historia da origem e estabelecimento da inquisicao em portugal (1)

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  • Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio em Portugal(1854/1859)

    Alexandre Herculano (1810-1877)Nona edio definitiva conforme com as edies da vida do autor

    dirigida porDavid Lopes (1867-1942)

    Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

    Fonte digitalBiblioteca Nacional Digital

    htp://bnd.bn.pt/htp://purl.pt/

    Transcrio para eBookeBooksBrasil

    2009 Alexandre HerculanoUSO NO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL

  • ndice

    Nota EditorialO AutorPrefcioLivro ILivro IILivro IIILivro IVLivro VLivro VILivro VIILivro VIIILivro IXLivro XAPNDICES por David Lopes

  • Nota Editorial

    Foi um prazer reler Histria da Origem eEstabelecimento da Inquisio em Portugal. Um prazer quequero compartilhar com os usurios do eBooksBrasil.org, ondequer que obtenham este eBook.

    Nesta obra, Herculano lana luz sobre muitos aspectosde nossa origem histrica que, com certeza, ajudam a iluminaro nosso presente e entend-lo melhor.

    Ao contrrio do que seus detratores ultramontanosdisseram, no uma obra anticlerical, nem, creio, antipapista.Aponta sim, mazelas que corroam a Igreja mas corroamtambm Portugal e Espanha.

    Como bem disse A. Srgio:

    Nos domnios da cultura mental, a Inquisio suprimiua possibilidade de um pensamento criador, destruindo,pois, os germes de humanismo cientfico da grandepoca dos Descobrimentos: efeitos terribilssimos, deque sofremos at hoje as desastrosas conseqncias.(Breve Interpretao da Histria de Portugal, 1972,Porto, Liv. S e Costa Ed. g.n.)

    At hoje em 1972, at hoje em 2009. E at hoje espero que no! quando o leitor estiver lendo.

    Por todos os ttulos, sempre til ler ou reler estaobra-prima de Herculano. E zelar para que as novas geraes aleiam, indic-la, difundi-la.

    Pois aqui est, acessvel a todos, em ortografia

  • moderna, mas nem tanto, pois foi lida e editada antes da ltimae discutvel reforma ortogrfica.

    Os exemplares utilizados foram os escaneados pelaBiblioteca Nacional Digital de Portugal.

    As notas foram renumeradas, para comodidade deedio e de consulta.

    O valioso ndice analtico de matrias organizado porDavid Lopes, til em exemplares de cola e papel, pelafacilidade de pesquisa oferecido por uma edio digital no foiincludo. E pensar que, nele, deve ter gasto muitas horas desono... Mas foi til por muitas geraes, inclusive para mim,quando li esta obra pela primeira vez.

    Nem precisaria avisar, mas aviso: esta uma ediofeita a partir da extrao do texto de arquivos escaneados. Foirevisto medida em que eu relia as pginas primorosas deHerculano e colocava os links para as notas, renumerando-as.Perdoe, pois, o eventual leitor, qualquer deslize. Mas, seencontr-los, por favor, para benefcio de futuros leitores, enviesuas observaes e correes para [email protected].

    Boa leitura!

    Teotonio SimeseBooksBrasil

  • O Autor

    Alexandre Herculano nasceu em Lisboa, no Ptio doGil, Rua de S. Bento, em 28 de Maro de 1810 numa modestafamlia de origem popular; a me, Maria do Carmo de SoBoaventura, filha e neta de pedreiros da Casa Real; o pai,Teodoro Cndido de Arajo, era funcionrio da Junta dos Juros(Junta do Crdito Pblico). Na sua infncia e adolescncia nopode ter deixado de ser profundamente marcado pelosdramticos acontecimentos da sua poca: as invases francesas,o domnio ingls e o influxo das idias liberais, vindassobretudo da Frana, que conduziriam Revoluo de 1820.At aos 15 anos freqentou o Colgio dos Padres Oratorianosde S. Filipe de Nry, ento instalados no Convento dasNecessidades em Lisboa, onde recebeu uma formao de ndoleessencialmente clssica, mas aberta s novas idias cientficas.Impedido de prosseguir estudos universitrios (o pai cegou em1827, ficando impossibilitado de prover ao sustento da famlia)

  • ficou disponvel para adquirir uma slida formao literria quepassou pelo estudo de ingls, francs, italiano e alemo, lnguasque foram decisivas para a sua obra literria. Com apenas 21anos, participar, em circunstncias nunca inteiramenteesclarecidas, na revolta de 21 de Agosto de 1831 do Regimenton. 4 de Infantaria de Lisboa contra o governo ditatorial de D.Miguel I, o que o obrigar, aps o fracasso daquela revoltamilitar, a refugiar-se num navio francs fundeado no Tejo, nelepassando Inglaterra e, posteriormente, Frana (Rennes), indodepois juntar-se ao exrcito Liberal de D. Pedro IV, na IlhaTerceira (Aores). Alistado como soldado no Regimento dosVoluntrios da Rainha, como Garret, um dos 7.500 Bravosdo Mindelo, assim designados por terem integrado aexpedio militar comandada por D. Pedro IV quedesembarcou, em 8 de Julho de 1832, na praia do Mindelo (naverdade, um pouco mais a sul, na praia de Arnosa dePampelido, um pouco a Norte do Porto hoje praia daMemria), a fim de cercar e tomar a cidade do Porto. Comosoldado, participou em aes de elevado risco e mrito militar.Passado disponibilidade pelo prprio D. Pedro IV, foi poreste nomeado segundo bibliotecrio da Biblioteca do Porto. Apermaneceu at ter sido convidado a dirigir a RevistaPanorama, de Lisboa, revista de carter artstico e cientfico deque era proprietria a Sociedade Propagadora dosConhecimentos teis, patrocinada pela prpria rainha D. MariaII, de que foi redator principal de 1837 a 1839. Em 1842retomou o papel de redator principal e publicou o Eurico oPresbtero, obra maior do Romance Histrico em Portugal nosculo XIX. Mas a obra que vai transformar AlexandreHerculano no maior portugus do sculo XIX a sua Histriade Portugal, cujo primeiro volume publicado em 1846. Obraque introduz a historiografia cientfica em Portugal, no podiadeixar de levantar enorme polmica, sobretudo com os setoresmais conservadores, encabeados pelo clero. Atacado peloclero por no ter admitido como verdade histrica o clebre

  • Milagre de Ourique segundo o qual Cristo aparecera ao reiAfonso Henriques naquela batalha , Herculano acaba por vira terreiro em defesa da verdade cientfica da sua obra,desferindo implacveis golpes sobre o clero ultramontano,sobretudo nos opsculos Eu e o Clero e Solemnia Verba. Oprestgio que a Histria de Portugal lhe grangeara leva aAcademia das Cincias de Lisboa a nome-lo seu scio efetivo(1852) e a encarreg-lo do projeto de recolha dos PortugaliaeMonumenta Historica (recolha de documentos valiososdispersos pelos cartrios conventuais do pas), projeto queempreende em 1853 e 1854. Herculano permanecer fiel aosseus ideais polticos e Carta Constitucional, que o impedira deaderir ao Setembrismo. Apesar de estreitamente ligado aoscrculos do novo poder Liberal (foi deputado s Cortes epreceptor do futuro Rei D. Pedro V), recusou fazer parte doprimeiro Governo da Regenerao, chefiado pelo Duque deSaldanha. Recusou honrarias e condecoraes e, a par da suaobra literria e cientfica, de que nunca se afastou inteiramente,preferiu retirar-se progressivamente para um exlio que tinhatanto de vocao como de desiluso. Numa carta a AlmeidaGarret confessara ser seu mais ntimo desejo ver-se entre quatroserras, dispondo de algumas leiras prprias, umas botasgrosseiras e um chapu de Braga. Ainda desempenha o cargode Presidente da Cmara de Belm (1854, 1855), cargo queabandona rapidamente. Em 1857, aps o seu casamento com D.Mariana Meira, retira-se definitivamente para a sua quinta deVale Lobos (Azia, Santarm) para se dedicar (quase)inteiramente agricultura e a uma vida de recolhimentoespiritual ancorado no porto tranqilo e feliz do silncio e datranqilidade, como escrever na advertncia prvia aoprimeiro volume dos Opsculos. Em Vale de Lobos, Herculanoexerce um autntico magistrio moral sobre o Pas. Na verdade,este homem frgil e pequeno, mas dono de uma energia e deum carcter inquebrantveis era um exemplo de fidelidade aideais e a valores que contrastavam com o pntano da vida

  • pblica portuguesa. Isto d vontade de morrer!, exclamara ele,decepcionado pelo espetculo torpe da vida pblica portuguesa,que todos os seus ideais vilipendiara. Aquando da segundaviagem do Imperador do Brasil a Portugal, em 1867, Herculanoentendeu retribuir, em Lisboa, a visita que o monarca lhe fizeraem Vale de Lobos, mas devido sua dbil sade contraiu umapneumonia dupla de que viria a falecer, em Vale de Lobos, em13 de Setembro de 1877.

    Estudou Latim, Lgica e Retrica no Palcio dasNecessidades e, mais tarde, na Academia da Marinha Real,estudou matemtica com a inteno de seguir uma carreiracomercial. Descontente com o governo de Miguel I de Portugal,exilou-se na Frana, onde escreveu os seus melhores poemas.Voltou a Portugal, em 1832, continuou a fazer poesia, como AVoz do Profeta em 1836 e A Harpa do Crente em 1838. Nojornal Panorama por volta de 1840; publicou obras de fico,como Eurico, o Presbtero de 1844, e ganhou fama comohistoriador; publicou a Histria de Portugal, em quatrovolumes, e Histria da Origem e Estabelecimento daInquisio em Portugal.

    Herculano foi o responsvel pela introduo e pelodesenvolvimento da narrativa histrica em Portugal. Juntamentecom Almeida Garret, considerado o introdutor doRomantismo em Portugal, desenvolvendo os temas daincompatibilidade do homem com o meio social.

    Morreu na sua quinta de Vale de Lobos (Santarm) a 13de Setembro de 1877.

