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111 L M Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 5 N.10, VERÃO 2008 * Professor de Ética e líder do grupo de pesquisa em Ciências da Religião na UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE. Mestre e doutor pela UNICAMP (2002 e 2005, respectivamente). Sua área de pesquisa concentra-se em ÉTICA e em FILOSOFIA DA RELIGIÃO. Seu mestrado e doutorado tiveram como objeto a obra e a filosofia de Kierkegaard. Publicou Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura (Annablume – FAPESP, 2001). É PRECISO DUVIDAR DE TUDO: KIERKEGAARD E A DÚVIDA METÓDICA Recebido em jul. 2008 Aprovado em dez. 2008 MARCIO GIMENES DE PAULA * RESUMO O objetivo deste artigo é analisar a crítica de Kierkegaard à dúvida enquanto princípio da filosofia moderna. No seu entender, a dúvida da filosofia moderna é abstrata e não parte da consciência do indivíduo, tal como deveria ocorrer. Esta pesquisa é feita especialmente a partir da análise da obra Johannes Climacus ou é preciso duvidar de tudo. PALAVRAS-CHAVE Filosofia moderna. Ética. Filosofia antiga. Filosofia da religião. Cristianismo. Ceticismo. ABSTRACT The purpose of this article is to analyses the Kierkegaard´s criticism about the doubt like principle of modern philosophy. Second the philosopher, this kind of doubt is abstract and it´s not from to the individual conscience like should be happen. This research analyses specially the Kierkegaard´s work Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est. KEYWORDS Modern Philosophy. Ethics. Old Philosophy. Philosophy of Religion. Christianity. Scepticism.

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* Professor de Ética e líder do grupo de pesquisa em Ciências daReligião na UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE. Mestre e doutor pelaUNICAMP (2002 e 2005, respectivamente). Sua área de pesquisaconcentra-se em ÉTICA e em FILOSOFIA DA RELIGIÃO. Seu mestrado edoutorado tiveram como objeto a obra e a filosofia de Kierkegaard.Publicou Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo ea loucura (Annablume – FAPESP, 2001).

É PRECISO DUVIDAR DE TUDO:KIERKEGAARD E A DÚVIDA METÓDICA

Recebido em jul. 2008Aprovado em dez. 2008

MARCIO GIMENES DE PAULA *

RESUMOO objetivo deste artigo é analisar a crítica de Kierkegaard àdúvida enquanto princípio da filosofia moderna. No seuentender, a dúvida da filosofia moderna é abstrata e não parteda consciência do indivíduo, tal como deveria ocorrer. Estapesquisa é feita especialmente a partir da análise da obraJohannes Climacus ou é preciso duvidar de tudo.

PALAVRAS-CHAVEFilosofia moderna. Ética. Filosofia antiga. Filosofia da religião.Cristianismo. Ceticismo.

ABSTRACTThe purpose of this article is to analyses the Kierkegaard´scriticism about the doubt like principle of modern philosophy.Second the philosopher, this kind of doubt is abstract andit´s not from to the individual conscience like should behappen. This research analyses specially the Kierkegaard´swork Johannes Climacus ou De Omnibus Dubitandum Est.

KEYWORDSModern Philosophy. Ethics. Old Philosophy. Philosophy ofReligion. Christianity. Scepticism.

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08Um fato que parece não deixar dúvidas é o quanto

Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) foi um autorprodutivo. Afinal, em pouco mais de 42 anos de idade, ofilósofo nos deixou um legado de aproximadamente 14volumes de textos e mais de 20 volumes de Diários(também denominados Papirer), além de 01 volume decartas. Dentre tantas dessas obras, e no meio de tantosrecursos literários utilizados pelo seu autor, tal como apseudonímia, uma delas nos chama especialmenteatenção quando desejamos abordar a temática da dúvidametódica na obra do autor dinamarquês. Trata-se daobra Johannes Climacus ou é preciso duvidar de tudo, textoinacabado e publicado postumamente.

