hespanha, antonio m. o direito no início da era moderna e a imaginação antropológica da antiga...

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O DIREITO DO INÍCIO DA ERA MODERNA E A IMAGINAÇÃO ANTROPOLÓGICA DA ANTIGA CULTURA EUROPÉIA 1 EARLY MODERN LAW AND THE ANTHROPOLOGICAL IMAGINATION OF OLD EUROPEAN CULTURE ANTÓNIO MANUEL HESPANHA * Resumo Desde a metade do século XIX até a década de 70 do século XX, a história jurídica e constitucional foi não raro inspirada pela hipótese de que organização social e axiomas da tradição européia formam uma continuidade. Igualmente a terminologia jurídica – desde o antigo latim até os modernos pandectistas – é muitas vezes a mesma: superficiais interpretações dos textos fazem com que essa assertiva se torne auto- evidente. A própria peculiar forma em que os historiadores do Direito costumam escrever história fez o resto: (I) o significado é separado do contexto do imaginário subjacente da sua época e dos usos do discurso pragmático; (II) os textos jurídicos são isolados de seu contexto não-jurídico; (III) a interpretação é moldada por categorias contemporâneas; (IV) entidades discursivas de origem “nativa” são reduzidas a antecipações de modernos conceitos de regras. Mas, mais do que isso, o aspecto insólito, exótico, bizarro e perturbador do imaginário social na doutrina jurídica é omitido e sacrificado no altar da perene continuidade do “direito ocidental”. No texto que segue, tenciona-se explorar as inesperadas criações do imaginário medieval e do imaginário da era moderna em sua plena singularidade, desde a imprecisa distinção entre pessoas e coisas até a rígida correlação entre emoções e comportamento externo, desde a quase irrelevância da vontade livre na formação da interação humana até a surpreendente contigüidade entre lei e amor. Esses são alguns exemplos que tornam a cultura institucional medieval e do início da era moderna tão distinta do anódino retrato que prevalece na atual história do Direito. Minha estruturação metódica discrepa de algumas das mais comuns tendências da historiografia legal clássica: a) é distinta da hermenêutica pelo fato de que o que deve ser revelado é não simplesmente a identidade de um significado “humano”, mas, principalmente, as particularidades de passadas elaborações mentais; b) discrepa da concepção do direito natural, realçando as ilimitadas variações de percepções, valores e emoções humanas; 1 Traduzido por: Desembargador Pedro Henrique Particheli Rodrigues * Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa - Portugal.

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Artigo sobre o direito no início da era moderna do Prof. Antonio Manuel Hespanha.

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  • O DIREITO DO INCIO DA ERA MODERNA E A IMAGINAO ANTROPOLGICA DA ANTIGACULTURA EUROPIA1

    EARLY MODERN LAW AND THE ANTHROPOLOGICAL IMAGINATION OF OLD EUROPEANCULTURE

    ANTNIO MANUEL HESPANHA*

    Resumo

    Desde a metade do sculo XIX at a dcada de 70 do sculo XX, a histriajurdica e constitucional foi no raro inspirada pela hiptese de queorganizao social e axiomas da tradio europia formam umacontinuidade. Igualmente a terminologia jurdica desde o antigo latim atos modernos pandectistas muitas vezes a mesma: superficiaisinterpretaes dos textos fazem com que essa assertiva se torne auto-evidente.

    A prpria peculiar forma em que os historiadores do Direito costumamescrever histria fez o resto: (I) o significado separado do contexto doimaginrio subjacente da sua poca e dos usos do discurso pragmtico; (II)os textos jurdicos so isolados de seu contexto no-jurdico; (III) ainterpretao moldada por categorias contemporneas; (IV) entidadesdiscursivas de origem nativa so reduzidas a antecipaes de modernosconceitos de regras. Mas, mais do que isso, o aspecto inslito, extico,bizarro e perturbador do imaginrio social na doutrina jurdica omitido esacrificado no altar da perene continuidade do direito ocidental.

    No texto que segue, tenciona-se explorar as inesperadas criaes doimaginrio medieval e do imaginrio da era moderna em sua plenasingularidade, desde a imprecisa distino entre pessoas e coisas at a rgidacorrelao entre emoes e comportamento externo, desde a quaseirrelevncia da vontade livre na formao da interao humana at asurpreendente contigidade entre lei e amor. Esses so alguns exemplos quetornam a cultura institucional medieval e do incio da era moderna todistinta do andino retrato que prevalece na atual histria do Direito.

    Minha estruturao metdica discrepa de algumas das mais comunstendncias da historiografia legal clssica:

    a) distinta da hermenutica pelo fato de que o que deve ser revelado nosimplesmente a identidade de um significado humano, mas,principalmente, as particularidades de passadas elaboraes mentais;

    b) discrepa da concepo do direito natural, realando as ilimitadas variaesde percepes, valores e emoes humanas;

    1 Traduzido por: Desembargador Pedro Henrique Particheli Rodrigues* Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa - Portugal.

    MoniqueRealce

  • 2c) rejeita a clssica histria das idias, pois acentua o carter inconsciente eno-intencional das elaboraes humanas;

    d) finalmente, diverge da histria social de idias porque afirma a capacidadeconstitutiva de representaes mentais (por exemplo, a capacidade que elastm de formao de realidade e interao social).

    Palavras-chaves

    Jurista Advogado Coisa Sujeito de Direitos - Lei das Obrigaes LeiNatural Livre arbtrio Ser humano Status - Animal - Obrigao -Contrato

    Abstract

    From mid-19th century to the 70 of 20th century, legal and institutionalhistory has been at a time inspired by the hypothesis that social and axiomsof European tradition form a continuum. As legal terminology - from lateLatin to modern pandectistic - is often the same, shallow interpretations ofthe texts of texts turn this assumption in a self-evidence.

    The very peculiar way in which legal historians use to write history has donethe rest: (i) meaning is decontextualised from both underlying epochalmental imagery and pragmatic discourse uses; (ii) legal texts are cut fromtheir non legal intertext; (iii) interpretation is moulded by contemporarycategories; (iv) original indigenous discursive entities are reduced toanticipations of modern concepts or rules. But, more than this, the odd,exotic, bizarre, perturbing, side of social imagery present in legal doctrine issilenced and sacrificed on the altar of the everlasting continuity of westernlaw.

