intervenção psicossociológica, método clínico, de pesquisa e de construção teórica

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O artigo propõe-se responder às questões: O que é Psicossociologia? O que é intervenção psicossociológica. De onde surgiram esses termos? Apresenta uma história breve do aparecimento dessas noções e das práticas clínicas, de pesquisa e de construção teórica envolvidas, acentuando o caráter coletivo dessa criação teórica, prática e metodológica. Discorre sobre a intervenção psicossociológica no Brasil, especialmente em Minas Gerais, aponta o lugar cada vez maior da análise discursiva e da consideração da linguagem nessa prática e, finalmente, discute o estatuto científico do método.

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    Machado, M. N. da M. Interveno psicossociolgica, mtodo clnico, de pesquisa e de construo terica

    Pesquisas e Prticas Psicossociais 5(2), So Joo del-Rei, agosto/dezembro 2010

    Interveno Psicossociolgica, Mtodo Clnico, de Pesquisa e de

    Construo Terica

    Psychoociological Intervention, a clinical method of research and

    theoretical construction

    Marlia Novais da Mata Machado

    1

    Resumo

    O artigo prope-se responder s questes: O que Psicossociologia? O que interveno psicossociolgica. De onde surgiram esses termos? Apresenta uma histria breve do aparecimento dessas noes e das prticas clnicas, de pesquisa e de construo terica envolvidas, acentuando o

    carter coletivo dessa criao terica, prtica e metodolgica. Discorre sobre a interveno psicossociolgica no Brasil, especialmente em Minas

    Gerais, aponta o lugar cada vez maior da anlise discursiva e da considerao da linguagem nessa prtica e, finalmente, discute o estatuto cientfico do mtodo.

    Palavras-chave: psicossociologia; interveno psicossociolgica; clnica; pesquisa; construo terica.

    Abstract

    This article intends to answer the questions: What is Psychosociology? What is psychosociological intervention? Where do these terms come from? It introduces a brief account concerning the appearance of these notions and of the involved clinical practices, researches and theoretical

    construction, focusing on the collective character of this theoretical, practical, and methodological creation. It discusses the psychosociological

    intervention in Brazil, especially in Minas Gerais, points out the increasingly larger space occupied by the discursive analysis and by language

    consideration in this practice and, finally, discusses the scientific rules of the method.

    Keywords: psychoociology; psychosociological intervention; clinical practice; research; theoretical construction.

    1 Professora visitante nacional snior (Capes). Laboratrio de Pesquisa e Interveno Psicossocial (Lapip). Universidade Federal de So Joo Del Rei, Campus Dom Bosco. Endereo para correspondncia: Praa Dom Helvcio 74, Salas 2.09 e 2.10, So Joo Del Rei, MG, CEP: 36301-160.

    Endereo eletrnico: [email protected].

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    Machado, M. N. da M. Interveno psicossociolgica, mtodo clnico, de pesquisa e de construo terica

    Pesquisas e Prticas Psicossociais 5(2), So Joo del-Rei, agosto/dezembro 2010

    O que , afinal, psicossociologia? E interveno

    psicossociolgica? Uma resposta, um tanto

    esquemtica, mas elucidativa, para a primeira questo

    que se trata da psicologia social com fundamentao

    na psicanlise, ou seja, uma disciplina cientfica que

    espelha, terica e metodologicamente, as disciplinas

    mes, sendo, portanto, simultaneamente, clnica do

    social, processo de pesquisa e de construo terica.

    Nesse sentido, quase sinnimo, tambm, de

    interveno psicossociolgica, as duas noes se

    distinguindo apenas pela nfase maior que cabe

    prtica no momento em que a interveno feita.

    Ambas so construdas por meio de escuta e anlise

    de demandas de ajuda, entrevistas, anlises de

    discursos, interpretaes, devolues, observao,

    reflexes, criao coletiva de conceitos e de

    articulaes tericas que, por sua vez, atuam sobre

    novas escutas, observaes, intervenes, teorizaes.

