ibfan brasil – rede internacional em defesa do …...bernard lown introduÇÃo bioética 2002 -...

18
SIM PÓSIO A arte perdida de cuidar José Eduardo de Siqueira Este artigo pretende identificar as causas da deterioração na qualidade do atendimento médico que transparece cotidianamente no que se convencionou chamar de desumanização da assis- tência à saúde. Aponta, inicialmente, para o modelo cartesiano-flexneriano que privilegia a soberania de disciplinas e subdisciplinas acadêmicas que se multiplicam à medida que ocorre o incontrolável crescimento do conhecimento científico. Mostra quão irrazoável é persistir nesse modelo e propõe a adoção de novas propostas pedagógicas para o ensino médico que melhor atendam as necessidades do ser humano enfermo. Sugere a incorporação de estratégias de ensi- no que permitam fornecer conhecimentos mais adequados do processo saúde-doença, contem- plando o enfoque interdisciplinar. Aponta, como exemplo, o modelo, já implantado em diferen- tes cursos de Medicina, que promove a integração curricular entre os ciclos básico e clínico e é organizado em módulos de ensino que substituem as tradicionais disciplinas. Finalmente, mos- tra que a UNESCO, preocupada com o extraordinário avanço do saber científico e a proliferação de disciplinas acadêmicas, criou a Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, que propõe novo tipo de formação universitária estruturada sobre os eixos: aprender a conhe- cer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser. Unitermos: bioética, ensino médico, interdisciplinarida- de, humanização da medicina, cuidados médicos José Eduardo de Siqueira Doutor em Medicina; professor de Clínica Médica e Bioética da Universidade Estadual de Londrina; vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética; coordenador da Câmara Técnica de Bioética do CRM-PR 89 106 SIM PÓSIO “(...) busca-se o médico com quem nos sentimos à vontade quando descrevemos nossas queixas, sem receio de sermos submetidos por causa disso a numerosos procedimentos; o médico para quem o paciente nunca é uma estatística (...) e, acima de tudo, um semelhante, um ser humano cuja preocupação pelo paciente é avivada pela alegria de servir (...)” Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89

Upload: others

Post on 30-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

SIMPÓSIO

A arte perdida de cuidar

José Eduardo de Siqueira

Este artigo pretende identificar as causas da deterioração na qualidade do atendimento médicoque transparece cotidianamente no que se convencionou chamar de desumanização da assis-tência à saúde. Aponta, inicialmente, para o modelo cartesiano-flexneriano que privilegia asoberania de disciplinas e subdisciplinas acadêmicas que se multiplicam à medida que ocorre oincontrolável crescimento do conhecimento científico. Mostra quão irrazoável é persistir nessemodelo e propõe a adoção de novas propostas pedagógicas para o ensino médico que melhoratendam as necessidades do ser humano enfermo. Sugere a incorporação de estratégias de ensi-no que permitam fornecer conhecimentos mais adequados do processo saúde-doença, contem-plando o enfoque interdisciplinar. Aponta, como exemplo, o modelo, já implantado em diferen-tes cursos de Medicina, que promove a integração curricular entre os ciclos básico e clínico e éorganizado em módulos de ensino que substituem as tradicionais disciplinas. Finalmente, mos-tra que a UNESCO, preocupada com o extraordinário avanço do saber científico e a proliferaçãode disciplinas acadêmicas, criou a Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI,que propõe novo tipo de formação universitária estruturada sobre os eixos: aprender a conhe-cer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser.

Unitermos: bioética, ensino médico, interdisciplinarida-de, humanização da medicina, cuidados médicos

José Eduardo de SiqueiraDoutor em Medicina; professor deClínica Médica e Bioética daUniversidade Estadual de Londrina;vice-presidente da SociedadeBrasileira de Bioética; coordenadorda Câmara Técnica de Bioética doCRM-PR

89 106

SIMPÓSIO

“(...) busca-se o médico com quem nos sentimos à vontade quando descrevemos

nossas queixas, sem receio de sermos submetidospor causa disso a numerosos procedimentos; o médico para quem o paciente nunca é uma

estatística (...) e, acima de tudo, um semelhante, um ser humano cuja preocupação pelo paciente

é avivada pela alegria de servir (...)”Bernard Lown

I N T R O D U Ç Ã O

Bioé

tica

2002

- vo

l. 10

- nº

2

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89

Page 2: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

Bernard Lown, discípulo de Samuel Levine eum dos mais destacados cardiologistas do séc.XX, argumenta, com base em sólida expe-riência de mais de 40 anos de exercício pro-fissional, que os médicos desaprenderam aarte de curar. Nunca a medicina avançoutanto no diagnóstico e tratamento das maisvariadas doenças como no passado século, enunca o ser humano enfermo foi tão malcuidado.

Professor emérito de cardiologia da EscolaPública de Harvard, em seu livro A arteperdida de curar deplora a exagerada ênfaseque as escolas médicas empregam na for-mação de profissionais que serão “oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecno-logias complexas”, desconsiderando agenuína arte de ser médico. Aponta comoverdadeira “sabedoria médica” a capacidadede compreender um problema clínico nãoem um órgão, mas em um ser humanointegral. (1)

Persegue-se a idéia de que todo mal que afli-ge o paciente pode ser identificado pela tec-nologia. Avançamos de maneira extraordiná-ria no conhecimento das doenças, masesquecemos do ser humano enfermo e, equi-vocadamente, passamos a tratar doenças depessoas e não de pessoas que circunstancial-mente estão doentes. Os jovens estudantessão educados a operar equipamentos e proce-der a leituras de incontáveis variáveis biológi-cas, mas não são orientados a reconhecer oser humano como unidade biopsicossocial eespiritual.

As regras do chicote

O modelo vigente de ensino da medicina foiestruturado no início do séc. XX por AbrahamFlexner, que propôs a aplicação de regras car-tesianas como norteadoras da formação médi-ca. Privilegia-se o conhecimento fragmentadode acordo com percepções específicas de dife-rentes áreas do saber médico, desconsiderandoa óbvia inseparabilidade entre as partes e atotalidade do ser humano. Divide-se a unidadecomplexa da pessoa em partes cada vez meno-res do domínio científico. Assim nasceram asdisciplinas do curso de medicina que passarama gozar de total autonomia para construir suasárvores temáticas.