    The following text intends to explore the unexpected creations of medievaland early modern legal imagery in their full strangeness. From the blurreddistinction between persons and things to the rigid contingency betweenemotions and external behaviour; from the almost irrelevance of free will inthe shaping of human interaction till the surprising contiguity between lawand love. Those are a few examples that render medieval and early moderninstitutional culture so distinct from the anodyne portrait prevailing incurrent legal history.

    My methodological enterprise dissents from some of the most commontrends of classical legal historiography:

    It is separated from hermeneutics by the fact than what is to be unveiled isnot the even identity of a human meaning, but rather the oddities ofunfamiliar past mental constructs.

    It diverge from natural law conceptions by stressing the unlimited variationsof human perceptions, values and emotions;

  • 3It rejects the classical history of ideas while the unconscious and un-intentional character of mental constructs is stressed.

    It finally dissent from social history of ideas because it assumes theconstitutive ability of mental representations (i.e., the ability of shapingreality and social interaction).

    Keywords

    Jurist Lawyer Thing Subject of rights Duty law Natural law Free will Human-being Status Animal Obligation - Contract

    1. Sujeitos e Objetos

    Em um captulo do seu Tratado a respeito de Justia e Lei, escrito em 1586, Domingo de

    Soto, um dominicano espanhol, famoso telogo e jurista, expressou uma estranha teoria a

    respeito da capacidade dos animais e mesmo das feras de serem sujeitos de direito.

    Pode realmente afirmar-se que, a seu modo, os animais tm direito depropriedade das pastagem [...]. Parece tambm que a rainha das abelhas temdomnio sobre o enxame [...] e, entre os irracionais, parece que o feroz leo reinasobre os demais animais; da mesma forma que o abutre parece exercer domniosobre os frgeis pssaros. O mesmo pode ser dito sobre o inanimado firmamento,que tem domnio sobre este mundo sublunar, difundindo calor e vigor provenientedaquilo de que se nutre e que o desenvolve. (IV, 1 2, p. 284, col. 1)

    A idia de que animais, feras e mesmo coisas inanimadas, como o firmamento ou uma

    rocha, estavam jungidos por liames de propriedade ou de poder poltico no era uma metfora

    potica de um erudito imaginativo. Personagens prticos, escrevendo textos prosaicos a

    respeito de temas quotidianos da vida, compartilharam a mesma convico de que irracionais

    ou coisas podiam ser sujeitos dos mesmos direitos e faculdades jurdicas reivindicados por

    seres humanos.

    Ulpiano, num conhecido texto jurdico romano, escreveu a respeito do direito natural

    como sendo uma norma que a natureza ensina a todos os animais [...], que se impe na terra

    ou nos mares, mesmo aos pssaros (Ulpiano, Digesto de Justiniano, 1, 1, 1, 3). E um jurista

    alemo do incio da era moderna, Hermann Wissman, escrevendo a respeito da lei relativa s

  • 4cores, sustentou a primazia de algumas delas (como a cor prpura e a dourada), como um

    direito em si, que poderia ser reivindicado judicialmente (De iure circa colores, Lipsiae, 1683).

    Infinitos exemplos de ilustraes prticas dessa pan-jurisdio do mundo no senso

    comum da era moderna podem ser dados. Os animais eram responsabilizados por ferimentos

    (actio de pauperie) e sujeitos a sanes criminais. Na metade do sculo XIX, um jurista portugus

    (Dias Ferreira) d notcia de um processo contra um boi que quebrara o brao de algum,

    numa pequena aldeia do norte de Portugal, Alfndega da F (Ferreira, 1870, I, 6). Um sculo

    antes (aproximadamente em 1751), destruram-se casas, salgaram-se e esterilizaram-se terras

    como punio por haverem sido propriedades dos Duques de Aveiro, portugueses condenados

    por alta traio. De outro lado, propriedades imobilirias tinham direito a servios humanos

    (servido) ou a servides prediais, como direitos de passagem . E, como todos sabem, alguns

    homens ou mulheres (escravos) eram legalmente alienados, como coisas, embora sob um

    regime jurdico um tanto diferente.

    Ntidas distines entre pessoas e coisas simplesmente no existiam, ao menos com a

    mesma estrutura de hoje. A fonte dessa indistinta linha era uma bem diferente concepo da

    ordem do mundo.

    A natureza era um universo mais homogneo, um todo interativo, onde todas as

    criaturas animadas ou no, inteligentes ou irracionais gozavam de proteo judicial ou eram

    juridicamente responsveis perante outros. Este modelo pantesta comum a um vasto mbito

    de culturas foi compartilhado por gregos e romanos. O cristianismo apenas acrescentou o

    pormenor de um Deus Criador. A Criao tornou-se um grande embora polifnico coro

    onde cada indivduo cantava a seu prprio modo uma prece a Deus.

    Embora a Criao fosse um mundo ordenado, essas distintas canes e diferentes

    modos de procurar harmonia tinham a mesma hierarquia em relao ao seu objetivo final. Um

    episdio expressa perfeitamente essa equivalncia das diferentes partculas do ser. Em sua

    ltima entrada em Jerusalm, Cristo foi acusado pelos fariseus de permitir que seus discpulos

    o proclamassem rei. Sua resposta evoca a prpria unidade e inter-relao de criaturas: Digo-

    lhes, mesmo que, se eles (meus seguidores) silenciassem, as prprias pedras me proclamariam

    (Lucas, 19).

    MoniqueRealce

    MoniqueRealce

  • 5De outra parte, uma sensibilidade jurdica mais moderna introduziu uma nova e ntima

    relao entre direito, razo e vontade. Algumas dcadas mais tarde, Francisco Suarez explicou

    que apenas metaforicamente o conceito de direito poderia aplicar-se a coisas inanimadas ou

    irracionais, implicitamente criticando os juristas romanos e Santo Toms por sua adeso a um

    excessivamente amplo conceito de direito.

