coisa... Hanson apertara o braço do médico e presenteara-o com um sorriso. Já fora

suficiente e tudo o que era necessário. A recepcionista de branco acompanhara-o até a porta da casa e a abrira. Hanson

estava agora parado ali, respirando fundo. O ar estava frio e puro. O vento do nordeste varrera a cidade durante a noite. Ele correu os olhos pela rua de casas discretas e elegantes, agora quase todas transformadas em escritórios de consultores financeiros e de advogados

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que cobravam alto, e em consultórios de médicos particulares. Pela calçada, uma moça de sapatos de saltos altos caminhava apressadamente na

direção da Marylebone High Street. Era bonita e viçosa, os olhos brilhando, as faces geladas

um tanto coradas. Os olhos dela se encontraram com os de Hanson. Num súbito impulso, Hanson presenteou-a com um sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça grisalha. A moça ficou surpresa, depois percebeu que não o conhecia. Recebera um galanteio, não um cumprimento. Ela retribuiu o sorriso e seguiu em frente, meneando os quadris mais um pouco. Richards, o motorista de Hanson, fingiu nada ter percebido. Mas vira tudo e sua expressão era de aprovação. Estava parado ao lado do Rolls, esperando.

Hanson desceu os degraus e Richards abriu a porta. Hanson embarcou e relaxou, no interior aquecido do carro. Tirou o casaco e dobrou-o cuidadosamente, colocando no assento ao seu lado, com o chapéu preto por cima. Richards ocupou seu lugar ao volante.

– Vamos para o escritório, Sr. Hanson? – Kent. O Silver Wraith virara para o sul, entrando na Great Portland Street, encaminhando-

se para o rio, quando Richards finalmente arriscou uma pergunta: – Nada de errado com o velho relógio, senhor? – Não. Continua a bater firme. Não havia realmente nada de errado com o seu coração. Nesse sentido, era forte

como um touro. Mas aquele não era o momento nem o lugar para discutir com o seu motorista as células enlouquecidas e insaciáveis que estavam lhe corroendo as entranhas. O Rolls passou pela estátua de Eros em Piccadilly Circus e entrou no fluxo de tráfego que vinha de Haymarket.

Hanson recostou-se no assento e ficou olhando para o teto. Seis meses pareciam uma eternidade, pensou ele, quando se era condenado à prisão ou internado num hospital com as duas pernas quebradas. Mas quando é tudo o que resta de vida, já não parece tanto tempo assim. Muito ao contrário.

O médico lhe dissera que teria de ser hospitalizado, no último mês. Era o que acontecia quando as coisas se agravavam. O que inevitavelmente ocorreria. Mas havia novas drogas que começavam a ser usadas, bastante fortes...

O carro virou à esquerda, na Westminster Bridge Road, e depois entrou na própria ponte.

Através do Tâmisa, Hanson ficou observando a massa creme do County Hall avançar em sua direção.

Lembrou a si mesmo que não era um homem sem posses, apesar dos níveis de taxação punitivos introduzidos pelo novo regime socialista. Havia a sua empresa que negociava com moedas raras e preciosas. Tinha uma situação sólida, respeitada no ramo, possuía o prédio que ocupava na City. E a empresa lhe pertencia exclusivamente, sem sócios, sem cotas.

O Rolls fizera a volta pelo Elephant and Castle, seguindo para Old Kent Road. A elegância meticulosa de Marylebone há muito que ficara para trás, assim como a riqueza mercantil da Oxford Street e as sedes do poder em Whitehall e County Hall, a cavaleiro do rio, na Westminster Bridge. Do Elephant em diante, a paisagem era mais pobre, parte da faixa de problemáticas áreas urbanas, entre a riqueza e o poder do centro e a complacência esmerada dos subúrbios.

Hanson ficou observando os velhos prédios que passavam, encasulado num carro de 50 mil libras, percorrendo uma estrada que custara 700 mil libras por quilômetro. Ele pensou afetuosamente no aconchegante solar do Kent para o qual estava seguindo, no meio de 20 acres de um parque bem cuidado, entre carvalhos, faias e tílias. Ficou imaginando o

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que aconteceria com a propriedade. Havia também o apartamento grande em Mayfair, onde ocasionalmente passava uma noite durante a semana, para não enfrentar muito tarde a viagem para Kent. Era ali que podia receber compradores estrangeiros, num clima menos formal que o de um hotel, geralmente mais propício ao relaxamento e, por conseguinte, a uma transação mais proveitosa.

Além da empresa e das duas residências, havia a sua coleção particular de moedas, acumulada com extremo cuidado e amor, ao longo de muitos anos. Havia também a carteira de investimentos, para não falar das contas correntes em diversos bancos e do carro em que estava agora rodando.

O último mencionado parou de repente, numa travessia de pedestres, num dos trechos mais pobres da Old Kent Road. Richards deixou escapar um grunhido de irritação. Hanson olhou pela janela. Uma fileira interminável de crianças atravessava a estrada, sob a orientação de quatro freiras. Duas estavam na frente e as outras fechavam a marcha. Ao final da fila, um garotinho parou no meio da travessia e ficou olhando com um interesse indisfarçável para o Rolls Royce.

Tinha um rosto redondo e belicoso, com um nariz arrebitado. Os cabelos desgrenhados estavam encimados por um gorro meio torto, com as iniciais St B. Uma das meias estava caída em pregas no tornozelo, a liga de elástico certamente desempenhando um outro serviço mais importante, como componente vital de uma atiradeira. O garoto fitou a cabeça prateada que o fitava por trás da janela do carro. Sem a menor hesitação, o pirralho contraiu o rosto numa careta, encostou o polegar da mão direita no nariz e sacudiu os dedos restantes, num gesto de desafio.

Sem qualquer mudança de expressão, Timothy Hanson pôs o polegar de sua própria mão direita na ponta do nariz e repetiu o gesto do garoto. Pelo espelho retrovisor, Richards provavelmente viu o gesto. Mas sua única reação foi piscar os olhos rapidamente e depois continuou a olhar fixamente para a frente, através do pára-brisa. O garoto na travessia de pedestres ficou aturdido.

Baixou a mão e depois sorriu, de orelha a orelha. Um segundo depois, foi arrancado da rua por uma jovem freira atarantada. Os garotos estavam agora marchando para um grande prédio cinzento, por trás de uma grade. Livre do obstáculo impertinente, o Rolls tornou a avançar pela estrada para Kent.

Trinta minutos depois, o último dos extensos subúrbios ficou para trás e começou a auto-estrada M20, atravessando as colinas e vales ondulantes do jardim da Inglaterra. Os pensamentos de Hanson concentraram-se na sua mulher, morta há dez anos. Fora um casamento feliz, muito feliz mesmo, só que nunca tiveram filhos. Talvez devessem ter adotado uma criança, algo em que haviam pensado muitas vezes. Ela fora filha única e seus pais há muito que estavam mortos também. Da família dele, restava apenas a irmã, de quem jamais gostara, uma antipatia que só era superada pela aversão que sentia contra o horrível marido dela e o filho igualmente desagradável.

A auto-estrada terminou um pouco ao sul de Maidstone. Alguns quilômetros depois, em Harrietsham, Richards deixou a estrada principal e seguiu para o sul, na direção da região de pomares, campos, bosques e jardins conhecida como Weald. Era nessa região aprazível que Timothy Hanson tinha a sua casa de campo.

Era preciso pensar no Ministro do Tesouro, o homem que comandava as finanças do país. Ele haveria de querer a sua parte, pensou Hanson. E certamente seria uma parte substancial.

Quanto a isso, não restava a menor dúvida. De qualquer maneira, depois de anos de protelação, ele teria de fazer um testamento.

– O Sr. Pound vai recebê-lo agora, senhor – disse a secretária. Timothy Hanson levantou e entrou na sala de Martin Pound, o associado sênior da

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firma de advocacia Pound, Gogarty. O advogado levantou-se de trás da mesa para cumprimentá-lo.

– Meu caro Timothy, que prazer tornar a vê-lo! Como muitos homens ricos, na meia idade, Hanson há muito que mantinha uma

amizade pessoal com quatro dos seus mais valiosos conselheiros, o advogado, o corretor, o contador e o médico. Seu relacionamento com todos era na base do primeiro nome. Os dois homens sentaram.

– Em que posso servi-lo, Timothy? – Há algum tempo, Martin, que você vem insistindo para que eu faça um

testamento. – Exatamente. Trata-se de uma precaução das mais sensatas, que há muito vem

sendo relegada. Hanson abriu a maleta e tirou um envelope pardo recheado, lacrado com uma gota

grande de cera vermelha. Estendeu-o por cima da mesa para o surpreso advogado, dizendo: – Pois aqui está. Pound pegou o envelope, o rosto normalmente liso franzido em perplexidade. – Timothy, espero que... com bens tão vultosos como você tem... – Não precisa se preocupar. O testamento foi devidamente preparado por um

advogado. E assinado com testemunhas. Não há ambigüidades, absolutamente nada que possa proporcionar alguma base para contestação.

– Entendo... – Não fique zangado, meu velho amigo. Sei que está se perguntando por que não lhe

pedi que preparasse o testamento, procurando em vez disso uma firma de província. Tive motivos para isso. Confie em mim, por favor.

– Claro que confio – disse Pound apressadamente. – Quanto a isso, não tenha a menor dúvida. Quer que eu o guarde?

– Quero, sim. Há mais uma coisa. No testamento, pedi que você fosse o único executor. Tenho certeza de que preferia conhecer o testamento. Mas dou-lhe a minha palavra de que não há nada nos deveres do executor que possam ir de encontro à sua consciência, em termos pessoais ou profissionais. Vai aceitar?

Pound pensou por um momento, com o envelope nas mãos. – Claro. Tem a minha palavra. Além do mais, tenho certeza de que não terei de me

preocupar com o problema por muitos e muitos anos. Você está com uma aparência maravilhosa. Vamos encarar os fatos: você provavelmente viverá mais do que eu. O que fará então?

Hanson aceitou o gracejo no espírito com que foi feito. Dez minutos depois, saiu para o sol do princípio de maio, na Gray's Inn Road.

Até meados de setembro, Timothy Hanson manteve-se ocupadíssimo, como há anos não acontecia. Viajou várias vezes ao Continente e ainda mais freqüentemente à City de Londres. Poucos homens que morreram antes do seu tempo tiveram a oportunidade de pôr em ordem seus muitos e complexos negócios. Hanson tinha a intenção de garantir que os seus ficariam exatamente como desejava.

No dia 15 de setembro, pediu a Richards que fosse à sua casa para uma conversa. O motorista e empregado para serviços diversos, que há uma dúzia de anos, juntamente com a mulher, cuidava de Hanson, foi encontrar o patrão na biblioteca.

– Tenho uma comunicação a lhe fazer – disse Hanson. – Tenciono me aposentar ao final do ano.

Richards ficou surpreso, mas não deixou transparecer. Imaginava que havia mais por vir.

– Tenciono também emigrar e passar a aposentadoria numa residência menor, em

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algum lugar ao sol. Então era isso, pensou Richards. Mesmo assim, ainda era muita gentileza do velho

conceder-lhe um aviso prévio de três meses. Mas do jeito como andava o mercado de trabalho, ele teria de começar a procurar um novo emprego imediatamente. A situação era crítica não apenas porque estava perdendo o emprego, mas também porque ficaria sem o aconchegante chalé em que vivia com a mulher.

Hanson pegou um envelope recheado em cima da lareira. Estendeu-o para Richards, que pegou-o, sem entender do que se tratava.

– Infelizmente – continuou Hanson – terá de procurar outro posto, a menos que os futuros ocupantes da propriedade desejem contratá-lo e à Sra. Richards.

– Sim, senhor. – Claro que lhe darei as referências mais favoráveis, antes de partir. Contudo, por

motivos comerciais, eu agradeceria se não mencionasse minhas intenções a qualquer pessoa na aldeia, até que se torne necessário. Também agradeceria se não procurasse outro emprego até 1.o de novembro. Em suma, não gostaria que notícias da minha iminente partida se espalhem, pelo menos por enquanto.

– Está certo, senhor – disse Richards, ainda segurando o envelope. – O que me leva à última questão. Esse envelope que está segurando. Você e a Sra.

Richards serviram-me lealmente nos últimos 12 anos. Quero que saiba que me sinto profundamente grato por isso. Sempre me senti.

– Obrigado, senhor. – Eu ficaria muito grato se permanecessem leais à minha memória, depois de minha

partida para o exterior. Sei que pedir-lhe que não procure outro emprego por mais seis semanas pode criar-lhe dificuldades. Afora isso, eu gostaria de ajudar de alguma forma em sua futura vida. Esse envelope contém, em notas usadas de 20 libras, que não podem ser investigadas até a origem, a quantia de 10 mil libras.

O autocontrole de Richards finalmente se rompeu. Ele alteou as sobrancelhas. – Obrigado, senhor. – Por favor, não faça qualquer menção a isso. Preferi essa forma insólita de dinheiro

vivo, porque tenho a maior aversão, como acontece com todos nós, a entregar grandes parcelas do meu dinheiro, arduamente conseguido, aos fiscais de impostos.