    Fonte: wikipedia

  • HISTRIA DA ORIGEM EESTABELECIMENTO DA

    INQUISIO EM PORTUGALPOR

    A. HERCULANO

    Nona edio definitiva conforme com as edies da vida doautor dirigida porDAVID LOPES

    Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

    TOMO I

  • NDICE

    Prlogo

    LIVRO I

    Disciplina primitiva da igreja acerca do julgamento dos hereges. Ossnodos. A excomunho eclesistica e a punio civil. Opiniesmoderadas dos santos-padres. As penitncias Heresias do sculo XII:suas causas e efeitos. Conclio de Latro e providncias de Lcio III. Pontificado de Inocncio III. Inquisidores delegados no sul da Frana. Domingos de Gusmo e os dominicanos. Leis de Frederico II. Sistema inquisitorial propriamente dito: seus primeiros passos. Conclionarbonense de 1235. Roberto Blgaro. Regulamento do Conclio deBziers relativo Inquisio. Esta dilata-se na Itlia. Reaes. Mtuasvinganas. A Inquisio na Frana central. Modificaes dainstituio na Itlia. Sua decadncia em Frana, e progressos naPennsula. Portugal exempto dela nos sculos XIII e XIV, e tendo-a snominalmente no XV. Desenvolvimento do poder inquisitorial no restoda Espanha. Estabelecimento definitivo da Inquisio espanhola comotribunal permanente. Os judeus espanhis, convertidos e noconvertidos. Bula de Sixto IV instituindo a Inquisio. Cortes deToledo em 1408. Instituio do tribunal em Sevilha. Resistncias.Atrocidades dos inquisidores. Poltica tortuosa de Roma. Criao deum inquisidor-mor e de um conselho supremo em Castela. Frei Thomazde Torquemada. Primeiro cdigo inquisitorial. Nova organizao daInquisio aragonesa. Assassnio de Pedro de Arbus. Crueldades dosinquisidores para com os conversos. Expulso dos judeus dEspanha

    LIVRO II

    Situao dos judeus em Portugal no sculo XV. Malevolncia do povocontra eles. Manifestaes e causas dessa malevolncia. Entrada doshebreus espanhis. Aumento da irritao popular. Morte de D. Joo II eacesso de D. Manuel. Circunstncias que determinam a poltica donovo monarca acerca da raa hebria. Influncia da corte de Castela. Debates sobre a expulso dos judeus. Ordena-se a sada dos sectrios domosasmo e do islamismo. Tiranias e deslealdades praticadas nessaconjuntura. Converso forada dos judeus. Leis favorveis aos pseudo-conversos. Sintomas de perseguio popular. Tentativas de emigraodos cristos-novos. Obstculos. Novas manifestaes do dio do vulgo,incitado pelo fanatismo. Horrvel matana dos cristos-novos de Lisboa.Procedimento severo contra os culpados. Mudana de poltica.Providncias protetoras e de tolerncia a favor dos perseguidos. Confiana imprudente dos cristos-novos. Meneios ocultos defanatismo. Tentativas sem resultado para o estabelecimento da Inquisio.

  • Situao da raa hebria durante os ltimos anos do reinado de D.Manuel. Morte deste prncipe

    LIVRO III

    D. Joo III rei. A nova corte. Influncia dos ministros no negcio daInquisio. Fanatismo do moo monarca. Esperanas dos inimigos da raahebria. Tolerncia oficial. Cortes de Torres Novas. Estado moral eadministrativo do reino. Acusaes repetidas contra os judaizantes.Inquritos e delaes secretas. Themudo e Firme-f. Influncia daInquisio castelhana. Manifestaes contra os cristos-novos.Desordens em Gouveia e seus resultados. Perseguio em Olivena. Reao dos espritos mais ilustrados contra a intolerncia. Gil Vicente e obispo de Silves. Resolve-se o estabelecimento de um tribunal da f.Instrues ao embaixador em Roma. Dificuldades que a se encontram.Obtm-se a primeira bula da Inquisio. Suas provises. Demora naexecuo e causas do fato Lei de 14 de junho de 1532. Terror doscristos-novos. Diligncias que fazem para obstar ereo do novotribunal. Excitao produzida pela lei de 14 do junho. Cenas anrquicasem Lamego. Os cristos-novos recorrem a Roma. Duarte da Pazenviado como procurador deles. O papa manda o bispo de Sinigaglianncio a Portugal. Carcter do nncio. Esforos de Duarte da Pazem Roma e procedimento singular da corte portuguesa Breve de 17doutubro de 1532 suspendendo a Inquisio. Enviatura de D. Martinhode Portugal. Deslealdades mtuas. Vilania de Duarte da Paz Estado da luta nos princpios de 1533

  • PRLOGO

    Confundindo as idias de liberdade e progresso com asde licena e desenfreamento, o direito com a opresso e apropriedade, filha sacrosanta do trabalho, com a espoliao e oroubo; tomando, em suma, por sistema de reforma a dissoluosocial, h poucos anos que certos homens e certas escolasencheram de terror com as suas loucuras a classe mdia, a maispoderosa, a nica verdadeira e eficazmente poderosa, das quecompem as sociedades modernas. Este erro de muitasinteligncias, alis eminentes e a quem, em parte, sobrava razopara taxar de vciosas ou de incompletas muitas instituies dospases livres, abriu caminho e subministrou pretextos por toda aEuropa a uma reao deplorvel. E um acontecimento grave,no tanto pela sua violncia e exagerao e pelos seuscaracteres materiais, como porque a essas manifestaesexternas se associa a reao moral. a que est o perigo parao futuro. A tirania, restabelecendo-se por quase todo ocontinente europeu, esmagando o governo representativo sob osps dos seus batalhes dinfanteria e dos seus esquadres decavalaria, passando triunfante no meio das multides, assentadano velho e roto pavez do absolutismo, que se eleva sobre umaselva de baionetas, um espetculo repugnante, mas til para oprogresso humano, como o tem sido quase todos os fenmenoshistricos, ainda os mais contrrios na aparncia a esseprogresso, uma demonstrao estrondosa, fecunda e, aomesmo tempo, transitria de que os exrcitos permanentes,nascidos com o absolutismo e s para ele, com ele deviam terpassado para o mundo das tradies. Moral e economicamente,os crimes que a reao est perpetrando e o sangue que temvertido viro a ser bem moderado preo de resultado imenso, aaniquilao dessa fora bruta, encarregada nominalmente decumprir um dever que , que no pode deixar de ser comum a

  • todos os cidados, a defesa da terra ptria. Quanto mais areao abusar da vitria, mais depressa lhe chegar o dia doltimo desengano, e os povos, amestrados por experinciatremenda, cortaro, enfim, a ltima artria que ainda faz bater ocorao da tirania desesperada e moribunda.

    Mas a reao moral que vai acompanhando a reaomaterial deve merecer mais srios cuidados aos amigossinceros e prudentes da civilizao e da liberdade. Ao lado dosvivas da soldadesca embriagada, em volta dos quartis eacampamentos, onde est hoje reconcentrada quase toda a aopoltica das sociedades, ouvem-se, tambm, os vivas de certaparte das populaes. Estes aplausos no partem de um gruponico. H a o vulgo, que faz o que sempre fez, que sada ovencedor, sem perguntar donde veio, nem para onde vai; quevocifera injrias junto ao patbulo do que morre mrtir por ele,ou vitoreia a tirania, quando passa cercada de pompas que odeslumbram. H a os velhos interesses mortalmente feridos,que, no podendo defender-se como legtimos, buscavam, atagora, santificar-se pela poesia do passado, indo esconder asrugas asquerosas na luz frouxa da abside da antiga catedral,mas que hoje se proclamam em nome do direito com gritos defuror e de ameaa. H a a hipocrisia, que, depois de minardebaixo da terra durante anos, surge, enfim, luz do sol e,balouando o turbulo, incensa todos os que abusam da fora,declarando-os salvadores da religio, como se a religioprecisasse de ser salva ou coubesse no poder humano destru-la.Tudo isso tumultua e brada; tudo isso tripudia porta dopretrio e traduz o sussurrar das orgias que vo l dentro emanncios de paz e de prosperidade. O vulgacho espera de cimaa realizao dos seus dios contra a classe mdia, a satisfao sua inveja; os velhos interesses pensam numa indenizaoimpossvel; os hipcritas querem aproveitar o ensejo degranjear as multides para o fanatismo e, com tal intuito,recorrem a um meio, infalvel em todos os tempos, para seobter esse fim, o nculcarem-lhes de preferncia o que na

  • superstio h de afirmaes mais incrveis. Os milagresabsurdos renascem, multiplicam-se em frente dosrecrutamentos: o convento e a casa professa j disputam aoquartel a gerao nova. O cercilho e o bigode jogam o futurosobre o tambor posto em cima da ara. O praguejar soldadescocruza-se com a antifona do brevirio. A gua benta aspergidado hissope episcopal, vai diluir no cho o sangue coalhado dosespingardeamentos, e o sacerdote cr ter afogado o clamordaquele sangue que se imbebe na terra, porque entoou hossanassacrlegos ao triunfar dos algozes, no momento em que asvtimas caam mrtires da sua f na civilizao e na liberdade.

    Isto grave porque atroz; mas ainda h a cousa maisgrave. que entre os grupos que vitoreiam em quase toda aEuropa as saturnais da reao h um mais forte, mais ativo e,sobretudo, mais eficaz, porque se acha senhor, em muitaspartes, do poder pblico e serve-se desse poder e dos soldadose magistrados e agentes pblicos que lhe obedecem para anularnum dia as garantias conquistadas pelas naes em meio sculode lutas terrveis. o grupo dos Cains; daqueles a quem, maistarde ou mais cedo, Deus e os homens ho de, infalivelmente,perguntar: Que fizestes de vossos irmos? o grupodaqueles que deveram quanto so e quanto valem aos triunfosda liberdade; que, sem as lides dos comcios, dos parlamentos,da imprensa; sem o chamamento de todas as inteligncias arena dos partidos; calcados por um funcionalismo desptico,por uma nobreza orgulhosa, por um clero opulento ecorrompido, teriam fechado o horizonte das suas ambies emserem mordomos ou causdicos de algum degenerado eraqutico descendente de Bayard ou do Cid ou em vestirem aopa de meninos do coro de algum pecunioso cabido. Estes tais,que trocaram o aposento caiado pela sala esplndida, o nomepeo de seus pais pelos ttulos nobilirios, o sapato tauxiado e otrajo modesto do vulgo pelos lemistes e cetins cortesos,cobertos de avelrios e lentejoulas, das condecoraes com queo poder costuma marcar os seus rebanhos de conscincias

  • vendidas; estes tais, recostados nos sofs, para onde se atiraramde cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho, sentemesvair-se-lhes a cabea com os tumultos eleitorais, com as lutasda imprensa, com as discusses tempestuosas e no raroestreis das assemblias polticas. Demasiado repletos,perderam nos vapores dos banquetes a lucidez da inteligncia;demasiado mimosos, perderam, reclinados nos coxins das suascarruagens, a energia laboriosa da classe de que saram. Asdolorosas e longas experincias da liberdade afiguram-se-lhes,agora, como um desvario do gnero humano e as tentativas dasnaes para se constiturem menos imperfeitamente como umasrie de erros deplorveis. Confessam o fato indisputvel doprogresso nas cincias, nas artes, na indstria, apesar de milexperincias falhas, de mil teorias que surgem para morrerem,de mil esforos perdidos; isto , confessam que existe odesenvolvimento social, embora limitado em tudo pelaimperfeio terrena. No protestam, em tese, contra astendncias das sociedades. O que no admitem que essa lei dodesenvolvimento constante, aplicvel a todas as cousashumanas, o seja cincia social. Nesta, o progresso consiste emretroceder. A voz da conscincia, que nos fala da dignidade eliberdade do homem, uma iluso do nosso esprito. Embora ocristianismo gastasse cinco sculos em constituir as sociedadesmodernas: estas deviam ter completado e aperfeioado umarevoluo fundamental no seu organismo dentro de cinqentaanos. No o fizeram; logo o voltar ao passado, ao absolutismocaqutico e impotente, significaria o progresso poltico. Incubouneles o arrependimento. Sonham que o fantasma dtila surgeentre o norte e oriente. Ajoelham; e tentam, renegando as idiasque propugnaram, salvar as suas carruagens, mitras, bastes,veneras, rendas e dignidades.