    Porque Plato escreve ele (Tractatus de legibus ac Deo legislator Conimbricae, 1613,I, ch. 3) [...] aparentemente conceitua direito natural como todas as inclinaesnaturais colocadas nas coisas por seu Criador, pela qual elas freqentementetendem para os atos e finalidades que lhes so prprias [...], mesmo assim deu onome de direito natural participao neste princpio racional, que foi incutida emtodas as criaturas para que pudessem tender para suas finalidades preestabelecidas.Santo Toms (I-II, qu 91, art. 2) disse mesmo que todas as coisas governadas peladivina providncia compartilham de alguma forma da lei eterna, na medida em quederive de sua eficcia, inclinaes a seus peculiares atos e finalidades. Osjurisconsultos, por sua vez, enquanto sustentam que o direito natural comum aoutros seres vivos, tanto quanto aos homens, aparentemente excluem coisasinanimadas da participao nesse direito, um fato que comprovado pelas Institutas(I.ii, 1) e pelo Digesto ( I.1,1).

    Todavia, acrescenta, estreitando o antigo conceito a respeito da extenso do direitonatural como declaro no primeiro captulo, direito deve ser aplicado a coisasirracionais no em seu sentido estrito, mas apenas metaforicamente [...]. Nemmesmo os rudes animais so capazes de (participao no) direito em sentidoestrito, uma vez que no tm uso da razo ou de liberdade; dessarte, somente poruma espcie de metfora que o direito pode ser-lhes aplicado. Pois, emboramesmo que difiram de coisas irracionais sob esse aspecto, isto , que sejam guiadosno simplesmente pela fora da natureza, mas tambm pelo conhecimento einstintos naturais, um instinto que para eles uma forma de lei, embora a segundainterpretao dos jurisconsultos possa, portanto, ser sustentada de alguma forma,inobstante isso, falando em termos absolutos, essa interpretao metafrica e,em grande extenso, dependente de analogia.

    Essa espetacular mudana no conceito de direito no se deveu a um progresso da razo

    ou a um avano em inteligncia. Simplesmente, o contexto teolgico e antropolgico de

    pensamento legal modificou-se.

    A controvrsia dos universais abalou o conceito de uma ordem mantida por

    contingncia interna, havendo introduzido o conceito oposto de uma energia individual e

    autnoma (impetus), como base da organizao dos elementos. Em outras palavras, no mundo

    humano, o imprio da vontade como fonte da ordem social estava chegando.

  • 6Tambm, na teologia catlica ps-Trento, por outra srie de fatores, o livre arbtrio

    humano tornou-se um valor fundamental, tanto mais quanto na polmica teolgica

    antiprotestante sobre a salvao, o tema central debatido foi a antinomia entre predestinao e

    livre arbtrio.

    Portanto, o universo juridicamente ativo teve que restringir-se a seres capazes de

    realizar voluntariamente aes racionais. Uma distino decisiva foi ento introduzida entre

    seres humanos e no-humanos. Seres humanos tornaram-se nitidamente o centro e os nicos

    sujeitos da ordem jurdica. S os homens podem ser sujeitos de direitos e obrigaes, declara

    enfaticamente o artigo primeiro do Cdigo Civil Portugus (1867). A unidade original da

    criao foi destruda. Desde ento, a personalidade jurdica tornou-se o monoplio e tambm a

    especificidade de seres humanos. Com isso, a existncia de seres humanos que eram

    juridicamente considerados como coisas em breve se tornaria insustentvel.

    2. Substncia e papis indivduos e status

    Discutindo a relao jurdica entre a Coroa e a Casa dos Duques de Bragana, que se

    tornaria na Casa Real Portuguesa do sculo XVII em diante, um jurista lusitano escreveu que

    diversas pessoas simblicas podiam ser vistas no corpo do rei, cada uma retendo e

    conservando sua natureza e qualidades e devendo ser considerada distinta das outras (cf.

    Pegas, 1669, ibid). Essa mais uma expresso de superposio de entidades simblicas no

    mesmo corpo fsico, como foi descrito por Ernst Kantorowicz em seu clssico trabalho (Kings

    two bodies, 1957).

    O que deve ser sublinhado aqui que tal reverberao simblica no era exclusiva de

    pessoas reais. A sociedade de acordo com o conceito jurdico era uma infinita pletora de

    pessoas, cada uma correspondendo a uma particular insero de qualquer indivduo na

    organizao social, isto , correspondendo a um status. Como Manuel Pegas, um praxista

    portugus do sculo XVII , escreveu, no nem novo, nem contrrio aos termos da razo

    que um mesmo homem exera diferentes direitos, sob diferentes aspectos (Pegas, 1669, XI,

    ad Ord., 2, 35, cap. 265, n. 21). Alm disso, para esse desdobramento de personalidades, havia

    o exemplo teolgico da Santssima Trindade.

  • 7Todavia, a relao entre status e indivduo era ambivalente. Status podia tanto explodir

    como implodir indivduos. A desintegrao individual ocorria quando o status passou a

    representar atributos, condies ou posies do mesmo indivduo (como pai, filho,

    profissional, natural de um reino). Imploso ocorria sempre que um status atribusse uma nica

    identidade a um grupo plural de indivduos Pai e filho so uma e a mesma pessoa no que

    concerne lei, escreveu lvaro Valasco (Valasco, 1588, cons. 126, n. 12). A exploso dava-se

    nos casos acima referidos de desdobramento de uma pessoa nos seus diversos estados. J a

    fora explosiva do status podia mesmo modificar a prpria natureza fsica da substncia

    somtica. Uma filha que herdasse no lugar de seu pai (pelo denominado direito de

    representao) tinha que se tornar num varo para herdar bens que s podiam ser havidos em

    herana por homens (v. g. , feudos).

    Do ponto de vista jurdico, os indivduos eram to despiciendos quanto o status era

    fundamental. O direito era uma espcie de pintura impressionista em que a rgida materialidade

    das coisas (ou pessoas fsicas) era substituda pelos incontveis reflexos nelas provocados pelas

    diferentes luzes da interao social. Portanto, substncias fsicas tornaram-se uma mera

    reverberao cromtica. Seres humanos eram atores que representavam diversos papis sociais.

    Enquanto nossa imaginao centrada no ator, a imaginao moderna era centrada no

    personagem. por isso, provavelmente, que o vocabulrio poltico carecia de palavras para

    expressar um sujeito com vontade livre. Sujeito significava uma pessoa submetida, persona, um

    ator que desempenha um papel preestabelecido. Numa palavra, a definio de indivduos (e

    coisas, como veremos) estava relacionada com suas funes, e no com sua essncia isolada.