Dividiu-se o território representado pelo corpohumano em inúmeros pequenos lotes deconhecimentos, e seus donos, no dizer deMorin, passaram a ser “como lobos que uri-nam para marcar seu território e mordem osque nele penetram”. Quaisquer pequenas pro-postas de mudanças na grade curricularencontram enormes resistências por parte dosdonos dos lotes, professores de especialidadesque transformaram a educação médica numacomplexa empresa de difícil administração eque não mais atende às questões impostas pelaacelerada acumulação de conhecimentos cien-tíficos.

Em conseqüência desse modelo pedagógicoobsoleto, impõem-se aos estudantes cada vezmais conhecimentos técnicos oriundos dasdisciplinas acadêmicas, onde as informaçõessão expostas sem qualquer preocupação de

90

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 90

Page 3: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

oferecer-lhes a necessária síntese que lhes per-mita melhor compreender o ser humano bio-gráfico.

Morin explica que, originalmente, a palavradisciplina designava um pequeno chicote queutilizado no autoflagelamento permitia o exer-cício da autocrítica. Em seu sentido atual edesfigurado, a disciplina torna-se “um meio deflagelar aquele que se aventura no domínio dasidéias que o especialista considera de sua pro-priedade” (2).

A filosofia desse modelo acadêmico acolhe oobjeto e não o sujeito, o corpo e não o espíri-to, a quantidade e não a qualidade, a causali-dade e não a finalidade, a razão e não o senti-mento, o determinismo e não a liberdade, aessência e não a existência. O predomínio doconhecimento fragmentado gerado pelo clássi-co modelo das disciplinas inviabiliza a percep-ção da integralidade do ser humano, que sem-pre será a um só tempo biológico, psicológico,cultural e social. Esta unidade complexa édesintegrada na formação acadêmica que con-sidera a disciplina como unidade de medida.Dividimos o indivisível.

Como apreender o global, o multidimensional,o complexo e organizar o conhecimento paramelhor cuidar do ser humano, protagonistacentral de qualquer iniciativa da ciência? É aindagação apresentada por Morin no que eledenomina “os princípios do conhecimento per-tinente”. Na resposta à questão formulada, opensador francês resgata ensinamento dePascal contido em sua conhecida obra Pensées:

“Sendo todas as coisas causadas e causadoras,ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas esustentando-se todas por um elo natural que uneas mais distantes e as mais diferentes, consideroser impossível conhecer as partes sem conhecer otodo, tampouco conhecer o todo sem conhecer aspartes” (3).

A comunidade acadêmica da atualidade é for-mada por um conjunto de especialistas. As lin-guagens dos diferentes núcleos de saber são tãoherméticas que sequer o exercício interdiscipli-nar é factível, pois perderam-se os elementosessenciais para o diálogo. A universidade quepretendia a universalidade transformou-senum campo cultivado por incontáveis semen-tes de pequenos saberes que geram árvorescujas raízes jamais se entrelaçam. Uma enor-me Torre de Babel flutuante sobre o tumultua-do oceano de sofrimentos da humanidade (4).

Rozeman relata a “via crucis” de um pacienteidoso - submetido à cirurgia de revasculariza-ção miocárdica - que no pós-operatório tardiopassa a apresentar febre e anemia. Internadoem renomado hospital norte-americano, é exa-minado por um elenco de competentes espe-cialistas e submetido a inúmeros procedimen-tos, entre os quais endoscopia digestiva alta,colonoscopia e tomografia computadorizadada coluna, seguida de biópsia vertebral. As sus-peitas diagnósticas variaram de mieloma múl-tiplo a câncer com metástase na coluna verte-bral, até que um adequado exame físico identi-ficou a presença de sopro sistólico mitral e odiagnóstico definitivo de endocardite infeccio-sa foi comprovado por hemocultura positiva

SIMPÓSIO

91

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 91

Page 4: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

para Staphylococcus epidermidis. O autorchama a atenção para o tortuoso roteiro utili-zado até o estabelecimento do diagnósticodefinitivo, mostrando que os inúmeros espe-cialistas convocados para opinar sobre a enfer-midade do paciente o faziam após longa eminuciosa investigação “dentro de suas áreasde conhecimento”, não considerando a maiselementar lição de fisiologia que ensina ser ocorpo humano composto por órgãos e sistemasque se interdependem (5).

Muller, citado por Troncon, avalia que “as esco-las médicas estão submergindo os estudantesem pormenores opressores sobre conhecimen-tos especializados e aplicação sofisticada de tec-nologias, restringindo a aprendizagem de habi-lidades médicas fundamentais, podendo istolevar a uma fascinação pela tecnologia, tornan-do o artefato mais importante que o paciente”(6). Faz-se imperioso adotar novos modelospedagógicos que privilegiem o conhecimento edomínio de atitudes que permitam perceber oser humano em sua integralidade. É urgenteunir o que arbitrariamente foi separado.

Como escapar ao jugo do chicote

Antes de mais nada, é imprescindível reconhe-cer o perverso legado do séc. XX, caracteriza-do pela extrema racionalização da ciência queapenas considera o quantitativo e ignora oqualitativo, menosprezando o ser humano emseus sentimentos, sofrimentos, alma. Há quelibertar-se, sobretudo, da escravidão da máqui-na, fazendo-a complementar ao raciocínio clí-

nico e não instrumento soberano para deter-minar tomadas de decisões.

O modelo vigente das subespecialidades, noqual profissionais sabem quase tudo do quasenada, torna vivo e atual o patético personagemcriado por Molière na comédia Le MédecinMalgré, onde um modesto empregado domés-tico, forçado a fingir-se de médico, conseguefazê-lo de maneira convincente. Ante a cres-cente substituição do raciocínio clínico pelasinformações fornecidas por sofisticados equi-pamentos da hodierna tecnologia biomédica,cabe indagar: não serão os médicos dispensá-veis? Se o conhecimento está armazenado nasmáquinas, não bastarão simplesmente técnicosbem treinados para operá-las?

A busca da “Grande Saúde” apontada porSfez na utopia globalizada do séc. XXI pareceapontar para uma sociedade imune às “ques-tões do passado” e pautada em regras da maisextrema objetividade científica onde ninguémlamentará a morte do médico, nem a do desti-no, nem sequer a da alma, outra velharia,substituída por uma entidade coletiva (7).

