introdução -...
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Projeto Pós-graduação
Curso Alfabetização e Letramento
Disciplina Leitura e Produção de Textos
Tema Leitura e escrita: alguns fundamentos
Professor(a) Marilia Marques Mira
Coordenador(a) Cristina Rolim C. Bruno
Introdução
Neste tema iremos refletir a respeito dos fundamentos do processo de
ensino-aprendizagem da leitura e escrita, que são consideradas como fatores
importantes e necessários para o exercício pleno da cidadania nas sociedades
letradas. Nessa perspectiva, abordaremos questões como a relação entre a
alfabetização e a cidadania, o conceito de alfabetização e sua relação com o
processo de letramento, os usos e as funções da escrita na sociedade e o
papel da escola no processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita.
Assista ao vídeo no material on-line e acompanhe nossa reflexão.
Problematização
Na próxima semana inicia o ano letivo. Você é a coordenadora
pedagógica de uma escola e está iniciando a primeira reunião da escola, que
terá como uma das pautas o planejamento do trabalho com língua portuguesa
para o próximo bimestre. O grupo de professores é bastante heterogêneo: há
professoras iniciantes na função, professoras com um pouco mais de
experiência e outras com bastante tempo de serviço no magistério.
A escolha de turmas já foi realizada, e as duas turmas de 1º. ano, as
últimas a serem escolhidas, acabaram ficando com as professoras iniciantes.
Essas duas professoras, preocupadas com o desafio que têm pela frente,
solicitam auxílio de uma das professoras com mais esperiência. Essa
professora diz para elas não se preocuparem, que basta escolher um texto
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qualquer, desde que só tenha palavras bem fáceis para as crianças, e
organizar exercícios de completar sílabas ou letras que faltam, ligar palavras
aos desenhos correspondente, atividades de cópia de palavras-chave, ditado,
escrita de palavras a partir de desenhos, etc... E a conversa segue por aí....
Outra professora, ouvindo a sugestão, aconselha apenas que as
iniciantes sigam o livro didático de alfabetização que a equipe da escola
escolheu.
Você, então, resolve intervir nessa conversa, pois é sua
responsabilidade orientar pedagogicamente todas as professoras, em especial
as iniciantes. Percebe que essas professoras não sabem que rumo dar ao
planejamento de ensino que devem elaborar. Porém, considerando os fatos
que presenciou, fica em dúvida sobre como agir, pois a situação ocorrida
evidenciou posturas e concepções distintas sobre o processo de alfabetização.
De que modo conseguir que as professoras estabeleçam relações entre
as sugestões dadas e a concepção de alfabetização da escola e revejam os
encaminhamentos? O que fazer? Qual a estratégia a definir, considerando a
importância de que essas questões sejam retomadas e discutidas?
a. Você chama todas as professoras e propõe que, antes de iniciar o
planejamento, façam um estudo e uma discussão sobre a concepção de
alfabetização/língua portuguesa explicitada no Projeto Político-Pedagógico
(PPP) da escola. Aproveita a reunião para retomar e aprofundar o assunto e
traz sugestões de atividades para serem analisadas em pequenos grupos,
auxiliando os professores a relacionarem a concepção teórico-metodológica
explicitada no PPP e as escolhas feitas em relação ao encaminhamento do
trabalho e os materiais didáticos a serem usados no processo de ensino-
aprendizagem.
b. Você orienta cada grupo de professores, por ano, em separado, sobre o
planejamento de ensino. No caso das professoras iniciantes, dedica uma
atenção especial, pois percebe que precisam de um estudo mais
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aprofundado sobre o assunto, antes de iniciar o planejamento. Quanto às
professoras que fizeram algumas sugestões, marca outro momento, durante
a semana, para retomar as sugestões dadas por elas, pois avalia que
também há necessidade de aprofundar com esse grupo o estudo sobre a
concepção de alfabetização e os encaminhamentos sugeridos.
c. Você dá continuidade ao que está previsto para a reunião pedagógica, pois
considera que essa discussão deve ser feita em outro momento, de forma
mais aprofundada. Sugere às professoras iniciantes que se inscrevam para
participar de curso específico sobre alfabetização promovido pela
mantenedora da escola.
Leitura e escrita: alguns fundamentos
A Importância da leitura e da escrita na sociedade:
condição ou instrumento para o exercício da cidadania?