    Essa prevalncia de funo sobre atores individuais explicar, de outro lado, o

    implosivo efeito de status. Indivduos com a mesma funo eram classificados como entidades

    transindividuais; como famlias, guildas e todas as espcies de corporaes, para as quais um

    sem-nmero de palavras eram aplicveis (collegium, corpus, societas, communitas, civitas). Portanto, a

    sociedade era vista mais como um conjunto ordenado de status (societ di ceti, Stndengesellschaft,

    socit dordres), do que uma congregao de indivduos. A idia dada por Charles Loyseau, em

    seu Trait des ordres et simples dignits (1610), de uma forma muito significativa:

    [...] E assim, por meio dessas mltiplas divises e subdivises, de muitas ordens formada uma ordem geral, e de muitos estados um bem ordenado estado, em que

  • 8h boa harmonia e consonncia e uma correspondncia e inter-relao desde omais alto at o mais baixo: de forma que, atravs da ordem, um nmero infinitoresulta em unidade. Tal como diz o direito cannico (Decretum, D. 89, c. 7): [...], acomunidade, como todo, no poderia subsistir, a no ser que uma grande ordemde diferenas a preservasse, pois nenhuma criatura pode ser governada por uma emesma qualidade. O modelo das hostes celestiais ensina-nos isto: h anjos earcanjos; por isso, evidentemente, que no so iguais; ao contrrio, diferem uns deoutros em poder e ordem (Prface, 4).

    Em tal imaginrio social, indivduos simplesmente desapareciam, seja por exploso em

    seus diversos papis sociais, seja por sua subsuno a uma funo social transindividual.

    3. Substncia e papis uma propriedade multiforme

    A mesma concepo relacional ou anti-reificante dominava a imaginao das

    coisas. Tambm as coisas estavam longe de ser objetos bem delimitados, com uma

    individualidade singular e propriedades permanentes.

    Tambm aqui h uma pr-compreenso de um universo harmnico, abrangendo

    homens e coisas com funes recprocas. As coisas, conforme o Gnese, foram criadas para o

    homem; dessarte, o natural funcionamento das coisas importava na noo de uso humano.

    Portanto, mais do que objetos fisicamente identificveis, coisas eram dispositivos ou

    processos atravs dos quais desejos (affectiones) podiam ser satisfeitos coisas eram utilidades;

    em termos jurdicos, utilidades juridicamente exigveis. Coisa diz-se numa definio

    jurdica comum (Amaral, 1740, s. v. res, n. 1) um nome genrico, que compreende direito,

    contratos e todas as obrigaes [...]. Considerando a volatilidade e mobilidade do objeto

    definido, mesmo esta ampla acepo era uma definio perigosa porque, inobstante o fato de

    que a definio apenas uma demonstrao da substncia de uma coisa definida, nesse

    particular, poderiam ocorrer muitas variaes, conforme as circunstncias dos casos (cf.

    Amaral, 1740, s. v. res, ad 2, p. 363, 2).

    Realmente, coisas apresentavam-se completamente desmaterializadas. Poderiam existir

    sem nenhum substrato material (como direitos, atuais ou virtuais, a exemplo das expectativas

    de direitos [fundatae intentiones], ou o direito de herdeiros legitimados herana de uma pessoa

    viva). Ou coisas podiam, por outro lado, compartilhar do mesmo objeto material, como os

  • 9diferentes direitos que so suscetveis de incidncia sobre a mesma coisa (propriedade, posse,

    usufruto, reivindicaes comunitrias, direitos fiscais, etc.).

    Este ltimo significado conceitual explica por que os juristas medievais no se

    preocupavam com o fato de que diversos dominia (ou direitos de propriedade) em princpio

    reciprocamente excludentes e sem limites podiam existir, simultaneamente, sobre a mesma

    propriedade. De fato, suas infinitas reivindicaes podiam subsistir, porque se adequavam a

    diferentes utilidades (para diferentes coisas) do objeto fsico comum subjacente.

    Tudo isso significa que as coisas no preexistiam ordem das relaes humanas; ao

    contrrio, foram criadas pelo fato de que essa ordem existia e lhes atribura utilizaes

    precisas.

    Assim como acontece com as pessoas, tambm coisas eram privadas de materialidade

    fsica e reduzidas a funes ou relaes dentro de um mundo organizado.

    4. Ritos e emoes

    O cerimonial era conhecido. Sempre que o Rei de Espanha desejasse alar um corteso

    ao grau de Grande, solenemente convidaria o nobre, na presena da Corte, a cobrir sua cabea

    com um chapu. Essa alterao de protocolo expressava os sentimentos de igualdade e

    intimidade do rei com relao a um sdito particular. Da por diante, a manifestao externa de

    sua situao social, a saber, o fato de que um nobre usasse um chapu diante do rei,

    expressava, por si, o substrato emocional de sua relao.

    Esse um exemplo de uma idia comum, segundo a qual havia uma relao de

    necessidade entre atitudes externas e emoes.

    Presumia-se que a vida emocional tinha uma arquitetura rgida. Sentimentos e emoes

    no dependiam do temperamento individual; ao contrrio, deviam consistir em disposies

    internas, espcie de padres psicolgicos, tal como foram identificados e aquilatados por

    telogos de moral. Um bom exemplo de tal mapeamento da anatomia da alma (Anatomia

    dellAnima, Bergamo, 1991) o conjunto de questes de Santo Toms a respeito de amor e

    amizade, em que diferentes espcies de afetos so bem rigidamente tipificados, assim como sua

    hierarquia, sentimentos relacionados e manifestaes externas (corporais, litrgicas).

  • 10

    Realmente, a existncia dessa ordem natural de emoes transformava afeies em

    entidades objetivas, com dimenses externas bem estabelecidas.

    Tanto quanto a f deveria materializar-se em obras, cada espcie de emoo devia,

    presumidamente, expressar-se em atitudes determinadas, ritos e procedimentos prticos. Desse

    modo, as afeies polticas (affectus) tinham uma lgica objetiva e indisponvel que limitava a

    vontade ou paixes das pessoas e se expressava em atos tipificados (effectus).