A obsessão em adotar propostas oriundas dosaber das subespecialidades gerou a atual estru-tura curricular em que os estudantes são con-finados dentro de hospitais terciários, ondeaprendem a conhecer à exaustão o incomum,as patologias raras e permanecem ignorantessobre o corriqueiro, as doenças do cotidiano.Nesse modelo, cabe discutir síndromes raras ededicar significativa carga horária para espe-cialidades como, por exemplo, neurocirurgia e

92

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 92

Page 5: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

cirurgia cardíaca, onde o futuro graduadotoma conhecimento de sofisticados procedi-mentos cirúrgicos e/ou tratamentos corretivosde cardiopatias congênitas complexas.Compreende-se, assim, a comum e insensatadecisão de jovens estudantes que muito preco-cemente fazem opções por subespecialidades.

Como indignar-se com o interno que ao apre-sentar um caso não mencione o nome ousequer a história clínica do paciente, detendo-se em relatar exames subsidiários e a condutaproposta pelo oncohematologista? Ele é ape-nas vítima do aparelho formador que moldaprofissionais com ênfase no incomum, no par-ticular, enfim, nas subespecialidades médicas,que são, como bem mencionou Morin, chico-tes modernos a flagelá-los.

Quando se discute mudanças curriculares parao curso de medicina, quase que invariavelmen-te os debatedores do tema ocupam-se em pro-por unicamente mudanças programáticas.Ampliação ou redução de carga horária de dis-ciplinas já existentes ou a criação de novas,mantendo-se preservada a estrutura acadêmicaoriginal. Esquecem-se de que o imprescindívelsão as transformações paradigmáticas, e nãosimplesmente remendos ou inserções de temasno programa ora vigente.

A 2ª Conferência Mundial de EducaçãoMédica realizada em Edimburgo, em 1993,acolheu a proposta “Changing medical educa-tion and practice: an agenda for action”, daOrganização Mundial da Saúde, que apontapara novas práticas educativas que substituamas tradicionais centradas no modelo disciplinaratravés da incorporação de estratégias quealcancem fornecer conhecimentos mais ade-quados do processo saúde-doença, sempre pri-vilegiando o enfoque interdisciplinar (8).

Felizmente, assiste-se hoje, no Brasil, a buscade novos caminhos para a transformação doensino médico.

Tomo como exemplo o novo modelo pedagógi-co implantado para o curso de Medicina daUniversidade Estadual de Londrina (UEL),reconhecido pela sigla PBL (“problem-basedlearning”), que, em essência, promove a inte-gração curricular entre os ciclos básico e clíni-co e é organizado em módulos de ensino quesubstituem as tradicionais disciplinas.

Está fundamentado em nova filosofia educa-cional que busca substituir o modelo de trans-missão passiva das informações docente-dis-cente calcado na verticalidade, pela adoção depedagogia da maiêutica socrática (*), horizon-

SIMPÓSIO

93

(*) Sócrates, e mais próximo a nós Krishnamurti, praticava a arte das perguntas como uma maiêutica, que em gregosignifica “a arte de parir”. Cada pergunta “dá à luz” ou revela uma ou várias outras perguntas implícitas na per-gunta original. No célebre texto A defesa de Sócrates, Platão assim define a maiêutica socrática: “Minha artemaiêutica tem seguramente o mesmo alcance que o obtido pelas parteiras, com a diferença que é praticada emhomens e não em mulheres, buscando provocar o parto nas almas e não nos corpos. O maior significado dessaarte é que permite experimentar, a todo momento, se uma idéia é falsa ou fecunda e verdadeira, o que possibili-ta o desenvolvimento da inteligência do jovem (...) Ressalta evidente, portanto, que nada aprendem de mim, pelocontrário, encontram a sabedoria e iluminam-se a si mesmos de maravilhosos conhecimentos.”

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 93

Page 6: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

tal e estruturada na construção crítico-reflexi-va do conhecimento científico (9). Muitosdocentes da própria UEL ainda manifestamprofundas reservas a esse novo projeto de ensi-no por considerá-lo inadequado e advogam amanutenção do modelo tradicional. Não con-sideram que a incontida proliferação de novasdisciplinas, aliada ao crescimento exponencialdo saber, torna impossível acolher todas essasinformações nos cursos de graduação. A cadaano, mais de um milhão de comunicaçõescientíficas são publicadas apenas em línguainglesa, e isso desde os anos 50. A grandemaioria dessas publicações só pode ser com-preendida por pequeno grupo de especialistas.Portanto, ninguém mais está em condições deanalisar a enorme massa de conhecimentosacumulada pela ciência contemporânea.Atualmente, dois especialistas da mesma disci-plina encontram enormes dificuldades paracompreender seus próprios resultados recípro-cos (10).

Recentemente, a Sociedade Brasileira deCardiologia promoveu reunião para elaborardiretrizes consensuais para a área de cardioge-riatria. O seleto colegiado de especialistas, degrande experiência profissional e acadêmica,assistiu perplexo as sugestões apresentadaspelo grupo de estudo de arritmologia. Poucoscompreendiam os detalhes das orientaçõesdiagnósticas e terapêuticas fornecidas peloscomplexos estudos eletrofisiológicos. É óbvioque isso nada tem de inusitado, pois assimevolui a ciência, na construção permanente dosaber através de contínuos mergulhos no mardo conhecimento. O que parece pouco razoá-

vel é transformar esse material recolhido deáguas tão profundas do saber em temas deaulas para estudantes do curso de graduação.

A Física moderna apresenta novas áreas depesquisa, como a eletrodinâmica estocástica,onde são propostas interpretações conceituaisalternativas para fenômenos tradicionalmentetratados sob a ótica da teoria quântica.