    Este o grupo dos grandes miserveis. Ao p dele, svezes confundindo-se, compenetrando-se ambos, falando amesma linguagem, est o da burguesia tmida, cujos nervos sodbeis demais para resistirem aos freqentes abalos das

  • comoes polticas. Esses tm desculpa, embora raciocinemmal, como sempre raciocina o temor. A sua vida de artfices, decomerciantes, de industriais, de proprietrios, de agricultoresrepugna s violentas tempestades polticas, aos movimentospopulares desordenados. A transformao social lenta epacfica, resultado de doutrinas que chegam a triunfar pelomeio da longa discusso, admitem-na, amam-na, e com razo.Mas a idia dos terremotos polticos horroriza-os tanto como ados fsicos, e nisso tambm tm razo. Sobre os meios de evitartais males que se tm iludido. O medo o pior dosconselheiros. Na verdade, foi contra esta classe que osagitadores das multides ignorantes as concitaram, declarandoguerra, no s aos abusos da propriedade, na mais amplasignificao desta palavra, mas tambm propriedadeindubitavelmente legtima.

    Aterrada a burguesia comeou a ver na liberdade aespoliao e congraou-se, em boa parte, com o absolutismo,esquecendo-se de que ele representava igualmente espoliaes,violncias e tiranias de sculos e de que todas as afrontas edanos de que tem de vingar-se foram recebidos da mo daclasse mdia. O raciocnio do medo foi, como era de esperar,ao extremo. Recuando, intencionalmente, at pocas julgadas econdenadas, os membros da burguesia que no tm corduranem nimo para afrontar as aberraes do progresso(aberraes que nunca faltam nas conjunturas das grandestransformaes) mentem aos destinos da sua classe, maldizem asanta obra da civilizao, as tradies de seus pais, os fins docristianismo e os prprios atos da sua vida pblica anterior.Esquecem-se de que, se fosse possvel voltar atrs para noscurvarmos tirania, voltaramos igualmente atrs para, depois,reagir contra ela e repetir inutilmente experincias j feitas. Oremdio contra as idias exageradas de cabeas ardentes oulevianas ou contra os desgnios dos hipcritas da liberdade noest em reaes moralmente impossveis. O incndio queameaou por alguns meses devorar a Europa e que arde ainda

  • debaixo das cinzas no se apaga nem com sangue, nemcolocando em cima destas o cadver corrupto do absolutismo.Para o extinguir, necessita-se das resistncias organizadas eenrgicas, das idias ss e exequveis; necessita-se de que aclasse mdia no esquea ou despreze tantas vezes os seusdeveres; isto , cumpre que se lembre de que a sua vida dupla,pblica e privada, de cidado e de homens; que, assim como omau chefe de famlia um indivduo desonrado, o que desprezaas funes pblicas que lhe incumbe exercer para a manutenoda liberdade igualmente se desonra. No consentindo quecabeas vs ou coraes fementidos faam das naes matriabruta das suas experincias polticas ou presa das suasambies desregradas, no carecero de ir aspirar a vida nocemitrio dos sculos, no tero de se assemelhar ao enfermoque, desprezando, para saciar todos os apetites, os conselhosseveros da medicina, quando enfim verga debaixo do peso dosseus males, declara a cincia impotente e vai buscar nas receitasdos charlates e curandeiros o remdio que eles no podemdar-lhes.

    Felizmente, no meio das loucuras do terror, muitasalmas fortes, muitas cabeas inteligentes tm sabido conservarfrio o nimo para no abdicarem o senso comum. Naopequena e que a Europa desconsidera ainda, pela idia que fazdela, vista de um passado no mui remoto, temos nesta partedado mais de um exemplo de alta sabedoria a algumas dasmaiores naes. A histria contempornea h de prov-lo.Creia-nos o pas, a ns que no estamos costumados alisonjear-lhe vaidades pueris ou preocupaes insensatas e que,impassvelmente, lhe havemos dito sempre o que reputamos serverdade. No meio das nossas misrias morais, e no so elasnem pequenas nem poucas, a minoria liberal que tem trado assuas doutrinas por mais de um modo insignificante. Seja qualfor a situao hierrquica desses indivduos, nem o seuprestigio, nem os seus talentos os tornam demasiado perigosos.Entre os homens sinceros o temor moderado; porque o perigo

  • do terremoto eminente no produziu, em Portugal, grande abalonos nimos. Os poucos que, neste pas, fingem temer, os menosque fingem saudar a tempestade representam geralmente, emnossa opinio, apenas ridculas farsas.

    Todavia, a civilizao, tornando cada vez mais ntimo otrato das naes entre si, faz necessariamente atuar as idias deumas sobre as outras, e o homem , ordinariamente, maispropenso a contentar-se das idias alheias do que a refletir e araciocinar. Em certa esfera e at certo ponto, a reao geral temrepresentantes entre ns. Cumpre combat-la, no paraconvencer aqueles que sempre amaram o passado e nuncanegociaram com as suas crenas, porque esses respeitamo-los;mas para fortificar na f liberal os tbios do prprio campo epremuni-los contra as ciladas dos transfugas. Este intuito no s nosso; de todos os homens leais, de todos os amigossinceros de uma justa liberdade.

    Levados pelas nossas propenses literrias para osestudos histricos, era, sobretudo, por esse lado que podamosser teis a uma causa a que estamos ligados, rememorando umdos fatos e uma das pocas mais clebres da histria ptria;fato e poca em que a tirania, o fanatismo, a hipocrisia e acorrupo nos aparecem na sua natural hediondez. Quandotodos os dias nos lanam em rosto os desvarios das modernasrevolues, os excessos do povo irritado, os crimes de algunsfanticos, e, se quiserem, de alguns hipcritas das novas idias,seja-nos lcito chamar a juzo o passado, para vermos, tambm,aonde nos podem levar outra vez as tendncias de reao, e seas opinies ultramontanas e hipermonrquicas nos do garantiasde ordem, de paz e de ventura, ainda abnegando dos foros dehomens livres e das doutrinas de tolerncia que o Evangelhonos aconselha e que Deus gravou na nossa alma.

    Podamos escrever a histria da Inquisio, desse dramade flagcios que se protrai por mais de dous sculos. Os

  • arquivos do terrvel tribunal a existem quase intatos. Perto dequarenta mil processos restam ainda para dar testemunho decenas medonhas, de atrocidades sem exemplos, de longasagonias. No quisemos. Era mais montono e menos instrutivo.Os vinte anos de luta entre D. Joo III e os seus sditos de raahebria, ele para estabelecer definitivamente a Inquisio, elespara lhe obstarem, oferecem matria mais ampla a gravescogitaes. Conheceremos a corte de um rei absoluto na pocaem que a monarquia pura estava em todo o seu vigor e brilho;conheceremos a corte de Roma na conjuntura em que,confessando os seus anteriores desvios, ela dizia ter entrado nasenda da prpria reformao, e poderemos comparar isso tudocom os tempos modernos de liberdade. Os documentos de quenos servimos so, na maior parte, redigidos pelos mesmos queintervieram naqueles variados enredos e existem, em grandenmero, nos prprios originais. A Providncia salvou-os paravingadores de muitos crimes, e, porventura, ns, pensando quepraticamos um ato espontneo, no somos seno uminstrumento da justia divina.

    Aos que, ouvindo e lendo as declamaes contra astendncias legtimas da moderna civilizao, vacilarem nascrenas da liberdade poltica e da tolerncia religiosa, pedimosque, depois de lerem tambm este livro, procurem na suaconscincia a soluo de um problema pelo qual concluiremos,e que encerra o resultado final, a aplicao prtica do presentetrabalho histrico. A resposta que ela lhes der servir-lhes- deguia no meio das incertezas, e de conforto no meio do desalentoem que a escola da reao procura afogar os mais nobres epuros instintos do corao humano.

    Eis o problema: Se no princpio do sculo XVI, quandoainda, segundo geralmente se cr, as opinies religiosas eramsinceras e ferventes, e o absolutismo estava, na aparncia, emtodo o seu vigor de mocidade, acharmos por documentosirrefragveis que os indivduos colocados na eminncia da

  • jerarquia eclesistica no eram, em grande parte, senohipcritas, que faziam da religio instrumento para satisfazerpaixes ignbeis; que o fanatismo era mais raro do que secuida; que debaixo da monarquia pura a sociedade, moral eeconomicamente gangrenada, caminhava para a dissoluo, eque nos atos do poder faltavam a cada passo a lealdade, o sojuzo, a justia e a probidade, deveremos, acaso, acreditar nasinceridade dos inmeros apstolos da reao teocrtica eultramonrquica que surgem de repente nesta nossa poca,depois de cento e cinqenta anos de discusso religiosa epoltica, em que as antigas doutrinas foram vitoriosamentecombatidas, os princpios recebidos refutados ou postos emdvida e, at, mais de uma verdade ofuscada por sofismassubtis? Deveremos supor filhos da convico estes entusiasmosexagerados pelas idias disciplinares de Gregrio VII e pelosistema poltico de Luiz XI ou de Felipe II, numa poca em que,por confisso unnime dos prprios apstolos do passado,predomina no geral dos espritos cultivados o contgio doceticismo?

    Que o leitor busque a resposta a estas perguntas na vozntima do seu corao e, depois, decida entre a reao e aliberdade.

    Dezembro de 1852.

  • LIVRO IDisciplina primitiva da igreja acerca do julgamento dos hereges. Ossnodos. A excomunho eclesistica e a punio civil. Opiniesmoderadas dos santos-padres. As penitncias. Heresias do sculoXII: suas causas e efeitos. Conclio de Latro e providncias de LcioIII. Pontificado de Inocncio III. Inquisidores delegados no sul daFrana. Domingos de Gusmo e os dominicanos. Leis de FredericoII. Sistema inquisitorial propriamente dito: seus primeiros passos.Conclio narbonense de 1235. Roberto Blgaro. Regulamentos doconclio de Bziers relativos Inquisio. Esta dilata-se na Itlia. Reaes.Mtuas vinganas. A Inquisio na Frana central. Modificaes dainstituio na Itlia. Sua decadncia em Frana, e progressos naPennsula. Portugal exempto dela nos sculos XIII e XIV, e tendo-a snominalmente no XV. Desenvolvimento do poder inquisitorial no restoda Espanha. Estabelecimento definitivo da Inquisio espanhola comotribunal permanente. Os judeus espanhis, convertidos e noconvertidos. Bula de Sixto IV instituindo a Inquisio. Cortes deToledo em 1408 Instituio do tribunal em Sevilha. Resistncias.Atrocidades dos inquisidores. Poltica tortuosa de Roma. Criao deum inquisidor-mor e de um conselho supremo em Castela. Frei Thomazde Torquemada. Primeiro cdigo inquisitorial. Nova organizao daInquisio aragonesa. Assassnio de Pedro de Arbus. Crueldades dosinquisidores para com os conversos. Expulso dos judeus dEspanha.