– Muito justo – disse Richards, com profunda convicção, sentindo os maços de notas dentro do envelope.

– Uma quantia assim implicaria um imposto de herança elevado, que você teria de pagar. Sugiro que não deposite esse dinheiro num banco. Guarde num lugar seguro. E não o gaste em quantidades muito grandes, para não chamar atenção. O propósito é ajudar os dois em sua nova vida, dentro de alguns meses.

– Não se preocupe, senhor. Conheço o problema. Todo mundo o conhece, atualmente. E muito obrigado, em meu nome e no de minha mulher.

Richards atravessou o pátio de cascalho e continuou a polir o novo Rolls Royce, na maior felicidade. Seu salário sempre fora generoso e, com o chalé de graça, pudera economizar bastante. Com o que recebera agora, talvez não houvesse sequer necessidade de voltar ao mercado de trabalho cada vez menor. Havia aquela pequena pensão em Porthcawl, em Gales, onde nascera, que ele e Megan haviam conhecido naquele verão...

Na manhã de 1.o de outubro, Timothy Hanson desceu de seu quarto antes do sol ter-se elevado inteiramente acima do horizonte. Uma hora inteira ainda se passaria antes que a Sra. Richards aparecesse para preparar o seu café da manhã e iniciar a limpeza.

Fora outra noite horrível e as pílulas que ele guardava na gaveta trancada da mesinha de cabeceira estavam rapidamente perdendo a batalha contra as pontadas de dor que se irradiavam do estômago. Ele estava pálido e encovado, parecendo finalmente mais

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velho do que os seus anos. Sabia que nada mais lhe restava a fazer. Chegara o momento. Passou dez minutos escrevendo um bilhete para Richards, pedindo desculpas pela

mentira branda de duas semanas antes e que telefonasse para Martin Pound, avisando-o para vir à sua casa imediatamente. Deixou o bilhete ostensivamente no chão, no limiar da biblioteca, onde ressaltava contra o parquete escuro. Telefonou em seguida para Richards e comunicou à voz sonolenta que atendeu que não precisaria da Sra. Richards para preparar o café da manhã, mas necessitaria do motorista na biblioteca dentro de 30 minutos.

Depois, tirou da cômoda trancada a chave a espingarda, cujos canos serrara, deixando 25 centímetros mais curtos, a fim de poder manejá-los com maior facilidade. Pôs os cartuchos e foi para a biblioteca.

Meticuloso até o fim, cobriu a sua bergère de couro predileta com uma grossa manta de cavalo, consciente de que agora pertencia a alguém mais. Sentou-se na poltrona, segurando a espingarda. Lançou um último olhar ao redor, para as fileiras de livros amados, os armários que outrora abrigavam a sua querida coleção de moedas raras. Depois, virou os canos contra o peito, tateou à procura dos gatilhos, respirou fundo e disparou contra o coração.

O Sr. Martin Pound fechou a porta da sala de reunião, ao lado de sua sala particular, foi sentar-se à cabeceira da mesa comprida. No meio da mesa, à sua direita, estava sentada a Sra. Armitage, irmã de seu cliente e amigo, de quem muito ouvira falar. O marido sentava-se ao lado dela. Ambos estavam vestidos de preto. No outro lado da mesa, parecendo entediado e indolente, estava sentado o filho deles, Tarquin, um rapaz de vinte e poucos anos, que dava a impressão de acalentar um interesse excepcional pelo conteúdo de seu nariz descomunal. O Sr. Pound ajeitou os óculos e dirigiu-se ao trio:

– Devem saber que o falecido Timothy Hanson pediu-me para atuar como o único executor de seu testamento. No curso normal dos acontecimentos, usando das atribuições que isso me confere, eu teria aberto o testamento assim que fosse informado da morte, a fim de verificar se há instruções específicas de importância imediata, relativas, por exemplo, aos preparativos para o funeral.

– Não foi você quem escreveu o testamento? – indagou Armitage sênior. – Não, não fui eu. – Quer dizer que também não sabe o que diz o testamento? – indagou Armitage

júnior. – Não, não sei – disse Pound. – Na verdade, o falecido Sr. Hanson evitou a abertura

do testamento, deixando-me uma carta pessoal na cornija da lareira da sala em que morreu. Nessa carta, deixava bem claras algumas coisas, que posso agora lhe transmitir.

– Vamos abrir logo esse testamento – disse Armitage júnior. O Sr. Pound fitou-o friamente, sem dizer nada. – Fique quieto, Tarquin – disse a Sra. Armitage, suavemente. Pound recomeçou a falar: – Em primeiro lugar, Timothy Hanson não se matou num momento de desequilíbrio

mental. Na verdade, estava nos últimos estágios de câncer fatal e sabia disso desde abril último.

– Pobre coitado – comentou Armitage sênior. – Apresentei essa carta ao juiz sumariante do condado de Kent e o fato foi

confirmado pelo médico pessoal do falecido e pela autópsia. Isso permitiu que as formalidades do atestado de óbito, inquérito e permissão para sepultamento pudessem ser acelerados, sendo tudo providenciado em apenas 15 dias. Em segundo lugar, ele deixou bem claro que não desejava que o testamento fosse aberto e lido enquanto tais formalidades não estivessem concluídas.

Finalmente, deixou claro que desejava uma leitura formal, ao invés de um

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tratamento do assunto por correspondência, na presença de sua única parente sobrevivente, a irmã, Sra. Armitage, o marido e o filho.

As outras três pessoas na sala olharam ao redor, com uma surpresa crescente e não muito sofrida.

– Mas somente nós estamos aqui! – comentou Armitage júnior. – Exatamente. – Então devemos ser os únicos beneficiários – disse o pai. – Não necessariamente – declarou Pound. – O comparecimento de vocês aqui hoje é

devido apenas à determinação expressa na carta do meu falecido cliente. – Se ele está querendo nos pregar alguma peça... – murmurou a Sra. Armitage,

sombriamente. A boca da Sra. Armitage assumiu uma linha ainda mais fina, com uma facilidade

decorrente da prática. – Vamos agora à leitura do testamento? – sugeriu Pound. – Claro – disse Armitage júnior. Martin Pound pegou uma espátula fina e cuidadosamente abriu a extremidade do

envelope recheado que tinha nas mãos. Retirou outro envelope cheio e um documento de três páginas, preso ao longo da margem esquerda por uma estreita fita adesiva verde. Pond colocou o novo envelope ao lado, abriu o documento e começou a ler:

– Este é o testamento e a última vontade que eu, Timothy John Hanson, de... – Já sabemos de tudo isso – disse Armitage sênior. – Vamos logo com isso – disse a Sra. Armitage. Pound fitou-os por cima dos óculos, com uma aversão que não dava para disfarçar,

antes de continuar: – Declaro que este meu testamento deve ser interpretado nos termos das leis

inglesas. Dois, por este revogo e cancelo todos os testamentos e disposições testamentárias anteriores por mim feitas...

Armitage Júnior deixou escapar o suspiro ruidoso de alguém cuja paciência foi posta à prova por tempo demais.

– Três, aponto como executor o cavalheiro seguinte, um advogado, a quem peço que administre meu espólio, pague qualquer imposto devido e cumpra os dispositivos deste meu testamento, a saber: Martin Pound, de Pound, Gogarty. Quatro, peço a meu executor, nesta altura da leitura, para abrir o envelope anexo, no qual será encontrada uma quantia em dinheiro a ser usada para as despesas do meu funeral e para o acerto de seus honorários profissionais e de quaisquer outros desembolsos acarretados na execução dos meus desejos. Caso reste alguma coisa da quantia em anexo, depois de deduzidas todas as despesas, determino então que ele doe a qualquer obra de caridade à sua escolha.

O Sr. Pound largou o testamento e tornou a pegar a espátula. Abriu o segundo envelope e tirou cinco maços de notas de 20 libras, todas novas e envoltas por uma faixa de papel pardo, indicando que havia mil libras em cada maço. Havia silêncio na sala. Armitage júnior cessou de explorar uma de suas cavidades e ficou olhando fixamente para a pilha de dinheiro, com a indiferença de um sátiro contemplando uma virgem. Martin Pound pegou novamente o testamento.

– Cinco, peço ao meu único executor, em deferência à nossa longa amizade, que assuma as suas funções executivas no dia seguinte ao meu sepultamento.

O Sr. Pound olhou novamente por cima dos óculos. – No curso normal dos acontecimentos, eu já teria visitado a empresa do Sr. Hanson

em Londres, além de seus outros bens, a fim de me certificar que estão sendo devidamente cuidados, sem que ocorra qualquer prejuízo financeiro para os beneficiários, em decorrência de alguma negligência. Contudo, apenas agora tomei conhecimento formalmente da minha

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designação como único executor; assim, não tive a oportunidade de tomar tais providências. Parece agora que não posso começar até o dia seguinte ao funeral. – Isso não provocaria uma diminuição do valor da herança? – perguntou Armitage

sênior. – Nada posso garantir, mas duvido muito – respondeu Pound. – O Sr. Hanson tinha

excelentes assistentes em suas operações na City e tenho certeza de que confiava na lealdade deles para manter tudo em perfeito funcionamento.

– Mesmo assim, não seria melhor que você começasse logo a fiscalizar tudo? – insistiu Armitage.

– Só no dia seguinte ao funeral. – Pois então vamos cuidar desse funeral o mais depressa possível – disse a Sra.

Armitage. – Como quiser. Afinal, é a parente mais próxima. – Pound retomou a leitura do

testamento: – Seis, dou a... Martin Pound parou nesse momento, como se estivesse com alguma dificuldade em

ler. Engoliu em seco, antes de continuar: – Dou à minha querida e afetuosa irmã todo o resto dos meus bens, em termos

absolutos, certo de que ela vai partilhar a sua boa sorte com o simpático marido Norman e o atraente filho Tarquin. O mesmo sujeito às condições do parágrafo sete.

Houve um silêncio aturdido. A Sra. Armitage enxugou delicadamente os olhos, com um lenço de cambraia, menos para enxugar uma lágrima e mais para encobrir o sorriso que lhe contraía o canto da boca. Ao retirar o lenço, olhou para o marido e o filho com o ar de uma velha galinha que acabara de levantar o traseiro para encontrar um ovo de ouro maciço repousando por baixo.

Os dois Armitages do sexo masculino estavam boquiabertos. – A quanto monta a fortuna dele? – perguntou finalmente o sênior. – Não sei dizer. – Ora, você deve saber muito bem – disse o filho. – Afinal, cuidava de todos os

negócios dele. Pound pensou no advogado desconhecido que elaborara o testamento que tinha

agora nas mãos e disse: – Quase tudo. – E então? Pound nada podia fazer. Por mais que detestasse os Armitages, eles eram os únicos

beneficiários do testamento do seu falecido amigo. – Pelos preços atuais do mercado, e presumindo que todos os bens não apresentam

qualquer ônus, eu diria que o total deve dar entre dois e meio e três milhões de libras. – Puxa vida! – exclamou Armitage sênior. – Os impostos de transmissão serão

muito altos? – Eu diria que sim. – Quanto? – Com um espólio tão grande, a taxação deve ser pelo índice mais alto, que é de 75

por cento. Mas talvez se possa baixar para 65 por cento. – Deixando um milhão de libras limpos? – indagou o filho. – Devem compreender que se trata apenas de uma estimativa. Pound pensou em seu falecido amigo Hanson, um homem refinado, espirituoso,

meticuloso. Por que, Timothy, pelo amor de Deus, por quê? – Ainda há o parágrafo sete – ressaltou ele. – E o que diz? – indagou a Sra. Armitage, interrompendo o seu devaneio de

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ascensão social. Pound recomeçou a ler: – Durante toda a minha vida, sempre senti um horror intenso de ser um dia

consumido embaixo da terra por vermes. Por isso, mandei fazer um caixão revestido de chumbo, que está atualmente na agência funerária de Bennett e Gaines, na cidade de Ashford. E é nesse caixão que desejo ser levado para o meu lugar de repouso eterno. Em segundo lugar, jamais desejei que um dia pudesse ser desenterrado por algum escavador ou qualquer outra coisa. Por causa disso, determino que me sepultem no mar, especificamente a 30 quilômetros ao sul da costa de Devon, onde outrora servi como oficial naval. Finalmente, determino que sejam minha irmã e meu cunhado, em deferência ao amor que sempre tiveram por mim, as pessoas que vão empurrar meu caixão para o mar. E ao meu executor determino que, se tais desejos não forem cumpridos, ou qualquer outro impedimento seja apresentado aos meus beneficiários, tudo o que antes estipulei seja considerado revogado e nulo, com todos os meus bens sendo legados ao Ministro do Tesouro.

Martin Pound levantou os olhos. Particularmente, estava surpreso por descobrir os medos e fantasias do falecido amigo. Mas não deixou transparecer.