Comumente, quando pensamos em alfabetização, ler e escrever são as
duas palavras que nos vêm à mente. Nas sociedades letradas1, ninguém
questiona o fato de que o acesso à leitura e à escrita é importante!
Vamos explicitar melhor a relação entre alfabetização e cidadania, ou
seja, ao papel da alfabetização para o exercício da cidadania.
1 De acordo com Maria do Rosário Mortatti, sociedades letradas são aquelas que se organizam em torno de um sistema de escrita, sendo que esta assume um papel fundamental na vida das pessoas e em suas relações com os outros e com o mundo em que vivem. Para a autora, trata-se “de um tipo de sociedade baseada em comportamentos individuais e sociais que supõem inserção no mundo público da cultura escrita, isto é, uma cultura cujos valores, atitudes e crenças são transmitidos por meio da linguagem escrita e que valoriza o ler e o escrever de modo mais efetivo do que o falar e o ouvir, diferentemente do que ocorre em sociedades iletradas ou ágrafas [...]” (MORTATTI, 2004, p. 98)
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Para iniciar, cabe a reflexão sobre algumas perguntas: o que é
cidadania? O que significa ser cidadão? Quem é considerado cidadão na
sociedade atual? Para ser cidadão, é necessário ser alfabetizado?
A cidadania pode ser definida como a posse de direitos civis, políticos e
sociais. E o que significa ser cidadão? Leia o que diz o dicionário:
Portanto, cidadão é aquele que detém a posse desses direitos, e usufrui
deles. Quais direitos são esses? Vamos exemplificar:
Direitos civis: referem-se às liberdades individuais, como o direito de ir 1.
e vir, o direito à vida, à liberdade de expressão, à igualdade perante a
lei, entre outros.
Direitos políticos: envolvem um conjunto de regras que regulam a 2.
participação da população no processo político de um determinado
país. São exemplos o direito ao voto, o direito à organização e
participação em partidos políticos e em sindicatos, entre outros.
Direitos sociais: visam a garantir aos indivíduos, por meio da proteção 3.
do Estado, o exercício e usufruto de direitos fundamentais, em
condições de igualdade com todos os cidadãos. São exemplos: o
direito à educação, à saúde, à habitação, ao trabalho, à segurança,
entre outros.
Leia atentamente a charge abaixo, antes de refletir sobre as questões
que seguem:
Cidadão 1. Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um estado, ou no desempenho de seus deveres para com este.
Fonte: Aurélio B. de H. Ferreira. Novo dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Ed. Positivo, 2004.
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Fonte: http://imagohistoria.blogspot.com.br/2013/06/direitos-civis-politicos-e-sociais-3-de.html
Qual crítica o autor Miguel Paiva faz?
A que direitos ele se refere na charge?
A imagem permite estabelecer outras relações entre o acesso aos
direitos exemplificados (moradia, saúde) e outros direitos. Quais
relações são essas?
Após a explicitação dos direitos dos cidadãos e a reflexão a partir da
charge de Miguel Paiva, provavelmente você já conseguiu responder algumas
de nossas questões sobre a relação entre a alfabetização e cidadania. E, a
partir dessas reflexões, vamos entender porque o acesso à leitura e à escrita é
importante, mas não é condição sine qua non ao exercício da cidadania.
Magda Soares (2007, p. 55) apresenta, em artigo que trata desse tema,
algumas considerações relevantes que nos interessam. Para a autora,
precisamos superar uma concepção (que faz parte do senso comum) de que
apenas quem sabe ler e escrever tem condições de agir politicamente, de
participar da vida em sociedade, enfim, de ser cidadão. Para a autora, essa
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concepção oculta os reais determinantes da exclusão e da própria construção
da cidadania.
Ela afirma que a alfabetização – enquanto acesso à leitura e à escrita –
e a cidadania não podem ser vistas sob a relação de causa e consequência,
pois a própria alfabetização deve ser entendida como um direito social, ou
melhor, como parte dos direitos sociais, no caso, o direito à educação.
Nessa perspectiva, o acesso à leitura e à escrita deve ser visto como um
dos componentes entre todos os direitos que devem ser garantidos para todas
as pessoas. Assim, a alfabetização é considerada um instrumento na luta pela
conquista da cidadania. Porém, segundo a mesma autora, só contribuirá para
essa conquista se possibilitar que os indivíduos se tornem conscientes de seu
direito de acesso à leitura e à escrita (SOARES, 2007, p. 57), além de todos os
outros direitos que o Estado tem a obrigação de garantir aos seus cidadãos.