Tal obra não é, a rigor, uma obra filosófica, pois éuma espécie de romance autobiográfico. Kierkegaardescreve tal trabalho utilizando-se da pena de um talJohannes Climacus, um autor pseudonímico, que assinaainda duas outras obras do corpus kierkegaardiano:Migalhas Filosóficas (1844) e Post-Scriptum às MigalhasFilosóficas (1846). Além disso, tal pseudônimo polemizacom outro pseudônimo da estratégia kierkegaardiana:Anti-Climacus, o autor pseudonímico da Doença mortal(1849) e Escola do cristianismo (1850).

O nome próprio escolhido para a obra é atransliteração latina do nome de um monge grego queviveu aproximadamente no ano 600 da Era Cristã, nummosteiro do Sinai. Tal eremita foi autor de um textointitulado A escada do paraíso, que era uma espécie detratado de ascese. É bem provável que Kierkegaard otenha conhecido apenas através das citações feitas pelosteólogos de sua época, por volta de 1839.

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A sua primeira edição se deu em 1872, atravésdo esforço de Hans Peter Barford, secretário particulardo bispo Peter Christian Kierkegaard, irmão de Søren.Em 1912, tal texto acabou sendo fixado no corpo dosDiários. Sua datação é igualmente problemática. Algunsespecialistas apontam entre 1841 e 1843, mas há quemjulgue que a obra poderia ter sido escrita em 1830,antecedendo toda a produção do autor. Contudo, tal tesenão parece ser muito sustentável, uma vez queKierkegaard parece ter conhecido o nome do eremitaapós 1839.

O pseudonímico autor Johannes Climacus não éum autor cristão, mas um autor cético e profundamentedesiludido tanto com a produção de sistemas filosóficoscomo com a cristandade dinamarquesa. Nas Migalhas eno Post-Scriptum às Migalhas Filosóficas, seu intuito éanalisar a possibilidade de comprovar o cristianismoatravés das categorias gregas. Com a impossibilidadeconcretizada, seu objetivo passa a ser outro: tentar aconstrução de um projeto denominado de ficção poética,isto é, algo que lembra profundamente os ideais docristianismo, mas que não o representa de forma clara eaberta. Já na obra Johannes Climacus ou é preciso duvidarde tudo prevalece o tom autobiográfico, ou seja, opseudônimo narra como começou a filosofar e como sedesencantou de tal processo. Com efeito, é uma obraconstruída através de múltiplas camadas: Kierkegaardconstrói um pseudônimo e o pseudônimo fala de simesmo. Há um curioso trecho nos Diários de Kierkegaardonde o pensador denomina-se, ele próprio, como alguémque estaria entre Johannes Climacus e Anti-Climacus,

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08ou seja, entre o ceticismo desiludido e a religiosidade no

seu mais alto grau:

Johannes Climacus e Anti-Climacus têm várias coisasem comum; mas a diferença é que enquantoJohannes Climacus se coloca tão baixo que chega adizer que não é cristão, podemos detectar em Anti-Climacus que ele considera a si mesmo como umcristão num grau extraordinariamente alto... eumesmo me colocaria acima de Johannes Climacus,abaixo de Anti-Climacus (KIERKEGAARD, 1967-1978, vol VI, p. 6433).