– Agora, Sra. Armitage, tenho de lhe perguntar formalmente: tem alguma objeção aos desejos do seu falecido irmão, expressos no parágrafo sete?

– Essa idéia de um sepultamento no mar é de fato uma estupidez – disse ela. – Eu nem mesmo sabia que era permitido.

– É extremamente raro, mas não é ilegal – explicou Pound. – Já tive conhecimento de um caso anterior.

– Será muito caro, mais do que um enterro em cemitério – comentou o filho. – E por que não a cremação?

– O custo do funeral não afetará a herança – declarou Pound, irritado. Ele bateu nas 5 mil libras em cima da mesa, acrescentando: – As despesas sairão daqui. E, agora, torno a perguntar: tem alguma objeção, Sra. Armitage?

– Não sei... – Devo ressaltar que, se fizer alguma objeção, os termos anteriores do testamento se

tornarão nulos. – E o que isso significa? – Que o governo ficará com tudo – disse o marido, rispidamente. – Exatamente – confirmou Pound. – Não há objeção – disse a Sra. Armitage. – Mas continuo a achar que é ridículo. – Então, como parente mais próxima, autoriza-me a tomar as providências

necessárias? A Sra. Armitage assentiu bruscamente. – E quanto mais cedo, melhor – disse o marido. – Assim, poderemos logo de uma

vez executar o testamento e receber a herança. Martin Pound levantou-se rapidamente. Já não agüentava mais. – Esse era o parágrafo final do testamento. Está devidamente assinado e

testemunhado. Portanto, nada mais resta a discutir. Tomarei as providências necessárias e voltarei a

procurá-los para comunicar o tempo e lugar. Muito bom dia. O meio do Canal da Mancha não é lugar para se estar num dia de meados de

outubro, a menos que se seja um aficionado. O Sr. Armitage e a mulher conseguiram deixar perfeitamente claro, antes mesmo de deixar o porto, que não eram.

O Sr. Pound suspirou, de pé ao vento, no convés de popa, a fim de não ser obrigado a ficar fazendo companhia ao casal na cabine. Levara uma semana para providenciar tudo, levando uma embarcação de Brixham para Devon. Os três pescadoes que tripulavam a

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traineira costeira haviam aceitado o serviço insólito, depois de ficarem satisfeitos com o preço e se convencerem de que não estavam violando qualquer lei. As pescarias no Canal já não eram tão lucrativas quanto antigamente.

Fora necessário um guincho para transferir o caixão de meia tonelada do pátio dos fundos dos agentes funerários do Kent para um caminhão com a traseira aberta, que a limusine preta seguira pela longa viagem até a costa sudoeste naquela manhã. Os Armitages haviam se queixado durante todo o percurso. O caminhão parara no cais em Brixham e o guincho da traineira transferira o caixão para bordo. Estava agora no convés de popa, o carvalho envernizado e o latão polido rebrilhando sob o céu de outono.

Tarquin Armitage acompanhara o grupo na limusine até Brixham. Mas depois de uma olhada para o mar, ele preferira ficar no aconchego de uma hospedaria local. De qualquer forma, a sua presença não era necessária para o sepultamento no mar. O capelão aposentado da Marinha Real, a quem Pound descobrira por intermédio do Almirantado, ficara feliz em aceitar o generoso estipêndio por seus serviços. Estava agora sentado também na pequena cabine, a sobrepeliz coberta por um grosso sobretudo.

O comandante da traineira aproximou-se de Pound, no convés. Tirou do bolso uma carta marítima, que ficou se agitando ao vento. Apontou com o polegar um ponto 30 quilômetros ao sul do lugar de onde haviam partido. Alteou uma sobrancelha. Pound assentiu.

– Água profunda – comentou ele, acenando com a cabeça para o caixão e acrescentando: – Você o conhecia?

– Muito bem. O comandante soltou um grunhido. Tripulava a pequena traineira com o irmão e um

primo. Quase todos aqueles pescadores eram aparentados. Eram rudes devonianos, mãos e

rostos curtidos e calejados, cujos ancestrais já pescavam naquelas águas traiçoeiras quando Drake ainda estava aprendendo a diferença entre a bujarrona e a mezena.

– Estaremos lá dentro de uma hora – disse ele, afastando-se em seguida. Ao chegarem ao local, o comandante pôs o motor em ponto morto, a proa virada

contra o vento. O primo pegou uma prancha comprida, três tábuas unidas com travessões por baixo

e um metro de largura, ajeitando-a na amurada de estibordo, com o lado liso para cima. A amurada cortada ficava no meio da prancha, como se fosse o ponto de apoio de uma gangorra. A metade da prancha ficava dentro do convés, a outra metade se projetava pelo mar revolto. Enquanto o irmão do comandante manejava o guincho motorizado, o primo ajeitou os ganchos nas quatro alças de latão do esquife.

O guincho foi acionado e o pesado caixão erguido do convés. O irmão manteve o caixão a um metro de altura e o primo manobrou-o para cima da prancha. A frente ficou virada para o mar.

Ele acenou com a cabeça. O irmão no guincho deixou o caixão descer, devagar, até ficar diretamente por cima da amurada. O caixão entrou em posição, com um rangido, metade para dentro e metade para fora da traineira. Enquanto o primo mantinha o caixão em posição, o irmão do comandante desligou a máquina, foi desprender o guincho e ajudou a levantar a prancha, colocando-a na horizontal. O peso não era muito grande agora, pois o caixão estava perfeitamente equilibrado. Um dos homens olhou para Pound, pedindo uma orientação. O advogado chamou os Armitages e o capelão.

As seis pessoas ficaram em silêncio sob as nuvens baixas, ocasionalmente molhadas pelos respingos da crista de uma onda que passava, firmando-se contra o balanço da embarcação.

Fazendo justiça, o capelão manteve a cerimônia o mais rápido que a decência

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permitia, os cabelos brancos e a sobrepeliz agitados pelo vento. Norman Armitage também estava de cabeça descoberta, parecendo completamente enjoado, enregelado até os ossos. O que ele pensava do falecido cunhado, agora estendido a poucos passos dele, envolto em camadas de cânfora, chumbo e carvalho, só podia ser presumido. Nada se podia ver da Sra. Armitage, entre o casaco de pele, chapéu de pele e echarpe de lã, exceto o nariz pontudo e enregelado.

Martin Pound ficou olhando para o céu, enquanto o sacerdote falava monotonamente. Uma única gaivota lutava contra o vento, imune ao frio e à náusea, ignorando impostos, testamentos e parentes, auto-suficiente em sua perfeição aerodinâmica, independente, livre. O advogado tornou a olhar para o caixão e para o mar mais além. Até que não estava nada mal, pensou ele, quando se era sentimental com essas coisas. Pessoalmente, jamais se preocupara com o que pudesse acontecer-lhe depois da morte. Também não imaginara que Hanson se preocupasse.

Mas para quem se importava, até que não era um lugar dos piores para o repouso eterno. Ele contemplou o caixão de carvalho coberto por respingos que não podiam penetrá-lo. Nunca vão incomodá-lo aqui, Timothy, meu velho amigo, pensou o advogado.

– ... encomendo este nosso irmão Timothy John Hanson a vossos cuidados eternos, através de Jesus Cristo, nosso senhor, amém.

Com um sobressalto, Pound compreendeu que acabara. O capelão olhava para ele expectante.

Pound acenou com a cabeça para os Armitages. Eles contornaram os pescadores que seguravam a prancha e puseram as mãos na parte posterior do caixão. Pound acenou com a cabeça para os pescadores. Lentamente, eles foram levantando a prancha. A outra extremidade mergulhou para o mar. O caixão finalmente deslocou-se. Os Armitaes deram-lhe um empurrão.

O caixão deslizou rapidamente pela outra extremidade. O barco balançou. O caixão bateu no flanco de uma onda e desapareceu no instante seguinte. Os olhos de Pound encontraram-se com os do comandante, que estava na cabine do comando por cima. O homem levantou a mão e apontou para o caminho pelo qual tinham vindo. Pound tornou a assentir. O motor da traineira foi acelerado. A prancha foi recolhida e guardada. Os Armitages e o capelão voltaram apressadamente para seu abrigo. O vento aumentava de intensidade.

Já estava quase escuro quando contornaram a ponta do molhe em Brixham e as primeiras luzes faiscaram nas casas além do cais. O capelão estava com o seu próprio carro pequeno estacionado ali perto e foi embora rapidamente. Pound acertou as contas com o comandante, que ficou feliz por ganhar tanto numa tarde quanto o faria numa semana inteira atrás de cavalas.

Os homens da agência funerária esperavam com a limusine e Tarquin Armitage. Pound preferiu deixá-los ficar inteiramente com o carro. Voltou a Londres de trem, para poder ficar sozinho.

– Vai providenciar o levantamento do espólio imediatamente – disse a Sra. Armitage, estridentemente, antes de se separarem. – E executar o testamento. Já estamos cansados de toda essa encenação.

– Pode estar certa de que não perderei tempo – assegurou Pound, friamente. – Ficarei em contato.

Ele ergueu o chapéu num cumprimento e depois encaminhou-se para a estação. Presumia que não seria um trabalho muito prolongado. Já conhecia a extensão e os detalhes do espólio de Timothy Hanson. E tudo devia estar em perfeita ordem. Afinal, Hanson sempre fora um homem cuidadoso.

Foi só em meados de novembro que Pound sentiu-se em condições de entrar em

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contato novamente com os Armitages. Embora, como única beneficiária, somente a Sra. Armitage fosse convidada a comparecer ao escritório da Gray's Inn Road, ela apareceu com o marido e o filho a reboque.

– Estou na maior perplexidade – declarou ele. – Em relação a quê? – perguntou a Sra. Armitage. – Em relação ao espólio de seu falecido irmão. Deixe-me explicar. Como advogado

do Sr. Hanson, eu já conhecia a extensão e localização de seus vários bens. Assim, fui capaz de examinar cada item sem tardança.

– E onde está tudo? – perguntou ela, bruscamente. Pound recusou-se a ser apressado ou pressionado. – Na realidade, ele possuía sete grandes áreas, que constituíam a sua fortuna. Juntas,

representavam 99 por cento do que ele possuía. Em primeiro lugar, havia a empresa de compra e venda de moedas raras e preciosas, na City. Devem saber que era uma empresa inteiramente privada, tendo o falecido Sr. Hanson como único proprietário. Ele fundou e desenvolveu a empresa sozinho. Também possuía, através da empresa, o prédio em que ela estava instalada.

Comprou-o com uma hipoteca pouco depois da guerra, quando os preços dos imóveis eram baixos. A hipoteca há muito que já fora liquidada. A empresa possuía o título de propriedade e ele possuía a empresa.

– E quanto vale tudo isso? – perguntou Armitage sênior. – Não há qualquer dúvida quanto a isso – disse Pound. – Com o prédio, a empresa,

o estoque, o renome comercial e os aluguéis ainda em vigor das outras três companhias que também estão instaladas no prédio, o valor é de 1 milhão e 250 mil libras.

Armitage júnior deixou escapar um assovio entr os dentes e sorriu. – Como pode saber com tanta exatidão? – insistiu Armitage sênior. – Porque foi por essa quantia que ele vendeu tudo. – Ele fez o quê? – Três meses antes de morrer, depois de rápidas negociações, o falecido Sr. Hanson

vendeu a empresa, com tudo o que possuía, a um rico negociante holandês, que há muitos anos desejava adquiri-la. A quantia paga foi a que mencionei.

– Mas ele continuou a trabalhar quase até morrer! – protestou a Sra. Armitage. – Quem mais sabia disso?

– Ninguém – respondeu Pound. – Nem mesmo os empregados estavam a par. A transferência por escritura pública do prédio foi cuidada por um advogado da província, que não disse nada a ninguém. A parte restante da venda foi acertada por um instrumento particular entre o Sr. Hanson e o comprador holandês. Houve condições. Os cinco empregados deveriam continuar no trabalho. O próprio Sr. Hanson deveria continuar como único gerente, até sua morte ou o final deste ano, o que quer que acontecesse primeiro. É claro que o comprador achou que isso era uma simples formalidade.

– Já esteve com esse homem? – perguntou a Sra. Armitage. – Sr. de Jong? Já, sim. Trata-se de um eminente negociante de moedas raras e

preciosas de Amsterdam. Examinei também toda a documentação. Está perfeita, em ordem, é absolutamente legal.

– E o que ele fez com o dinheiro? – indagou Armitage sênior. – Guardou no banco. – Então não há problema – disse o filho. – Outro bem considerável era a mansão em Kent, uma excelente propriedade, a casa

situada no meio de 20 acres de parque bem cuidado. Em julho último, ele fez uma hipoteca de 95 por cento sobre o valor da propriedade. Por ocasião de sua morte, pagara apenas uma das prestações trimestrais de abatimento. A sociedade imobiliária que detinha a hipoteca

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tornou-se a credora principal e agora está com o título de propriedade. Tudo perfeitamente legal.