Isso significa dizer que o acesso à leitura e escrita não pode ser
pensado de forma ingênua, isolado de seu papel no processo de construção da
cidadania e de emancipação humana. Para Soares (2007, p. 58), “o valor e a
importância da alfabetização não são inerentes a ela, mas dependem da
função e dos usos que lhe são atribuídos no contexto social”.
Vamos detalhar um pouco mais essa relação entre a linguagem e a
formação (ou emancipação) humana em mais um vídeo disponível no material
on-line.
“Na verdade, a exclusão do agir e do participar politicamente, longe de ser produto de uma ‘ignorância’ causada pelo analfabetismo, pelo não acesso à leitura e à escrita, é produto das iniquidades sociais que, elas sim, impõem estreitos limites ao exercício dos direitos sociais, civis e políticos que constituem a cidadania. Basta que se considere a coocorrência de indicadores de exclusão: altas taxas de analfabetismo e outros indicadores educacionais (taxa de repetência, de evasão, de exclusão da escola, etc.) ocorrem ao lado de baixas faixas salariais, maiores índices de subnutrição, de mortalidade infantil, de expectativa de vida etc” (SOARES, 2007, p. 56, grifos da autora).
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Nas sociedades letradas, que têm a leitura e a escrita como elementos
centrais e bens culturais. São reconhecidas e valorizadas como instrumentos
de prestígio e de poder. Podemos dizer que a posse desses bens culturais
ampliam enormemente a possibilidade de participação na vida social, política e
profissional.
Considerando o exposto, podemos refletir sobre o conceito de
alfabetização e suas implicações para o processo de ensino-aprendizagem da
leitura e escrita. Para essa reflexão, vamos solicitar a leitura da tirinha a seguir:
O que Mafalda está criticando? Em linhas gerais, podemos dizer que seu
questionamento refere-se ao sentido de aprender a ler e a escrever. A crítica
diz respeito, especificamente, ao conteúdo e à forma de se alfabetizar as
crianças e ao papel da escola nesse processo.
Isso no leva às seguintes questões: como a escola tem possibilitado aos
“Dentre os bens culturais, encontram-se a leitura e a escrita como saberes constitutivos das sociedades letradas e que devem propiciar aos indivíduos ou grupos sociais não apenas acesso a ela, mas também participação efetiva na cultura escrita. A apropriação e utilização desses saberes é condição necessária para a mudança, do ponto de vista tanto do indivíduo quanto do grupo social, de seu estado ou condição nos aspectos cultural, social, político, linguístico e psíquico. No entanto, os significados, usos e funções desses saberes, assim como as formas de sua distribuição, também variam no tempo e dependem do grau de desenvolvimento da sociedade” (MORTATTI, 2004, p. 100).
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estudantes a aprendizagem da leitura e da escrita? Será que a escola tem
obtido sucesso em relação ao objetivo de que esses estudantes se tornem
leitores e produtores de textos? O que isso significa? Quais implicações isso
traz para o processo de ensino-aprendizagem? Em que medida o tipo de
trabalho/encaminhamento explicitado na tirinha possibilita que os estudantes se
instrumentalizem para atuar na realidade social da qual fazem parte?
Nessa direção, Lerner (2002, p. 17) faz algumas considerações
importantes. Para a autora, aprender a ler e a escrever são palavras que
marcam uma função essencial da escolaridade obrigatória, constituindo-se um
desafio que transcende amplamente a alfabetização em sentido estrito. Ela
afirma que o desafio da escola hoje é o de “incorporar todos os alunos à cultura
do escrito, é o de conseguir que todos seus ex-alunos cheguem a ser membros
plenos da comunidade de leitores e escritores.”
Nessa perspectiva, é necessário refletir sobre o papel da escola no
processo de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, o que diz respeito,
intrinsecamente, às concepções de alfabetização e suas relações com o(s)
letramento(s)2.
Quando Lerner se refere à alfabetização em sentido estrito, trata-se do
conceito de alfabetização entendido apenas como o domínio de uma técnica e,
portanto, neutra, descolada de sua função social: a pessoa alfabetizada seria
aquela que domina a tecnologia do ler e do escrever, a mecânica da leitura e
da escrita. Já o letramento, de acordo com Soares (apud MORTATTI, 2004, p.