    Portanto, os afetos devidos haviam de ser retribudos com comportamentos externos,

    determinados por padres objetivos, nsitos na natureza das coisas. Curvar-se ou levantar-se,

    beijar as mos ou a face, tirar o chapu ou coloc-lo, eram atitudes corporais de que se podiam

    inferir as atitudes internas correspondentes. Mesmo as mais ntimas relaes tinham rigorosas

    regras de significado. A dramaturgia do amor ntimo, por exemplo, dependia no da

    criatividade e do xtase emocional, mas da ordem natural de diferentes posies e prticas

    sexuais. O amor honesto, por exemplo, podia ser manifestado apenas pela dramaturgia

    expressada em uma formulao muito comum (vir cum femina, recta positio, recto vaso, homem

    com mulher, na posio correta, no vaso correto).

    De fato, o vnculo entre effectus e affectus era to forte que o primeiro poderia substituir o

    ltimo. Modificao de atitude externa equivalia a uma alterao de sentimentos internos.

    Essa idia de uma ordem natural de emoes e a contigidade entre emoes e

    comportamento tinham uma forte influncia no objetivo do direito. Enquanto sentimentos

    eram naturalmente (e juridicamente) devidos e necessariamente ligados a atitudes externas,

    ritos e cerimnias no eram apenas questo de estilo ou educao pessoal, mas questo de

    respeito para com a natural ordem das coisas; uma questo de honra ou honestidade

    (honestas), virtualmente postulvel em juzo.

    O direito, o guardio da ordem, estava intimamente relacionado com esse tema.

    Etiqueta e boas maneiras eram tratadas pelo direito e sua observncia podiam ser objeto de

    processo judicial. Precedncia, manifestao corporal como beijar, curvar-se, ajoelhar-se, ou

    mesmo relao sexual ou a forma pessoal de falar eram legalmente regulamentadas e, muitas

    vezes, discutidos judicialmente. Na prtica legal contempornea, litgios a respeito de

    precedncia, etiqueta, cortesia, sinais de reverncia, foram prtica comum.

  • 11

    Ao mesmo tempo em que regulava o comportamento externo, o direito dispunha

    tambm sobre as atitudes internas correspondentes. Isso significa que, embora tratando com a

    alma, somente atravs da interpretao de suas manifestaes externas, o direito medieval e do

    incio da era moderna considerava que o mundo interior era domnio seu. Nesse sentido, o

    direito medieval no era mais cego para a interioridade do que o nosso. Formalismo ou

    ritualismo legais no significam que a relevncia da alma fosse negada; pelo contrrio,

    significava a confiana do direito na possibilidade de controlar a alma, controlando suas

    dimenses corporais, asseverando a correspondncia entre alma e seus sucedneos externos.

    A ambio otimista do direito tratando do controle das mais ntimas dimenses do

    sujeito turvou as fronteiras entre o direito e outras ordens normativas, como a ordem do amor

    e da gratido, explicando a contigidade que os juristas modernos crem haver entre

    mecanismos disciplinares do direito, da religio, do amor, da amizade, da gratido, etc. Sendo a

    Ordem, em sua origem, um ato de amor e sendo as criaturas (inclusive homens) naturalmente

    ligadas por afeies, o direito no seno uma forma (embora rudimentar, de qualquer

    maneira, externa) de corrigir alguns dficits ocasionais dessa compaixo universal. Nesse

    sentido, os deveres religiosos tanto quanto os derivados de amizade, dvidas de gratido,

    compensao de favores, dvidas de honra eram quase deveres jurdicos (quasi legales,

    antidorales). Tais eram: a adorao de Deus e dos Santos, a compensao de favores, a

    remunerao de servios espontneos (como os servios dos vassalos), o pagamento de juros

    de dinheiro, o exerccio da caridade, a proteo de amigos.

    evidente que, dentro desse crculo, compreendem-se quase todos os deveres sociais

    que garantem a sociedade bem organizada, conforme os ideais europeus do incio da era

    moderna (cf. Clavero, 1991; Hespanha, 1993b).

    Tambm o amplo crculo de deveres dos parentes na famlia provinham da ordem das

    emoes. Tomando um exemplo menos direto, podemos citar o jurista portugus Baptista

    Fragoso, quando fez a distino entre o trabalho mercenrio, devido por lei como contraparte

    do salrio, e o trabalho feito por crianas dentro da casa paterna.

    O filho que trabalha para o pai, estando sob sua patria potestas, no tem direito asalrio. De outra forma, no poderia ser diferenciado de um estranho, que notrabalha sem salrio [...] A razo que no se presume que o filho sirva ao pai por

  • 12

    salrio, mas por amor, devendo submisso ao pai (Fragoso, 1641, III, 648, n. 117e 118).

    5. Vontade livre e ordem social

    Desde o sculo XVII, a filosofia social e a teoria constitucional tm sido dominadas

    pela hiptese de uma base voluntria de sociabilidade e de instituies polticas, isto , pela

    hiptese de um contrato social. Mesmo aqueles que procuravam uma origem transcendental

    para convivncia encontravam mormente a pura vontade de Deus para justificar o controle

    poltico e as instituies polticas.

    De outro lado, a teoria social medieval e do incio da era moderna subestimou o papel

    da vontade livre (mesmo que fosse a vontade de Deus) na formao da interao humana. A

    lei de Deus no est em sua vontade, mas em sua compreenso [...], escreveu Domingo de

    Soto em seu tratado a respeito de justia e do direito (Soto, 1556, q. 1, la. 1. l. I, q. 1, art. 1).

    Tambm o direito humano no depende da livre vontade humana. Portanto, a

    doutrina jurdica no tem como fonte nem o dito dos pretores, nem a Lei das Doze Tbuas,

    mas a prpria essncia ntima da filosofia (Soto, 1556, Proemio 5). Ou discutir as razes das

    leis (como direito voluntrio) revela mais ignorncia do que conhecimento do direito

    (Domingo de Soto, ibid).

    Em resumo, direito e vontade estavam unidos pela prudncia.

    A luz no existe na vontade, que cega, mas na compreenso [...]pelo que Plato sabiamente afirma que no se fingir ou asseverarque tudo obedece vontade, mas, pelo contrrio, que nossa vontadeobedece ou prudncia ou razo prtica (Suarez, 1613, Liv. I, cap.1, art. 1).