– Quanto ele recebeu pela propriedade? – perguntou a Sra. Armitage. – Duzentas e cinqüenta mil libras. – Que guardou no banco? – Isso mesmo. Havia ainda o apartamento em Mayfair. Ele vendeu-o na mesma

ocasião, usando outro advogado para cuidar de toda a documentação. O preço de venda foi de 150 mil libras, uma quantia que ele também guardou no banco.

– Com isso, temos três bens – disse o filho. – E o resto? – Além dessas três propriedades, ele tinha uma valiosa coleção particular de

moedas. Essa coleção também foi vendida, aos poucos, através de sua empresa, por pouco mais de meio milhão de libras, ao longo de um período de vários meses. As faturas foram mantidas em separado, sendo encontradas no cofre em sua mansão. Tudo perfeitamente legítimo, cada venda cuidadosamente registrada. Ele depositava as quantias recebidas, em seguida a cada venda. Deu instruções ao seu corretor para que liquidasse toda a sua carteira de investimentos, antes do dia 1.O de agosto. Havia ainda o Rolls Royce. Ele vendeu-o por 48 mil libras e alugou outro para substituí-lo. A companhia já recuperou a posse do veículo. E, finalmente, ele tinha contas correntes em diversos bancos. Sua fortuna total, pelo que pude levantar... estou convencido de que nada faltou... monta a pouco mais de três milhões de libras.

– Está querendo dizer que antes de morrer ele liquidou tudo o que possuía, convertendo em dinheiro e depositando no banco, sem contar nada a ninguém, sem levantar qualquer suspeita em todos os que o conheciam ou trabalhavam na empresa? – disse Armitage sênior.

– Eu não poderia ter me exprimido melhor – comentou Pound. – Não íamos mesmo querer todas aquelas porcarias – comentou Armitage júnior. –

Íamos querer que fosse tudo liquidado. Sendo assim, ele passou os últimos meses de sua vida trabalhando para você, meu caro advogado. Some tudo, salde as dívidas, deduza os impostos e nos entregue logo o dinheiro.

– Infelizmente, isso não é possível – disse Pound. – Por que não? Havia uma pontada estridente de raiva na voz da Sra. Armitage. – O dinheiro de todos esses bens que foi depositado... – O que aconteceu? – Ele retirou. – Ele o quê? – Ele depositou o dinheiro. E depois tornou a tirar tudo. De uma vintena de bancos,

ao longo de um período de muitas semanas. Mas retirou tudo o que depositara. Em dinheiro. – Não se pode retirar três milhões de libras em dinheiro! – exclamou Armitage

sênior, incrédulo. – Claro que se pode – disse Pound, suavemente. – Não tudo de uma vez, é claro,

mas em quantias de até 50 mil libras, de grandes bancos, com aviso prévio. Há muitas empresas que operam com vultosas quantias de dinheiro vivo. Como os cassinos e casas de apostas, por exemplo. E os negociantes do mercado de segunda mão de quase todos os produtos...

Ele foi interrompido por um crescente tumulto. A Sra. Armitage estava batendo na mesa com o punho rechonchudo. O filho estava de pé, sacudindo o indicador ameaçadoramente. O marido procurava assumir a postura de um juiz prestes a pronunciar uma sentença particularmente severa. Todos gritavam ao mesmo tempo.

– Ele não pode ter feito uma coisa dessas... deve ter metido o dinheiro em algum

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lugar... é melhor você descobrir... vocês dois estavam metidos juntos nisso... Foi o último comentário que fez com que a paciência de Pound finalmente se

esgotasse. – Silêncio! A explosão foi tão inesperada que os três ficaram em silêncio. Pound apontou um

dedo diretamente par o jovem Armitage. – Quero que retire o seu último comentário imediatamente. Estou sendo bem claro? Armitage júnior remexeu-se na cadeira. Olhou para os pais, que o fitavam com

expressões furiosas. – Desculpe – murmurou ele. Pound voltou a falar: – Essa manobra em particular já foi usada antes, geralmente para evitar o

pagamento de impostos. Fico surpreso por descobrir que Timothy Hanson resolvera recorrer a tal manobra.

Raramente dá certo. Pode-se retirar dos bancos uma quantia vultosa, mas utilizá-la é um problema inteiramente diferente. Ele poderia ter depositado num banco estrangeiro. Mas isso não faz sentido, já que sabia que ia morrer. Não poderia ter o desejo de enriquecer banqueiros já ricos. Ele deve ter guardado o dinheiro em outro lugar. Ou comprado alguma coisa. Pode demorar, mas o resultado é sempre o mesmo. Se o dinheiro foi depositado, será encontrado. Se algum outro bem foi adquirido, isso também será descoberto. Além de qualquer outro fator, há o pagamento do imposto sobre os lucros do capital e o imposto de transmissão sobre as vendas das propriedades. Assim, a receita federal vai querer saber de tudo.

– O que você pode fazer pessoalmente? – perguntou Armitage sênior. – Até agora, já entrei em contato com todos os grandes bancos do Reino Unido,

com base na procuração que me foi concedida pelo testamento. Atualmente, tudo está nos computadores. Só que não apareceu qualquer depósito em nome de Hanson. Também divulguei um pedido de informações pelos grandes jornais do país, mas não houve qualquer resposta. Visitei também o antigo motorista e valete, Sr. Richards, que está agora aposentado, em Gales do Sul. Mas ele não pôde ajudar em nada. Não viu grandes volumes de notas... e podem estar certos de que teriam de ser volumes bem grandes... em qualquer lugar. A pergunta agora é a seguinte: o que mais desejam que eu faça agora?

Houve silêncio, enquanto os três pensavam no problema. Particularmente, Martin Pound estava entristecido pelo que o amigo tentara fazer.

Como ele pudera pensar que seria capaz de conseguir executar com sucesso uma manobra daquelas?

Seria que tinha tão pouco respeito pelos homens da receita? Nunca foram essas pessoas vulgares e gananciosas que você devia temer, Timothy, mas sim os fiscais de impostos. Eles são implacáveis, insaciáveis. Não desistem nunca. Por mais bem escondido que esteja o dinheiro, eles vão procurar até encontrar, depois que nós tivermos desistido. E nunca lhes faltarão recursos para essa busca. Enquanto não souberem onde está o dinheiro, continuarão a procurar.

A busca jamais cessará, enquanto eles não descobrirem. Só encerrarão o caso quando souberem o que aconteceu com o dinheiro, mesmo que esteja fora da Inglaterra e além da sua jurisdição.

– Você não poderia continuar a procurar o dinheiro? – perguntou Armitage sênior, com um pouco mais de cortesia do que demonstrara até aquele momento.

– Posso sim, por algum tempo. Tenho feito o melhor possível. Mas preciso cuidar de meu escritório de advocacia e não posso devotar todo o meu tempo à busca.

– O que aconselha? – indagou Armitage.

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– Há sempre o pessoal da receita – disse Pound, suavemente. – Mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo, terei de comunicar-lhes o que aconteceu.

– E acha que eles vão descobrir o dinheiro? – perguntou a Sra. Armitage, ansiosamente. – Afinal, de certa forma, eles também são beneficiários.

– Tenho certeza que sim – declarou Pound. – Eles vão querer a sua parte. E contam com todos os recursos oficiais à sua disposição.

– E quanto tempo eles vão levar? – indagou Armitage sênior. – Essa é outra questão muito diferente. Minha experiência é a de que eles

geralmente não têm qualquer pressa. Como os moinhos de Deus, eles operam lentamente. – Meses? – perguntou Armitage júnior. – Mais provavelmente anos. Jamais desistirão da busca. Mas não terão qualquer

pressa. – Não podemos esperar tanto tempo assim! gritou a Sra. Armitage, estridentemente,

preocupada porque sua ascensão social parecia prestes a ruir. – Deve haver um meio mais rápido.

– Que tal um detetive particular? – sugeriu Armitage júnior. – Prefiro o termo agente particular de investigação – disse Pound. – E eles também

preferem. Mas é uma possibilidade. No passado, já tive a oportunidade de usar um agente

assim, muito respeitado, para localizar beneficiários desaparecidos. Neste caso, os beneficiários estão presentes, mas a herança é que está desaparecida. Mesmo assim...

– Pois trate de contratá-lo! – disse a Sra. Armitage, bruscamente. – Diga a ele para descobrir onde aquele maldito meteu todo o seu dinheiro!

Ah, a ganância, pensou Pound. Se ao menos Hanson pudesse ter previsto como aquelas pessoas se mostrariam gananciosas...

– Está certo. Devemos acertar, no entanto, a questão dos honorários desse agente. Já lhes disse que resta muito pouco das cinco mil libras que foram reservadas para as despesas, que foram mais altas do que se podia esperar. E os serviços desse agente não são baratos. Afinal, ele é o melhor em seu ramo...

A Sra. Armitage olhou para o marido. – Norman... Armitage Sênior engoliu em seco. Estava imaginando a supressão de seu carro e das

planejadas férias de verão. Ele acenou com a cabeça e murmurou: – Eu... hã... pagarei as despesas desse agente, quando acabar o que restou das cinco

mil libras. – Está certo – disse Pound, se levantando. – Contratarei os serviços do Sr. Eustace

Miller. E não tenho a menor dúvida de que ele vai localizar a fortuna desaparecida. Ainda não me falhou uma só vez.

E, com isso, acompanhou-os até a porta e depois foi para sua sala particular, a fim de telefonar para Eustace Miller, agente particular de investigação.

Por quatro semanas, houve silêncio da parte do Sr. Miller. Mas não dos Armitages, que bombardearam Martin Pound com clamores incessantes pela rápida localização da fortuna desaparecida a que tinham direito. Miller finalmente comunicou-se com Martin Pound para dizer que chegara a um impasse em suas investigações e achava que deveria comunicar os seus progressos até aquele momento.

A esta altura, Pound estava tão curioso quanto os Armitages. Marcou um encontro em seu escritório.

Se a família Armitage esperava encontrar um homem ao estilo de Philip Marlowe ou qualquer outra concepção popular de um vigoroso detetive particular, estava fadada ao desapontamento.

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Eustace Miller era baixo, puxando para o gordo, afável, com tufos de cabelos brancos em torno da cabeça redonda, afora isso inteiramente calva, com óculos em formato de meia lua. Usava um terno sóbrio, com uma corrente de ouro de relógio estendendo-se pelo colete. Levantou-se por toda a extensão de sua altura não muito elevada para apresentar o relatório, contemplando a todos por cima dos óculos:

– Iniciei a investigação com três suposições em mente. Uma delas foi a de que o falecido Sr. Hanson efetuou essa performance extraordinária, nos meses em que antecederam sua morte, com total deliberação e um firme propósito. Em segundo lugar, acreditava e ainda acredito que o propósito do Sr. Hanson era negar a seus herdeiros aparentes e aos inspetores fiscais qualquer acesso à fortuna, depois de sua morte...

– Que velho escroto! – exclamou Armitage júnior. – Não se esqueça de que ele não precisava ter-lhes deixado o dinheiro – interveio

Pound, suavemente. – Continue, Sr. Miller. – Obrigado. Em terceiro lugar, presumi que o Sr. Hanson não queimara o dinheiro

nem assumira o considerável risco de tentar contrabandeá-lo para o exterior. levando em consideração o enorme volume que uma soma tão vultosa ocuparia, sob a forma de dinheiro vivo. Em suma, cheguei à conclusão de que ele comprara alguma coisa com o dinheiro.

– Ouro? – indagou Armitage sênior. – Diamantes? – Não. Examinei essas possibilidades e, depois de investigações meticulosas, acabei

por excluílas. Pus-me então a pensar em outro item de grande valor, mas de volume relativamente

pequeno. Consultei a firma de Johnson Matthey, negociantes de metais preciosos. E descobri.

– O dinheiro? – indagaram os três Armitages, em coro. – A resposta. – Desfrutando aquele momento, Miller tirou diversos papéis de sua

maleta. – Aqui estão os documentos relativos à compra pelo Sr. Hanson, por intermédio de Johnson Matthey, de 250 lingotes de 50 onças de platina, com um grau de pureza de 99,95 por cento.

Houve um silêncio aturdido em torno da mesa. – Para ser franco, não foi uma manobra das mais hábeis – comentou o Sr. Miller,

com evidente pesar. – O comprador pode ter destruído todo e qualquer registro de sua aquisição, mas obviamente o vendedor não destruiria os seus registros das vendas. E aqui estão.

– Por que platina? – indagou Pound. – É um caso muito interessante. Sob o atual governo trabalhista, precisa-se de uma

autorização especial para comprar e manter ouro. Os diamantes podem ser facilmente identificados no mercado e não são tão fáceis de vender, como alguém poderia presumir pelo que se lê na ficção mal-informada. A platina não precisa de licença, e possui praticamente o mesmo valor do ouro, sendo um dos metais mais preciosos do mundo. Ao comprar o metal, o Sr. Hanson pagou o preço do mercado livre na ocasião, que era de 500 dólares por onça.