104-5), deve ser entendido não em uma dimensão individual, mas em uma
perspectiva social, como uma prática social.
2 Não é objetivo desta disciplina aprofundar os conceitos e as relações entre alfabetização e letramento,
o que pode ser feito, a critério do estudante, por meio da leitura de obras específicas sobre esse tema, algumas das quais foram sugeridas nas referências e no material complementar. É importante destacar, porém, que Paulo Freire, conhecido educador brasileiro, defendia a alfabetização não como a leitura da palavra (educação bancária), mas como leitura de mundo. Portanto, em sua concepção, o conceito de alfabetização como leitura de mundo remete ao que hoje denomina-se letramento.
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No contexto atual, a instituição escolar ainda é uma das principais
responsáveis por promover o processo de letramento. Porém, precisamos
refletir sobre como isso está ocorrendo. Muitas pesquisas têm evidenciado que
as práticas de leitura e de escrita desenvolvidas na escola se aproximam mais
de uma concepção de alfabetização como domínio de uma técnica, ou seja,
nossos alunos estão saindo das escolas, conseguindo unicamente decodificar
os textos (no que se refere à leitura) e copiar ou escrever textos (redações)
descolados de sua função social (no que se refere à escrita).
A explicação para essa situação, que não se refere apenas ao processo
de alfabetização, pois muitas vezes ele se estende para além dos anos iniciais
do ensino fundamental - pode estar no fato de que as práticas de leitura e de
escrita desenvolvidas nas escolas estão relacionadas ao que muitos autores
têm denominado de “letramento escolar”, que não garante a formação de
leitores e escritores competentes e autônomos. Essa é uma questão que
precisamos refletir e aprofundar. Para isso, vamos assistir ao próximo vídeo,
disponível on-line.
Para Lerner (2002, p. 18), é necessário “preservar na escola o sentido
que a leitura e a escrita têm como práticas sociais, para conseguir que os
alunos se apropriem delas [...] a fim de que consigam ser cidadãos da cultura
escrita.” Essa autora afirma que há um abismo separando a prática escolar da
prática social da leitura e da escrita:
[...] letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades e conhecimentos de leitura e escrita, em determinado contexto, e é a relação estabelecida entre essas habilidades e conhecimentos e as necessidades, os valores e as práticas sociais (SOARES, apud MORTATTI, 2004, p. 104-5, grifos da autora).
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Nessa direção, nota-se a necessidade de compreensão de que tal
objetivo implica em determinada concepção de alfabetização, em uma forma de
se desenvolver o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita na
escola, ou seja, é uma escolha que vai além da simples opção pelo uso de
certos textos ou materiais. Enfim, tudo isso implica em uma escolha que não é
apenas técnica, mas que traz implícita uma opção política que se refere ao tipo
de cidadão que se quer formar, que tem um papel ativo na transformação
dessa sociedade.
“[...] Em primeiro lugar, é preciso interrogar-se sobre o objetivo do ensino escolar da linguagem escrita. Pretendemos formar escrivães ou escritores? Há uma forma de escrever que se limita a transcrever o que os outros ditam: uma escrita própria dos escrivães. Há outra forma de escrever, em que refletimos e elaboramos a linguagem escrita ao modo dos escritores. Não é certo que uma seja anterior à outra: são duas concepções distintas” (CURTO; MORILLO; TEIXIDÓ, 2000, p. 63-67).
“[…] a língua escrita, criada para representar e comunicar significados,
aparece em geral na escolar fragmentada em pedacinhos não
significativos; a leitura em voz alta ocupa um lugar muito maior no âmbito
escolar que a leitura silenciosa, enquanto que em outras situações sociais
ocorre o contrário; na sala de aula, espera-se que as crianças produzam
textos num tempo muito breve e escrevam diretamente a versão final,
enquanto que fora dela produzir um texto é um longo processo que requer
muitos rascunhos e reiteradas revisões... Escrever é uma tarefa difícil
para os adultos – mesmo para aqueles que o fazem habitualmente -; no
entanto, espera-se que as crianças escrevam de forma rápida e fluente...