O que dizer, por exemplo, sobre as Teorias deCordas, área de pesquisa da Física Teórica quetrata de fenômenos que ocorreriam em ener-gias da ordem de um quatrilhão a dez quinqui-lhões de unidades de energia, sabendo-se queos dispositivos para ensaio experimental dispo-níveis não permitem verificação além de milunidades da mesma energia? (11)

Preocupada com o extraordinário avanço dosaber científico e a proliferação das disciplinasacadêmicas, a UNESCO criou a ComissãoInternacional sobre a Educação para o séculoXXI, que, juntamente com a ComissãoInternacional de Pesquisas e EstudosTransdisciplinares, elaborou o Projeto CIRET-UNESCO (12). Nele, pode-se ler que “a pes-quisa disciplinar diz respeito, no máximo, aum único nível de realidade (...) a fragmentosde um só nível de realidade (...) a transdiscipli-naridade interessa-se pela dinâmica geradapela ação de diversos níveis de realidade aomesmo tempo (...) alimenta-se da pesquisa dis-ciplinar (...). Nesse sentido, as pesquisas disci-plinares e transdisciplinares não são antagôni-cas, mas complementares”. O relatório finalpropõe um novo tipo de educação universitá-

94

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 94

Page 7: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

SIMPÓSIO

95

ria, estruturada sobre os seguintes eixos:aprender a conhecer; aprender a fazer; apren-der a viver junto; aprender a ser.

Esses quatro eixos propostos pelo projeto daUNESCO estão contidos na essência do novoprojeto pedagógico da aprendizagem baseadaem problemas, empregado no curso deMedicina da UEL e que pode ser resumidocomo: aprender a aprender. Considera-se que oensino-aprendizagem é um ativo e contínuoprocesso de duas vias entre professor e estu-dante. Não há aprendizado finito, estanque,unidisciplinar, mas sim processo de aprendiza-gem que ocorre ao longo da vida e envolveampla gama de conhecimentos, habilidades eatitudes, voltado à realidade, sendo necessaria-mente interdisciplinar (13). Em síntese, aeducação universitária para o século XXI deve-rá orientar-se pela célebre frase de Montaigne:“Mais vale uma cabeça bem-feita do que umacabeça cheia”.

Deve-se considerar, entretanto, que ainda esta-mos longe de nos libertar do jugo do chicotedisciplinar. Certa vez, Max Planck, indagadosobre as possibilidades de mudanças de para-digmas em ciência, fez uma sombria aprecia-ção ao dizer que uma nova verdade científicanão triunfa por meio do convencimento deseus oponentes, mas sim com a morte dosmesmos e quando uma nova geração de cien-tistas cresce e assimila o paradigma emergen-te. Resta esperar que a amarga sentença dePlanck não seja aplicável às mudanças para-digmáticas propostas por novos modelos peda-gógicos para o ensino médico no Brasil.

O médico para o século XXI

Será que alcançaremos formar o médico pedi-do por Lown? Aquele profissional “com quemnos sentimos à vontade quando descrevemosnossas queixas (...) o médico para quem opaciente nunca é uma estatística (...)”. Tudoisto parece tão simples e óbvio que, às vezes,nos espantamos por não conseguir atingir essesingelo objetivo.

Qualquer médico sabe por experiência pró-pria que uma doença raramente é orgânicaou psíquica, ou social ou familiar. O profis-sional sabe que ela é orgânica e psíquica,social e familiar. Todos os sintomas formamum complexo conjunto de diferentes instân-cias, quer seja orgânica, psicológica, social oufamiliar.

Quando um paciente procura atendimentomédico, invariavelmente está buscando porcuidados que não se limitam simplesmente alivrar-se de um mal-estar circunstancial. Arelação médico-paciente nunca deixará de serinteração intersubjetiva experimentada porduas pessoas e, por mais assimétrica que seja,somente será eficaz se for conduzida com aco-lhimento, escuta-resposta e esperança de curapara o que sofre.

Os sintomas que trazem o paciente ao médicocarregam sempre uma expressiva parcela deopacidade. O que estará por trás da cefaléiapersistente ou da dor precordial daquele jovembancário? Sendo 150 x 100 a pressão arterialobservada, será suficiente o diagnóstico de

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 95

Page 8: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

hipertensão arterial? Prescrever droga hipoten-sora para corrigir o índice anormal obtido seráo bastante para considerarmos realizado o tra-tamento?

Os sintomas são mensagens que precisam serdecodificadas. As descobertas da psiconeu-roendocrinoimunologia testemunham que osseres humanos constituem uma realidadecomplexa de integração entre sensação, per-cepção e representação. O modelo reducionis-ta adotado pela medicina cartesiana tornoureal a improvável linearidade entre sintoma,índice esfignomanométrico e a doença daquelapessoa. Outrossim, a constatação de índicepressórico anormal desperta no médico dúvi-das que o fazem solicitar inúmeros exames,tais como monitorização ambulatorial da pres-são arterial, dosagem de catecolaminas séricase exame ultra-sonográfico do abdome na buscada etiologia da enfermidade. Raramente,porém, são valorizadas variáveis do entornosocial e familiar.

Percebido como objeto, o paciente é investi-gado exaustivamente em busca da identifica-ção do desequilíbrio biológico que justifique ahipertensão arterial. Arte muda consistenteem reconhecer uma enfermidade apenas atra-vés de variáveis mensuráveis. Esse modeloestá muito distante daquele proposto porGaillard para a consulta médica – o qualaponta seis etapas necessárias para caracteri-zá-la. A primeira seria o acolhimento, segui-da de anamnese e exame físico. As três últi-mas etapas seriam: o diagnóstico, a prescriçãoe a separação. O maior obstáculo para o cum-

primento das mencionadas etapas, além daformação cartesiana, transparece claramentena indignada questão apresentada por muitosmédicos: “Diante do baixo montante de nos-sos honorários, considera verdadeiramenteque possamos arranjar tempo para todas essascoisas?” (14). Desafortunadamente, a assis-tência médica hoje praticada aponta para acruel realidade que pode ser assim resumida:atender o paciente em cinco minutos, pres-crever qualquer droga e desfazer-se o maisrápido possível desse incomodo e mal pagocompromisso. Médico e paciente fisicamentetão próximos e afetivamente tão distantessequer se olham ou se tocam. Em verdade,sequer se respeitam.

Pratica-se, desse modo, o mais perverso mode-lo de medicina cega e surda. Cega, porquelimitando-se a compreender a doença apenascomo pobres variáveis anatômicas e/ou bioquí-micas não enxerga o ser humano como ele ver-dadeiramente o é. Surda, porque o pacientenão sendo acolhido como sujeito é impedidode manifestar-se como pessoa.