A segunda parte do título (deve-se duvidar de tudo)possui clara ligação com os preceitos cartesianos, queafirmam exatamente isso. Descartes e sua teoria dadúvida são convencionalmente tomados como pilares dachamada filosofia moderna. No entender de Hegel, já noséculo XIX, este período podia ser denominado como anova idade da filosofia. É extremamente instigante notaraqui a presença de Descartes na obra kierkegaardiana.O pensador de Copenhague, apesar de algumas críticas,tinha um profundo apreço por ele, julgando que algunsdos que posteriormente advogaram suas teses não ocompreenderam plenamente:

Kierkegaard fala com respeito de René Descartes(1596-1650) e estuda, de forma especial, seu Discursodo método (Pap. IV C 14). Ele escolhe, como título doseu estudo sobre a dúvida, a tese cartesiana de que épreciso duvidar de tudo (Johnannes Climacus ou épreciso duvidar de tudo) e tenta mostrar que seuscontemporâneos não são capazes de compreender talcoisa. A despeito de todas as suas dúvidas, Descartes

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julgava que era necessário crer numa revelaçãodivina (Pap. IV C 14). Contudo, Kierkegaard o criticaem outro lugar por ter transformado o absoluto empensamento e não em liberdade (Pap. IV C 11). ParaKierkegaard, a liberdade e o ser deveriam dominar opensamento (MALANTSCHUK, 1986, p.25).

Na obra Temor e tremor (1843), o autorpseudonímico da obra, um tal Johannes de Silentio, fazmenção a Descartes e sua teoria da dúvida. Segundo ele,os filósofos modernos, por duvidarem de tudo, desejamir sempre além. Acham, inclusive, que não necessitamexplicar a dúvida. Segundo Silentio, nem Descartes agiudessa maneira. Para ele, o pensador francês fez muitobem a distinção entre o que a razão pode alcançar e oque lhe é inatingível. Afinal, segundo o pensamentocartesiano, existem coisas que não estão na esfera darazão tal como a conhecemos. A dúvida não pode sertomada dogmaticamente: “Não impôs a todos aobrigação de duvidar, nem proclamou a sua filosofia comveemência porque era um pensador tranqüilo e solitárioe não um guarda noturno encarregado de dar alarme”(Kierkegaard, 1979, p. 109).

A obra Johannes Climacus ou é preciso duvidar detudo começa com uma instigante parte denominadanarrativa. Nela, não há nenhum texto de Climacus, masduas sentenças: a primeira extraída da Ética de Espinosa,filósofo também moderno, enfatizando que a dúvidaverdadeira deve residir sempre no espírito, já a segundareferência é um versículo bíblico que pede que ninguémdespreze a sua juventude (I Timóteo 4,12). São duasreferências significantes, a primeira coloca em xeque

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08qualquer dúvida que não proceda do espírito e da

interioridade do homem, a segunda alerta para queninguém despreze a sua juventude, tal como muito jovenspodem fazer iludindo-se com filosofias e sistemas.Pensemos, por exemplo, na conclusão a que chega opróprio Climacus, num apêndice retirado da primeiraversão do texto, ainda nos Diários, sobre o efeito nocivode alguns filósofos na vida de alguns jovens:

Assim, pois, os filósofos são piores que os fariseus,sobre os quais lemos que impõem pesados fardos,sem eles mesmos erguerem um dedo para levantá-los.Pois isto é o mesmo, pouco importa que não oslevantem, desde que possam ser levantados. Mas osfilósofos exigem o impossível. E quando que há umjovem que acredita que filosofar não é conversar ouescrever, mas realizar sinceramente e com exatidãoo que os filósofos dizem que se deve realizar, estes ofazem desperdiçar vários anos de sua vida, e então semostra que aquilo era impossível, e então ele se deixouagarrar tão profundamente que talvez sua salvaçãoseja impossível (KIERKEGAARD, 2003, p. 124).