Ler é uma atividade orientada por propósitos – de buscar uma informação
necessária para resolver um problema prático a se internar em um mundo
criado por um escritor - , que costumam ficar relegados do âmbito escolar,
onde se lê somente para aprender a ler e se escreve somente para
aprender a escrever...” (LERNER, 2002, p. 33)
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Embora esses autores estejam se referindo ao ensino da linguagem
escrita e ao processo de escrever propriamente dito, o que nos interessa
destacar é a natureza desse processo, ou seja, quais as concepções de leitura
e de escrita que fundamentam o trabalho didático-pedagógico. Dito de outro
modo: quando os autores apontam que são duas concepções distintas, e que
uma não é anterior à outra, estão se referindo à ideia de que se poderia iniciar
o trabalho de alfabetização de forma mecânica (como o domínio de um código)
e, posteriormente, quando o estudante já tiver se apropriado dessa mecânica,
ele poderia ler e produzir textos “com sentido”. Esse é um dos equívocos que
precisa ser superado. A questão se refere, justamente, à opção por certa
concepção de alfabetização, que implica também em determinada concepção
de linguagem, e em organizar o trabalho pedagógico a partir dessas
concepções.
Nesse sentido, ainda, é importante refletir sobre as diferenças entre a
linguagem escrita que se usa na sociedade (que dizem respeito às práticas de
leitura e de escrita nos diferentes contextos sociais) e a linguagem que se usa,
em muitos casos, no interior da sala de aula. Vamos exemplificar comparando
os dois textos que seguem:
TEXTO 1 A RÉGUA DO ÍNDIO GUARACI
- Que linda é a régua do índio Guaraci! - O Guaraci tem cor parda e vive de maneira diferente. - Ele também fala uma língua diferente da nossa. - Os índios moram em casas de palha? - Sim. Eles caçam e pescam também. - Vamos ver a régua do Guaraci de perto?
(Cartilha Festa das Letras)
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O texto 1 refere-se a um tipo de texto bastante comum nas antigas
cartilhas de alfabetização, cujo objetivo principal era ensinar determinadas
letras ou silabas às crianças. Qual sua função, ou seja, para que serve esse
texto? Quem é o autor? Para que e para quem escreveu? Será que, fora do
contexto escolar, é um texto que costumamos ler ou escrever? A resposta à
maioria dessas questões pode ser assim sintetizada: esse texto é produzido
apenas para cumprir uma tarefa tipicamente escolar, servindo como pretexto
para o trabalho com os conteúdos da língua.
O texto 2 “fala” por si só. É evidente que as respostas às questões feitas
anteriormente são completamente diversas. A referência evidencia que é a
resenha de um livro de contos, de literatura infanto-juvenil, finalista ao Prêmio
Jabuti.3 Desde o título até a última linha, nos deixa com vontade de ler, de
querer saber mais sobre cada uma das histórias... Ou você não ficou
curioso(a)?
3 O Prêmio Jabuti tem início aproximadamente em 1957, por meio de uma iniciativa
da Câmara Brasileira do Livro, então presidida por Edgar Cavalheiro e secretariada por Mário da Silva Brito, ambos pesquisadores da literatura nacional. Ao longo dos anos este prêmio foi sendo lapidado, mesmo encarando algumas adversidades, como a indiferença e a carência de estímulos à literatura e à leitura. Aos poucos este cenário foi se modificando, com a celebração de eventos literários e a criação de programas de incentivo ao consumo do livro e à leitura. O Jabuti conquistou outras categorias, laureando, hoje, de ficções a obras de caráter didático, livros ilustrados e elaborações gráficas. Esta premiação se consolidou de tal forma que nos dias atuais os leitores e profissionais da área editorial aguardam ansiosamente a divulgação dos nomes premiados. Adaptado de: http://www.infoescola.com/literatura/premio-jabuti/ Acesso em 10 jun. 2014.
TEXTO 2 UMA DECLARAÇÃO DE AMOR À VIDA!
Todo mundo sabe que a Morte um dia vem. Mas todo mundo quer
dar um jeito de enganá-la. Fingir que não viu. Fazer esperar mais um
pouquinho. O ferreiro, o compadre, o moço bonito bem que tentaram
driblá-la. Cada um com seu truque. E adiantou? Bem, basta dizer que
eles não estão mais aqui para dar a resposta. Quanto ao Zé Malandro...
aí, só lendo.