    A plena justificativa do princpio de que in iure stat ratio pro voluntas aparece um pouco

    mais adiante:

    Alm disso, com respeito ao direito, enquanto pode existir numsujeito humano, inquestionavelmente consiste em um ato da mente, e

  • 13

    de si exige somente um julgamento pelo intelecto, e no um ato devontade, uma vez que, se um ato de vontade necessrio para aobservncia ou a execuo do direito, no o para sua existncia. Odireito precede a vontade do sujeito e obriga essa vontade, enquantoum ato do intelecto necessrio para que o prprio direito possa,desse modo, ser posto diante e em contato direto com a vontade; e,conseqentemente, exige-se um julgamento pela razo. nessesentido, em verdade, que a lei natural comumente referida como ojulgamento natural da razo humana; mais ainda, isto , na medida emque a dita lei existe no homem como em algum que lhe sujeito.Joannes Damascenus, tambm, fala dessa mesma forma, dizendo (DeFide Orthodoxa, Bk. IV, cap. III, [cap. XXII]): a lei de Deus, enquantose destina a ns, incendiando nossas mentes, atrai-as para si prpria edesperta nossas conscincias, que a consideram a lei de nossasprprias mentes. O mesmo verdadeiro, guardadas as propores,relativamente ao direito positivo. Pois, aps ter sido editado, aplica-sea todos os indivduos por meio de um julgamento da razo, de formaque o que no era necessrio per se considerado necessrio emvirtude da lei; dessarte, esse ato de julgamento agora a lei (por assimdizer), como existe no prprio sujeito (Tractatus de Legibus...cit. Liv. I,cap. 3, n. 5).

    Essa desvalorizao do papel da livre vontade na constituio da ordem poltica foi

    difundida na imaginao jurdica e poltica, no incio da era moderna.

    No plano da teoria poltica, provocou uma conscincia permanente do carter natural

    (isto , no-artificial) da regra e de sua limitao atravs de princpios que escapavam ao

    arbitrium do rei.

    Embora alguns proclamem que sacrlego discutir os poderes dos reis, e que suavontade a fonte da lei, uma resposta segura e certa pode ser dada a essa assero.Realmente, o que criminoso e sacrlego afirmar que no legtimo pr emdvida poderes reais. Esse o prprio sinal de poltica sem Deus, suavizada pormeio da sugesto de que no h Deus. Dessarte, algo mpio semelhante aopreceito dos turcos sustentar que a vontade real, inqua, absoluta e sem regras[=arbitrria] tem a fora de lei (Joo Salgado de Arajo, Carta que un cavallerobiscaino escrivi en discursos politicos y militares, la otra del Reyno de Navarra [...], Lisboa,1643, p. 15).

  • 14

    Portanto, a lei real tinha que ser esclarecida pela razo jurdica (ratio iuris), isto , pelo

    conhecimento das coisas humanas e divinas, que era discutida pela filosofia, para tornar-se

    legalmente frtil.

    No plano da teoria jurdica, essa limitao da vontade livre da pessoa pela razo estava

    na origem de uma suspeita, em face da lei, particularmente quando contradizia ou os princpios

    estabelecidos da doutrina jurdica comum (contra tenorem iuris rationis), ou introduzia excees a

    eles (cf. Digesto de Justiniano, 1, 3, 14 a 16).

    Instituies especficas eram tambm entendidas num semelhante molde

    antivoluntarstico. A propriedade, por exemplo, no era esse ilimitado poder sobre as coisas

    que caracteriza nossos conceitos de domnio desde o incio do sculo XIX.

    Para tornar efetivo o conceito de propriedade escreve Luis de Molina (1535 1600) suficiente usar as coisas de acordo com sua prpria vontade, mas noslimites da forma exigida pela natureza e permitida pelas leis divinas e humanas.Assim, uma pessoa senhora de seu escravo, embora no o possa matar, ou proprietria de suas prprias coisas, inobstante no poder destru-las (De Iustitiaet de Iure, Conchae, 1593, I, 18).

    Tambm os contratos no eram esse domnio de escolha e vontade livres, como foram

    considerados pela legislao liberal do sculo XIX.

    Aqui, o protagonismo de elementos voluntarsticos circundado por uma construo

    terica sobre a causa dos contratos (causa contractus) que freqentemente desconsiderada. Para

    os juristas tericos, a causa era o elemento que dava racionalidade vontade, o motivo

    subjacente sem o qual a execuo dos contratos ou no teria sentido ou consistiria em uma

    vantagem eventual para a parte contrria. O jurista francs Domat afirmou, ainda no incio do

    sculo XVIII, tout engagement doit avoir une cause honnte [isto , conforme a ordem das

    coisas]. Outros autores preferiram outra construo dogmtica, centrada na idia da natureza

    dos contratos (todos os contratos tm uma natureza inerente [natura ergo inest omnibus

    contractibus], escreveu Mantica, Vaticanae locubrationes..., citado por Grossi, 1986).

    A natura contractus deveria estruturar os compromissos contratuais com uma lgica

    objetiva, exigida pela prpria natureza da organizao social e incrustada na tradio.

  • 15

    Em qualquer construo dogmtica que observemos, o peso de elementos

    voluntarsticos no imaginrio do contrato era muito leve. Um advogado portugus resumiu

    muito expressivamente esse surpreendente equilbrio entre vontade e racionalidade social

    objetiva. A obrigao escreve Antnio Cardoso do Amaral, 1740, Obligatio, n. 6

    contrada pelas prprias coisas, verbalmente ou por escrito [...] e s vezes tambm pelo simples

    acordo (aliquando tamen obligatur quis solo consensu). Como um grande historiador do direito

    italiano escreveu, para essa viso naturalstica o homem desapareceu, absorvido por uma rerum

    natura (natureza das coisas), plena de energia vital (Grossi, 1991, 161).

    Essa concepo no-consensual de contratos sofreu algumas limitaes pela

    condenao da mentira, contida em preceito (Cumprirs o que sai da tua boca, Deut., 23, 23).