– Quanto ele gastou? – perguntou a Sra. Armitage. – Praticamente todos os três milhões de libras que obtivera por seus bens deste

mundo – respondeu Miller. – Em dólares americanos... e esse mercado é sempre calculado em dólares americanos... dá seis milhões e 250 mil, por um total de 12.500 onças. Ou, como falei antes, 250 lingotes, cada um com 50 onças.

– E para onde ele levou tudo isso? – perguntou Armitage sênior. – Para a sua propriedade em Kent. Miller estava apreciando intensamente aquele momento e aguardava com uma

expectativa de prazer o que ainda tinha a revelar.

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– Mas eu estive lá e nada encontrei – protestou Pound. – Acontece que procurou com um olho de advogado. O meu é de investigador. E,

além disso, eu sabia o que estava procurando. Por isso, não comecei pela casa e sim pelos anexos. Sabia que o Sr. Hanson possuía uma oficina de carpintaria muito bem equipada, num antigo paiol, por trás dos estábulos?

– Claro que sabia – disse Pound. – Era o hobby dele. – Exatamente. E foi ali que concentrei os meus esforços. O lugar fora limpado

meticulosamente, até mesmo com aspirador de pó. – Possivelmente por Richards, o motorista e empregado em geral – comentou

Pound. – Possivelmente, mas provavelmente não. Apesar da limpeza, encontrei algumas

manchas nas tábuas do assoalho e mandei analisar alguns fragmentos. Óleo diesel. Atendendo a um pressentimento, pensei em alguma espécie de máquina, talvez um motor. É um mercado bastante pequeno e encontrei a resposta em uma semana. Em maio passado, o Sr. Hanson comprou um potente gerador diesel de eletricidade, instalando-o em sua oficina. Vendeu-o como ferro velho pouco antes de morrer.

– Certamente para operar as suas ferramentas elétricas – disse Pound. – Não. A corrente normal era suficiente para isso. O gerador era para operar alguma

outra coisa. Algo que precisava de muita energia. Mais uma semana e descobri isso também.

Uma pequena, moderna e eficiente fornalha. Também desapareceu e não tenho a menor dúvida de que as conchas, luvas de amianto e tenazes foram jogados no fundo de algum lago ou rio. Mas creio que posso dizer que fui um pouco mais meticuloso que o Sr. Hanson. Entre duas tábuas do assoalho, fora de vista, coberto por serragem, certamente onde caíra durante as operações dele, descobri isto.

Era a sua pièce de résistance e ele prolongou o momento. Tirou da pasta um tecido branco e abriu-o lentamente. Suspendeu uma pequena lasca de metal, que faiscava ao sol e que devia ter escorrido do lado de uma concha, coagulando e caindo em seguida. Miller ficou esperando, enquanto todos olhavam fixamente para o fragmento.

– Mandei analisar, é claro. Trata-se de platina com um grau de pureza de 99,95 por cento.

– Já descobriu o resto? – sussurrou a Sra. Armitage. – Não, madame, ainda não. Mas vou descobrir. Não se preocupe. O Sr. Hanson

cometeu um erro ao escolher a platina. Possui uma propriedade que ele deve ter subestimado e que, no entanto, é singular. O peso. Agora, pelo menos, sabemos o que estamos procurando. Um caixote de madeira, aparentemente inocente ao primeiro olhar, mas... e isso é o importante... pesando pouco menos de meia tonelada...

A Sra. Armitage jogou a cabeça para trás e soltou um grito rouco, estranho, como um uivo de animal ferido. Miller levantou-se de um pulo. O Sr. Armitage baixou a cabeça entre as mãos.

Tarquin Armitage também se levantou, a pele vermelha de raiva. E gritou: – Mas que velho desgraçado! Martin Pound ficou olhando para o aturdido investigador, com uma expressão

incrédula. – Santo Deus! – murmurou o advogado. – Ele levou tudo para o fundo do mar! Dois dias depois, o sr. Pound comunicou todos os detalhes do caso aos inspetores da

receita. Eles confirmaram os fatos, consternados, e decidiram arquivar o caso. Barney Smee caminhava apressadamente, na maior felicidade, para o seu banco,

confiante de que lá chegaria pouco antes de fecharem para os feriados de Natal. O motivo

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para a sua satisfação estava no bolso interno do paletó: um cheque de uma quantia substancial, mas apenas o último de uma série, que ao longo dos últimos meses lhe garantira uma receita muito maior do que jamais conseguira ganhar em 20 anos no arriscado negócio de metais usados para a indústria de jóias.

Podia dar os parabéns a si mesmo. Acertara em cheio ao assumir o risco, que inegavelmente fora bastante elevado. De qualquer forma, todos hoje em dia estavam sempre procurando se livrar dos impostos. Quem poderia condenar a fonte de sua sorte só porque o homem queria negociar apenas com dinheiro vivo? Barney não tinha a menor dificuldade para compreender o investidor de cabelos prateados que dissera chamar-se Richards e tinha uma carteira de motorista para prová-lo. Evidentemente, o homem comprara os lingotes de 50 onças anos antes, quando o metal estava barato. Vendê-los no mercado aberto, por intermédio de Johnson Matthey, certamente lhe proporcionaria um preço superior. Mas o quanto isso representaria em impostos? Somente o próprio homem podia calcular e era um assunto que Barney Smee preferia não especular.

De qualquer forma, o mercado estava repleto de transações com dinheiro vivo. Os lingotes eram genuínos, com a marca original de Johnson Matthey. Somente o número de série fora apagado.

Isso custara muito dinheiro ao velho. É que, sem o número de série, Smee não podia oferecer-lhe qualquer quantia próxima do mercado aberto. Podia oferecer apenas o preço de retalho ou do produtor, em torno de 440 dólares americanos por onça. Mas era verdade que os números de série poderiam identificar o comprador para os inspetores fiscais. Sendo assim, o velho talvez soubesse o que estava fazendo.

Barney Smee conseguira finalmente passar tudo adiante, ganhando pessoalmente dez dólares em cada onça. O cheque em seu bolso era da transação final, os últimos dois lingotes.

Felizmente, ele não sabia que, em outros pontos da Inglaterra, mais quatro homens também haviam passado o outono vendendo 50 lingotes de 50 onças cada um, através do mercado de segunda mão. E todos haviam adquirido a platina, pagando em dinheiro vivo, de um vendedor de cabelos prateados. Smee saiu da rua transversal e entrou na Old Kent Road. Ao fazê-lo, esbarrou num homem que descia de um táxi. Os dois pediram desculpas e desejaram um feliz Natal. Barney Smee seguiu adiante, feliz da vida.

O outro homem, um advogado de Guernsey, contemplou o prédio diante do qual estacionara, ajeitou o chapéu e encaminhou-se para a entrada. Dez minutos depois, estava reunido numa sala com a aturdida Madre Superiora.

– Posso perguntar-lhe, Madre Superiora, se o Orfanato Saint Benedict está devidamente registrado como uma obra assistencial, nos termos da Lei das Caridades?

– Está, sim. – Ótimo. Então não há violação e não haverá neste caso o imposto de transferência

de capital. – Não haverá o quê? – O que é mais conhecido como "imposto sobre o presente" – disse o advogado,

com um sorriso. – Tenho o prazer de comunicar-lhe que um doador, cujo nome não posso revelar, nos termos das regras de sigilo que regem as relações entre cliente e advogado, decidiu doar uma quantia substancial a seu estabelecimento.

Ele ficou esperando por uma reação, mas a velha freira de cabelos brancos permaneceu em silêncio, completamente aturdida.

– Meu cliente, cujo nome jamais saberá, determinou expressamente que me apresentasse aqui hoje, véspera do Natal, e lhe entregasse este envelope.

Ele tirou um envelope da pasta e estendeu-o para a Madre Superiora. Ela pegou o envelope, mas não fez qualquer menção de abri-lo.

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– Sei que esse envelope contém um cheque visado, adquirido de um sólido banco comercial de Guernsey, em favor do Orfanato Saint Benedict. Não vi o conteúdo, mas essas são as minhas instruções.

– Não há imposto? A freira continuva segurando o envelope, confusa. As doações de caridade eram

poucas e espaçadas, geralmente obtidas à custa de muito esforço. – Nas Ilhas do Canal, temos um sistema fiscal diferente do resto do Reino Unido –

explicou o advogado, pacientemente. – Não temos o imposto de transferência de capital. E também praticamos o sigilo bancário. Uma doação em Guernsey ou nas Ilhas não acarreta qualquer imposto. Se o beneficiário é domiciliado ou residente no resto do território do Reino Unido, então fica sujeito às suas leis fiscais. A menos que esteja isento, como acontece com as instituições registradas nos termos da Lei das Caridades. E agora, se fizer a gentileza de assinar este recibo por um envelope, conteúdo ignorado, eu terei cumprido minhas obrigações. Meus honorários já foram acertados e eu gostaria de voltar para junto da minha família o mais depressa possível.

Dois minutos depois, a Madre Superiora estava sozinha. Lentamente, passou uma espátula pela beira do envelope e tirou o que havia lá dentro. Era um único cheque visado. Ao ver a cifra, ela tateou à procura do rosário e pôs-se a rezar rapidamente. Quando recuperou um pouco do controle, foi até o oratório encostado na parede e ali ficou ajoelhada, rezando, por meia hora.

De volta à mesa, sentindo-se ainda fraca, ela olhou novamente para o cheque, no valor de mais de dois milhões e meio de libras. Quem podia ter tanto dinheiro assim? Ela procurou imaginar o que deveria fazer com tanto dinheiro. Talvez um fundo de investimentos. Havia o suficiente para sustentar o orfanato para sempre. E certamente era mais do que suficiente para realizar o sonho de toda a sua vida: tirar o orfanato daquele bairro miserável de Londres e transferi-lo para o ar puro e saudável dos campos. Podia dobrar o número de crianças. Podia...

Eram pensamentos demais que afloravam, mas um deles tentava se sobrepor. Qual seria? Ah, isso mesmo, o jornal de domingo de duas semanas atrás. Alguma coisa lhe atraíra a atenção, provocara uma pontada de anseio. Era isso, o lugar para onde iriam. E com dinheiro suficiente em suas mãos para comprá-lo e sustentá-lo sempre. Um sonho que se convertia em realidade.

Um anúncio na seção imobiliária. Um solar à venda em Kent, no meio de um parque de 20 acres...

O TRAPACEIRO O Juiz Comyn acomodou-se confortavelmente no assento do canto do

compartimento de primeira classe, abriu o exemplar do dia do Irish Times, deu uma olhada nas manchetes e depois largou-o no colo.

Haveria tempo suficiente para ler o jornal durante a lenta viagem de quatro horas até Tralee. Ele olhou pela janela, contemplando o movimento intenso na estação de Kingsbridge, nos últimos minutos que antecediam a partida da composição de Dublin-Tralee, que o levaria tranqüilamente ao cumprimento dos seus deveres na principal cidade do Condado de Kerry. Esperava vagamente que pudesse ficar sozinho no compartimento, a fim de providenciar algum trabalho que tinha para fazer.

Mas isso não iria acontecer. Mal o pensamento lhe passara pela cabeça quando a porta do compartimento se abriu e alguém entrou. O juiz não olhou. A porta tornou a se

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fechar e o recém chegado pôs uma valise na prateleira de bagagem. Depois, sentou em frente ao juiz, no outro lado da mesa de nogueira envernizada.

O Juiz Comyn finalmente fitou-o. Seu companheiro de viagem era um homem baixo e magro, com cabelos cor de areia e olhos castanhos muito tristes, com um ar de quem estava sempre pedindo desculpas. O terno era surrado, com colete, a gravata de tricô. O juiz avaliou-o como alguém associado a cavalos, talvez um escriturário. E voltou a olhar pela janela.

Ouviu o guarda gritar lá fora para o maquinista da velha locomotiva a vapor. Um momento depois, ouviu o som estridente do apito do guarda. No instante mesmo em que a locomotiva despejava a primeira lufada de vapor e a composição se sacudia para a frente, um vulto grande e afogueado, todo vestido de preto, passou correndo pela janela. O juiz ouviu o barulho da porta do vagão se abrindo, a poucos metros de distância, depois o baque de um corpo caindo no corredor. Segundos depois, sob o acompanhamento de um resfolegar incessante, o vulto de preto apareceu na entrada do compartimento, arriando com visível alívio no outro canto.

O Juiz Comyn tornou a olhar. O recém-chegado era um padre de rosto avermelhado. O juiz desviou os olhos para a janela. Não queria iniciar uma conversa, pois fora criado na Inglaterra.

– Por todos os santos, padre, quase perdeu o trem – ele ouviu o homem magro comentar.

Houve mais algum resfolegar do padre. – Foi por pouco, meu filho. Depois disso, felizmente, os dois ficaram em silêncio. O Juiz Comyn observou a

estação de Kingsbridge ficar para trás e sumir, sendo substituída por fileiras nada animadoras de casas sujas de fuligem, que naquele tempo constituíam os subúrbios ocidentais de Dublin. A locomotiva da Great Southern Railway Company foi acelerando, o barulho ritmado das rodas sobre os trilhos aumentando de intensidade. O Juiz Comyn pegou o jornal.

