"histórias mal contadas"
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escreveu Paulo Moreira Lopes ilustrou LeunamTRANSCRIPT
Histórias mal contadas
escreveu Paulo Moreira Lopes
ilustrou Leunam
Edição Esgotada
Histórias mal contadas
1.ª edição
4
© Edição Esgotada, Paulo Moreira Lopes e Leunam
Porto
É autorizada a reprodução fiel, integral, sem reservas e sem grahlas
desta obra-prima1.
A reprodução em desconformidade com esta obra será severamente
punida pelo seu autor com um olhar de reprovação e de indignação, a
que acrescerá uma inimizade precária, a qual caducará (de cair), logo
que o infractor(a) apresente um solene e expressivo pedido de
desculpas.
1Com o sentido e alcance de primeira obra, sem prejuízo de outro
entendimento, mas que o autor não pode, por agora, razoavelmente
contar com ele (cfr: n.º 2, do artigo 236.º do Código Civil). Também
poderia ter escrito “obra-primos”, pois os autores são, efectivamente,
primos.
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Ao tempo perdido.2
2 Deus queira que nunca o ache. Ele que ande com Deus, pois anda
muito bem acompanhado.
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A CADERNETA DE LEITE
Foi uma desgraça cá em casa!
Ele estava, como de costume, no meio da sala de
rabo para o ar, a folhear de trás para a frente e da frente
para trás a caderneta. Colava cromos, recontava cromos,
conferia cromos. Faltava muito pouco para o "soltem a
parede”. De repente começa aos gritos lancinantes. O
leite que a mãe lhe havia dado para beber tinha caído
sobre a caderneta. O desespero apoderou-se do seu olhar.
E continuou a berrar, a berrar aflito. Fomos auxiliar a
vítima.
A avó, alertada pelo insólito, também veio em
socorro do seu menino e, muito perturbada, diz:
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- Compra-se uma caderneta nova e se for preciso
uma caixa de cromos!
Entretanto, pai e mãe põem-se de secador em
punho a tentar salvar o que resta daquele incidente. Ele
vai e vem. Entra e sai da cozinha sempre na esperança de
que a coisa se resolva da melhor maneira. Não há "soltem
a parede” que consiga atenuar aquele sofrimento. No
rescaldo, perdeu-se uma ou outra selecção sem
importância, mas a Argentina, completada dias antes,
estava incólume. O Ronaldo ficou um bocado estragado,
o que era ultrapassável pois havia muitos repetidos. Na
hora de deitar, o seu olhar era de uma profunda tristeza.
Só nessa altura caímos em nós. O desgosto tinha
deformado o espelho da nossa felicidade. A mãe
adormeceu-o com falinhas mansas e sempre, sempre a
desvalorizar aquela perda.
De manhã, quando voltamos a ver-nos ao espelho,
uma dor cruel fez calar a nossa esperança. Continuava
muito infeliz e de olhar distante.
Durante o dia a situação foi-se compondo. À hora
do almoço já tinha uma caderneta nova, que se
transfigurara noutra caderneta por artes de "corte e cola”
das mulheres da casa. Ao fim da tarde telefonou, todo
entusiasmado, a contar que o jogo estava a começar. À
noite ainda teve direito a uns cromos repetidos de um
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menino com quem me cruzei. Desta vez, não houve leite
na sala e antes de terminar "soltem a parede” já dormia
inundado pelas emoções fortes do dia.
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O ASPIRADOR DE ÁGUA
Ela tinha planeado aquela aquisição há algum
tempo. Pediu ao cunhado - o engenhocas -, as referências
do aparelho, pois sozinha não era capaz de tamanha
façanha.
Foi num sábado de manhã que me entrou pela casa
dentro com o olhar radiante e um sorriso a afundar-lhe as
covinhas das faces. Vinha abraçada a uma caixa de
cartão, enquanto o rapaz vinha atrás muito surpreendido
com a alegria dela.
Mais surpreendido fiquei eu com aquela eficiência
e autonomia conjugal. Contou que fora muito simples.
Chegou à loja do hipermercado; deu a referência e
pronto!, comprou o tão desejado aspirador de água.
Acabava-se a freima dos sacos de papel.
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Fomos os dois para a cozinha abrir a caixa e montar
o dito aparelho: peça a peça. Tudo muito fácil.
Ambos satisfeitos, eu fui tomar banho e ela dar
braços à inovação. Quando ia a entrar no chuveiro
chamou-me preocupada com o aparelho porque, afinal,
não funcionava. Devia ter algum problema. Devia estar
avariado. Com o olhar muito aflito, mostrava-me como
tudo estava bem encaixado. Retirava e punha as peças.