    Todavia, at o (suavizado) triunfo do individualismo na filosofia social da metade do sculo

    XVIII, a irrelevncia da vontade livre na imaginao da interao social seria mantida.

    Uma das mais conhecidas conseqncias da idia do carter objetivo do trato social era

    o severo regime do casamento, em que a vontade era quase impotente na formao da relao

    matrimonial. Mais surpreendente ainda era a maneira pela qual Antnio Cardoso do Amaral

    (Amaral, 1740, v. Obligatio) acentua o fato de que os liames naturais de amizade e gratido

    poderiam, por si mesmos, gerar obrigaes. Portanto, haveria obrigaes oriundas apenas do

    instinto natural, por causa de servios ou benefcios, de tal forma que estamos naturalmente

    obrigados a retribuir os que nos beneficiaram (Amaral, 1740, v. Obligatio, n. 4). O amplo (alm

    disso, comum) objetivo do scholium de Amaral compreensvel somente se considerarmos a

    extenso que servio, graa, piedade ou caridade tinham na estrutura da interao

    humana na sociedade europia do incio da era moderna.

    O princpio de que a natureza (humana) mecanicamente gerava obrigaes

    compreendia, tambm, aqueles deveres impostos por virtudes morais, como liberdade,

    amizade, caridade ou magnanimidade. Os amigos deviam-se mutuamente obsquios

    e favores, pessoas poderosas tinham deveres de proteo para com pessoas humildes

    (amizade, liberalidade). Os ricos deviam esmolas aos pobres (caridade). E magnatas

    (como o rei), por causa da mais alta posio em que estavam situados, deviam tudo isso em

    grau superlativo (magnanimidade).

  • 16

    6. A doutrina jurdica como fonte da antropologia histrica do Antigo Regime.

    Os poucos exemplos dados acima conduzem s mesmas concluses fundamentais: (i)

    nas relaes entre direito e cultura, tanto quanto (ii) nos papis, a histria legal pode

    desincumbir-se dentro de disciplinas histricas e legais.

    Comecemos com o primeiro ponto.

    A primeira concluso a de que as instituies jurdicas podem ser o objeto de uma

    hermenutica cultural que leve revelao de um ncleo de categorias que organizam a

    percepo da sociedade e guiam a avaliao da eqidade e justia. Essas categorias no so

    inorgnicas. So combinadas em uma global e harmnica interpretao da realidade. Peas

    guias desse modelo (ou paradigma) so conceitos (imagens ou representaes), ou oposies

    conceituais, como ordem (versus confuso ou homogeneidade), natureza (versus artifcio), razo

    (versus livre vontade), todo (versus partes), pessoas (versus coisas), essncia ou interioridade (versus

    aparncia). Esse paradigma concretiza-se em mirades de manifestaes concretas de

    desempenhos jurdicos ou institucionais, de tal forma que sintetiza o conjunto institucional da

    cultura poltica medieval ou do incio da era moderna, tornando-o familiar e previsvel em

    todas as mincias.

    A segunda concluso a de que tal paradigma est to profundamente enraizado que

    abarca um amplo conjunto de discursos normativos, como a teologia moral, a tica, a

    economia (no antigo sentido, acepo de oikonomia, como administrao da casa) e poltica. Ao

    mesmo tempo, todas essas disciplinas mergulham profundamente no senso comum e no

    comportamento quotidiano de vida. So, hoc sensu, uma teoria de prxis, para relembrar um

    conhecido ttulo de Pierre Bourdieu (cf. tambm Kahn, 1999). Isso explica o anacronismo de

    aplicar a organizao contempornea do conhecimento (arbor scientiarum) ao sujeito desse

    discurso normativo, em que o direito est indissoluvelmente conectado com a teologia e a

    tica. Ademais, isso esclarece a permanente e contagiante migrao de conceitos e modelos de

    fundamentao e justificao de um campo literrio para outro. E, finalmente, esclarece as

    razes da continuidade entre a literatura e as prticas quotidianas.

    A terceira concluso diz respeito s asseres comumente implcitas dos juristas a

    respeito da natureza dos paradigmas subjacentes lei. Ao menos desde a Escola Germnica

    Histrica, os juristas esto cientes da existncia de um sistema coerente de valores, atrs de

  • 17

    todas as proposies e regras jurdicas. Mas, com exceo da primeira gerao da Escola

    Histrica Alem, ainda tendem a pensar que esses paradigmas so o resultado de uma

    fundamentao jurdica permanente, e no de universos de crenas culturalmente incrustados.

    Isto , no que tange ao direito romano, ou grande tradio do ius commune continental,

    afirmava-se que as modernas categorias legais racionais j existiam, embora ainda em forma

    embrionria. A tradio jurdica ocidental seria uma continuidade, onde a Razo desenvolvia

    progressivamente e sem rupturas seu montono sistema conceitual.

    Portanto, ressaltar descontinuidade e ruptura no uma atitude terica comum entre

    juristas, e mesmo entre historiadores do direito. De fato, o carter intemporal das construes

    legais um postulado bsico do pensamento jurdico ocidental, desde o Iluminismo, quando o

    racionalismo culturalmente contagiante criou a utopia de um sistema jurdico baseado em

    axiomas racionais desenvolvidos a um ritmo matemtico.

    Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) ou Jeremy Bentham (1748-1832) so dois

    representantes notveis dessa corrente de juristas, que conceituava a fundamentao jurdica e

    a descoberta de solues jurdicas (Rechtsfindung) como uma forma de calculus, embora

    especfico.

    O formalismo neokantiano realava a tendncia de equiparar doutrina jurdica a uma

    cincia formal, isolada de qualquer contexto cultural ou social. O ltimo passo nessa tendncia

    foi dado pela Teoria pura do Direito (Hans Kelsen, 1897-1955), quando avaliou o

    cientificismo do discurso jurdico por sua capacidade de alienar (purificar) quaisquer outras

    consideraes, exceto o rigor formal.