    Durante os doze primeiros sculos da igreja foi aosbispos que exclusivamente incumbiu vigiar pela pureza dasdoutrinas religiosas dos fiis. Era isso para eles, ao mesmotempo, um dever e um direito que resultavam da ndole do seuministrio: ningum podia, portanto, intervir nesta parte tograve do ofcio pastoral, sem ofender a autoridade doepiscopado. Esta era a doutrina e a praxe dos bons tempos daigreja. Um tribunal especial e estranho jerarquia eclesistica,incumbido de examinar os erros de crena que a ignorncia ou amaldade introduziam; um tribunal que no fosse o do pastor dadiocese, encarregado de descobrir e condenar as heresias, seria,nos sculos primitivos, uma instituio intolervel e moralmenteimpossvel. E todavia, esse tribunal, se nalguma parte houveraento existido, no teria sido na essncia seno aquelainstituio terrvel que, ajuntando ao monstruoso da origem e

  • natureza a demncia das suas manifestaes e a atrocidade dassuas frmulas, surgiu no seio do catolicismo durante o sculoXIII, e que veio com o nome de Inquisio ou Santo-Ofcio, acobrir de terror, de sangue e de luto quase todos os pases daEuropa meridional e, ainda, transpondo os mares, a oprimirextensas provncias da Amrica e do Oriente.

    Como fcil de crer, essa instituio fatal nasceu dbile desenvolveu-se gradual e lentamente. Criada de sbito,embora o fosse com muito menos atribuies que as adquiridasdepois, teria expirado no bero, esmagada pela resistncia doepiscopado. certo que, j antes do sculo XIII, as comisseschamadas snodos, que constituam nos diversos distritos decada diocese uma espcie de tribunais dependentes do bispo,tinham a seu cargo proceder contra os hereges. Essascomisses, porm, depois de os qualificarem como tais e delhes aplicarem a excomunho, deixavam o resto ao dopoder civil. H, na verdade, exemplos de condenarem os juzesseculares os hereges ao ltimo suplcio, embora nenhuma lei daigreja, nem de direito romano lhes impusesse maior pena doque o confisco dos bens: todavia, no meio do fanatismo queinspirava semelhantes crueldades, o sistema de processo contraos delinqentes desta espcie no tinha analogia alguma com oque depois a inquisio adotou. No havia juzes especiais parainvestigarem e apurarem os fatos: serviam para isso os tribunaisordinrios. O acusado assistia aos atos do processo, dava-se-lheconhecimento de todas as acusaes, facilitavam-se-lhe osmeios de defesa, e nada se lhe ocultava. Era inteiramente oinverso das praxes posteriores; e, ainda assim, pode-se dizerque a igreja era, at certo ponto, estranha imposio de penasaflitivas e ao derramamento de sangue com que mais de umavez se manchou a intolerncia religiosa antes do sculo XIII.

    E nisto ela respeitava as tradies primitivas docristianismo. Nos primeiros sculos, os bispos e prelados, sendoinexorveis em separar do grmio dos fiis os dissidentes da f,

  • no que, em rigor, nada mais faziam do que certificar aexistncia de um fato, paravam a ou, quando muito, davamconta ao poder secular do que tinham praticado. Na opinio dealguns, isto mesmo era uma falta de caridade, e por issoocultavam aos oficiais pblicos a excomunho que haviamfulminado. certo que outros entendiam serem teis oscastigos materiais para obstar ao progresso das heresias, e porisso instigavam os magistrados a cumprirem as leis imperiaiscontra os dissidentes, as quais, como dissemos, no eramexcessivamente severas, e, se alguns exemplos restam de seimpor a pena ltima a heresiarcas, a intolerncia,envergonhando-se de os condenar pelas suas doutrinasreligiosas, qualificava-os, para isso, como cabeas de motim.Em tais circunstncias, os eclesisticos abstinham-se decomparecer nos tribunais e sinceramente se esforavam porsalvar os rus. O esprito evanglico era to vivo em alguns queo grande Santo Ambrosio e S. Martinho consideraram comoexcomungados os bispos Itcio e Idcio, por haverem sidoperseguidos e condenados morte alguns priscilianistas queeles tinham acusado, insistindo no seu castigo perante osimperadores Graciano e Mximo. Escrevendo a Donato,procnsul dfrica, Santo Agostinho declarava-lhe, muipositivamente, que se ele continuasse a punir de morte osdonatistas, os bispos cessariam de os denunciar, ficando eles,assim, impunes, e que, se queria que as leis se cumprissem, eranecessrio usar em tais matrias de moderao e brandura. Atolerncia moderna ainda no soube exprimir-se maisnobremente nem com mais filosofia do que Salviano, ochamado mestre dos bispos, que tantos elogios mereceu aSanto Eucherio e a outros padres da primitiva igreja: Sohereges dizia ele, falando dos arianos so-no; masignoram-no. Hereges, entre ns, no o so entre si, porque tocatlicos se reputam que nos tm por herticos. O que eles sopara ns somos ns para eles... A verdade est da nossa parte;mas eles pensam que est da sua. Cremos que damos glria a

  • Deus: eles pensam tambm que o fazem. No cumprem o seudever, mas, longe de o suspeitarem, acreditam servir a religio.Sendo mpios, persuadem-se de que seguem a verdadeirapiedade. Enganam-se, mas de boa f e por amarem a Deus,no porque o aborream. Alheios crena verdadeira, seguemcom sincero afeto a sua, e s o supremo juiz pode saber qualser o castigo dos seus erros. No tempo da inquisio, omestre dos bispos teria perecido numa fogueira, se houvesseescrito estas admirveis frases, onde, to judiciosamente, seacham ligadas a intolerncia doutrinal e legtima com atolerncia material e externa.

    Depois da queda do imprio romano at os fins dosculo XI as heresias e os hereges foram raros, e nessesmesmos casos a igreja limitou-se aos castigos espirituais, svezes remidos por um sistema de penitncias que equivalia smultas por delitos civis. Se a represso material se julgavaoportuna, essa continuava a ser regulada pela lei civil e aplicadapela magistratura civil. O sculo XII viu pulular muitasdiscrdias religiosas, filhas de vrias causas, sendo as principaisa luta dos imperadores com os papas, luta nascida dadesmesurada ambio de alguns pontfices e da corrupoextrema a que haviam chegado os costumes da cleresia,consistindo, por isso, inicialmente, a maior parte dessas heresiasna negao da autoridade eclesistica. A opinio reagia contraos excessos do clero; mas, como sucede em todas as reaes,ultrapassava, no raro, os limites do justo. Partindo-se de umsentimento de indignao legtima, quebrava-se freqentementea unidade da crena. A prpria corrupo eclesistica, de que oepiscopado no era exempto, afrouxando o zelo dos prelados,fazia com que no mantivessem a severidade da disciplina. Aopasso que, assim, se facilitava o progresso das dissidncias,aumentando-se as dificuldades do combate por esse motivo, atibieza dos bispos achava desculpa no nmero e poder dosdissidentes para dissimular com eles. As cousas tinhamchegado a termos que as pessoas prudentes procuravam evitar

  • as discusses em matrias de f, e, at o papa Alexandre III,escrevendo a Geroho, prior de Reichsberg, lhe ordenava seabstivesse de debater pontualidades e pices da doutrinareligiosa, porque desses debates, de que nenhum bem procedia,s se tirava o carem em erros de f as inteligncias apoucadase rasteiras.

    Entretanto sentia-se vivamente a necessidade de acudirao mal. No terceiro conclio geral de Latro (1179)decretaram-se providncias severssimas contra as heresias que,pelo seu incremento e pelas violncias dos seus sectrios, setinham tornado mais perigosas. Tais eram as dos patarenos,ctaros, publicanos e outras que, principalmente, se espalhavampelas provncias dAlby, Tolosa, Arago, Navarra e Vasconia eque j empregavam violncias brutais, ou para se defenderemou para reduzirem ao seu grmio os que se conservavam fiis doutrina catlica. guerra o conclio respondeu com a guerra.Mas, ainda assim, no esqueceram de todo as antigas tradies.Bem que a igreja diziam os padres do conclio noadmita sanguinolentas vinganas e se contente das penasespirituais; todavia, as leis seculares muitas vezes exercem aosalutar pelo temor dos suplcios, no remdio das almastransviadas. Assim, lanando o antema sobre essas novas eturbulentas seitas e sobre seus fautores e protetores, negando,at, a estes a sepultura eclesistica, o conclio chama s armasos catlicos, autoriza os prncipes para privarem de seus bensos culpados e reduzirem-nos servido e concede indulgnciaspor dous anos a todos os que combaterem pela religio,mandando negar o sacramento da eucaristia aos que,admoestados pelos bispos para tomarem as armas, recusassemobedecer-lhes. De certo, o conclio lateranense, com estas eoutras provises anlogas, saa da extrema mansido e branduraque os antigos padres aconselhavam e seguiam; mas noconfundia a ao respectiva dos dous poderes. autoridadeeclesistica ficava competindo do mesmo modo o uso doscastigos espirituais, aos prncipes o dos temporais. Alm disso,

  • a jurisdio episcopal era respeitada, e no se introduziamjuzes ou tribunais novos e independentes para serem |ulgadosos casos de heresia, nem se estabelecia nova ordem deprocesso. E contudo as medidas extremas tomadas por aquelaassemblia e a linguagem do decreto conciliar esto revelandoat que ponto subiam os receios dos bispos ali congregados e aextenso do mal a que se pretendia dar remdio no presente eobstar de futuro

    A constituio promulgada por Lcio III em 1184 considerada por alguns escritores como a origem e grmen daInquisio. Aquele ato do poder papal, expedido de acordo comos prncipes seculares, ordena aos bispos que, por si, pelosarcediagos, ou por comissrios de sua nomeao, visitem umaou duas vezes por ano as respectivas dioceses, a fim dedescobrir os delitos de heresia, ou por fama pblica ou pordenncias particulares. Nessa constituio aparecem j asdesignaes de suspeitos, convencidos, penitentes e relapsos,com que se indicam diversos graus de culpabilidade religiosa,com diversas sanes penais. Todavia conserva-se a ainda puraa distino dos dous poderes, limitando-se a igreja aos castigosespirituais e deixando ao poder secular a aplicao de outraspenas. No parece ter-se a por objeto seno combater afrouxido dos prelados e compeli-los a desempenharem o seudever. As comisses extraordinrias a que nela se alude no sona essncia cousa diversa dos antigos snodos, exercendo pura eexclusivamente uma delegao dos bispos. O que naquelaconstituio h mais notvel o fixarem-se, at certo ponto, asfrmulas do processo eclesistico em relao aos dissidentes;mas essas frmulas no ofendiam a razo, porque nodesarmavam os acusados das necessrias garantias. Mal sepode, portanto, ver no ato de Lcio III a origem de um tribunalcuja ndole era exatamente contrria ao esprito das provisesque a lemos, e que apenas tem comum com elas a idia de umsistema especial de processo para esta ordem de rus