“Onde há amor ao enfermo (philanthrôpíê) hátambém amor à arte (philotekhniê)”, proclamaum famoso preceito hipocrático. A vincula-ção entre o profissional de saúde e o pacien-te, que o ato médico impõe, é resultado dedois movimentos que se completam. Opaciente que procura o profissional e o médi-co que acolhe o enfermo. Ambos são qualita-tivamente distintos entre si, mas Hipócratesencontrou uma única palavra para descrevereste momento: “philia”, que pode ser traduzi-

96

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 96

Page 9: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

97

da como amizade, amor, solidariedade, com-paixão. Para Lain Entralgo, este sentimento,necessariamente, deverá estar presente emquaisquer precedimentos diagnósticos e/outerapêuticos. Recorda, a propósito, o grandeclínico espanhol nas candentes palavras deMarañon:

“Yo no he tenido, en toda su transcendencia, ideadel valor del elemento constitucional en medicina,como cuando hube de leer mis primeras historiasclínicas: aquellas recogidas con tanta minucia,pero con tan mal método, en los últimos años delos estudios médicos y en los primeros de la vidaprofesional y hospitalaria. Se describían en ellaslos sintomas, los análisis (químicos y bacterioló-gicos) y, a veces, las lesiones, es decir, la enferme-dad; pero el enfermo no estaba allí. Ni una alu-sión a cómo era la persona que sustentaba laenfermedad” (15).

O século XX tornou real o mais extraordiná-rio desenvolvimento da tecnologia biomédica,ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, fezreduzir a credibilidade devotada aos profissio-nais de saúde. Os pacientes confiam na medi-cina tecnológica e desconfiam do médico.Consideram como indiscutíveis as informa-ções fornecidas pelos equipamentos e depre-ciam as avaliações pessoais do profissional. Namesma proporção em que a tecnologia cresceem importância, decresce o prestígio do médi-co enquanto profissional com aptidão paraestabelecer juízos diagnósticos e ajudar as pes-soas enfermas a tomarem decisões. Médico epaciente pouco se olham, ambos cativos e fas-cinados pela tecnociência. Junte-se a isso a

presença de empresas de medicina de grupo,ávidas por lucros, profissionais mal prepara-dos, instituições de ensino guiadas exclusiva-mente por interesses financeiros e teremos,como resultado, o caos que impera na assistên-cia médica do país.

Aparelho formador precário, médicos mal for-mados, tecnolatria, baixa remuneração profis-sional e empresas que buscam dividendos eco-nômicos mas não a saúde das pessoas consti-tuem os ingredientes desse indigesto banqueteque nos é servido.

Como resgatar a verdadeira philia hipocráticanuma sociedade que não prima pelo cultivo devalores éticos?

Lain Entralgo propõe três princípios funda-mentais para reaproximar médico e pacientenuma relação harmoniosa e cooperativa:

Princípio da máxima capacidade técnica - omédico precisa ter esmerada formação profis-sional que o habilite a utilizar com sensateztodo o instrumental técnico oferecido pelaciência;

Princípio da obra bem feita - o médico deveráutilizar sua capacidade intelectual e conheci-mento técnico tendo como único guia moral obem do paciente;

Princípio da autenticidade do bem - em situa-ções de conflito, deve o médico atender uni-camente o autêntico interesse do paciente(16).

SIMPÓSIO

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 97

Page 10: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

98

O que explica mas não justifica

O Conselho Federal de Medicina (CFM), aFederação Nacional dos Médicos, aAssociação Médica Brasileira e a FundaçãoOswaldo Cruz publicaram, em 1996, uminteressante documento com o título Perfil dosmédicos no Brasil. O volume IV, relativo aosdados colhidos no estado do Paraná, apresentaos seguintes resultados:

68,4% dos médicos têm três empregos,enquanto 31,6% apresentam-se em quatroou mais atividades;

88,1% dependem, para subsistênciapessoal e/ou familiar, de rendimentosauferidos de convênios com empresasde saúde, medicina de grupo ou coope-rativas médicas;

82,8% declaram sofrer acentuado desgastefísico e mental no exercício profissional;

65,5% manifestaram-se a favor de grevesda categoria, sendo que 5,3% entenderamque nessa circunstância deveria ser suspen-so até mesmo o atendimento a casos deemergência.

Estas são as palavras finais do documento:“Neste cenário pouco favorável aos médicos, ofuturo da profissão é visto, pela maioria, comum forte sentimento negativo, refletindo odescontentamento e a falta de perspectivasprofissionais que ora se apresentam para omédico brasileiro” (17).

No ano seguinte, como decorrência dessespreocupantes referenciais o CFM realizou o“Seminário Internacional – ProfissãoMédica”. Por ocasião desse evento, assim seexpressou o presidente da Associação MédicaBrasileira: “(...) Qualidade no atendimentotambém foi um outro assunto importante res-saltado. O que está acontecendo com os médi-cos em todo o Brasil, há dois ou três anos? Namedida em que ele atendia a dez consultas pelovalor que, teoricamente, naquela época, aindaera bom e que agora está absolutamente defla-cionado, o médico escolheu uma alternativamuito mais cômoda para si: ele não reage, nãodiz que não vai atender, então, preferiu dobraro número de atendimento em seu consultório,dos convênios, para ter um resultado financei-ro adequado. Com isso a qualidade cai. Não hápossibilidade de o médico, que normalmenteatendia dez pacientes, num horário, passar aatender vinte pacientes. Isso reflete diretamen-te na qualidade” (18).

Em 1998, o CFM publica a obra Os médicose a Saúde no Brasil, onde pode-se ler a seguin-te informação:

“Se apenas caudatário ou fator gerador dacrise, não importa, o fato é que o processo deformação dos médicos na sociedade contempo-rânea se vê acuado por desafios imensos. Asbases tecnológicas da prática, verdadeiro pilarda formação médica atual, enfrentam o dilemade produzirem pouco benefício para a maioriada sociedade, alijada que está do acesso aosmesmos ou os recebendo apenas marginal-mente. O apelo individualista, calcado na rela-

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 98

Page 11: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

99

ção médico-paciente inspirada no juramentohipocrático e gerador de um modelo artesanalde prestação de serviços de indiscutível eficáciaem épocas passadas, transformou-se em verda-deiro anacronismo. A medicina contemporâ-nea é fortemente intermediada em termos ins-titucionais, burocráticos e econômicos e asescolas médicas parecem não se dar conta detal fato, realizando suas atividades docentes eassistenciais como se os tempos ainda fossemoutro” (19).