    Origens da Interveno Psicossociolgica

    De onde surgiram a psicossociologia e a

    interveno psicossociolgica? Os tericos e prticos

    que privilegiam a denominao sociologia clnica

    (outro quase sinnimo) traam a origem na Escola de

    Chicago do incio do sculo XX, quando ocorreram

    as primeiras experincias de cidade como

    laboratrio (Peneff, 1990) e onde se discutiu o

    estatuto cientfico da cincia aplicada, produzida em

    situao natural de vida real, versus cincia pura, feita

    no ambiente artificial e controlado do laboratrio.

    Outros privilegiam como acontecimento fundador

    a pesquisa-ao de Kurt Lewin (1948a, 1958) e seus

    discpulos, que elaboraram, nos Estados Unidos, um

    dispositivo de engenharia social (Lewin, 1948a, p.

    205-206), em que se buscou, de um lado, solucionar

    problemas sociais de minorias, comunidades, escolas,

    sindicatos patronais, sindicatos de trabalhadores e

    rgos do Poder Pblico, por meio de procedimentos

    de mudana planejada de condutas e atitudes

    individuais e, de outro lado, produzir conhecimento,

    buscando as leis gerais da vida social, usando como

    mtodo o experimento de campo.

    Mas nem a Escola de Chicago nem a pesquisa

    ao, embora atuantes em ambiente natural, com

    vistas a solucionar problemas sociais e, no mesmo

    ato, teorizar, se articularam psicanlise. Assim, o

    principal acontecimento inaugural da interveno

    psicossociolgica talvez tenha sido a socioanlise,

    desenvolvida por pesquisadores do Tavistock Institute

    of Human Relations, Inglaterra, especialmente o

    trabalho de mudana organizacional desenvolvido por

    Jaques e sua equipe na fbrica Glacier Metal

    Company (Jaques, 1952, 1955). Dada a importncia

    fundamental dessa interveno, a metodologia

    adotada nela ser brevemente descrita.

    Em primeiro lugar, a equipe foi influenciada por

    contribuies da psicoterapia, particularmente pela

    psicanlise de Mlanie Klein. A interveno incluiu,

    na primeira fase (1948-1950), um estudo geral da

    fbrica (satisfao no trabalho, salrio,

    funcionamento de grupos de trabalho, competidores

    no mercado, caractersticas da comunidade local etc.),

    uma descrio detalhada dos acontecimentos que

    ocorriam em seus diferentes setores (reunies com

    representantes de pessoal; estudo dos diversos

    departamentos da fbrica), a organizao de um

    histrico da fbrica para conhecer fatores de

    perturbao na evoluo anterior, a anlise do

    conjunto da sua organizao social (estrutura e

    funcionamento dos escales mais altos, sistema de

    representao de pessoal, hierarquias, sistemas de

    remunerao). Na segunda fase (que durou 18 anos,

    de 1950 a 1968), Jaques e sua equipe tornaram-se

    consultores permanentes.

    Seus instrumentos de interveno, pesquisa e

    teorizao se mantiveram os mesmos: levantamentos

    de informao sobre a histria e vida da organizao,

    feitos por meio de entrevistas e discusses individuais

    e grupais que eram cuidadosamente anotadas e

    revistas, includas em relatrios maiores e levadas s

    reunies, exame de documentos, anlise das pessoas

    no exerccio de seus papis, observao de grupos

    naturais, devoluo sistemtica de informaes, em

    assemblias e reunies habituais de trabalho, dando

    oportunidade aos membros da organizao de se

    ouvirem, teorizaes sobre a organizao social que

    incidiam sobre novos levantamentos de informao,

    observaes e anlises.

    Muitas das idias norteadoras da interveno de

    Jaques e colaboradores persistem nas prticas atuais,

    sobretudo princpios como o de no trabalhar apenas

    para a direo, nem para os trabalhadores, nem em

    proveito de um nico grupo, mas colaborar com a

    empresa como um todo, ter independncia em relao

    a todos os grupos e resistir a presses exercidas sobre

    a equipe de prticos, tornar pblicos os dados

    recolhidos, considerar todas as sugestes voltadas

    para um funcionamento melhor da organizao;

    manter relaes formais com os membros da fbrica.