Mas o aspirador não aspirava. Fazia barulho, mas nada de
puxar o pó. Olhei o depósito da água e reparei que estava
quase cheio. E ela sempre a mexer nas peças. Então, sem
consultar o manual de instruções, peguei no aspirador e
concentrei-me no depósito. Lá estava bem visível uma
linha horizontal encimada pelas letras "MAX H2O”. A
água que tinha posto inundava, largamente, aquele limite.
Olhámo-nos e rimo-nos3. Ela tinha previsto tudo,
menos aquele pormenor. Estava rendida aos benefícios
da cooperação conjugal. Depois daquela braçada
luminosa, eu já podia ir tomar banho ainda mais
satisfeito. Ao largo do seu olhar, sob a precipitação, ria-
me daquele golpe de visão que me tinha salvado a
manhã.
3 Ao ler esta frase foge-me o pensamento para a música do Sérgio
Godinho “A noite passada”, quando canta: e então olhaste/depois
sorriste/disseste "ainda bem que voltaste".
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O SENSOR4
Foi um final de dia surpreendente.
A tarefa era morosa e se calhar árdua. Por isso,
tínhamos pedido reforços: mais dois adultos para o que
desse e viesse. Os móveis de escritório tinham que ser
levados dali para fora, mais precisamente dali para baixo.
Começámos por desaparafusar as estantes com chaves
universais. Mas o trabalho não rendia.
Lembrei-me então de transportar as coisas pelo
elevador. Só o simples pensar na solução transmitiu-me
uma sensação de alívio. O meu corpo relaxou com a
perspectiva da facilidade. Fomos comparar os espaços e
percebemos que seria à justa. Mesmo assim arriscámos.
4 No blogue http://umreinomaravilhoso.blogs.sapo.pt/ publiquei este
texto com o título “O elevador”, mas depois de muito reflectir achei
mais conforme ao conteúdo do mesmo alterar para “O sensor”.
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Acondicionada a estante no interior da cabine,
faltava fechar a porta e deixar ir cabo abaixo. O rapaz,
como era o único que cabia no espaço livre, lá se
instalou. Contudo, a porta recusava-se a fechar, apesar de
não ter nenhum obstáculo à sua frente. A explicação era
simples: o sensor, situado um pouco no interior, incidia
na estante e não fazia retorno. A máquina não tinha
ordem para actuar, digo fechar. Os outros ainda
desistiram. Mas eu não fiquei convencido. Se a função do
sensor era proteger os utilizadores do embate inesperado
da porta, em especial as crianças, ela estava cumprida e
mais que cumprida. Não havia motivo para não seguir
viagem. Era preciso convencer a máquina que estava
tudo bem, que não havia problema. Não sendo possível o
convencimento, a solução seria a ilusão.
Como iludir o sensor? Como enganá-lo? Parei um
pouco e deixei o pensamento procurar uma solução.
Eureka! O retorno do sinal só poderia ser possível com
um espelho. Sim! um espelho. Era preciso um espelho.
Indagou-se em tudo quanto era sítio e ele acabou por dar
a cara, como quem diz, aparecer.
Regressados à posição inicial, o rapaz colocou o
espelho e o logro concretizou-se: a porta fechava-se.
Inesperadamente, outro problema ainda mais grave
se me colocou. O rapaz ia no elevador sem mim. Podia
acontecer alguma avaria e ele ficava sozinho e trancado
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entre a estante e a parede da cabine. Ainda vi se o outro
elevador estava presente, ainda me disseram que não
demorava nada a chegar, mas foi impossível iludir a
aflição. Desatei a correr pelas escadas abaixo sempre a
convencer-me que tudo estaria bem. Foram seis andares,
muitas escadas e patamares corridos com a culpa nas
mãos. Tinha pensado em tudo, menos nele. Quase no
final da descida ouço o elevador a abrir e chamo por ele,
respondendo-me que estava tudo bem. Deixo cair a
culpa, talvez no piso dois, e depressa chego à sua
presença. Agarro-lhe a cabeça contra o meu peito,
liberto-a e dou-lhe um beijo na testa.
- Boa MacGyver! – Disse aliviado.
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O ÚLTIMO CROMO
Eis o domingo do nosso contentamento.
Subíamos os dois de mãos dadas a rua Sá da
Bandeira. Eu satisfeito pelo dever cumprido. Ele ainda
incrédulo com o sucesso da jornada.
A iniciativa fora minha. Para se completar a
caderneta ou íamos à feira da Vandoma ou à Praça dos
Cavalos. Ele escolheu o domingo e a visita à baixa para
trocar os últimos cromos do mundial.