A manchete e a notícia principal eram sobre o primeiro-ministro, Eamonn de Valera, que no dia anterior, na Câmara, dera o seu apoio total ao ministro da agricultura, na questão do preço das batatas. Lá no fundo, ao pé da página, havia uma notícia de poucas linhas, em uma coluna, informando que um certo Sr. Hitler anexara a Áustria. O editor era um homem que sabia definir as suas prioridades, pensou o Juiz Comyn. Não havia muita coisa a mais de interessante para se ler. Cinco minutos depois, ele dobrou o jornal, tirou da valise uma batelada de documentos e pôs-se a examiná-los. Os campos verdejantes de Kildare deslizavam pelas janelas, ao deixarem a cidade de Dublin.

– Senhor... – murmurou uma voz tímida, à sua frente. Oh, Deus, pensou o juiz, ele quer conversar! O Juiz Comyn fitou os olhos

suplicantes à sua frente. – Importa-se se eu usar uma parte da mesa? – perguntou o homem. – Claro que não. – Obrigado, senhor – disse o homem, com o sotaque arrastado do sudoeste do país. O juiz retomou o estudo dos documentos relacionados com um complexo processo

civil que teria de julgar quando voltasse a Dublin. Ele esperava que a visita ao Condado de Kerry, como juiz do tribunal de circuito, para presidir as audiências trimestrais em Tralee, não apresentasse tais complexidades. A sua experiência naqueles tribunais rurais era de questões de extrema simplicidade, decididas pelos júris locais, que muitas vezes apresentavam veredictos desconcertantemente ilógicos.

Ele não se deu ao trabalho de olhar quando o homem magro tirou do bolso um baralho não muito limpo e começou a distribuir as cartas em colunas, para jogar paciência.

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Sua atenção só foi atraída segundos depois, quando ouviu um som insólito. Tornou a levantar os olhos.

O homem magro estalara a língua entre os dentes, num esfoço de grande concentração, e estava olhando atentamente para as cartas abertas ao pé de cada coluna. O Juiz Comyn constatou à primeira vista que um nove vermelho não fora posto sobre um dez preto, muito embora as duas cartas estivessem plenamente visíveis. O homem magro não percebeu e tirou mais três cartas. O Juiz Comyn reprimiu a sua irritação, voltando a examinar os documentos.

Não tenho nada a ver com isso, disse a si mesmo. Mas há algo de irresistível num homem que está jogando paciência, ainda mais

quando está jogando mal. Em menos de cinco minutos, a concentração do juiz no processo se rompera irremediavelmente e ele estava olhando para as cartas. Havia uma coluna vazia na direita, mas um rei aberto na coluna três não ia para o lugar vago. Ele tossiu. O homem magro levantou os olhos, alarmado.

– O rei deve ir para o lugar vago – disse o juiz, gentilmente. O homem magro baixou os olhos para as cartas, percebeu a oportunidade e tratou de

transferir o rei. A carta que pôde agora ser aberta era uma dama e acompanhou o rei. Antes de acabar, o homem magro conseguira mover sete cartas legitimamente. A coluna que começava com o rei terminava agora com um dez.

– E o nove vermelho – disse o juiz. – Pode passá-lo agora. O nove vermelho foi transferido. Outra carta pôde ser aberta. Era um ás, que foi

para cima do jogo. – Creio que vai conseguir – comentou o juiz. – Duvido muito, senhor – disse o homem magro, sacudindo a cabeça, com seu olhar

triste. – Jamais consegui fazer uma paciência até o fim, em toda a minha vida. – Pois continue a jogar – sugeriu o Juiz Comyn, com crescente interesse. Com a ajuda dele, a paciência foi finalmente concluída com sucesso. O homem

magro contemplou as cartas com uma expressão aturdida. – Aí está, você conseguiu – disse o juiz. – Mas não sem a ajuda do meritíssimo – murmurou o homem de olhos tristes. –

Tem uma boa cabeça para as cartas, senhor. O Juiz Comyn se perguntou se o homem poderia saber que ele era um juiz. Mas

acabou chegando à conclusão de que o homem estava simplesmente usando uma forma de tratamento comum na Irlanda naquele tempo, aplicada a qualquer pessoa digna de algum respeito.

Até mesmo o padre largara a sua coletânea de sermões do falecido Cardeal Newman e estava olhando para as cartas.

– Ora, não é tanto assim – comentou o juiz, que jogava um pouco de bridge e pôquer com seus colegas no Kildare Street Club.

O homem magro parou de jogar paciência e começou a dar mãos de cinco cartas, que examinava antes de tornar a juntá-las ao baralho. Finalmente, largou as cartas e suspirou.

– Falta muito tempo para chegarmos a Tralee – murmurou ele, ansiosamente. Recordando posteriormente os acontecimentos, o Juiz Comyn nunca pôde

determinar exatamente quem fora o primeiro a mencionar a palavra pôquer. Mas desconfiou que podia ter sido ele próprio. O fato é que pegou o baralho e distribuiu algumas mãos de cinco cartas para si mesmo. Ficou satisfeito ao constatar que uma das mãos era um full-hand, de valete e dez.

Com um meio sorriso, como se estivesse assustado com a própria ousadia, o homem magro pegou uma das mãos e puxou-a para a sua frente.

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– Aposto, senhor, um penny imaginário, que não consegue tirar mão melhor do que esta.

– Está certo. O juiz deu uma segunda mão, que levantou à sua frente. Não era um full-hand, mas

tinha um par de noves. – Pronto? – perguntou o Juiz Comyn. O homem magro assentiu. Baixaram as cartas. O homem magro tinha uma trinca de

cincos. – Acontece que eu não pedi novas cartas, como teria direito – disse o juiz. – Vamos

experimentar outra vez, meu caro. Foi o que fizeram. O homem magro pediu duas cartas e o juiz pediu três. O juiz

ficou com mão melhor. – Ganho o meu penny imaginário de volta – comentou o juiz. – Tem toda razão, senhor. Foi uma ótima mão. Tem um jeito para as cartas. É uma

coisa que sempre posso perceber, embora pessoalmente eu não o tenha. Uma questão de sorte.

– Não passa de dedução e risco calculado – corrigiu o juiz. A esta altura trocaram nomes... ou melhor, apenas sobrenomes, como era a prática

naquele tempo. O juiz omitiu seu título, apresentando-se apenas como Comyn. O outro homem disse chamar-se O'Connor. Cinco minutos depois, entre Sallins e Kildare, experimentaram um joguinho de pôquer amigável. Cinco cartas foram distribuídas para cada um, da maneira apropriada. É claro que não havia qualquer dinheiro envolvido. Depois da terceira mão, O'Connor comentou:

O problema é que nunca consigo me lembrar de quem apostou o quê. O meritíssimo tem uma boa memória para ajudá-lo.

– Tenho mesmo. Triunfante, o Juiz Comyn vasculhou a sua valise em busca de uma caixa de

fósforos. Gostava de fumar um charuto depois do café da manhã e outro quando acabava o jantar e jamais usava um isqueiro de gasolina num bom havana.

– É como se fosse para valer – murmurou O'Connor, espantado, quando o juiz distribuiu 20 fósforos para cada um.

Jogaram uma dúzia de mãos, com alguma satisfação. Mas é muito difícil jogar pôquer com apenas duas pessoas. Se alguém está com péssimas cartas, trata de "passar", encerrando a partida. Pouco depois da cidade de Kildare, O'Connor perguntou ao padre:

– Não quer jogar com a gente, padre? – Infelizmente, não vai ser possível, pois nada entendo de jogos de cartas –

respondeu o padre, soltando uma risada. Ele fez uma breve pausa, antes de acrescentar: – É verdade que, nos tempos do seminário, costumávamos jogar whist de vez em quando.

– É o mesmo princípio, padre – comentou o juiz. – Depois que se aprende, nunca mais se esquece. Recebe cinco cartas, pode pedir outras, até o máximo de cinco, se não estiver satisfeito com as primeiras. Avalia então se a sua mão é boa ou ruim. Se é boa, aposta que é melhor do que as nossas; se não é, recusa a aposta e passa.

– Não tenho certeza se devo apostar – murmurou o padre, em dúvida. – São apenas palitos de fósforos, padre – disse O'Connor. – Não há nenhum truque? O'Connor alteou as sobrancelhas. O Juiz Comyn soltou uma risada condescendente,

dizendo: – Não, padre, não há nenhum truque. A sua mão é avaliada de acordo com uma

escala precisa de valores. Olhe aqui... O juiz vasculhou em sua valise e encontrou uma folha em branco de papel pautado.

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Tirou do bolso interno do paletó uma caneta de ouro e começou a escrever. O padre espiava atentamente.

– Em primeiro lugar, está o royal flush. São cinco cartas, todas do mesmo naipe, em seqüência, começando com o ás. Como devem estar em seqüência, as outras cartas são obrigatoriamente o rei, dama, valete e dez.

– Eu já tinha imaginado isso – murmurou o padre, cautelosamente. – Depois vem o four, quatro cartas iguais. – O juiz escreveu por baixo do royal

flush. – São quatro asses, quatro reis, quatro damas e assim por diante, até quatro dois. A quinta carta não tem importância. É claro que quatro ases valem mais do que quatro reis e assim por diante. Entendido?

O padre assentiu. – Vem em seguida o full hand – disse O'Connor. – Ainda não – corrigiu o Juiz Comyn. – O straight flush vem em seguida, meu

amigo. O'Connor bateu na testa, ao jeito de quem admite que é um tolo. – Claro, claro – disse ele. – O straight flush, padre, é como o royal, só que não

começa pelo ás. Mas cinco cartas devem ser do mesmo naipe e estar em seqüência. O juiz escreveu essa descrição por baixo da palavra four na folha de papel. – E agora vem o full hand do Sr. O'Connor, que significa três cartas de um tipo e

duas de outro. Se as três cartas são dez e as duas são damas, diz-se que é um full hand de dez com

dama. O padre tornou a assentir. O juiz continuou pela lista, explicando cada mão, através de flush, seqüência, trinca,

dois pares, um par e ás mandando. Ao terminar, ele disse: – É claro que um par ou a mão misturada, com ás mandando, são jogos muito fracos

para se apostar. O padre olhou para a lista. – Posso consultar esse papel? – Claro que pode – disse o Juiz Comyn. – Fique com ele, padre. – Como vamos jogar apenas com palitos de fósforo... – disse o padre. Afinal, jogos de cartas entre amigos não constituíam um pecado. Não por palitos de

fósforo. Os palitos foram divididos em três pilhas e começaram a jogar. Nas primeiras duas mãos, o padre saiu do jogo cedo demais e ficou observando os

outros dois. O juiz ganhou quatro fósforos. Na terceira mão, o rosto do padre se iluminou. – Isso não é bom? – disse ele, mostrando as cartas aos outros dois. Era mesmo bom, um full hand de valete com rei. O juiz saiu do jogo, exasperado.

O'Connor explicou, pacientemente: – É um jogo muito bom, padre. Mas não deveria nos mostrar, entende? Se

soubermos o que tem na mão, não vamos apostar, se o nosso jogo for inferior. Suas cartas devem ficar... hã... como no confessionário.

Isso fazia sentido para o padre e ele repetiu: – Como no confessionário. Não posso dizer uma só palavra a ninguém, não é

mesmo? Ele pediu desculpas e recomeçaram. Durante 60 minutos, até Thurles, jogaram 15

mãos. A pilha de fósforos diante do juiz era cada vez maior. O padre estava quase sem nada e a O'Connor, de olhos tristes, restava apenas a metade de sua pilha. Ele também cometia muitos erros, enquanto o bom padre parecia completamente desorientado. Somente o juiz

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jogava um pôquer objetivo, calculista, avaliando as opções e chances com sua mente de treinamento legal. O jogo confirmava a sua teoria da preponderância da mente sobre a sorte. Pouco depois de Thurles, os pensamentos de O'Connor pareceram vaguear. O juiz teve de chamar-lhe a atenção para o jogo por duas vezes.

– A verdade é que não acho muito interessante ficar jogando por palitos de fósforo – confessou O'Connor, depois da segunda vez. – Vamos terminar por aqui?

– Pois eu estou gostando bastante – comentou o juiz. O que era perfeitamente natural, pois quem está vencendo sempre gosta do jogo. – Ou poderíamos torná-lo mais interessante – disse O'Connor, quase como se

pedisse desculpas. – Por natureza, não sou um homem de apostar. Mas alguns shillings não fariam mal algum.

– Se é o que você quer, está bem – disse o juiz. – Mas devo ressaltar que você já perdeu alguns fósforos.

– Ora, meritíssimo, minha sorte deve mudar em breve – disse O'Connor, com um sorriso insinuante.

– Neste caso, devo deixar o jogo – disse o padre, incisivamente. – Tenho apenas três libras e esse dinheiro deve durar por todo o tempo que vou passar com minha mãe em Dingle.

– Mas sem a sua participação não poderemos jogar, padre – protestou O'Connor. – Afinal, são uns poucos shillings...