Esses dados, extraídos de pesquisas realizadaspelo CFM em três anos consecutivos (1996 a1998), falam por si mesmos. Desconsiderá-los, quando se discute humanização no atendi-mento médico, seria tentar tapar o sol com apeneira, o que em nada contribui para encon-trar soluções satisfatórias para o problema.

Fundamental, porém, é ter muito claro aconsciência de que a atual desvalorização daprofissão médica quiçá seja argumento paraexplicar, sem contudo justificar, atitudes dedesrespeito a pessoas humildes - essas, sim, asvítimas maiores das injustiças sociais desseinsensível modelo de sociedade.

Se o processo de globalização parece inevitávele caminhamos rapidamente para a cínica rea-lidade do Estado Mínimo, onde prevalece a leido livre mercado e a regra do “salve-se quempuder”, é dever das pessoas responsáveis pre-servar uma moralidade mínima.

Se o governo, a pretexto de ganhar maior agi-lidade em suas ações, pretende eximir-se de

responsabilidades fundamentais como segu-rança, educação e saúde, não podem os profis-sionais universitários, mormente os médicos,deixar de identificar com clareza quem são osalgozes e as vítimas dessa sociedade que globa-liza prejuízos e privatiza lucros.

É claro que seria suprema ingenuidade exigirdo médico, hoje, a postura quase sacerdotalque marcou indelevelmente a profissão emépocas passadas. Parece óbvio, porém, quenenhum profissional tem o direito de olharsomente para o seu próprio umbigo, esquecen-do-se do mundo ao redor, onde grassa a injus-tiça e a falta de solidariedade aos mais fracos.

Em suma, se o médico considera que não estásendo adequadamente reconhecido em seuexercício profissional, que a remuneração per-cebida por seus procedimentos é vil, tem todoo direito de buscar soluções para estas injusti-ças. O que parece incorreto é destratar pessoasfragilizadas por doenças e culpabilizá-las porseus pesares e frustrações profissionais.

Os Conselhos de Medicina dedicam dema-siado tempo em atividades judicantes relati-vas à insatisfatória relação médico-paciente.Quase que invariavelmente a causa centraldas sindicâncias e processos éticos repousano comportamento inadequado de profissio-nais que tratam pessoas enfermas de manei-ra desrespeitosa.

Schraiber apresenta uma sensível apreciaçãode Peguinot sobre o ato médico, que é descritocomo “colóquio singular”, uma espécie de duo

SIMPÓSIO

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 99

Page 12: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

100

que não comporta no silêncio do consultóriosenão dois personagens: o médico e o pacien-te. Trata-se, diz o autor, de encontro contidono espaço e no tempo, que se inicia por umrelato de sofrimento, continua com o examefísico e termina em esperança de cura.Percebe-se uma unidade de tempo, lugar eação. Esse encontro, bem o sabemos, dizPeguinot: “É aquele de uma técnica científicae de um corpo, mas prefere-se acreditar queseja essencialmente de duas almas” (20).

Poucas profissões gozam do privilégio de podercompartilhar e mitigar a dor e o sofrimentohumano, como a medicina. O ato médico nãopode jamais ser animado por atitude de desres-peito ou desamor a alguém, pois o protagonis-ta do mesmo é um ser humano que não podeser tratado como objeto, pois é um fim em simesmo e dotado de dignidade, como nos ensi-nou Kant. Esse ser que Boff descreve comosagrado, sujeito de história pessoal e elementoessencial na construção de uma sociedade maishumana, que é capaz de conviver e dialogarcom os mistérios do mundo, que pergunta porum último sentido da vida e comunga com ooutro vendo nele a imagem do Criador. Aessência do ser humano, portanto, repousarásempre no cuidado (21).

O resgate da arte de bem cuidar

Frente às dificuldades apontadas fica evidentea descaracterização da arte de bem cuidar, oque nos impõe a tarefa de resgatá-la, já quesem ela a medicina perde o sentido.

Por outro lado, é indispensável reconhecer queo individual e o coletivo fazem parte do mesmoorganismo, são membros articulados domesmo corpo. Homem e sociedade são entida-des inseparáveis. Ambos respondem aos mes-mos estímulos e, simultaneamente, padecemdos mesmos sofrimentos.

Há que se ter presente, ainda, que a sociedadetardocapitalista não privilegia o cuidado com avida, o bem comum e a solidariedade. Somosguiados pelas regras do livre mercado, na buscaincessante da obtenção de vantagens pessoais.Prevalece a lógica da acumulação de bens e odesprezo pelo outro. Assim, pessoa humana,fauna, flora e todas as riquezas que nos cercamperdem seus valores intrínsecos e transfor-mam-se em produtos a serem comercializadosno grande balcão de negócios em que se trans-formou a sociedade do século XX.

Torna-se dispensável elencar os prejuízos irrever-síveis que esse modelo impôs à vida no planeta,basta considerar os dados fornecidos pelaComissão Mundial do Meio Ambiente daONU, em 1992. Na ocasião, estimava-se que acada ano 6 milhões de hectares de terras produ-tivas convertiam-se em deserto, o que significa-va perder, a cada 30 anos, uma área equivalenteao território da Arábia Saudita. Anualmente,eram destruídos mais de 11 milhões de hectaresde matas, o que eqüivaleria perder, a cada 30anos, uma superfície igual a da Índia (22).

O cientista norte-americano KennetBaoulding descreve como “cowboy” o modelocapitalista de economia baseado na abundân-

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 100

Page 13: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

101

SIMPÓSIO

cia aparentemente ilimitada de recursos e ter-ritórios para serem desfrutados e invadidosconforme a regra baconiana de escravizar anatureza, colocando-a a serviço do homem. Éo antropocentrismo irrefletivo, irresponsável epredatório (23).

A lógica de mercado orienta-se pela competi-ção, e não pela cooperação. O mercado é tudoe nele deve-se buscar a solução para os proble-mas da sociedade. Esse fundamentalismo con-fere centralidade ao capital financeiro oportu-nista e especulador que arruina economias depaíses emergentes e inviabiliza a vida autenti-camente humana.