(Resenha do livro “Contos de Enganar a Morte”, de
Ricardo Azevedo, um dos finalistas ao Prêmio Jabuti
2004)
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Mas, voltando à nossa questão: quais relações podem ser estabelecidas
entre a opção de uso de um tipo determinado de material (texto), a forma de
encaminhar o trabalho com esse material e as concepções de alfabetização?
Antes de responder a essa questão, é importante esclarecer que a
discussão não se limita à opção pelo uso de um ou outro texto. De nada
adiantaria optar pelo trabalho a partir de textos como o exemplificado no
segundo quadro, se o utilizarmos meramente para desenvolver atividades
mecânicas de apropriação da língua, entendida como código, ou seja,
atividades descontextualizadas e sem significado.
Para Mortatti (2004, p. 108), “a aquisição da leitura e da escrita, por si
só, porém, não vem garantindo maior nível de letramento [...]”. Ela adverte que
a introdução do letramento no âmbito das práticas escolares não significa a
substituição de “alfabetização” por “letramento” nem o entendimento de que a
alfabetização seja pré-requisito para o letramento, dois equívocos que têm sido
bastante comuns.
Precisamos lembrar que a aquisição da leitura e da escrita é condição
para apropriação de outros conhecimentos, de acesso a toda uma herança
cultural da humanidade, constituindo-se, portanto, na essência do processo de
escolarização.
A linguagem, portanto, precisa ser considerada como um processo
interlocutivo, como um sistema complexo de signos que permite aos seres
humanos dar significado ao mundo e à realidade. Interagir pela linguagem
significa expressar sentimentos, ideias, opiniões, influenciar outras pessoas e
ser influenciado por elas, argumentar e contra-argumentar sobre pontos de
vista diversos, enfim, significa ter condições de apreender e compreender a
realidade e, com isso, modificar (ampliar) a forma de interagir na
sociedade. E só consegue desenvolver e exercer essas possibilidades o
sujeito que vivenciar uma relação com a linguagem em toda essa dimensão (e
não tomada apenas enquanto um código). Esse é o papel fundamental da
escola.
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Então, retomemos a discussão sobre os textos. As diversas situações de
interação social se efetivam por meio de textos, tanto orais quanto escritos. É
nos textos que se materializam as práticas discursivas. Eles são sempre
manifestação das ideias de alguém, produzidos a partir de uma
intencionalidade, em um contexto determinado para interlocutor(es) também
determinado(s). Vamos conferir? Observe algumas imagens que representam
diferentes textos (e seus portadores) que circulam socialmente:
Qual a intenção/finalidade de cada um deles?
Em que contexto foram produzidos?
Por quem? Para quem?
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A questão central do processo de aprendizagem da formação de leitores
e escritores proficientes não se restringe à opção por um ou outro texto, mas à
escolha por uma concepção de alfabetização e letramento que implica no
desenvolvimento de um processo de ensino-aprendizagem. Significa trabalhar
com a língua escrita na escola, considerando sua função na sociedade.
O que isso significa? Inicialmente, podemos dizer que precisamos
resgatar, na escola, um trabalho em que a leitura e a escrita tenham sentido e
significado para os estudantes. Em nossa sociedade, circulam textos com
intenções múltiplas e diversas: informar, entreter, anunciar, divertir, opinar,
sensibilizar, convencer, instruir, entre muitas outras. O texto deve ser, portanto,
o ponto de partida e de chegada do trabalho em sala de aula. É ponto de
partida, pois por meio dele desenvolvemos as atividades de leitura, análise
textual e sistematização dos conteúdos de língua portuguesa. E é também
ponto de chegada, pois nosso objetivo é ensinar os estudantes a produzir
textos (orais e escritos) cada vez mais elaborados. (ZABOT; MIRA; HAMANN,
2007, p. 7-8).
Conteúdo complementar
1) Para aprofundar o conceito de cidadania discutido no início desse
tema, você pode ler o texto “O que é cidadania?” no link abaixo:
http://www.brasilescola.com/sociologia/cidadania-ou-estadania.htm
2) Para aprofundar o estudo sobre o papel ideológico da alfabetização
nas sociedades letradas, sugerimos o texto de Magda Soares: “Língua
escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas”.
“Para que a leitura como objeto de ensino não se afaste demasiado da
prática social que se quer comunicar, é imprescindível ‘representar’ – ou
‘reapresentar’ – na escola, os diversos usos que ela tem na vida social”.