O texto continua com uma parte intituladaatenção, por favor. Nela, o autor justifica a suapreferência pela narrativa ou invés de optar por umescrito mais acadêmico. Aqui vai uma afirmação nasentrelinhas. No entender de Climacus, a filosofia podeser uma narrativa, tal como se observa em boa parte dafilosofia antiga e, notadamente, nos diálogos de Platão.Seu intuito é claramente contrapor o modo de pensar dafilosofia moderna com a filosofia antiga. Os modernos

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tentam superá-la quando sequer a conseguiramcompreender na sua totalidade. Desse modo, a pergunta queaqui é colocada claramente é se a filosofia moderna chegou,então, ao seu ápice ou se seria, ela mesma, o próprio apogeu:

Àquele que acha que a filosofia nunca esteve tão pertocomo agora de cumprir sua tarefa, isto é, resolvertodos os enigmas, pode talvez parecer estranho,pretensioso e escandaloso, que eu escolha a formade uma narrativa em lugar de trazer, conforme asmodestas possibilidades, pedras mais elevadas paracoroar o sistema (KIERKEGAARD, 2003, p. 03).

Na parte introdutória da narrativa, nosso autorrepresenta um típico jovem nascido na cidade de H que,provavelmente refere-se ao substantivo dinamarquêsHavn, que significa porto, nome pelo qual a maioria dosdinamarqueses designam a cidade de Copenhague. Estejovem, nascido na capital do seu país, caracteriza-se porum comportamento tímido e melancólico. Ao contráriodo que talvez se possa supor, sua timidez e melancolianão estão relacionadas com nenhum tipo de desilusãoamorosa ou de falta de amor. O objeto de sua paixão é opensamento, aquilo que motiva a sua ascese:

Seu prazer consistia em começar por umpensamento particular, a partir dele seguir o caminhoda conseqüência, escalando degrau por degrau até umpensamento mais alto; pois a conseqüência era umascala paridisi [escala do paraíso], e sua beatitude lheparecia maior até que a dos anjos (KIERKEGAARD,2003, p. 07).

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08Ainda na sua infância, seu pai o proibira de

mínimos contatos com o real. Foram inúmeros ospasseios imaginários que os dois realizaram na sala decasa, imaginando-se ora andando de carruagem, ora emlugares aprazíveis os mais diversos. Tais passeiosimaginários eram sempre uma forma de compensaçãopor não deixá-lo manter contato com o real:

Quando Johannes, às vezes, pedia-lhe permissão parasair, recebia freqüentemente uma recusa. Mas, àsvezes, para compensar, o pai, com a mão, convidava-oa ir e vir pelo assoalho. À primeira vista, era umacompensação pequena; contudo, assim como o casacogrosseiro, também escondia outra coisa bem diferente.A proposta era aceita e Johannes ficava inteiramentelivre para escolher o lugar do destino. Então, eles saiampelo portão da cidade e iam a um palácio dos arredoresou à praia; ou passeavam pelas ruas, como Johannesquisesse, pois seu pai tinha um poder absoluto.Durante estas idas e vindas pelo assoalho, o paidescrevia tudo o que viam, cumprimentava ospassantes, e as carruagens cruzavam por eles comestrépito encobrindo sua voz; os frutos dasquitandeiras eram mais apetitosos que nunca. Elerelatava de maneira tão exata, tão viva, tão real até omínimo detalhe tudo o que Johannes conhecia, demaneira tão minuciosa e evocativa o que desconheciaque ele, depois de meia hora passeando com o pai,estava moído de cansaço, como se estivesse estado odia inteiro fora (KIERKEGAARD, 2003, p. 10-11).

Já um pouco mais crescido, Climacus, a despeitode sua inicial hesitação, encanta-se com o aprendizado

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do grego e do latim, pois descobre neles uma verdadeiragramática filosófica. A partir daí, a dialética o enfeitiça eseu pensamento é totalmente tomado por ela:

O que habitualmente os encantamentos da poesia eas surpresas dos contos de fadas trazem às criançasJohannes encontrava no repouso da instituição e nasreviravoltas da dialética. Estes foram seusdivertimentos de infância, seus brinquedos de rapaz,seu prazer da mocidade. Assim, sua vida teve umarara continuidade, que ignorou as passagens críticasque geralmente caracterizam os cuidados e odesenrolar de cada período. Johannes envelhecia semdeixar os brinquedos de lado; estes brinquedos comque aprendera a brincar e que viriam a ser a ocupaçãoséria de sua vida adulta sem perder nenhum de seusatrativos. Uma menina brinca com um boneco, atéeste se transformar no amado, pois a vida toda de umamulher é amor. A vida de Johannes apresentava umacontinuidade análoga, pois sua vida toda era pensar(KIERKEGAARD, 2003, p. 17).