    O papel de observadora, ouvinte e analista

    mantido pela equipe permitiu chegar a afirmaes

    tericas (Jaques, 1955) como: instituies podem ser

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    usadas por seus membros para reforar mecanismos

    individuais de defesa contra a ansiedade,

    particularmente contra o aparecimento de ansiedades

    depressivas e paranicas (que se manifestariam nas

    rivalidades, hostilidades, suspeitas etc.); as

    instituies tm outras funes, como dar expresso e

    gratificao a impulsos libidinais atravs de

    atividades sociais construtivas e fornecer

    oportunidades sublimatrias criativas. Dificuldades

    relacionadas s mudanas podem ser vistas como

    resistncias, pois mudanas nas relaes sociais

    ameaam afetar as defesas sociais contra a ansiedade

    psictica.

    Ainda na dcada de 1950, as prticas e

    teorizaes de Jaques tornaram-se conhecidas na

    Frana, levadas por L. Herbert, um membro da equipe

    do Tavistock Institute of Human Relations (Dubost,

    2001, p. 179). Nesse pas, ganharam corpo, adeptos,

    novos tericos. Ironicamente, como observa Amado

    (2001), depois de cinco dcadas nas quais Jaques foi

    um mito para os psicossocilogos franceses,

    justamente por causa da introduo da psicanlise no

    estudo das organizaes, ele foi redescoberto, em

    1997, adotando postura positivista, desaconselhando

    o uso da psicanlise para o trabalho com as

    organizaes, privilegiando abordagens normativas e

    cognitivas, opondo psicossocilogos clnicos a

    consultores organizacionais.

    Mas, na Frana, a interveno psicossociolgica

    continuou a se desenvolver, num trabalho coletivo,

    com posteriores desdobramentos na Itlia, Canad,

    Rssia e Brasil, entre outros pases. Entre os

    primeiros tericos e prticos esto Max Pags, Jean-

    Claude Rouchy, Andr Lvy, Eugne Enriquez e Jean

    Dubost.

    Nos anos 60 (sc. XX), a interveno

    psicossociolgica recebe uma influncia de origem

    brasileira de grande importncia para sua elaborao

    terico-metodolgica: a pesquisa participante de

    Paulo Freire abre possibilidades para o trabalho em

    meios abertos: como comunidades e populaes que

    passam a ser vistas como protagonistas da prtica e

    agentes de mudana.

    Em 1971, no Instituto de Educao de Adultos de

    Dar-es-Salaam, Tanznia, Freire fez uma palestra

    oral, posteriormente transformada no artigo intitulado

    Criando mtodos de pesquisa alternativa (Freire,

    1983), em que argumenta que o problema

    metodolgico mais premente saber em que consiste

    a realidade concreta, adiantando que essa no se

    limita a fatos e dados, mas inclui, tambm, a

    percepo que a populao implicada na pesquisa tem

    desses fatos e dados. Ele critica a suposta

    neutralidade da cincia, a forma pura de pesquisa:

    possvel que certos cientistas sociais do Primeiro

    Mundo digam que, na medida em que o povo participe

    em investigaes em torno de si mesmo estaremos

    estragando ou prejudicando a cientificidade da

    pesquisa. que, segundo eles, esta presena popular

    no permite que os achados da pesquisa se apresentem

    em forma pura. O que ocorre, porm, que, quando

    os mesmos cientistas sociais que fazem estas

    afirmaes em torno da pureza dos achados esto

    trabalhando nos resultados de suas pesquisas, no

    podem evitar a interferncia de sua subjetividade na

    interpretao que fazem. Como no podem evit-la no

    momento mesmo em que desenham a pesquisa.