(LERNER, 2002, p. 79-80)
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http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n00/n00a02.pdf
3) Sugestão de vídeo: A História de Amala e Kamala (O vídeo apresenta,
de forma sintética, a história de duas crianças que foram encontradas,
em 1920, na Índia, vivendo no meio de lobos. O relato desse fato
evidencia que o processo de humanização das duas crianças só teve
início com o convívio com outros seres humanos, a partir do qual as
meninas foram introduzidas no mundo dos símbolos, pela
aprendizagem da linguagem).
http://www.youtube.com/watch?v=uWY4iEv13Iw
4) O texto que segue analisa as diferentes perspectivas de aquisição da linguagem escrita, a partir de um referencial que considera que a alfabetização (domínio do sistema gráfico) e o letramento (uso da leitura e da escrita nas diversas funções sociais) podem ser trabalhadas conjuntamente. http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/psicologia/article/view/29706
5) Sugestão: Nesse vídeo, Magda Soares apresenta algumas questões
relacionadas ao encaminhamento metodológico do trabalho com a
leitura e a escrita a partir da compreensão da inter-relação entre
alfabetização e letramento.
https://www.youtube.com/watch?v=-YP-7l6oAZM
Problematização
Agora que você conheceu melhor as características da leitura e da escrita,
vamos voltar ao problema inicial? Considere as alternativas a seguir e escolha
entre elas aquela que lhe parece a mais adequada:
a. Você chama todas as professoras e propõe que, antes de iniciar o
planejamento, façam um estudo e discussão sobre a concepção de
alfabetização/língua portuguesa explicitada no Projeto Político-
Pedagógico da escola. Aproveita a reunião para retomar e aprofundar o
assunto e traz sugestões de atividades para serem analisadas em
pequenos grupos, auxiliando os professores a relacionarem a
concepção teórico-metodológica explicitada e as escolhas feitas em
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relação aos materiais didáticos necessários ao processo de ensino-
aprendizagem.
b. Você orienta cada grupo de professores, por ano, sobre o planejamento
de ensino. No caso das professoras iniciantes, dedica uma atenção
especial, pois percebe que precisam de um estudo mais aprofundado
sobre o assunto, antes de iniciar o planejamento. Quanto às professoras
que fizeram algumas sugestões no início da reunião, marca outro
momento, durante a semana, para retomar as sugestões dadas, pois
avalia que também para elas há necessidade de aprofundar o estudo
sobre a concepção de alfabetização e os encaminhamentos sugeridos.
c. Você dá continuidade ao que está previsto para a reunião pedagógica,
pois considera que essa discussão deve ser feita em outro momento.
Sugere às professoras iniciantes que se inscrevam para participar de
curso específico sobre Alfabetização, o que com certeza irá ajudá-las no
encaminhamento do trabalho.
Para ver os feedbacks acesse o material on-line.
Síntese
O trabalho com a leitura e a escrita deve estar centrado no uso da
linguagem, considerando-se sua dimensão discursiva. Cabe ao professor atuar
como mediador desse processo, realizando as intervenções necessárias para o
desenvolvimento das capacidades e das habilidades de proficiência linguística
dos estudantes, planejadamente na direção da formação destes como leitores
e escritores cada vez mais competentes e autônomos (ZABOT, MIRA e
HAMANN, 2007, p. 7-8).
Para ver a síntese do que discutimos neste tema, assista ao vídeo a no
material on-line e acompanhe nossa reflexão.
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Referências
CURTO, L. M.; MORILLO, M. M.; TEIXIDÓ, M. M. Escrever e Ler. Como as crianças aprendem e como o professor pode ensiná-las a escrever e a ler. Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 63-67. LERNER, Délia. Ler e Escrever na Escola: o real, o possível e o necessário. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002. MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: UNESP, 2004. SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. 5ª. ed. São Paulo: Contexto, 2007. ZABOT, G. M. L.; MIRA, M. M.; HAMANN, E. K. R. Seguindo em Frente: alfabetização de jovens e adultos. Curitiba: Base didáticos, 2007. (Manual do alfabetizador)
Atividades
Considerando a relação entre a alfabetização e a cidadania, assinale a 1.
alternativa incorreta:
a. Para Magda Soares, a alfabetização, entendida como o acesso à
leitura e à escrita, não é considerada condição imprescindível nem
para o exercício da cidadania, nem para a conquista desta.