A obra Johannes Climacus ou é preciso duvidar detudo divide-se em duas grandes partes intituladas Parsprima e Pars secunda. O intuito da primeira parte émostrar como Johannes começa a filosofar com a ajudade concepções tradicionais. Já o intuito da segunda parteé mostrar o que ocorre quando ele começa a filosofarpor conta própria.

Logo na primeira parte, há um claro ponto a sernotado: sua falta de interesse pela história. Qualquerquestão de caráter mais empírico o desinteressavacompletamente. Os feitos e fatos realizados por outros

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08em tempos passados e aquilo que se convencionava

denominar como realidade não tinham no seu ser amenor repercussão, uma vez que seu principal interessevoltava-se para o seu próprio espírito. Já com a leiturados filósofos, seu interesse era diferente. A princípio, eleficava vivamente interessado nas suas reflexões. Contudo,após a leitura dos seus textos, ficava, em geral, triste eabatido. Os títulos e temas dos filósofos pareciam sempreenganá-lo, prometendo a ele algo que nunca cumpririam.Desde então, ele estabelecera uma curiosa relação com afilosofia moderna: ele não a culpava pelos seus escritosincompreensíveis e não arriscava ler as suas principaisobras. Havia nele, um misto de culpa por não entenderas obras menores e uma espécie de humildade que temeser achincalhada pelos doutos conhecedores da filosofia:

No tocante à leitura, Johannes chegou então a umacontradição estranha. Os escritos que conhecia nãopodiam satisfazê-lo, mas ele não ousava atribuir-lhesa culpa. Quanto às obras eminentes, não se arriscavaa lê-las. Assim, lia cada vez menos e seguia suatendência de ocupar-se silenciosamente com opensamento, e tornava-se cada vez mais tímido, commedo que os nobres pensadores rissem dele sesoubessem que também queria pensar, assim comoas damas de alta classe haveriam de sorrir de umajovem pobre, que ousasse também querer conheceras felicidades do amor. Ele se calava, mas escutava comtanto mais atenção (KIERKEGAARD, 2003, p. 31).

Nesse doloroso percurso, e com o significativoaumento da sua audição, nosso autor consegue captaruma frase sempre dita e repetida pelos doutos

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conhecedores da filosofia: “deve-se duvidar de tudo”. Elejulga que esta deve ser a chave para que os homenspossam se tornar efetivamente filósofos. Com efeito, suavisão acerca da filosofia principia por uma dada análisede Descartes:

O vínculo que geralmente se estabelecia entre estaproposição e o acesso ao título de filósofo oentusiasmava muito mais ainda. Não sabia seconseguiria, mas faria tudo para conseguir. Emsilêncio solene, decidiu que devia começar(KIERKEGAARD, 2003, p. 33).

Climacus é confrontado com três proposições dafilosofia moderna absolutamente indispensáveis paraquem deseja se tornar filósofo: a primeira afirma que afilosofia começa com a dúvida, a segunda afirma que épreciso ter duvidado para poder começar a filosofar e aterceira afirma que a filosofia moderna começa peladúvida. As duas primeiras proposições parecem seruniversais, ao passo que a terceira parece ser umainformação histórica. Com efeito, se a terceiraproposição afirma que a filosofia moderna começa coma dúvida, é lícito supor que existiu uma filosofia que nãopartia desse mesmo ponto. Nesse sentido, poderia sechamar a filosofia antiga de filosofia? A filosofia moderna,como continuidade da filosofia antiga, poderia partir dadúvida se a filosofia antiga assim não procedesse? Qualseria, de forma efetiva, a relação de subordinação?