    (Freire, 1983, p. 37)

    Freire introduz na sua prtica a discusso da

    subjetividade, analisa a demanda e o saber dos grupos

    e organizaes, prope que a investigao e a ao

    sejam geridas pelo coletivo formado pela equipe e

    pelos interessados, est atento a questes como

    implicao do pesquisador, relao de colaborao e

    de ajuda. Tudo isso est assimilado pela

    psicossociologia e por sua prtica, a interveno

    psicossociolgica. Em muitos aspectos, o mtodo de

    Freire se distancia da pesquisa-ao de Lewin, que

    trabalhava com grupos artificiais, que tomava

    unilateralmente as decises de pesquisa, que pensava

    na transformao social numa e apenas numa direo,

    estabelecida a priori, por quem encomendava a

    pesquisa (Machado, 2002).

    Interveno Psicossociolgica, uma

    Criao Coletiva

    praticamente impossvel, num pequeno artigo,

    prestar tributo a todos os grupos, associaes, centros

    e psicossocilogos prticos atuantes, desde os anos

    1950, na construo compartilhada da

    psicossociologia.

    Por isso, a opo aqui adotada colocar o foco

    sobre o Brasil, assinalando o trabalho de alguns que

    tiveram importncia instituinte para a criao da

    disciplina, em especial, em Minas Gerais, pois um

    marco fundador desse desenvolvimento pode ser

    colocado na UFMG.

    Em 1968, Clio Garcia, cumprindo promessa

    feita dez anos antes, convida Max Pags para realizar

    seminrios de dinmica de grupo em Belo Horizonte.

    O termo interveno psicossociolgica acabava de ser

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    Pesquisas e Prticas Psicossociais 5(2), So Joo del-Rei, agosto/dezembro 2010

    criado, justamente por Pags, e cobria prticas

    influenciadas pelo no-diretivismo rogeriano e por

    uma certa crtica psicanlise que absorvia, no

    entanto, afetividade, subjetividade, escuta atenta. Do

    ponto de vista do cuidado metodolgico, havia o

    registro meticuloso de sesses de interveno, feito

    por observadores, como pode ser visto na tese

    defendida por Pags (1968), naquele ano, e mais tarde

    traduzida para o portugus (A vida afetiva dos

    grupos). O papel problemtico da observao, que

    exigia a presena no grupo de estranhos silenciosos

    que se tornavam objetos de numerosas fantasias, foi

    assunto de muitas discusses, de interesse

    metodolgico. Hoje, essa figura do puro observador

    est descartada.

    No ano seguinte, 1969, o convidado Andr

    Lvy, que traz uma gama ampla de leituras de textos

    de Jean Dubost, Jean-Claude Rouchy, Eugne

    Enriquez e dele prprio. O vocabulrio, ento, est

    mais prximo psicanlise (transferncia, resistncia

    etc.), h uma forte postura estruturalista, os clientes

    so organizaes, incluindo empresas. Os primeiros

    protocolos de intervenes podem ser consultados,

    cobrindo organizaes como hospital psiquitrico,

    empresas particulares e pblicas (de gs e de

    eletricidade), assim como as primeiras descries de

    procedimentos metodolgicos, destacadamente a

    entrevista, procedimento que se mantm sempre forte

    at os dias atuais.

    Em 1972, vem a misso de George Lapassade,

    que traz na bagagem a metodologia da anlise

    institucional, aparentada observao participante

    etnogrfica, mas lateral com relao vertente da

    interveno psicossociolgica. Anlise institucional e

    psicossociologia convergem, no entanto, no que diz

    respeito importncia atribuda psicanlise, s

    relaes de transferncia e contratransferncia,

    anlise da demanda, apreenso do social em seu

    momento instituinte, auto-gesto de grupos,

    organizaes e comunidades. A misso de Lapassade

    tem impacto forte e duradouro, em Minas Gerais,

    inclusive sobre a reforma curricular do curso de

    Psicologia da UFMG que cria, em 1974, a disciplina

    Interveno Psicossociolgica que acaba sendo

    adotada, tambm, em outros cursos de psicologia de

    Belo Horizonte.