Nesse realismo perverso, os mais ingênuospoderiam indagar: o que isso tem a ver com oscuidados à saúde do ser humano?Obviamente, tudo. As 500 empresas transna-cionais reconhecidas pela revista Fortune comoas mais importantes em 1998 controlavam2/3 do produto interno bruto dos EUA e gran-de parte da economia mundial. Isso significaque 20% da humanidade detinha 84% de todaa riqueza existente no planeta, enquanto quepara os 20% mais pobres cabia apenas 1,4%da mesma.

O que isso tem a ver com a saúde humana?Dados de 1998, da Organização Mundial daInfância, mostram que aproximadamente 250milhões de crianças trabalham em condiçõesinsalubres, muitas delas com idade inferior acinco anos. Na América Latina, três entrecinco crianças trabalham; na África, uma emcada três; na Ásia, uma em cada duas (24).

Considerando o microcosmo representado peloser humano, percebemos que o longo impériodo cartesianismo na ciência baniu da vida oqualitativo e impôs o quantitativo. O últimoestágio de aperfeiçoamento desse modelo,segundo Max Weber, é representado pelos“especialistas sem espírito, sensualistas semcoração, e essa nulidade imagina ter alcançadoum nível de civilização nunca atingido” (25).

Todos os médicos reconhecem não haverenfermidade que se manifeste fora de um tem-peramento pessoal, de vivências e experiênciasjá vividas, e mesmo que ela se apresente comfisionomia semelhante no conjunto, seus tra-ços sempre mostram, nos detalhes, coloraçõessingulares do ser humano biográfico. O doen-te é a doença que adquiriu traços singulares,dada com sombra e relevo, modulações, mati-zes e profundidade - e a tarefa do médico, aodescrever a enfermidade, será a de reconheceresta realidade viva (26).

Cada pessoa adoece de maneira particular, nãoimportando como os profissionais de saúde aclassifiquem em tal ou qual categoria nosoló-gica. Cada consulta médica é única na cons-trução interpessoal médico-paciente. Para umpaciente individual, não há “o melhor” trata-mento a ser prescrito pois, sempre, a melhorescolha dependerá de seus próprios juízos evalores e da interação com seu médico.Encontrar “a melhor escolha” é o ponto cen-tral de rico exercício clínico que obriga o médi-co a dominar conhecimentos e habilidades quereconhecidamente não são oferecidas pelomodelo de ensino vigente. Não basta conhecer

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 101

Page 14: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

102

as últimas informações da medicina baseadaem evidências para proporcionar o melhor cui-dado ao paciente. Um grande oncologistanorte-americano da atualidade salienta quequando médicos ou estatísticos adoecem, nãoperguntam qual o grande estudo multicêntricoaplicável às suas enfermidades. A questão queapresentam é: “Who is the best doctor for thisproblem?” (27)

Lain Entralgo assim descreve o sentimento dopaciente com relação à sua identidade comopessoa humana integral: “É meu corpo vivoque pensa, quer e sente”. Aos médicos, comoagentes no binômio profissional de saúde-enfermo, sugere que em suas ações profissio-nais considerem o ensinamento de Sartre: “Apalavra é sagrada para quem a pronuncia emágica para quem a ouve ” (28).

Algumas diretrizes sobre parâmetros impres-cindíveis na formação dos estudantes de medi-cina são apontadas pela ComissãoInstitucional Nacional de Avaliação doEnsino Médico (CINAEM):

adquirir habilidades e conhecimentos quelhes permita identificar os problemas bási-cos de saúde do indivíduo e da sociedade;

ter flexibilidade profissional que lhes permi-ta ser eficientes e considerar os valores,direitos e a realidade socioeconômica deseus pacientes;

aprender métodos científicos e postura éticaque lhes permita tomar decisões adequadas

que, expressas no trabalho clínico, sejameficientes e respeitosas ao ser humano e seuambiente;

ter formação que lhes possibilite aprenderfazendo e aprender a aprender, procurandoativamente construir seus próprios conheci-mentos (29).

Para os especialistas que percebem apenas suasáreas de conhecimento, ou seja, o pequenocompartimento de suas disciplinas, resta oalerta de Marcuse, que descreve o homem uni-dimensional como aquele que se especializounuma única linguagem e vê o mundo somentepor meio dela. Para ele (especialista) o mundoé só aquilo que os jogos de sua linguagemregistram como verdade. O resto é irreal.

Ocorre que, no mundo real, as pessoas prati-cam simultaneamente muitos jogos de lingua-gem: jogos de amor, jogos de poder, jogos desaber, jogos de prazer, jogos de fazer, jogos debrincar, jogos de sedução e, até mesmo, jogosde adoecer. Assim é a vida, uma interminávelseqüência de jogos, todos ocorrendo aomesmo tempo. Percebê-la diferentemente édesconhecer sua essência, e afinal o que é amedicina senão uma tentativa de compreendere auxiliar as pessoas a prevenirem-se de enfer-midades, sofrimentos e bem viverem suas pró-prias vidas (30).

Em conclusão, somente alcançaremos formaro médico pedido por Lown e resgatar a arteperdida de cuidar quando estivermos prepara-dos para compreender o ensinamento de

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 102

Page 15: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

103

SIMPÓSIO

Maimônides, célebre médico do século XII,assim expresso: “Possa eu jamais esquecer queo paciente é meu semelhante, transido de dore que jamais o considere mero receptáculo dedoença.” Acima de tudo, teremos de conside-

rar a contundente questão apresentada porLèvinas: “Como podem esses sujeitos almejarum estatuto de humanidade e pertença se nãose olham no rosto ou se olham com tanta bre-vidade?” (31)