  • Foi, verdadeiramente, no sculo XIII que comeou aaparecer a Inquisio, como entidade, at certo ponto,independente, como instituio alheia ao episcopado. Altivo,persuadido, j antes de subir ao slio, dos imensos deveres e,por conseqncia dos imensos direitos do pontificado, resolvidoa reconquistar para a igreja a preponderncia que lhe deraGregrio VII e a restaurar a severidade da disciplina, meioindispensvel para obter aquele fim, Inocncio III no semostrou nem devia mostrar menos ativo na matria dasdissidncias religiosas do que nas questes disciplinares. No secontentou com excitar o zelo dos bispos. No sul da Frana e,ainda, nas provncias setentrionais da Espanha, apesar dasprovidncias tomadas anteriormente, a heresia lavrava cada vezmais possante, favorecida por diversas causas. Em 1204Inocncio enviou a Tolosa trs monges de Cister, com plenospoderes para procederem imediatamente contra os hereges.Levavam comisso do pontfice para, nas provncias de Aix,Arles e Narbona e nas dioceses vizinhas, at onde vissem quecumpria, destrurem dispersarem e arrancarem as sementes dam doutrina. Estas faculdades extraordinrias deram, aprincpio, resultados contrrios ao intento. Os prelados,ofendidos por semelhante interveno em atos de jurisdioprpria, no s deixavam de favorecer os delegados pontifcios,mas tambm lhes suscitavam srios obstculos, e, por muitotempo, os esforos deles foram, em parte, inutilizados pela mvontade dos bispos e, ainda, dos magistrados seculares. Apesarda autoridade quase ilimitada de que se achavam revestidos, ostrs monges teriam voltado para Roma desanimados, comomais de uma vez o pretenderam fazer, se no lhes houvesseocorrido inesperado auxlio. Foi este o de dous espanhis, obispo de Osma e um cnego da sua s, Domingos de Gusmo,que o papa lhes enviou por colegas em 1206. Ambos elesmostraram maior perseverana e energia do que os trsanteriores legados. Mas o homem prprio, pelo seu zelo eatividade, para desempenhar dignamente aquela espinhosa

  • misso era Domingos. Sobre ele, quase unicamente, ficoupesando o encargo de combater a heresia, desde que o bispo deOsma, passados dous anos, se recolheu sua diocese. Foi entoque o inquieto cnego espanhol buscou associar empresavanos sacerdotes, que, por fim, estabeleceram uma espcie decongregao em Tolosa, com a qual, sendo os seus estatutosaprovados em 1216 por Honrio III, se constituiu a ordem dosfrades pregadores ou dominicanos

    O nome de inquisidores da f tinha sido dado a essesdiversos legados do papa, mas nem tal designao importava omesmo que depois veio a significar, nem eles constituam umverdadeiro tribunal, com frmulas especiais de processo. O seuministrio consistia em descobrir os hereges, e, nessa parte, otrabalho no era grande, em combat-los pela palavra, emexcitar o zelo dos prncipes e magistrados e em inflamar o povocontra eles. Na verdade, estes incitamentos produziam cenasatrozes, quais se deviam esperar em poca de tanta barbaria,excitando-se a crena at o grau do fanatismo: mas a ao dosinquisidores vinha, assim, a ser unicamente moral, e indiretos osresultados materiais dela. Todavia, a independncia de quegozavam e as faculdades que lhes haviam sido atribudas, comquebra da autoridade episcopal, eram um grande passo para acriao desse poder novo que ia surgir no meio da jerarquiaeclesistica.

    Apesar, porm, dos esforos empregados pelosinquisidores da f, o incndio continuava a lavrar no meio-diada Frana, e os albigenses (nome com que se designavam, semsuficiente distino, todas as seitas que naquelas provncias seafastavam mais ou menos da doutrina catlica) nem davamouvidos s prdicas dos dominicanos e de outroscontroversistas, nem cediam violncia, onde e quandoachavam em si recursos e fora para a repelirem. A histria daguerra dos albigenses no seno um tecido de atrocidadespraticadas pelos catlicos contra os hereges e por estes contra

  • aqueles. No meio das mtuas vinganas, Pedro de Castelnau,um dos prprios legados do papa a quem o bispo de Osma eDomingos de Gusmo tinham vindo ajudar, foi assassinado(1208) pelos dissidentes. O esprito dintolerncia e os diosreligiosos produziam os frutos ordinrios destas pssimaspaixes. Todavia, no meio de tantos horrores apareciaminteligncias sumas que sabiam manter as antigas tradiescrists, conservando puras de sangue as vestes sacerdotais. Talfoi S. Guilherme, bispo de Bruges, que recusou constantementeassociar-se ao sistema da compulso violenta contra os hereges.Deixando aos legados de Roma e aos prelados das outrasdioceses confiarem a defensa do catolicismo ao ferro doscombatentes e aos suplcios dos algozes, limitava-se a exortaros endurecidos no erro, a convenc-los com razes e a implorara graa divina para que os alumiasse. Quando muito, recorria,s vezes, ameaa da imposio de multas, mas nem essamesma fraqussima ameaa se realizava. morte do santoprelado (1209) seguiu-se em breve a sua canonizao. Tanto certo que, ainda no meio do delrio das paixes e da perversodas idias, nunca se obscurece de todo o respeito s razo e verdadeira virtude.

    Os decretos do imperador Frederico II, promulgadosentre 1220 e 1224, para a represso das heresias vieram darnovo vigor e, em grande parte, absolver, revestindo-o de sanolegal, o sistema dintolerncia sanguinria adotado contra osdissidentes. A responsabilidade moral do novo direito que opoder civil criava, e que substitua a comparativa moderao dodireito romano, no podia recair, ao menos diretamente, sobre osacerdcio, como recaam os anteriores incitamentos dasmultides fanatizadas. Entretanto, a intolerncia material,levada ao extremo naquela legislao, fazia degenerar aintolerncia legtima da igreja, transportando-a do mundo dasidias para o dos fatos. Seria absurdo exigir do catolicismo quetolerasse o erro; que admitisse a possibilidade terica dequalquer ponto de doutrina contrria sua; porque isso

  • equivaleria a fazer descer a crena catlica das alturas dodogma ao nvel das opinies humanas; mas estas leis ferozestornavam necessariamente odiosa aos olhos das suas vtimas acausa remota e inocente de males que s, na realidade, eramfilhos de bruto fanatismo e, s vezes, de conveninciaspolticas.

    O ano de 1229 a verdadeira data do estabelecimentoda Inquisio. Os albigenses tinham sido esmagados, e a lutafora assaz longa e violenta para deverem contar com oextermnio. O legado do Papa Gregrio IX, Romano de S.ngelo, ajuntou nesse ano um conclio provincial em Tolosa.Promulgaram-se a quarenta e cinco resolues conciliares,dezoito das quais eram especialmente relativas aos hereges oususpeitos de heresia. Estatuiu-se que os arcebispos e bisposnomeassem em cada parquia um clrigo, com dous, trs oumais assessores seculares, todos ajuramentados para inquiriremda existncia de quaisquer heresiarcas ou de algum que osseguisse ou protegesse e para os delatarem aos respectivosbispos ou aos magistrados seculares, tomando as necessriascautelas para que no pudessem fugir. Estas comisses erampermanentes. Os bares ou senhores das terras e os preladosdas ordens monsticas ficavam, alm disso, obrigados aprocur-los nos distritos ou territrios da sua dependncia, nospovoados e nas selvas, nas habitaes humanas e nosesconderijos e cavernas. Quem consentisse em terra prpria umdesses desgraados seria condenado a perd-la e a ser punidocorporalmente. A casa onde se encontrasse um herege devia serarrasada. As demais disposies, em analogia com estas,completavam um sistema de perseguio digno dos pagos,quando tentavam afogar no bero o cristianismo nascente. Aomesmo tempo, Luiz IX promulgava um decreto, no s acordena substncia com as provises do conclio tolosano, mas emque, tambm, se ordenava o suplcio imediato dos heregescondenados, e se cominavam as penas de confisco e infmiacontra os seus fautores e protetores. Assim, o esprito da

  • legislao de Frederico II, que dominava j na Alemanha enuma parte da Itlia, estendia-se agora a Frana e tornava muitomais tremendas as providncias tomadas na assemblia deTolosa.

    Fosse, porm, qual fosse o carcter de cruel intolernciaque predominava naquele conjunto de leis civis e cannicas,havia, ainda, uma diferena profunda entre essas inquisies,digamos assim, rudimentais e a instituio colossal a que,posteriormente, se deu o mesmo nome, no sculo XVI e nosseguintes. A autoridade episcopal era respeitada. Tudo quantose referia qualificao e condenao dos hereges dependiados prelados diocesanos, guardando-se nesta parte a antigadisciplina. Depois, embora nas assemblias eclesisticas seimpusessem penas temporais aos dissidentes, esta invaso nosdomnios da autoridade secular tinha, at certo ponto, desculpa,porque os prncipes decretavam ao mesmo tempo iguais oumais severos castigos, legitimando-se, assim, mutuamente osatos dos dous poderes. Alm disso, posto que, em relao aoextermnio dos hereges, as duas autoridades se invadissemmutuamente na prtica, a igreja no se esquecia de reconheceroficialmente que a sua ao prpria se restringia aos domniosda espiritualidade. Sobre isso so expressos e terminantesalguns cnones do IV conclio geral de Latro (1216) e outrosmonumentos eclesisticos daquela poca. No tardou, porm,que esses princpios comeassem a ser pospostos, ganhandocom isso vigor a nova instituio, j permanente, mas dbil.

    O que certo que, apesar de submetidos osalbigenses, Roma, donde partia toda a atividade externa daigreja, e onde s se podia apreciar bem a situao geral dela,sentia vacilar a terra debaixo dos ps do clero. A heresia era,por toda a Europa civilizada, semelhante aos fogossubterrneos de um terreno vulcnico, no qual, ao passo quenuma cratera cessa o incndio, e apenas se ouvem algunsrugidos longnquos ou se alevanta um fumo tnue, rebentam por

  • outras partes novas crateras, que arrojam de si lavas e escriascandentes. s heresias da Frana meridional sucedia naAlemanha uma nova espcie de maniqueus, os stadings, seitaque, a princpio, se limitava a negar a soluo dos dzimos, e acujo incremento se obstou a ferro e fogo. Preferimos acreditarque as execues por heresia de que se acham vestgios nahistria desta poca, pela Frana central, por Flandres, porItlia e por outras provncias, recaam, de feito, sobreheresiarcas, e no eram atrocidades gratuitas perpetradas contrainocentes; mas, em tal hiptese, como explicar estas tendnciasde rebelio por toda a parte? Donde vinha este esprito dereao contra a igreja? Da corrupo e dos abusos dos seusministros; corrupo e abusos repugnantes, de que nos dotestemunho, no os adversrios do clero, mas sim os prpriosmonumentos e historiadores eclesisticos. Esta multiplicidadede heresias no era, como j advertimos, seno um excesso deindignao que, transpondo os limites do justo, vinha a gerar oerro. Se os papas inteligentes e enrgicos, tais como InocncioIII e Gregrio VII, que hoje moda exaltar acima de seusmerecimentos, tivessem empregado meios to poderosos pararemover o escndalo e reformar o sacerdcio, comoempregaram para exterminar os hereges, necessrio confessarou que o teriam obtido ou que era to profunda a gangrena queo pr-lhe obstculo se tornara impossvel, proposio blasfemaque equivaleria a acusar Deus de abandonar a sua igreja. Averdade que esses espritos absolutos, irrascveis, impetuososachavam mais fcil fazer passar espada ou conduzir fogueira os seus adversrios do que reprimir com incansvelseveridade as demasias do sacerdcio. Os apologistas cegos doclero, os que supem vinculada a causa da religio dos seusministros tm querido obscurecer estas consideraes, queatenuam a culpa dos dissidentes e tornam mais odiosas asperseguies contrrias ao esprito do evangelho, atribuindo bruteza e devassido daquelas pocas a corrupo e os crimesdo corpo eclesistico, que, dizem eles, no podia elevar-se