    Um segundo marco que torna as relaes Frana-

    Brasil na esfera da interveno psicossociolgica

    mais estreitas e contnuas o convnio internacional

    Capes-Cofecub, envolvendo universidades brasileiras

    (UFMG, UFF e Funrei, atual UFSJ) e francesas

    (Universidades de Paris XIII, VII e X), preparado

    entre 1985 e 1992, com o ttulo inicial de Formao

    de recursos humanos para interveno em

    comunidades, e atuante entre 1992 e 1995 sob o nome

    Cooperativas e comunidades.

    Os objetivos do convnio eram formao e

    pesquisa. Propunha-se levantamento e anlise dos

    trabalhos anteriormente realizados no Brasil, tanto em

    Minas Gerais como em outros estados, estudos

    comparativos de diferentes intervenes, definio de

    metodologias de interveno e criao de

    instrumentos de avaliao.2 A questo metodolgica

    foi, desde o incio, central.

    O convnio promoveu, no Brasil, misses de

    Andr Lvy (out.1991), Eugne Enriquez (abr. 1992,

    1993), Jean Dubost (nov. 1993), Andr Nicola

    (nov.1994) e Jacqueline Barus-Michel (1995), com a

    contraparte brasileira de misses na Frana de Marlia

    N. M. Machado (jun.1991), Lvia Nascimento

    (out.1992), Jos N. G. Arajo (jun.1993), Teresa

    Carreteiro (set.1993), Elizabete Antunes Lima

    (dez.1994). Paralelamente, universidades francesas

    receberam professores do Brasil para doutorado. As

    experincias francesas e brasileiras foram

    compartilhadas, livros e artigos trocados, escritos e

    publicados, individualmente e em conjunto.3

    As trs realizaes do Colquio Internacional de

    Psicossociologia e Sociologia Clnica em Belo

    Horizonte (2005, 2007, 2009) so outros marcos e

    atestam o vigor do vnculo. O nmero de

    participantes no empreendimento de criao de

    prticas, pesquisas e construo terica da

    interveno psicossociolgica se renova e amplia.

    Paralelamente, a importncia atribuda ao

    discurso e linguagem ganha cada vez mais espao.

    Segundo Lvy (2001a, p. 119), a partir de uma

    multiplicao de pesquisas utilizando a anlise de

    discursos coletivos e a anlise de interaes

    lingusticas, inicialmente com objetivos unicamente

    descritivos e de pesquisa, a linguagem, cada vez

    mais, passa a ser vista como lugar de produo e de

    transformao de estruturas e de relaes sociais,

    convergindo com a interveno psicossociolgica,

    ajudando a esclarecer processos de interveno,

    fornecendo conceitos e mtodos novos de anlise.

    2 A fonte dessas informaes a correspondncia entre as equipes francesa e brasileira do acordo Capes/Cofecub de abril de 1987. 3 Entre os livros e captulos, possvel citar: Dubost (1987);

    Enriquez (1992); Machado et al. (1994; 2001); Arajo e Carreteiro (2001); Lvy (2001); Nascimento (2001); Machado (2004c), entre

    outros.

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    Machado, M. N. da M. Interveno psicossociolgica, mtodo clnico, de pesquisa e de construo terica

    Pesquisas e Prticas Psicossociais 5(2), So Joo del-Rei, agosto/dezembro 2010

    Balano Metodolgico

    Tomando como ponto de partida analtico a

    engenharia social de Lewin (1948a), observa-se que

    a interveno psicossociolgica caminhou bastante

    como mtodo, afastando-se, contudo, do lugar do

    saber e das decises unilaterais do cientista-prtico,

    indo na direo de procedimentos que ajudam a

    emergncia do imaginrio radical instituinte4, para

    usar uma linguagem cara a Enriquez (2001) e a

    Castoriadis (1987-1992).