– Até mesmo uns poucos shillings são demais para mim, meu filho. A Santa Madre Igreja não é lugar para homens que querem ter moedas tilintando em seus bolsos.

– Já tenho a solução – interveio o juiz. – Você e eu, O'Connor, dividiremos os palitos de fósforo.

Depois, emprestaremos ao bom padre uma quantidade igual de palitos, que agora passarão a ter um valor. Se ele perder, não cobraremos a nossa dívida. Se ganhar, ele nos paga os palitos emprestados e fica com o saldo.

– O meritíssimo é um gênio – disse O'Connor, bastante impressionado. – Mas não posso jogar a dinheiro – protestou o padre. Por algum tempo, houve um silêncio desolado. – E se o que ganhasse fosse para alguma caridade da Igreja? – sugeriu O'Connor

finalmente. – O Senhor não teria qualquer objeção, não é mesmo? – O bispo é que teria objeções – disse o padre. – E provavelmente terei de enfrentá-

lo primeiro. Mesmo assim... há o orfanato em Dingle. Minha mãe é que prepara as refeições lá e

as crianças sentem muito frio no inverno, com o preço do carvão na altura em que está... – Um donativo! – exclamou o juiz, virando-se para os seus dois companheiros

aturdidos. – Qualquer coisa que o padre ganhar, acima do que lhe emprestarmos, será o nosso donativo conjunto para o orfanato. O que acham da idéia?

– Acho que nem mesmo o nosso bispo poderia recusar um donativo ao orfanato... – murmurou o padre.

– E o donativo será o nosso presente em troca de sua companhia no jogo de pôquer – disse O'Connor. – Está perfeito!

O padre concordou e recomeçaram a jogar. O juiz e O'Connor dividiram os palitos de fósforo em duas pilhas. O'Connor observou que poderiam ficar sem ter com que apostar, pois havia menos de 50 palitos. O Juiz Comyn resolveu esse problema também. Quebraram os palitos ao meio, as metades com a cabeça valendo o dobro.

O'Connor declarou que estava levando o dinheiro de suas férias pessoais, mais de 30 libras, sendo esse o seu limite para jogar. Não havia motivo para que recusassem o cheque de Comyn, pois ele era obviamente um homem de bem.

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Isso feito, emprestaram ao padre dez palitos com cabeça e quatro sem, a metade de cada um. O juiz pôs-se a embaralhar as cartas, enquanto dizia:

– Como vamos fazer as apostas? – O'Connor levantou uma metade sem cabeça. – Dez shillings está bom? A proposta deixara o juiz um pouco abalado. Os 40 palitos que ele tirara da caixa

eram agora 80 metades, representando um total de 60 libras esterlinas, o que era uma quantia considerável em 1938. O padre tinha 12 libras à sua frente e os outros dois homens estavam com 24 libras cada, calculando-se por aqueles valores. Ele ouviu o padre suspirar e murmurar:

– Começa-se com um penny e logo se chega a uma libra. Que Deus me ajude! O juiz assentiu abruptamente. Não precisava ter se preocupado. Ganhou as duas primeiras mãos e 10 libras com

elas. Na terceira mão, O'Connor saiu logo no começo, perdendo os seus 10 shillings da aposta inicial. O padre apostou quatro dos seus palitos de uma libra. O Juiz Comyn tornou a olhar para as suas cartas. Estava com um full hand de valete com sete. Não podia deixar de ser melhor. Só restavam sete libras ao padre.

– Cubro as suas quatro libras, padre – disse ele, empurrando os palitos para o centro da mesa – e aposto mais cinco.

– Oh, Deus! – murmurou o padre. – Estou quase sem palitos. O que posso fazer? O'Connor interveio: – Só pode fazer uma coisa, se não quiser que o Sr. Comyn levante outra vez a

aposta para uma quantia que não poderá cobrir. Empurre cinco libras para a frente e pague para ver as cartas dele.

– Pago para ver as cartas – disse o padre, como se receitasse um ritual, enquanto empurrava os palitos para a frente.

O juiz baixou o full hand na mesa e ficou esperando. O padre mostrou um four de dez. Ele recuperou as suas nove libras, ganhando ainda as nove libras do juiz e os 30 shillings de abertura da mesa. Com as duas libras que lhe restara antes, ele estava agora com 21 libras e 10 shillings.

Assim, eles chegaram a Limerick Junction, que não ficava perto de Limerick, mas sim nos arredores de Tipperary, um fenômeno típico do sistema ferroviário irlandês. Algumas pessoas embarcaram ali, outras desembarcaram, mas ninguém perturbou o jogo de pôquer, ninguém entrou no compartimento.

Em Charleville, o padre ganhara dez libras de O'Connor, que estava agora com uma expressão preocupada. O ritmo do jogo diminuiu. O'Connor tinha a tendência de sair cedo demais e muitas mãos acabavam com outro jogador fazendo a mesma coisa. Pouco antes de Mallow, por acordo geral, eliminaram todas as cartas menores, ficando o baralho com 32 cartas, de sete para cima.

O jogo voltou a se acelerar. Ao passarem por Headford, o padre continuava ganhando. O pobre O'Connor estava

agora reduzido a 12 libras e o juiz a 20 libras. – Não seria uma boa idéia se eu pagasse agora as 12 libras com que comecei? –

sugeriu o padre. Os outros concordaram e receberam de volta os seus empréstimos de seis libras. O

padre ainda ficava com 32 libras para jogar. O'Connor continuou a jogar cautelosamente, só uma vez apostando alto e ganhando 10 libras, com um full hand que venceu dois pares e um flush. Os lagos de Killarney passaram pela janela sem serem admirados.

Perto de Farranfore, o juiz descobriu-se com a mão pela qual tanto vinha esperando. Depois de pedir três cartas, ele ficou olhando deliciado para as quatro damas e o sete de

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paus em sua mão. O'Connor devia pensar que também tinha uma boa mão, pois continuou no jogo quando o juiz cobriu a aposta de cinco libras do padre e aumentou em mais cinco. O'Connor perdeu a coragem e passou. Mais uma vez, estava reduzido a 12 libras.

O juiz mordeu a unha do polegar. Depois, cobriu as 10 libras do padre e apostou mais 10 libras.

– Cinco minutos para Tralee – avisou o condutor, metendo a cabeça pela porta do compartimento.

O padre olhou para a pilha de palitos no centro da mesa e depois para a sua própria pilha, representando 12 libras, com uma expressão desolada.

– Não sei... – murmurou ele. – Oh, Deus, não sei o que fazer! – Não pode levantar mais a aposta, padre – disse O'Connor. – Terá de cobrir, pagar

para ver. – Acho que tem razão. – Tristemente, o padre empurrou 10 libras em palitos para o

centro da mesa, ficando apenas com duas libras. – E eu estava indo tão bem... Deveria ter dado ao orfanato as 32 libras com que estava antes. E agora só me restam duas libras para as criancinhas.

– Eu lhe darei cinco libras para compensar, padre – disse o Juiz Comyn. – Aqui está. Four de damas.

O'Connor deixou escapar um assovio. O padre olhou para as damas abertas sobre a mesa e depois para as cartas que continuavam em suas mãos. E perguntou, espantado:

– Os reis não valem mais do que as damas? – Valem, sim, se tiver quatro reis – disse o juiz. O padre abriu suas cartas sobre a mesa. – Mas eu tenho! E era verdade. O padre respirou fundo e depois murmurou: – Que o Senhor me ajude, mas pensei que estava tudo perdido. Imaginei que estava

com aquele tal de royal. Recolheram as cartas e os fósforos, enquanto o trem entrava em Tralee. O'Connor

guardou o baralho. O juiz despejou os fósforos quebrados num cinzeiro. O'Connor tirou 12 notas de uma libra do bolso e entregou ao padre.

– Que Deus o abençoe, meu filho – disse o padre. Pesaroso, o Juiz Comyn pegou o seu talão de cheques. – São 50 libras exatamente, padre, se não me engano. – Se é o que diz, deve estar certo. Já tinha esquecido com quanto começamos. – Pois lhe asseguro que devo 50 libras ao orfanato. – O juiz preparou-se para

preencher o cheque. – Falou que era o Orfanato Dingle? Esse é o nome que devo escrever? O padre pareceu ficar perplexo, comentando: – Acho que eles nem mesmo têm uma conta no banco, de tão pequeno que é o lugar. – Nesse caso, é melhor eu fazer o cheque em seu nome pessoal – disse o juiz,

ficando à espera do nome. – Mas também não tenho uma conta bancária – disse o padre, ainda mais

desconcertado. – Jamais cuidei de dinheiro. – Há uma outra solução. – O juiz preencheu o cheque rapidamente, destacou-o e

entregou ao padre. – É um cheque ao portador. O Banco da Irlanda em Tralee poderá descontá-lo. E estamos chegando bem a tempo. Eles fecharão dentro de 30 minutos.

– Quer dizer que vão me dar dinheiro no banco em troca disso? – murmurou o padre, segurando o cheque com extremo cuidado.

– Exatamente – disse o juiz. – Mas tome cuidado para não perdê-lo. Como é um cheque ao portador, qualquer pessoa pode descontá-lo. E agora tenho de pedir licença para ir embora. Foi uma viagem agradável, embora um tanto dispendiosa. Muito bom dia,

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O'Connor, padre. – O Senhor devia estar dando as suas cartas, padre – disse O'Connor, tristemente. –

Poucas vezes vi uma mão para o pôquer tão boa. Mas aprendi a lição. Não quero mais saber de jogar cartas em trens, pelo menos com a Igreja.

– E eu providenciarei para que o dinheiro esteja no orfanato, que tanto precisa, antes do sol se pôr – disse o padre.

Separaram-se na plataforma da estação de Tralee e o Juiz Comyn seguiu para o seu hotel.

Queria dormir cedo, para começar as audiências no tribunal pela manhã. Os dois primeiros casos foram bem simples, os réus declarando-se culpados por

pequenas violações. O juiz determinou multas nos dois casos. Os jurados de Tralee permaneceram numa ociosidade forçada.

O Juiz Comyn estava com a cabeça abaixada sobre os documentos em sua mesa quando o terceiro réu foi chamado. Somente a parte superior da peruca do juiz estava visível para o tribunal lá embaixo.

– Que Ronan Quirk O'Connor se apresente! – gritou o meirinho. Houve um arrastar de passos. O juiz continuou a escrever. – Você é Ronan Quirk O'Connor? – perguntou o meirinho ao novo réu. – Sou eu mesmo. – Ronan Quirk O'Connor, você é acusado de trapacear no jogo de cartas, violando o

Artigo 17 da Lei do Jogo de 1845. Você é acusado, Ronan Quirk O'Connor, de no dia 13 de maio do corrente ano, no Condado de Kerry, por fraude, recursos ilegítimos e manipulação de cartas, ter subtraído uma quantia em dinheiro de Lurgan Keane. O que tem a dizer da acusação? É culpado ou inocente?

Durante essa declaração, o Juiz Comyn largou a caneta com um cuidado excepcional e ficou olhando para os papéis, como se desejasse poder se manter assim no decorrer de toda a audiência. Mas finalmente levantou os olhos.

O homenzinho magro, de olhos castanhos tristes, fitou-o fixamente, através do tribunal, completamente aturdido. O Juiz Comyn olhou para o réu com igual horror.

– Inocente – sussurrou O'Connor. – Um momento – disse o juiz. O tribunal ficou em silêncio, olhando para o juiz, que se manteve impassível. Por

trás da máscara de seu rosto, os pensamentos estavam em turbilhão. Poderia suspender a audiência imediatamente, alegando que já travara conhecimento anteriormente com o réu.

Mas ocorreu-lhe o pensamento de que isso implicaria um novo julgamento, já que o réu não fora formalmente acusado, com todos os custos extras para os contribuintes. E disse a si mesmo que tudo se resumia a uma questão: poderia conduzir o julgamento de maneira objetiva e justa, oferecendo ao júri um resumo autêntico e isento dos fatos? Chegou à conclusão de que podia.

– Faça o júri prestar juramento, por favor – disse ele. Foi o que o meirinho fez, perguntando em seguida a O'Connor se tinha um

representante legal. O'Connor disse que não e desejava conduzir a própria defesa. O Juiz Comyn

praguejou interiormente. A justiça exigia agora que ficasse do lado do réu contra a promotoria.

E foi o promotor que se levantou agora para apresentar os fatos, declarando que eram bastante simples. No dia 13 de maio último, um merceeiro de Tralee, chamado Lurgan Keane, embarcara em Dublin no trem com destino a Tralee. Por acaso estava levando consigo uma vultosa quantia em espécie, a saber, 71 libras.

No transcorrer da viagem, entrara num jogo de azar com o réu e uma terceira

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pessoa, usando um baralho apresentado pelo réu. As perdas que sofrera haviam sido tão extraordinárias que ele se tornara desconfiado. Em Farranfore, uma parada antes de Tralee, descera do trem sob um pretexto qualquer, abordara um empregado da empresa ferroviária e lhe pedira que avisasse à polícia de Tralee que estivesse presente na plataforma por ocasião da chegada do trem.