  • acima da sociedade em que vivia. uma dessas evasivasdeplorveis a que, na falta de boas razes, os espritosprevenidos costumam socorrer-se. Ns perguntaramos a essesapologistas imprudendentes se a sociedade romana na poca doimprio era ou no um charco das mais hediondas paixes, dosvcios mais abjetos, e se, apesar disso, o sacerdcio dosprimitivos sculos se deixou corromper pelo ambiente pestferoem que respirava; se no foi pelo contraste das suas virtudesausteras, do seu respeito s doutrinas evanglicas, que ele feztriunfar do paganismo a religio de Jesus e esmagou heresiasmuito mais importantes do que as do sculo XIII, sem recorrers mpias catequeses do soldado ou do algoz. Perguntar-lhes-amos, por fim, se eles entendem que o cristianismo quepode atuar nas sociedades, para as regenerar quando corruptas,ou se, porventura, so elas que podem atuar no cristianismopara o corromper, e se no justamente no meio da perversogeral que o sacerdcio deve e pode representar melhor asublimidade das doutrinas morais de uma religio divina na suaorigem e, por isso, incorruptvel e imutvel na sua essncia

    Apesar dos extremos rigores decretados para arepresso das heresias ou, talvez, por causa desses mesmosrigores, os bispos e as inquisies deles dependentes criadas em1229 procediam mais frouxamente do que, no entender dopapa, cumpria extirpao do erro. A ordem dos dominicanosou pregadores, que desde a sua origem fora o flagelo dosheresiarcas, havia crescido assaz, posto que no tanto como ados menores, minoritas ou franciscanos, cujo desenvolvimentoera, na verdade, prodigioso. Gregrio IX mostrava por aquelesnovos institutos singular predileo, sobretudo pelo primeiro. Oseu prprio penitencirio e confessor era o dominicano espanholRaimundo de Peaforte, e da se pode inferir qual seria ainfluncia da ordem e quanto as mximas do pontfice deveriamser, no diremos inspiradas por essa corporao, mas acordescom o pensamento dela. Dava-se geralmente o cargo deinquisidores aos dominicanos, os quais praticavam tais

  • crueldades que no tardaram a ser expulsos violentamente(1233) de Tolosa, de Narbona e de outras povoaes da Franameridional. A justia deste ato, reconhecida pelos historiadorescontemporneos, o foi igualmente pelo legado do papa, que,restabelecendo nessas malfadadas provncias (1234) os fradesinquisidores com as mesmas atribuies, ajuntou a cadacomisso um minorita para temperar pela sua brandura origor dos dominicanos. Era um grito de remorso que escapavaaos lbios do fanatismo. Ao mesmo tempo que os processosinquisitoriais renasciam ali, mais ou menos rigorosos, GregrioIX, incumbia os confrades do seu confessor de exerceremexclusivamente o ministrio dinquisidores na Lombardia compoderes, a bem dizer, discricionrios. Em Arago, onde muitosdos perseguidos albigenses se tinham refugiado, havia-seestabelecido e organizado, em 1232, o sistema dos inquritossobre matria de crena, recomendando especialmente o papa,nessa mesma conjuntura, ao metropolita da provnciatarraconense que nomeasse os pregadores para o exercciodeste ministrio. Assim, os implacveis filhos de Domingos deGusmo iam estendendo pela Europa a rede da perseguiocontra os dissidentes.

    No complexo das bulas e mais diplomas pontifciosrelativos aos precedentes fatos sente-se que a Inquisio, comoinstituto distinto, na sua ndole e objeto, da autoridadeepiscopal, tendia rapidamente a constituir-se. Mas os papasprocediam na matria com a destreza proverbial da criaromana. As resistncias que encontravam da parte dos preladosdiocesanos e, at, das antigas ordens monsticas, que nopodiam ver sem cime os progressos das novas corporaesmendicantes e, sobretudo, o poder dos dominicanos,aconselhavam a prudncia. Empregando-se o sistema deprovidncias especiais, cerceando gradualmente a intervenodos bispos nos negcios inquisitoriais ou anulando-a de fato,sem a destruir de direito, seguia-se um caminho mais seguro.Em Arago, por exemplo, recomendavam-se ao metropolita os

  • dominicanos para inquisidores: na Lombardia dava-lhes o papaesse cargo, como uma delegao sua, e sem na respectiva bulafazer a menor aluso aos prelados diocesanos. A polticaromana ocultava-se ou descobria-se mais ou menos, conformeas circunstncias o permitiam

    As atas do conclio narbonense de 1235, em queintervieram os trs metropolitas de Narbona, Arles e Aix,servem para fazermos suficiente conceito dos progressos que osistema de perseguio regular e permanente obtivera desde oconclio de Tolosa. O primeiro fato notvel que as resoluesda Assemblia de Narbona so dirigidas aos frades pregadorespor versarem unicamente sobre a represso dos hereges. Assim,em relao a estes, o poder episcopal estava, se no de direito,ao menos de fato, inteiramente nas mos da nova milcia papal.H, depois disso, no todo das disposies conciliares algumasparticularidades assaz significativas. Uma daquelas disposies que fiquem suspensas as recluses dos dissidentescondenados a crcere perptuo at definitiva resoluo dopontfice, visto declararem os inquisidores ser tal a multidodos que estavam nesse caso que no s faleciam recursos paraconstruir masmorras, mas que, at, faltavam, quase, pedras ecimento para isso. Outra que se abstenham os frades, porhonra da sua ordem, de impor penitncias pecunirias e depraticar exaes contra os fiadores dos hereges fugidos contraos herdeiros dos que faleceram sem serem penitenciados emvida. Mas os prelados concluem por declarar que de nenhummodo pretendem coagir os inquisidores a aceitarem comopreceptivas as regras estabelecidas no conclio, porque seria ummenoscabo da discreta liberdade que lhes fora concedida nomtodo de procederem, e que tais decises no passam deconselhos amigveis, com que desejam ajudar aqueles quefazem as suas vezes num negcio prprio dos mesmossignatrios.

    Se esta concluso no uma amarga ironia, ela prova

  • quo profundamente o episcopado se curvava j perante osinquisidores, como estes se consideravam exemplos daautoridade diocesana, e como as tradies da antiga disciplinase achavam ofuscadas. As recomendaes acerca das multaspecunirias indicam que entre os inquisidores os interesses docu no faziam esquecer absolutamente os da terra, e essacircunstncia nos est dizendo que j ento se davam incentivos,menos desculpveis do que um zelo cego, para achar tantoshereges e que nenhuns calabouos eram bastantes a conter s ossentenciados a recluso perptua.

    At o pontificado de Inocncio IV a histria dosprogressos da Inquisio nada oferece notvel, seno um fato,donde se deduz que os abusos de que em sculos maismodernos ela foi acusada remontam aos tempos da suafundao. Inventada para satisfazer os mpetos do fanatismo,tendo, por isso, origem num sentimento mpio, embora veladocom o manto do entusiasmo religioso, ela trazia consigo odesenfreamento de muitas outras paixes ruins, que igualmentese disfaravam com as exterioridades do zelo cristo. Os diosparticulares, a cobia, os desejos obscenos, quantas vezes nofariam bater debaixo dos escapulrios os coraes dosinquisidores! Quantas vezes o rosto austero, os olhos cavos ecintilantes do dominicano, erguidos para o cu no momento emque ele vibrava a condenao e o antema, no reprimiriam acusto a exploso do jbilo por ver, enfim, saciada uma longasede de vingana! Um maniqueu convertido, Roberto, poralcunha o Blgaro (denominao que nalgumas partes se davaaos albigenses, patarenos e outros hereges), o qual professarana ordem dos pregadores, era, pelos anos de 1239, um dos maisardentes perseguidores dos seus antigos correligionrios. Porsuas diligncias, tinham sido queimadas de uma s vez, peranteum grande concurso dos povos da Champagne, perto deduzentas pessoas tidas por herticas. Em frei Roberto o zelopela f era ilimitado, e insacivel a sede de sangue. Protegidopor Luiz IX, o seu nome tinha-se tornado o terror das

  • provncias de Flandres, onde, a cada passo, ardiam as fogueirasacendidas por ele. Para que esse terror no diminusse, ondeno podia achar culpados queimava inocentes. A fora, porm,do seu ardor veio a perd-lo. Os gemidos de tantas vtimasgeraram suspeitas. Inquiriu-se do inquisidor e achou-se que eraum malvado. Os seus crimes foram tais que o beneditinoMatheus Paris, historiador coevo, diz que o melhor guardarsilncio acerca deles. Tiraram-lhe o cargo e condenaram-no apriso perptua. Com mais alguma prudncia, quem sabe sehoje o seu nome figuraria no amplo catlogo dos santos daordem de S. Domingos?

    No s a penalidade contra os delitos de heresia sehavia exacerbado com as leis do imperador Frederico, mastambm as frmulas do processo se tinham tornado maisseveras desde que o conhecimento desta espcie de causaspertencia, quase exclusivamente, aos frades pregadores. Depoisdo conclio geral de Lio de 1245, em que dois prncipes foramdepostos, Frederico II de Alemanha e Sancho II de Portugal,celebrou-se um conclio provincial em Bziers, no qual seredigiu, por ordem de Inocncio IV, um regulamento definitivosobre o modo de proceder contra os hereges. Este documento,que reproduz algumas provises anteriores, tanto dos conclios,como dos papas, acrescentando-lhes outras novas, assazimportante, porque serviu de base a todos os posterioresregulamentos da Inquisio. Est distribudo em trinta e seteartigos, nos quais se ordena, em substncia, que, chegando osinquisidores a qualquer lugar, convoquem o clero e o povo e,depois de fazerem uma prtica, leiam a patente da suanomeao e exponham os fins que se propem, ordenando atodos os que se acharem culpados de heresia ou que souberemque outrem o est a virem, num certo prazo, declarar averdade. Os que assim o cumprirem dentro daquele prazo,chamado tempo do perdo, ficaro exemptos das penas demorte, crcere perptuo, desterro e confisco. Sero, depois,citados individualmente os que no se houverem apresentado no