    Nesse sentido, uma interveno psicossociolgica

    tem xito se chega auto-alterao do agente

    principal, o cliente, e permite o aparecimento,

    reflexivo e deliberado, de um projeto autnomo,

    sempre instituinte e questionador, cabendo ao prtico,

    no eliminar conflitos nem ensinar o sentido da vida,

    mas ajudar o cliente no processo de criar

    autonomamente novas formas coletivas e lcidas de

    pensar, agir e viver.

    Mas isso cincia?

    A engenharia social procedia usando

    artefatos para chegar a seus resultados. Por exemplo,

    no conhecido experimento sobre clima grupal,

    descrito por Lewin (1948b), criava-se um clima

    democrtico e outro autoritrio, mantidas constantes

    outras variveis, e observavam-se as respostas de

    crianas de 10 e 11 anos de idade a essas diferentes

    atmosferas grupais. As crianas no tinham

    escolhas, seno a de conviver com um lder

    democrtico ou com um autoritrio, como que dentro

    de um sistema fechado que se abre apenas para essas

    duas alternativas. Suas respostas, evidentemente,

    eram geradas de acordo com os climas. Nesse caso,

    pode-se dizer, em sintonia com a filsofa, qumica e

    historiadora das cincias Stengers (1990), autora de

    Quem tem medo da cincia?, que o artefato criava o

    resultado.

    Diferentemente, a prtica e a pesquisa

    engendradas na interveno psicossociolgica operam

    na realidade concreta de vida, isto , num sistema

    aberto a uma multiplicidade indefinida de

    4 Noo formulada por Castoriadis (1987-1992) para acentuar a

    capacidade humana de engendrar autnoma, deliberada e coletivamente novas formas sociais, leis, linguagens, cultura,

    idias, costumes, sem se enclausurar em formas heternomas j

    institudas; o imaginrio radical instituinte no recalcado, liberado, responsvel pelo fluxo de representaes, afetos e desejos que

    constituem o campo da criao social-histrica.

    interaes (Stengers, 1983, p. 49). interveno

    pode-se aplicar o termo operador proposto por

    Stengers (1990), uma vez que ela permite observar e

    definir diretamente um objeto (um conjunto social

    singular, um fato psicossocial real) e,

    simultaneamente, agir sobre ele e mud-lo, gerando,

    assim, evidncias externas sobre o social que

    independem de um artefato.

    Em seu livro, Stengers (1990)5 afirma que o

    cientfico "por definio matria para

    controvrsias" (1990, p. 83) e, em entrevista

    concedida a Dosse (2005, p. 41), afirma que o

    verdadeiro criador inventa o risco enquanto que o

    falso criador se contenta em imitar as outras

    cincias. Ela chama a ateno para o fato de no

    haver fato sem linguagem interpretativa e que as

    controvrsias sempre recaem sobre a relao entre

    fato e interpretao. Enquanto os adeptos da cincia

    pura fazem tudo para depurar causas, controlar

    variveis, eliminar o que possa interferir num

    fenmeno, a fim de que ele s fale uma lngua e

    aceite s uma interpretao, chegando-se assim ao

    fato cientfico, os adeptos do estudo em situao real,

    tentam apreender os fenmenos em sua complexidade

    criando, para tanto, operadores.

    Para Stengers, o cientista puro est sujeito a um

    "pesadelo", o artefato: "Se podemos dizer que ele

    confundiu um fato com um artefato, podemos dizer

    que ele extorquiu um testemunho. (...) Se as

    condies de experimentao [so] condies que

    criam por si s o fenmeno, o fato no tem valor"

    (Stengers, 1990, p. 87).

    Segundo ela (Stengers, 1990, p. 114), "Freud

    compreendeu perfeitamente a exigncia de

    testemunhas fidedignas e de definio de uma

    operao que as crie". A psicanlise empregou

    inicialmente a hipnose como operador que serviu para

    testemunhar a causalidade psquica da histeria. Mas a

    hipnose decepcionou Freud, devido s dificuldades

    tcnicas de produo de testemunhas fidedignas:

    lembranas sob hipnose podem ser falsas e o paciente

    pode resistir verdade. Ora, a verdade que permite

    desfazer sintomas e, ao mesmo tempo, produzir a

    verdade sobre eles.