Sua primeira testemunha fora um sargento da força policial de Tralee, um homem corpulento, que prestou depoimento sobre a prisão. Declarou que, com base em informação recebida, estava presente na estação de Tralee a 13 de maio último, quando o trem de Dublin chegara. Ali, fora abordado por um homem que mais tarde soubera ser o Sr. Lurgan Keane, que lhe apontara o réu.

Pedira ao réu que o acompanhasse ao posto policial de Tralee, no que fora atendido. Ali, exigira que o réu mostrasse tudo o que tinha nos bolsos. Entre diversas coisas, havia um baralho que o Sr. Keane identificara como o que fora usado no jogo de pôquer durante a viagem de trem.

O baralho fora enviado a Dublin para ser examinado. Ao receber o relatório, o réu O'Connor fora acusado de violação.

Até ali, estava tudo certo. A testemunha seguinte foi o representante da Divisão de Fraudes da Garda, em Dublin. Era evidente que o homem também estava no trem no dia anterior, pensou o juiz, só que viajando de terceira classe.

O perito em fraudes declarou que o exame efetuado constatara que o baralho em questão era marcado. O promotor exibiu um baralho e o perito identificou-o. O baralho foi-lhe entregue. E o promotor indagou de que maneira as cartas estavam marcadas.

– De duas maneiras, meritíssimo – disse o perito, dirigindo-se ao juiz. – Pelo que se costuma chamar de "sombreado" e pelo que é conhecido como "apara". Cada um dos quatro naipes é indicado pelo verso das cartas, aparando-se as beiradas de maneiras diferentes, nas duas extremidades. Assim, é possível identificá-la, não importa o lado em que a carta esteja virada.

Nesse sistema, a margem branca é aparada de maneira a variar de largura. Essa variação, embora mínima, pode ser observada do outro lado da mesa, indicando assim ao trapaceiro quais os naipes que estão na mão do oponente. Falei bem claro?

– Foi um modelo de precisão – disse o Juiz Comyn, olhando para O'Connor. – As cartas altas, de ás a dez, são distinguidas das outras pelo sombreado. Nesse

método, usa-se um preparado químico para provocar o ligeiro escurecimento ou clareamento de pequenas áreas no desenho no verso da carta. As áreas afetadas são muito pequenas, às vezes não maiores que a ponta de um arabesco no padrão. Mas é suficiente para ser reconhecida pelo trapaceiro no outro lado da mesa, porque ele sabe exatamente o que está procurando.

– Seria necessário que o trapaceiro também desse as cartas desonestamente? – indagou o promotor.

Ele estava consciente de que o júri acompanhava fascinado o depoimento. Afinal, era uma mudança espetacular, para quem estava acostumado apenas aos roubos de cavalos.

– A distribuição das cartas de maneira desonesta pode acontecer, mas não seria necessária – admitiu o perito em fraudes.

– Seria possível ganhar contra um jogador assim? – insistiu o promotor. – Não, senhor, seria inteiramente impossível. O trapaceiro simplesmente se

recusaria a apostar quando percebesse que o adversário estava com uma mão superior, mas faria apostas elevadas quando a sua mão fosse melhor.

– Não tenho mais perguntas a fazer – disse o promotor. Pela segunda vez, O'Connor recusou-se a reinquirir. – Tem o direito de formular à testemunha qualquer pergunta que desejar, relativa ao

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depoimento – disse o Juiz Comyn ao réu. – Obrigado, meritíssimo, mas não tenho perguntas a fazer – declarou O'Connor. A terceira e última testemunha de acusação foi o merceeiro de Tralee, Lurgan

Keane, que encaminhou-se para o banco das testemunhas como um touro entrando na arena, lançando um olhar furioso para O'Connor.

Impelido pelo promotor, ele contou sua história. Efetuara uma transação em Dublin naquele dia, o que explicava a vultosa quantia em espécie que estava levando. No trem, fora "engodado" para um jogo de pôquer, em que sempre se julgara muito hábil. Antes de Farranfore, já perdera 62 libras. Ficara desconfiado porque, não importando quão boa fosse a sua mão, sempre acabava perdendo.

Descera do trem em Farranfore, convencido de que fora trapaceado, pedindo que a polícia estivesse presente na estação de Tralee, por ocasião da chegada da composição.

– E eu estava certo! – gritou ele, olhando para os jurados. – O homem estava jogando com as cartas marcadas!

Os 12 jurados assentiram solenemente. Desta vez, O'Connor levantou-se, parecendo mais triste do que nunca, tão

inofensivo quanto um bezerro desmamado, a fim de reinquirir a testemunha. O Sr. Keane fitou-o, furioso.

– Diz que fui eu quem apresentou o baralho? – perguntou O'Connor, o tom de voz tão triste quanto o olhar.

– Isso mesmo! – De que maneira? Keane ficou desconcertado. – Ora, tirou o baralho do bolso. – Isso mesmo, tirei do bolso. Mas o que fiz com as cartas? Keane pensou por um momento. – Começou a jogar paciência. O Juiz Comyn, que quase começara a acreditar na possibilidade da lei das

coincidências extraordinárias, teve novamente um pressentimento terrível. – E lhe dirigi a palavra em primeiro lugar ou foi o contrário que aconteceu? O corpulento merceeiro ficou desconcertado. – Eu é que lhe falei primeiro. – Virando-se para o júri, ele acrescentou: – O homem

estava jogando paciência tão mal que não pude deixar de ajudar. Havia pretos sobre vermelhos e vice-versa que ele não percebia. Assim, apontei-lhe alguns.

– Mas quando chegamos ao pôquer, fui eu ou você quem sugeriu um joguinho amistoso?

– Foi você! – declarou Keane, com a maior veemência. – E sugeriu também que tornássemos o jogo mais interessante, com pequenas apostas! Só que nada tinham de pequenas, pois 62 libras é dinheiro que não acaba mais!

Os jurados tornaram a assentir. Era verdade. O suficiente para manter um homem por quase um ano.

– Pois eu declaro que foi você quem sugeriu o pôquer e foi você quem propôs as apostas – disse O'Connor a Keane. – Antes disso, não estávamos jogando com palitos de fósforos?

O merceeiro pensou por um momento. A honestidade transparecia em seu rosto. E algo se avivou em sua memória. Não podia mentir.

– Pode ter sido eu mesmo. – Uma nova idéia ocorreu-lhe e virou-se outra vez para os jurados. – Mas não é justamente essa a manobra? Não é o que os trapaceiros sempre fazem? Eles engodam as suas vítimas para o jogo!

Obviamente, ele estava apaixonado pela palavra "engodar" e o juz teve a impressão

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de que era nova no vocabulário dele. Os jurados assentiram mais uma vez. Evidentemente, também detestariam ser engodados.

– Só mais uma coisa – disse O'Connor, com a mesma voz triste. – Quando acertamos as contas, quanto me pagou?

– Paguei 62 libras – respondeu Keane, furioso. – Um dinheiro que ganhei com muito esforço!

– Não foi bem assim. Quanto perdeu para mim pessoalmente? O merceeiro de Tralee pensou mais um pouco. E sua expressão se tornou desolada. – Não foi para você que perdi. Quem ganhou tudo foi o fazendeiro. – E eu ganhei dele? – perguntou O'Connor, parecendo agora à beira das lágrimas. – Não – respondeu a testemunha. – Você perdeu cerca de oito libras. – Não tenho mais perguntas a fazer – declarou O'Connor. O Sr. Keane já estava prestes a deixar o banco das testemunhas quando a voz do

juiz deteve-o: – Um momento, Sr. Keane. Disse que o fazendeiro ganhou. Quem era exatamente

esse fazendeiro? – O outro homem no compartimento, meritíssimo. Era um fazendeiro de Wexford.

Não era um bom jogador, mas tinha uma sorte infernal. – E tem o nome dele? O Sr. Keane ficou perplexo. – Não, não tenho. Era o acusado quem estava com as cartas, tentando me trapacear. O caso estava encerrado para a acusação e O'Connor levantou-se para fazer a

própria defesa. Prestou juramento. Sua história era simples, além de lamentosa. Comprava e vendia

cavalos para viver, não havia qualquer crime nisso. Gostava de um joguinho de cartas, mas nunca fora muito bom nisso. Uma semana antes da viagem de trem de 13 de maio estava tomando uma cerveja em Dublin quando sentira algo duro se encostar em sua coxa, no banco em que estava sentado.

Era um baralho, aparentemente esquecido por um ocupante anterior do lugar. E nada tinha de novo. Pensara em entregá-lo ao homem do bar, mas chegara à conclusão que um baralho tão velho não tinha mesmo qualquer valor. Guardara-o, distraindo-se a jugar paciência em suas longas viagens à procura de um potro ou uma égua a comprar para os clientes.

Se as cartas estavam marcadas, ele o ignorava totalmente. Nada sabia daquela história de aparar e sombrear de que o perito falara. Nem mesmo saberia o que procurar no verso das cartas que encontrara no pub.

Quanto a trapacear, perguntou ele aos jurados, não é verdade que os trapaceiros sempre ganham? Perdera oito libras e 10 shillings para um estranho, naquela viagem. Era um tolo, porque o fazendeiro sempre tirara as melhores cartas. Se o Sr. Keane apostara e perdera mais, talvez fosse porque era um homem mais estouvado. Mas quanto a trapacear, era algo em que jamais se envolvia; e se o fizesse, certamente não teria perdido tanto do seu dinheiro, que ganhava com muito esforço.

Na reinquirição, o promotor tentou encontrar contradições na história. Mas o homenzinho apegou-se a ela, com uma tenacidade triste, humilde. O promotor finalmente teve de sentar.

O'Connor voltou a seu lugar e ficou aguardando o sumário do caso. O Juiz Comyn fitou-o atentamente. Você é mesmo um pobre coitado, O'Connor, pensou ele. Ou sua história é verdadeira e, neste caso, é um jogador realmente azarado. Ou não é e, neste caso, deve ser o trapaceiro mais incompetente do mundo. De qualquer forma, perdeu duas vezes, usando as suas próprias cartas, para estranhos num trem.

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Ao fazer o sumário, no entanto, o juiz não podia apresentar tal alternativa. Ressaltou aos jurados que o acusado alegara ter encontrado o baralho num pub de Dublin, ignorando que as cartas estavam marcadas. Particularmente, os jurados podiam ou não querer acreditar nessa história, mas o fato era que a acusação não a desmentira e, pela lei irlandesa, o ônus da prova lhe cabia.

Em segundo lugar, o acusado alegara que não fora ele, mas sim o Sr. Keane, quem propusera tanto o jogo de pôquer quanto as apostas. E o Sr. Keane reconhecera que isso podia ser verdade.

Mas isso não era o mais importante. A acusação se baseava no fato de que o réu ganhara dinheiro por meios fraudulentos da testemunha Lurgan Keane. Quaisquer que fossem os meios, honestos ou não, a testemunha Keane admitira sob juramento que o acusado não lhe ganhara dinheiro. Tanto a testemunha como o acusado haviam perdido dinheiro, embora fosse grande a diferença nas quantias. Por causa disso, a acusação não tinha base. Era seu dever orientar o júri a absolver o réu. Conhecendo o seu tribunal, o juiz também ressaltou que faltavam apenas 15 minutos para o intervalo do almoço.

É preciso um caso de jurisprudência profunda para manter um júri de Kerry afastado do almoço.

Os 12 jurados voltaram em dez minutos com o veredicto de inocente. O'Connor foi dispensado e deixou o tribunal.

O Juiz Comyn tirou a toga na sala por trás do recinto do tribunal, pendurou a peruca e saiu do prédio, para ir almoçar também. Sem o traje de juiz, ele passou pela multidão diante do prédio do tribunal sem ser reconhecido.

Já ia atravessar a rua para o hotel principal da cidade, onde sabia que um belo salmão do Shannon aguardava a sua atenção, quando viu, saindo do pátio do hotel, uma limusine reluzente, de marca famosa. Quem estava ao volante era O'Connor.

– Está vendo o seu homem? – disse uma voz aturdida ao lado do juiz. Ele virou-se e deparou com o merceeiro de Tralee parado ao seu lado. – Estou, sim. Havia um passageiro todo de preto sentado ao lado de O'Connor. E Keane

perguntou, a voz ainda mais espantada: – E está vendo quem vai ao lado dele? O carro aproximou-se deles. O clérigo que tanto se preocupava com os órfãos de

Dingle presenteou-os com um sorriso afável, levantando dois dedos esticados para os homens da calçada. E depois o carro se afastou.

– Aquilo era uma bênção eclesiástica? – perguntou o merceeiro. – Pode ter sido, mas duvido muito. – E o que ele está fazendo com aqueles trajes? – insistiu Lurgan Keane. – Porque ele é um padre da Santa Madre Igreja. Ao que o merceeiro arrematou: – Nada disso. Ele é um fazendeiro de Wexford.

F I M