  • tempo prefixo, dando-se-lhes termo para comparecerem eliberdade para a defesa; mas, se esta no for satisfatria e seno confessarem as suas culpas, sero condenados semmisericrdia, ainda submetendo-se eles s decises da igreja.Os nomes das testemunhas devem ser ocultos aos rus, salvose, declarando estes que tm inimigos e dizendo os nomesdeles, se achar que so as mesmas testemunhas. Quaisquerpessoas criminosas e infames, por serem participantes no crimede heresia, devem ser admitidas por acusadores etestemunhas, exceo dos inimigos mortais do ru. Os quefugirem sero julgados como se estivessem presentes e, sequiserem voltar, mand-los-o prender ou daro fiana, abel-prazer dos inquisidores. Os que recusarem converter-sef-los-o confessar-se como hereges em pblico, para depois serelaxarem justia secular. A morte no absolve ningum deperseguio: os hereges falecidos sero condenados,citando-se os seus herdeiros para a defesa. As penitncias nocumpridas, em todo ou em parte, pelos reconciliados durante avida devem ser remidas pelos seus bens depois de mortos.Ficam condenados a crcere perptuo os relapsos, isto , osque, depois de convertidos, recarem no erro, os contumazes, osfugitivos que vierem entregar-se e os apreendidos depois dotempo do perdo. Regula-se a polcia que deve haver entreestes indivduos perpetuamente encarcerados, para os quais seadota o sistema celular, e igualmente se estabelece o modo depenitenciar os condenados a pena menos dura. Ordena-se umaabjurao geral das heresias, feita por todos os habitantesdaquelas provncias, e que os magistrados e oficiais pblicosprestem juramento de ajudarem eficazmente os inquisores e deexterminarem os hereges. Renova-se a instituio doscomissrios de parquia para fazerem contnuas pesquisas pelashabitaes, cabanas, subterrneos e esconderijos, destruremestes e colherem s mos os dissidentes. Mandam-se arrasar ascasas onde qualquer deles se haja ocultado, e confiscar os bensdos donos. Estatui-se, finalmente, que os seculares no possuam

  • livros latinos sobre objetos teolgicos e que nem seculares, nemsacerdotes os possuam em vulgar sobre tais objetos. s trevasmateriais dos calabouos ficavam, assim, correspondendo cfora as trevas mais espessas do esprito.

    Entretanto a morte do imperador Frederico,desapressando Inocncio IV de um terrvel adversrio,deixava-o quase nico rbitro da Lombardia e doutrasprovncias dItlia. Aproveitando a conjuntura, o papa resolveuconstituir nesses territrios tribunais dInquisio fixos eindependentes, compostos de dominicanos e minoritas.Repugnava, na verdade, desmembrarem-se as causas de heresiado foro episcopal e excluir-se a interveno dos magistradosseculares, a quem, pelo antigo direito romano, pelo modernoimperial e pelo municipal das cidades dItlia, competia apunio dos hereges. Esquivou-se a primeira dificuldade,criando-se em cada diocese um tribunal composto do bispo e doinquisidor, mas ficando tudo a cargo deste, ao passo que oprelado apenas a intervinha nominalmente; esquivou-se asegunda, atribuindo-se a nomeao dos novos assessores aopoder civil, mas por eleio dos inquisidores j em exerccio, e,alm disso, autorizando-se o magistrado civil do distrito paramandar um agente seu com cada delegado da Inquisio quefosse sindicar pelas aldeias. Com estas e outras provises, que,como observa frei Paulo Sarpi, tornavam os oficiais pblicosmais servos do que colegas dos inquisidores, se fingiu respeitaras leis da igreja e as da sociedade. Em 1252 expediu-se umabula aos magistrados da Lombardia, Romagna e MarcaTrivisana, providenciando-se ao que se julgava necessrio parase favorecer o progresso da Inquisio. Os ministros destetremendo tribunal ficavam por esta bula autorizados a compeliro poder secular a executar o que nela se ordenava por meio deexcomunhes e de interditos.

    Cumpre aqui mostrar que tanto estas providnciasrelativas a uma parte da Itlia, como as que sucessivamente se

  • decretaram para o meio-dia da Frana e para outros pases, notiveram nunca o carcter de universalidade, nem a Inquisiotomou jamais a natureza de uma instituio geral da igreja.Apesar da sua ao ser, na realidade dos fatos, superior autoridade dos bispos, cuja jurisdio defraudava, o direitocomum eclesistico era sempre o mesmo em tese, e ainda, svezes, na hiptese; porque, onde a Inquisio faltava, os bisposcontinuavam a conhecer das heresias pela forma ordinria,quando elas surgiam nas respectivas dioceses.

    medida, porm, que os tribunais dInquisio semultiplicavam, as reaes contra o seu brbaro procedimentomultiplicavam-se tambm. De parte a parte faziam-se agravosfundos, que geravam vinganas, e as vinganas aumentavam airritao, de que provinham novas atrocidades. Onde e quandoos hereges ou reputados tais podiam recorrer s violncias paraobter desforo no as poupavam. A tolerncia e a resignaoevanglicas tinham sido completamente banidas. A Inquisio,que era forte, tinha o cadafalso e a fogueira: a heresia, que erafraca, tinha o punhal. Era de uma parte o tigre quedespedaava; era da outra a vbora que se arrastava e, quandopodia, cravava na fera os dentes envenenados. Os horrores dasperseguies religiosas do sculo XIII podero avaliar-se,aferindo-os pela triste histria das lutas civis de hoje.Carreguemos as cores do quadro com as negras tintas daferocidade e ignorncia daquelas eras rudes e com as, aindamais negras, do fanatismo religioso, cuja energia no sofrecomparao com a do fanatismo poltico. Conceberemos assimquo medonhas cenas se passariam nas provncias devastadaspor um sistema de catequese digno dos primeiros sectrios doislamismo. Ao passo que, depois de queimarem muitosdissidentes ou supostos tais, eram assassinados em Arago eem diversos lugares os inquisidores Planedis, Travesseres eCadireta, Pedro de Verona morria apedrejado em Milo, eoutros por diversas partes. Aos inquisidores, que assimpereciam vtimas do seu e do alheio fanatismo

  • consideravam-nos como mrtires, e os dominicanos ganhavamde dia para dia uma considerao e influncia ilimitadas, que osfranciscanos, seus mulos, procuravam combater, nascendo dadisputas vergonhosas entre as duas ordens. O repugnanteajuntava-se ao horrvel, e diante de tais cenas a religio velava aface. A universidade de Paris era em geral adversa aos frades,sobretudo aos da ordem de S. Domingos. A luta entre osmendicantes e aquela corporao, onde residia nessa poca,talvez, a maior soma de luzes, foi longa e renhida, e as mtuasacusaes, principalmente as da universidade contra os frades,produziram bastante escndalo para estes perderem muito dasua popularidade. Todavia, a universidade foi vencida, no smaterialmente, porque os mendicantes tinham o favor do rei edo papa, mas tambm moralmente, porque no havia no meiodos seus hbeis membros inteligncias capazes de lutaremvantajosamente com o principal campeo do monaquismomendicante, S. Thomaz de Aquino.

    Foi nos princpios desta contenda (1255-1256) que,pelas rogativas de Luiz IX, o papa, ento Alexandre IV,generalizou a Inquisio em Frana. Foram nomeados parapresidirem a ela o provincial dos pregadores e o guardio dosmenores ou franciscanos de Paris, continuando a subsistirseparada a antiga Inquisio das provncias meridionais. Aprincpio, as instrues dadas para se proceder na matria erammoderadas e em harmonia com o carcter do prncipe queimpetrava a respectiva bula, mas o papa foi sucessivamenteaperfeioando a sua obra, e no fim daquele pontificado osregulamentos da nova Inquisio eram aproximadamenteacordes com os que regiam as mais antigas. Na verdade,Alexandre IV, numa das bulas relativas Inquisio francesa,manda que no julgamento e condenao dos rus sejam ouvidosos respectivos prelados diocesanos; mas a isto pode-se aplicar aobservao de Sarpi acerca da nominal ingerncia dos oficiaispblicos nos processos da Inquisio lombarda. O direito divinodos bispos era ferido por quase toda a parte, e essa nova

  • instituio, desconhecida nos doze primeiros sculos da igreja,elevava-se acima do episcopado.

    Entretanto, nas provncias dItlia, onde ela se haviaplantado com as frmulas mais absolutas, as resistncias eramtais que os papas viram-se obrigados a ir moderando essasfrmulas. As providncias de 1252 foram sucessivamenterenovadas com modificaes por Alexandre IV e Clemente IV,em 1259 e em 1265. Nem por isso, todavia, cessou a oposio,e os quatro papas imediatos acharam srios embaraos emdilatar a jurisdio inquisitorial. As causas principais darepugnncia eram, por um lado, a severidade indiscreta dosfrades inquisidores e as extorses e violncias que faziam e, poroutra parte, a m vontade dos municpios em pagarem asdespesas que tinham de fazer com aqueles tribunais. Cedeu-se,por fim, neste ponto e, alm disso, para temperar a ferocidadeinquisitorial, restituiu-se aos bispos uma parte daquela ao quede direito lhes pertencia em tais matrias. Apesar de tudo,porm, a repblica de Veneza s aceitou a Inquisio em 1289,ainda com maiores limitaes e pondo-a debaixo da ao dopoder civil, de modo que fosse considerada, no como umadelegao pontifcia, mas como um tribunal do estado. Era poresse tempo que ela chegava em Frana ao seu apogeu, paradeclinar em breve, at se reduzir a uma instituio insignificantee desaparecer. Ainda em 1298, Felipe o Formoso promulgavauma ordenao na qual se estatua que os heresiarcas e seussectrios condenados pelos bispos ou pelos inquisidores fossempunidos pelos juzes seculares, sem se lhes admitir apelao;mas j em 1302 o mesmo prncipe se opunha s usurpaes dotribunal da f em detrimento do poder civil, proibindo aosinquisidores perseguissem os judeus por usuras e sortilgios epor quaisquer outros delitos que no fossem precisamente dasua competncia. Nos fins do mesmo sculo (1378), Carlos Vps termo ao absurdo sistema, sancionado no conclio deBziers, de se derribarem as habitaes dos hereges, e fezesfriar o zelo dos ministros da Inquisio, ordenando que, em

  • lugar de herdarem uma quota dos bens das suas vtimas,vencessem um estipndio regular. No sculo XVI a instituioestava morta em Frana, e os tnues vestgios que seencontram, naquela poca, do cargo de inquisidor, representamantes a recordao dum ttulo inocente dado a algunsdominicanos de Tolosa do que os restos de uma terrvelrealidade.