A aproximação ao grupo estacionado em frente ao
Rivoli fez-se de modo cauteloso, mas logo que nos
denunciámos como interessados na troca passámos a
integrar naturalmente as transacções. O primeiro parceiro
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ficou-nos com mais de trinta cromos e ainda nos pagou a
0,12€ cada um por não ter "repetidos”. A seguir foi uma
sequência de trocas em que cedíamos os nossos
"repetidos” a outros para conferirem os que faltavam e
vice-versa. O Rooney, a dada altura, ficou reservado para
um miúdo que alertou o pai da nossa presença. Até que a
lista começou a ficar rara de "faltosos” e os
interlocutores5 para a troca a ausentarem-se.
Partimos então para a compra.
Aqui entraram em acção os homens das malas. São
umas malas fundas e repletas de cromos distribuídos por
centenas. Bastava dar-lhes a lista que logo descobriam os
“faltosos”. Já quase no fim, tinha de adquirir 25 cromos a
0,20€ cada, ou seja, teria de entregar 5,00€. O rapaz
anuiu de imediato no negócio. Não se fez rogado e num
ápice tirou-me a carteira do bolso de trás das calças e
levantou na caixa multibanco 10,00€. Por ele o acordo
era para ser celebrado com urgência. Só que eu tinha um
dilema: iria pagar 25 cromos novos e ficava com 40
"repetidos”? Para que serviriam aqueles 40 cromos?
Solução final: o vendedor ficou-me com os 40 cromos a
0,10€ cada e eu recebi 25 cromos e entreguei ainda
5 Curioso. Entre os interlocutores achei o Rui Paulo (Baguim do
Monte), meu colega de carteira na preparatória (Valongo 1978-
1980), também acompanhado do filho que, diga-se, é a cara chapada
do pai. Deus queira que o ache muitas mais vezes.
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1,00€. Estávamos quites e ele espantado com a operação
financeira.
Mas ainda nos faltava um cromo da colecção. Os
especialistas informaram-nos que quem o teria seria o
Carlos. E tinha-o mesmo. Como não possuía algum para
a troca ofereci 1,00€, mas só aceitou 0,20€. Regras são
regras.
E pronto! A caderneta estava completa.
O rapaz não cabia em si de contentamento.
- Parece impossível! Eu nem acredito! – exclamava
repetidamente enquanto nos íamos afastando da Praça.
Eu, feliz pelo dever cumprido e surpreendido com
tamanha felicidade, olhava-o de cima e pensava:
- Este é o domingo do nosso contentamento.6
6 O autor não é o Ethan e o filho não é o Allen de “O inverno do
nosso descontentamento” de John Steinbeck, mas tendo em conta
que era um domingo soalheiro de Julho, é verosímil ter pensado,
depois de várias leituras da obra, que aquele era o domingo do seu
contentamento, tornado Verão glorioso pelo filho (son/sun). (cfr:
trocadilho na página 285 da obra citada, edição “Livros do Brasil”)
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Tipografia: Times New Roman por ser a mais bonita e elegante com
corpo 12.
(Depois de trabalhar horas e horas em forma Arial, é um prazer
teclar Times New Roman)
Alinho: Edições Esgotadas.
(Os espaços em branco entre os textos são momentos de repouso que
dedico ao leitor. Para mim ficam as entradas de parágrafo, que me
dão fôlego para começar a ler.)
Tiragem: um exemplar por cada autógrafo.
Depósito legal: a prateleira central da estante lá de casa.
Peso: capa a 180g e o miolo a 80g.
Cor da capa: terra.
Pergunta: quantas gralhsa tem este exemplar?
Resposta: aguardar pela Edição Corrigida7.
Natal de 20108
7 Entretanto, se o leitor tem curiosidade suficiente para saber como o
autor e o rapaz irão caçar as garlhas pode ir lendo o poema com o
título sugestivo: “Gralhas, caça furtiva” de Francisco Duarte
Mangas in http://diariodelink.blogspot.com/. 8 Achei a inspiração do formato deste livro nos “dez andamentos” de
João Pedro Mésseder, Edições Plenilúnio, Porto, Natal de 1999, que
peguei na Livraria Leitura (era só perguntar: posso levar? Disseram
que sim e eu trouxe dois exemplares que não dou, não troco, não
vendo e só empresto à vista).
Com o apoio de:
(http://cartoonsleunam.blogspot.com)
(http://www.correiodoporto.com)
Findos os trabalhos de revisão desta obra pelas vinte e duas horas e
seis minutos do dia doze de Dezembro de dois mil e dez, foi o
conteúdo da mesma lido novamente ao seu autor, que o achou
conforme, cujo presente exemplar é o seu retrato fiel e que vai ser
assinado por aquele.