    A definio da cena analtica, centrada nas

    noes de transferncia e de resistncia, corresponde

    tentativa de criar outro tipo de instrumento com a

    mesma ambio da hipnose, ou seja, a produo de

    uma testemunha fidedigna. Na cena analtica, a

    5 So retomados aqui, aproximadamente com as mesmas palavras,

    extratos apresentados anteriormente em Machado (2004b; 2004c).

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    Machado, M. N. da M. Interveno psicossociolgica, mtodo clnico, de pesquisa e de construo terica

    Pesquisas e Prticas Psicossociais 5(2), So Joo del-Rei, agosto/dezembro 2010

    neurose se transforma em neurose de transferncia,

    "doena artificial", "de laboratrio", purificada e,

    ento, identificvel. Enquanto a neurose comum, fato

    bruto, escapa identificao, a de transferncia est

    inteiramente centrada no analista. uma cena

    fechada, que pode ser controlada pelo psicanalista,

    em que ele pode decifrar, a partir da transferncia, o

    mecanismo neurtico. uma operao de purificao

    semelhante que permitiu qumica "existir como

    cincia operatria" (Stengers, 1990, p. 121-123).

    Freud confrontou-se com a questo do artefato,

    que corresponde ao risco de a testemunha no ser

    fidedigna, mas manipulada, produtora de um

    testemunho extorquido. Chega mesmo a uma

    "confisso de fracasso" (Stengers, 1990, p. 126),

    mostrando que a resistncia forte demais, o

    inconsciente cheio de recursos que frequentemente

    impedem o sucesso da anlise. Mas, na altura de sua

    confisso, j produzira um aparelho conceitual em

    que convergiam pesquisa e cura e em que as

    aquisies da pesquisa lhe permitiam explicar os

    fracassos da terapia (Stengers, 1990, p. 127).

    Tal qual a cena analtica, a interveno

    psicossociolgica, experincia clnica, configura-se

    como um operador. Permite a observao e a

    definio de seu objeto o fato psicossocial e

    produz eventualmente fatos que constituem

    testemunhas fidedignas da verdade psicossocial.

    Como a cena analtica, a interveno

    psicossociolgica uma situao "artificial", "de

    laboratrio", pois sempre rompe com o cotidiano.

    Nela, o desenvolvimento de relaes transferenciais

    entre o pesquisador e os atores facilitado, a

    contratransferncia e as resistncias do pesquisador

    so objeto de anlise, h a emergncia dos processos

    inconscientes e de novos significados.

    Enquanto se pode atribuir causas diversas a um

    fato observado no cotidiano, nas situaes concretas

    de interveno, no apenas possvel controlar e

    purificar os fatos psicossociais, mas sobretudo

    compreender o mundo tal qual , e no tal qual

    gostaramos que fosse (Lvy, 1991). A observao

    ento possvel, sem que se instaure confuso entre

    fato e artefato.

    Ao trabalhar com sujeitos concretos, vivos,

    exprimindo-se livremente, a interveno

    psicossociolgica cria fatos inteligveis,

    "purificados". Permite a emergncia de sentidos no

    preestabelecidos, mas construdos na situao de

    interao (e interlocuo). Apia-se em significaes

    que os prprios atores descobrem, elaboram, colocam

    em discurso e que podem ser captadas por meio de

    anlise. As mudanas de sentido ao longo do

    processo, e que o legitimam, fazem falar a verdade da

    interveno e a verdade do fato psicossocial. Dessa

    forma, diferentemente dos experimentos da

    engenharia social, o risco de o artefato extorquir fatos

    minimizado na interveno psicossociolgica.

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    Categoria de contribuio: Interveno

    Recebido: 7/02/2011 Aceito: 21/02/11

    http://www.autenticaeditora.com.br/autentica/276http://www.autenticaeditora.com.br/autentica/276