    A Inquisio, como j dissemos, tinha quase desde osseus comeos penetrado na Pennsula, e o Arago, onde asheresias que lhe deram origem haviam tambm penetrado, foi oteatro das suas crueldades. A, como por outras partes, elaencontrava resistncias, e alguns inquisidores, conforme vimos,caram vtimas da vingana daqueles que implacavelmenteperseguiam. De uma bula dirigida ao bispo de Palncia em1236 deduz-se que este tribunal de sangue entrara tambm emCastela; mas o castigo de vrios hereges, em tempo deFernando III, parece antes indicar que entre os castelhanossubsistia, nesta parte, a antiga disciplina. Na verdade, por umgrande nmero de diplomas pontifcios pertencia ao provincialdos dominicanos espanhis nomear inquisidores apostlicos,isto , dependentes diretamente da cria romana, em todos oslugares onde os julgassem necessrios para coibir os erros def; mas o que resulta da histria que, durante o sculo XIII,eles s existiram permanentemente nos estados da coroa deArago. Em Portugal no se mostram nessa poca vestgios danomeao de um nico inquisidor para exercer as funes doseu ministrio em parte alguma. As tentativas do dominicanoSueiro Gomes para fazer vigorar no pas certas leis, que parecetendiam a lanar os fundamentos do sistema inquisitorial, foramenergicamente repelidas por Afonso II, o qual, nas cortes de1211, regulara a penalidade contra os hereges, mas hereges quefossem havidos por tais em virtude de julgamento dos preladosdiocesanos, conforme a legtima disciplina da igreja. Depois,por ocasio do clebre processo dos templrios, no princpio dosculo XIV, a bula de Clemente V dirigida a D. Dinis, para que

  • procedesse contra os cavaleiros daquela ordem nos seus reinos,parece pressupor a existncia de inquisidores em Portugal,onde, de feito, podia hav-los, em virtude do poder que para osinstituir residia no provincial dos frades pregadores; mas nemrestam memrias da sua interveno naquele ou noutroprocesso sobre matrias de f, nem a bula, espcie de circularaos prncipes cristos, prova que eles existissem de fato. Assuspeitas de que em Portugal se tinham introduzido alguns errosde doutrina suscitaram em 1376 uma bula de Gregrio XI aAgapito Colonna, bispo de Lisboa, pela qual o papa oencarregava, visto no haver inquisidores neste pais, deescolher um franciscano, dotado dos requisitos necessrios parao mister de inquisidor, o qual, revestido de todos os poderesque o papa lhe conferia, verificasse a existncia das heresias ezelosamente as perseguisse e extirpasse. Frei Martim Vasquesfoi o escolhido, e este o primeiro de quem consta que fosse,determinada e especialmente, revestido desse cargo(1). Asnomeaes sucessivas dos franciscanos frei Rodrigo de Cintra(1394) e frei Afonso de Alpro (1413) e do dominicano freiVicente de Lisboa (1401) no tm valor algum histrico. Nopassavam, provavelmente, de qualificaes obtidas parasatisfazer vaidades monsticas, e eram, talvez, resultado daemulao das duas ordens rivais, a dos menores e a dospregadores. Acrescia a isso o haver ento dous papados, um emAvinho, outro em Roma, e obedecerem os castelhanos a um eos portugueses a outro, do que resultava no reconhecerem osdominicanos de Portugal o seu provincial de Castela, quereputavam cismtico, e a quem, todavia, andava anexo oministrio de chefe dos inquisidores. Da procediam milquestes fradescas, indignas da ateno da histria. O queimporta a esta, porque interessa humanidade, que essesinquisidores, franciscanos ou dominicanos, com autoridadelegtima ou sem ela, revestidos, perptua ou acidentalmente, deum poder fatal, no usaram ou abusaram dele para vertersangue humano, ou, se praticaram alguma atrocidade, a

  • memria de tais fatos no chegou at ns. Essas mesmasintrigas insignificantes cessaram com a separao dosdominicanos portugueses dos seus confrades castelhanos,formando uns e outros no sculo XV duas provncias distintas, eficando, segundo se diz, o provincial portugus revestido dottulo vo de inquisidor geral do seu pas e da faculdade delisonjear alguns dos sditos com a qualificao de inquisidoresespeciais.

    Se, no sculo XIV, a Inquisio era em Portugal umacousa, a bem dizer, nula e, no XV, se achava reduzida a umaridicularia fradesca, no sucedia o mesmo no resto daPennsula, ao menos no Arago, onde os autos-de-f serepetiam, no sculo XIV, com curtos intervalos. A, bem comoem Castela, os inquisidores intervieram mais ou menosativamente no processo dos templrios. Depois, os dominicanosPuigcercos, Burguete, Costa, Roselli, Gomir, Ermengol eoutros associaram o seu nome perseguio e ao extermnio demuitos indivduos acusados de heresia, nas provncias deValncia, Arago e Amprias. Entre eles, porm, avulta freiNicolau Eymerico, inquisidor geral da monarquia aragonesa. atividade com que perseguia aqueles que julgava deslizarem daf catlica este clebre fantico ajuntou os trabalhos jurdicos,escrevendo o Diretrio dos Inquisidores, corpo de toda alegislao civil e cannica e de toda a jurisprudncia entoexistentes sobre os crimes que a Inquisio era destinada aprocessar e punir. As provas do incansvel zelo de Eymerico edos seus delegados, durante a segunda metade do sculo XIV,acham-se no prprio Diretrio, onde ele no se esqueceu demencionar os autos-de-f celebrados nesse perodo. No sculoseguinte, a histria eclesistica de Arago oferece-nos fatosanlogos. Aos nomes dos inquisidores desse pas e de Valnciae Maiorca, os dominicanos Ros, Corts, Murta, Pags, andaligada a memria de muitas execues por crimes de heresia.Mas, como por toda a parte e em todos os tempos, a Inquisiono parece ter sido, naquela nica provncia dEspanha onde

  • estava organizada permanentemente, remdio demasiado eficazpara obviar aos desconcertos religiosos. Os erros de Wicleffespalharam-se por essas regies, e os dominicanos Ferriz eTrilles tiveram ocasio de convencer com o suplcio do fogo osque no haviam cedido aos claros argumentos dos crceres, dostratos e das penitncias. Durante mais de trinta anos(1452-1483), frei Christovam Galvez, armado do poderinquisitorial naquele pas, pde satisfazer todas as ruins paixesque o dominavam, at que Sixto IV, pondo termo s maldadesdo frade aragons, o mandou demitir, contentando-se com essademonstrao, bem que, na respectiva bula, afirme que oinaudito procedimento daquele impudente e mpio seria dignodexemplar castigo. Tal era a justia de Roma nesta negrahistria da opresso religiosa.

    Mas o tempo em que os excessos da intolerncia,circunscritos at ento, na Pennsula, quase exclusivamente aosestados de Arago, deviam abarcar a Espanha inteira, era,enfim, chegado. Em lugar desses acessos frenticos deferocidade com que se manifestara durante quase trs sculos, aInquisio ia tornar-se, na realidade dos fatos, o que at entos fora na aparncia, uma instituio permanente e ativa,procedendo nas trevas, fria, calculada, implacvel em todos osseus atos, preparando-se em silncio para assoberbar, no s ospovos e os prncipes, mas tambm os prprios pastores daigreja. nos fins do sculo XV que se pode fixar oestabelecimento da Inquisio como tribunal permanente, comsuperintendncia exclusiva sobre todas as aberraes dadoutrina catlica e revestido dos caracteres e tendncias quenos sculos seguintes lhe conciliaram to triste celebridade. Foiento que o episcopado se resignou a perder de todo, na prticaao menos, uma das suas mais importantes funes e um dosseus mais sagrados direitos, quebra deplorvel da antigadisciplina da igreja, contra a qual apenas nos aparecem depoisas raras e inteis protestaes de um ou doutro prelado queousava ainda lembrar-se das prerrogativas episcopais.

  • Isabel, mulher de Fernando de Arago rei de Siclia,subira ao trono de Castela por morte de seu irmo Henrique IV(1474). Falecido D. Joo II rei de Arago, Fernando de Siclia,seu filho, sucedeu naquela coroa (1479) e assim se acharamunidos os dois mais poderosos estados da Pennsula. O reino deGranada era o que apenas restava ao islamismo de todos essesestados muulmanos que se tinham estabelecido aqum doEstreito. Fernando, prncipe ambicioso e guerreiro, no tardouem submet-lo, bem como o reino cristo de Navarra, do qualdespojou o seu ltimo soberano, Joo de Albret. Aoaproximar-se, pois, o fim do sculo XV, a Espanha, exceode Portugal, formava uma s monarquia, sob o regime deFernando e Isabel, embora nas frmulas externas continuassem,at certo ponto, a sobreviver as diversas nacionalidades quenela existiam. Nascido no pas onde, durante a idade mdia seconservara, mais ou menos fulgurante, mas sempre aceso, ofacho da intolerncia material, Fernando V teve a triste glriade ser o fundador da moderna Inquisio espanhola. Oinquisidor siciliano, frei Felipe de Berberis, vindo a Espanhapedir aos reis catlicos a confirmao de um antigo privilgio,pelo qual a tera dos bens dos que eram condenados comohereges ficava pertencendo aos seus julgadores (arbtrioexcelente para achar culpados), depois de obter favorveldespacho, tratou de persuadir o prncipe aragons de quantoseria conveniente estabelecer na Pennsula o tribunal permanenteda Inquisio. Ajudava-o neste empenho o prior dosdominicanos de Sevilha, Hojeda; e o nncio do papa, que via asvantagens que da podiam resultar para a cria romana,protegia com todo o vigor o empenho dos dous frades. Para sedar maior plausibilidade pretenso, apareceraminstantaneamente casos de desacato contra as cousas sagradas,casos na verdade secretos, mas quase milagrosamenterevelados. Ao menos, o dominicano Hojeda denunciava-os, eFernando V estava predisposto a acredit-los. As acusaes deatos sacrlegos, ocultamente praticados, recaam sobre famlias

  • de raa hebraica, e as famlias desta raa eram as mais ricasdEspanha. Condenados os judeus como hereges, os seus bensseriam confiscados, ao menos em grande parte, e o incentivopara excitar o zelo religioso do monarca era assaz forte.Antepunha-se, todavia, uma dificuldade. Isabel, a catlica,repugnava a admitir na monarquia castelhana e leonesa acontnua representao das cenas que eram conseqnciaforosa do estabelecimento daquele sanguinrio tribunal e querepugnavam brandura da sua ndole. Os votos dosconselheiros, que o rei e os dominicanos tinham imbudo dasprprias idias, moveram, enfim, o nimo da rainha,fazendo-lhe crer que a adoo do tribunal da f era altamenteprofcua e, talvez, indispensvel aos progressos do catolicismo.Cedeu por fim; e o bispo dOsma, embaixador de Castela junto corte de Roma, recebeu ordem para suplicar ao papa aexpedio de uma bula pela qual se criasse em Castela aqueletribunal.

    As causas que tinham dado origem Inquisio antigatinham desaparecido. As heresias dos albigenses e dos outrossectrios que no sculo XIII ameaavam de grande runa aigreja eram assaz importantes e derramavam-se com rapidez,subministrando, assim, motivos aos que no tinham bastante fna indestructibilidade do catolicismo para procurarem livrar-sedo prprio terror espalhando-o, tambm, entre os adversrios.A heresia tinha prncipes que a protegiam, soldados quecombatiam por ela, e as vinganas sanguinolentas contra osheresiarcas e seus fautores no se executavam sem risco. Oferro aacalava-se e a fogueira acendia-se em ambos oscampos. Era uma luta selvagem, atroz, anticrist; mas era umaluta: tinha o que quer que fosse nobre e grandioso. A Inquisioera um meio mpio de extermnio, como qualquer outro dos queento se empregavam. Nos fins do sculo XV, na Espanha, ascircunstncias vinham a ser absolutamente diversas. Os erros def, se apareciam luz, no passavam de opinies singulares esem seqela;