b. A alfabetização e a cidadania não podem ser compreendidas em
uma relação de causa e consequência. Nesse sentido, a cidadania
não pode ser considerada como consequência do acesso à
alfabetização.
c. O indivíduo analfabeto tem as mesmas condições que o indivíduo
alfabetizado para exercer sua cidadania nas sociedades letradas.
d. Nas sociedades grafocêntricas, o domínio da língua escrita amplia
as possibilidades de participação econômica, política, cultural e
social. Dessa forma, cidadãos alfabetizados ampliam as
possibilidades de conquista e exercício de sua cidadania.
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Considerando os conceitos de alfabetização e letramento e sua relação 2.
como o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, assinale a
alternativa correta:
a. Alfabetização e letramento são conceitos distintos, sendo que a
alfabetização é anterior ao letramento.
b. Podemos considerar alfabetização e letramento como sinônimos;
desse modo, as práticas de leitura e escrita que realizamos
socialmente devem ser transpostas para o processo de ensino-
aprendizagem.
c. A aquisição da leitura e da escrita, entendida como alfabetização,
propicia automaticamente a ampliação dos níveis de letramento dos
estudantes.
d. A disponibilização de materiais escritos diversos no interior da sala
de aula pelo professor é condição necessária, mas não é suficiente
para o processo de letramento.
A apropriação da leitura e da escrita, parte do direito à educação, é 3.
fundamental para o processo de emancipação humana. Isso se deve ao fato
de que a linguagem, atividade humana por excelência, possibilita a
ampliação dos modos de agir e interagir na sociedade. Considerando a
importância da aquisição da linguagem, assinale a alternativa incorreta.
a. A apropriação e a utilização da leitura e da escrita é condição necessária
para a mudança, do ponto de vista tanto do indivíduo quanto do grupo
social, de seu estado ou condição nos aspectos cultural, social, político,
linguístico e psíquico.
b. A escola tem conseguido que os estudantes dominem a técnica da
leitura e da escrita; nesse sentido, cumpre sua função no processo de
emancipação humana.
c. A apropriação da linguagem escrita opera transformações linguísticas,
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psicológicas, culturais e políticas no ser humano, dando uma nova
dimensão a sua consciência.
d. Por meio da linguagem os sujeitos adquirem um conjunto de riquezas
produzidas pela humanidade. Dentre estas, destaca-se o
desenvolvimento da consciência humana, que pode se dar de forma
alienada ou como um poderoso instrumento para a leitura do mundo e
para o exercício da cidadania.
Quanto à escolha dos textos e demais materiais para o processo de 4.
alfabetização, é correto afirmar:
a. Devem ter a linguagem acessível, permitindo explorar uma determinada
letra ou sílaba a cada vez, garantindo-se a gradativa apropriação do
código escrito.
b. O livro didático é um dos principais materiais para o processo de
alfabetização, pois contém todos os textos e atividades necessárias para
o trabalho durante o ano.
c. Pode-se trabalhar com qualquer tipo de texto ou outros materiais
durante o processo de alfabetização, pois isso vai possibilitar o
letramento do estudante.
d. A escolha dos textos e demais materiais é importante e deve ser feita
considerando-se as funções sociais da leitura e da escrita, permitindo o
desenvolvimento, na escola, de atividades voltadas ao processo de
alfabetização, na perspectiva do letramento.
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Sobre o papel da escola em relação ao processo de aprendizagem da leitura 5.
e da escrita, assinale a alternativa incorreta:
a. À escola cabe desenvolver práticas de leitura e de escrita que propiciem
a alfabetização estrita; o letramento é um processo complexo que deve
ser desenvolvido posteriormente ao processo de alfabetização.
b. A escola é uma das instituições privilegiadas – embora não seja a única
– para o processo de aquisição da leitura e da escrita e para propiciar a
ampliação dos níveis de letramento dos seus estudantes.
c. Cabe à escola desenvolver o processo de alfabetização dos estudantes,
considerando que a aquisição da leitura e da escrita permite o acesso a
outros conhecimentos e informações, constituindo-se como bens
culturais.
d. O processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita deve ser
desenvolvido na perspectiva do letramento, propiciando a formação de
estudantes que saibam ler e escrever textos com proficiência, de forma
autônoma e competente.