    Mesmo o historicismo e o sociologismo incidiram nesse essencialismo aculturalista. De

    fato, mesmo quando as razes sociais das instituies ou doutrinas jurdicas eram investigadas,

    o modelo adotado considerava que grupos sociais, tanto no presente, como no passado,

    compartilhavam os mesmos modelos bsicos de representao da realidade ou de interesses. O

    conflito social ou a emulao social eram, em matria de histria, freqentemente

    representados como se os atores fossem cidados europeus contemporneos. Para eles, riqueza

    devia ser mais importante do que honra; afirmao individual, mais decisiva do que

    desempenho de um papel natural preestabelecido; progresso, mais desejvel do que

    estabilidade; direitos, mais impositivos do que deveres; indivduos, mais visveis do que

  • 18

    comunidade; obrigaes jurdicas formais, vnculos mais rigorosos do que os vnculos

    objetivamente gerados (preter-intencional). Essa contextualizao contempornea do

    comportamento formaria uma espcie de razo prtica natural que poderia ser exportada para

    qualquer situao humana ou tomada como base para a pesquisa da justia natural (como na

    teoria da justia de John Rawls).

    A atual conscincia antropolgica deu historiografia, maxime, historiografia jurdica,

    uma nova sensibilidade quanto ruptura cultural e diferena histrica, liberando a gramtica

    autnoma de cada uma das diferentes culturas do passado europeu. Essa liberao de diferena

    tem duas grandes vantagens; uma, no plano legal; outra, na dimenso histrica.

    No plano da teoria do direito, recuperar o sentido da diferena histrica tem sido um

    fator importante para recuperar o sentido, restrito ao mbito local, dos valores ocidentais.

    Hoje, a conscincia jurdica confrontada com as falhas das tecnologias jurdicas ocidentais

    exportadas, ou com sua reticente recepo de culturas alheias. Em um mundo que,

    vertiginosamente, tende para a integrao, o choque do universalismo jurdico e a

    correspondente conscincia do carter local do direito suscita o problema vital da reconstruo

    de uma teoria geral do direito, que possa ser operativa, liberada do cronocentrismo e do

    etnocentrismo, dentro da estrutura e em prol do pluralismo.

    No que tange dimenso histrica, a sensibilidade quanto diferena a condio de

    uma exitosa recriao de ambientes culturais extintos. A cultura medieval e do incio da era

    moderna um deles. Forma um universo coerente de imagens, crenas e valores que do

    sentido a milhes de decises concretas da vida quotidiana. No se pode mais assistir a esses

    atos silenciosos e sem rastros. Alternativamente, temos ainda o impressionante corpus da

    tradio jurdica em que esto embebidos, que funcionou no mesmo arcabouo cultural e que

    engendrou diversos dispositivos discursivos que permitiram um contnuo intercmbio entre

    senso comum e cultura assimilada. Um deles foi a receptividade permanente, por parte da

    doutrina jurdica, de valores da vida quotidiana ou sociais, por meio de conceitos, como equitas

    (eqidade) bonum ou rectum, v. g., bonus paterfamilias, pessoa comum, recta ratio (razo comum),

    interest (cf. Barberis, 2000), natura rerum ( natureza das coisas), id quod plerumque accidit

    (normalidade estatstica), enraizamento (v. g. iura radicata), expectativas sociais radicadas [no

    tempo ou na tradio], e assim por diante. Outro dispositivo era o papel de topica, como a arte

    de obter consenso na descoberta de solues jurdicas doutrinais.

  • 19

    Uma ltima palavra a respeito desse tema, na medida em que pode ser a resposta a uma

    pergunta comum a respeito da capacidade de literatura jurdica doutrinal de se tornar numa

    fonte de histria cultural e intelectual.

    Inobstante os ltimos progressos no sentido da reconstruo de um direito da vida

    quotidiana (notvel, Sarat, 1996), a doutrina jurdica atual (maxime a doutrina continental

    europia) , em certa medida, permevel ao senso comum e aos sentimentos de justia social.

    Em certos domnios, onde decisiva a adeso aos valores de eqidade, conforme o senso

    comum, h dispositivos discursivos que proporcionam alguma espcie de sistema jurdico

    conceitual vida quotidiana. o caso de clusulas gerais ou conceitos abertos, tais como: boa-

    f (em temas contratuais), discrio ou arbtrio prudentes (em decises judiciais), homem

    prudente (na administrao patrimonial). Todavia, em geral, os conceitos so rgidos e auto-

    referenciais.

    Pelo contrrio, essa referncia ao mundo de valores e de avaliaes radicada no senso

    comum foi permanente na doutrina jurdica do ius commune. As solues jurdicas assimiladas

    eram continuamente justificadas pelo fato de serem aceitas por pessoas comuns: por serem

    utilizadas h muito tempo (usus receptae), por se radicarem em usos sociais (radicatae, praescriptae),

    por corresponderem ordem das coisas ou ordem moral, como estas eram comumente

    percebidas (honestae, bonnae et aequae). Mesmo a estrutura das fontes do ordenamento jurdico

    como era entendido pela doutrina expressava o peso de um senso espontneo de eqidade.

    No topo estavam o costume (consuetudo), a doutrina recebida (opinio juris) e a prtica judicial

    (stylus curiae, praxis).

    Alm disso, essa permanente investigao do senso comum era completada por

    tcnicas de elaborar decises. Ao invs de inferir solues de um padro doutrinal rgido, os

    juristas elaboravam solues em duas etapas. A primeira (inventio iuris, ars inveniendi),

    descobrindo e coligindo pontos de vista comuns (loca communia, topoi); a segunda. identificando

    os metacritrios de hierarquiz-los em cada caso.

    A inter-relao entre doutrina recebida e senso comum no findava com a deciso.

    Uma vez alcanada a deciso esse produto de uma razo colhida dos fatos da vida torna-se

    mais uma pea nesse esqueleto moral da vida quotidiana formada pelo direito recebido ou

    praticado (ius receptum vel praticatum). Realmente, os casos decididos integraro o horizonte dos

  • 20

    padres morais e das expectativas sociais da comunidade. Ainda mais, prosseguia o processo

    da reelaborao doutrinal do senso social de eqidade. Trabalhando nesse acquis decisional

    prtico, os juristas cunhavam regula ou brocarda, frases curtas ou epigramas, em que a sabedoria

    jurdica prtica estava concentrada e podia ser facilmente disseminada e assimilada pelos leigos.

    Agora, as construes assimiladas a partir do senso comum regressam vida quotidiana,

    tornando-se estruturantes. O discurso, de seu refgio efmero nos livros, retorna vida.

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