RESUMENEl perdido arte de cuidar

Este artículo pretende identificar las causas del deterioro en la calidad de atendimientomédico que se transparenta cotidianamente en lo que convencionalmente se llama dedeshumanización de la asistencia a la salud.Apunta, inicialmente, para el modelo cartesiano-flexneriano que privilegia la soberaníade disciplinas y subdisciplinas académicas que se multiplican en la medida que ocurre elincontrolable crecimiento del conocimiento científico.Muestra lo irrazonable que es persistir en ese modelo y plantea la adopción de nuevaspropuestas pedagógicas para la enseñanza médica que mejor atiendan a las necesidadesdel ser humano enfermo.Sugiere la incorporación de estrategias de enseñanza que permitan proporcionar conoci-mientos más adecuados del proceso salud-enfermedad, contemplando el enfoque inter-disciplinario. Indica, como ejemplo, el modelo, ya implantado en diferentes cursos deMedicina, que promueve la integración curricular entre los ciclos básico y clínico y esorganizado en módulos de enseñanza que substituyen las tradicionales disciplinas.Finalmente, muestra que la UNESCO, preocupada con el extraordinario avance delsaber científico y la proliferación de disciplinas académicas, creó la ComisiónInternacional sobre Educación para el siglo XXI, que propone un nuevo tipo de forma-ción universitaria estructurada sobre los ejes: aprender a conocer, aprender a hacer,aprender a convivir y aprender a ser.Unitermos: bioética, enseñanza médica, interdisciplinariedad, humanización de la medicina, cui-dados médicos

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 103

Page 16: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

104

ABSTRACTThe lost art of caring

This paper aims to identify the causes of healthcare quality deterioration, as evidencedin the commonplace dis-humanization of medical care. It starts by pointing to the Cartesian-flexnerian model that privileges the dominance ofacademic subjects and their subdivisions, multiplied at the unstoppable expansion ofscientific knowledge. It shows how unreasonable it is to insist on this model, and suggeststhat new teaching methodologies need to be adopted by the medical schools if they areto meet the needs of the ill any better. It advocates the incorporation of teaching strategies leading to better approaches of thehealth-illness process, in favor of an interdisciplinary focus. It presents the model adop-ted by several medical schools where the basic syllabus fits into the clinical phase of stu-dies, with teaching modules replacing the traditional subject-oriented structure. Finally, it shows how the International Commission for Education in the 21st Centurycame to be, out of UNESCO’s concern with the extraordinary advance of science and theproliferation of academic subjects. The commission proposes a new type of college edu-cation on the basis of four major pillars: learn to know; learn to do; learn to live together;learn to be. Uniterms: bioethics, medical education, interdisciplinarity, humanization of medicine, medical care

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 104

Page 17: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

105

SIMPÓSIO

1. Lown B. A arte perdida de curar. São Paulo: JSN,1997.

2. Morin E. A cabeça bem feita. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2001.

3. Morin E. Os sete saberes necessários à educação dofuturo. São Paulo: Cortez, 2000.

4. Siqueira JE. Universidade: uma ponte para o futu-ro. In: Almeida M, organizador. A universidade possí-vel. São Paulo: Cultura, 2001.

5. Rozenman Y. Where did good clinical diagnosis go?N Engl J Med 1997;336:1435-8.

6. Troncon LE, Cianflone AR, Martin CC. Conteúdoshumanísticos na formação geral do médico. In:Marcondes E, Gonçalves EL, organizadores.Educação Médica. São Paulo: Sarvier, 1998.

7. Sfez L. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia.São Paulo: Loyola, 1996.

8. Boelen C. Interlinking medical practice and medicaleducation: prospects for international action. Med Educ1994;28(suppl 1):82-5.

9. Almeida MA. Educação médica e saúde: possibilida-des de mudança. Londrina: Editora UEL-ABEM,1999.

10. Ramdom M. O pensamento transdisciplinar e oreal. São Paulo: Triom, 2000.

11. Fiedler-Ferrara N. Ciência, ética e solidariedade.In: Carvalho EA, Almeida MC, Coelho NM, Fiedler-Ferrara N, Morim E. Ética, solidariedade e complexi-dade. São Paulo: Palas Athena, 1998.p.31-47.

12. Le project Ciret-UNESCO: evalution transdicipli-naire de l’université. Bulletin 1997;(9-10). Disponívelem: http://www.perso.club-internet.fr/nicol/ciret/bulle-tin/b9set10.htm

13. Komatsu RS, Zanolli MB, Lima VL.Aprendizagem baseada em problemas. In: MarcondesE, Gonçalves EL, organizadores. Op.cit. 1998: 223-35.

14. Gillard JP. O médico do futuro: para uma novalógica médica. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

15. Entralgo PL. Ciência, técnica y medicina. Madrid:Alianza Editorial, 1986.

16. Entralgo PL. La relación médico-enfermo. Madrid:Alianza Editorial, 1983.

17. Machado MH. Perfil dos médicos no Brasil. Rio deJaneiro: Fiocruz/CFM-MS/PNUD, 1996. v.4.

18. Seminário Internacional Profissão Médica, 1;1997, 7-8 de outubro. Brasília. Brasília: ConselhoFederal de Medicina, 1997.

19. Goulart FAA, organizador. Os médicos e a saúdeno Brasil. Brasília: Conselho Federal de Medicina,1998.

BIBLIOGRAFIA

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 105

Page 18: IBFAN Brasil – Rede Internacional em Defesa do …...Bernard Lown INTRODUÇÃO Bioética 2002 - vol. 10 - nº 2 Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 89 Bernard Lown,

106

Rua Souza Naves, 1456CEP: 86010-170 Londrina - PR - BrasilE-mail: [email protected]

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

20. Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites daliberdade. São Paulo: HUCITEC, 1993.

21. Boff L. Saber cuidar. Petrópolis: Vozes, 1999.

22. Siqueira JE. Ética e tecnociência: uma abordagemsegundo o princípio da responsabilidade de Hans Jonas.Londrina: Editora UEL, 1998.

23. Boff L. Ética da vida. Brasília: Letraviva, 1999.

24. Boff L. Princípio de compaixão e cuidado.Petrópolis: Vozes, 2001.

25. Rieff P. O triunfo da terapêutica. São Paulo:Brasiliense, 1990.

26. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1998.

27. Little M. Humane medicine. New York: CambridgeUniversity Press, 1995.

28. Entralgo L. Ser y conducta del hombre. Madrid:Espasa, 1996.

29. Batista HA, Silva SHS. O professor de medicina.São Paulo: Loyola, 1998.

30. Alves R. Entre a ciência e a sapiência: o dilema daeducação. São Paulo: Loyola, 2001.

31. Lévinas E. Humanismo do outro homem.Petrópolis: Vozes, 1993.

Job006 Rev Bioetica N5 final 11/25/02 4:33 PM Page 106