A proposta de Johannes é partir da primeiraproposição, isto é, a filosofia começa com a dúvida. Apartir disso, pode-se eliminar qualquer outra coisa que

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08não seja filosofia: “Por que não se limitam à primeira

proposição, de que a filosofia começa pela dúvida? Poisaí nada é duvidoso, dado que tudo que não começa peladúvida, seja lá o que for, não é filosofia” (KIERKEGAARD,2003, p. 40-41).

Climacus começa a desconfiar de uma filosofiaque, a despeito de afirmar a dúvida como pressuposto,está tão próxima das verdades mais dogmáticas docristianismo, isto é, tal filosofia deseja afirmar as mesmascoisas que a fé cristã, mas o faz através de raciocínioslógicos e especulativos. Suas supostas afirmaçõesdissertam mais sobre a história do que sobre indivíduosisolados. Seu desejo é o acabamento, o eterno. Com efeito,a filosofia moderna, além de não superar a filosofia antiga,parece querer suplantar o cristianismo:

Na medida em que o compreendera corretamente,teria causado grandes dificuldades para a filosofia ofato de o cristianismo enunciar sobre si que viera aomundo com um começo que era, ao mesmo tempo,histórico e eterno; tinha de parecer sempre suspeitoa filosofia querer enunciar a mesma coisa sobre siprópria (KIERKEGAARD, 2003, p. 41).

Nosso autor lança duas hipóteses paracompreender como a filosofia moderna começa peladúvida: a primeira hipótese é que isso ocorreu poracaso, a segunda é que isso teria sido uma necessidade.Se fosse por acaso, qualquer relação entre anterior,posterior e, portanto, com algo histórico, estariacortada, uma vez que o acaso não possui tal tipo derelação. Se fosse por necessidade, tal coisa implicaria

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numa continuidade com o seu antecedente, ou seja, afilosofia moderna seria apenas uma conseqüência dafilosofia que a precedeu. No seu entender, ao ocorreruma equivalência da primeira proposição (toda filosofiacomeça com a dúvida) com a terceira (a filosofiamoderna começa com a dúvida) aparece uma claratautologia, pois as mesmas coisas são aqui repetidas.Desse modo, a única conclusão a que se pode chegar éque a filosofia moderna possui as mesmas pretensõesdo cristianismo:

Sem dúvida, o segredo, pensava, é que a filosofiamoderna era ao mesmo tempo histórica e eterna, ealém do mais, ela tem consciência disso. Trata-se deuma união semelhante a união das duas naturezasem Cristo. A filosofia moderna, a cada novo passo quecompleta, toma consciência desse significado eterno,ou antes, toma consciência dele antes mesmo de terdado o passo; pois, do contrário, poderia imaginar queo próprio passo era tal, que nunca teria significadoeterno, a menos que a progressão histórica dafilosofia fosse absolutamente idêntica ao própriomovimento da idéia (KIERKEGAARD, 2003, p. 52).

Ainda que Climacus tivesse restrições ao debateem torno da história, ele compreendia a importância quea filosofia moderna conferia a essa disciplina. Todavia,essa mesma filosofia, que tantas restrições fizera aoindivíduo, tentava agora relacioná-lo com a consciênciaeterna. No seu entender, uma filosofia anterior, isto é, ocristianismo, já tentara realizar tal coisa. Contudo, nuncadentro do contexto da concretude histórica:

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08Que o indivíduo pudesse tomar consciência do eterno,

isso decerto ele conseguia entender, e esta tinha sido aintenção de uma filosofia anterior, se é que tal existira,mas tornar-se consciente do eterno em toda concreçãohistórica, mesmo por esse padrão, e não apenas no quese refere ao que passou, isso, para ele, estava reservadoà divindade (KIERKEGAARD, 2003, p. 56).

Além dos problemas com a primeira proposição,surge aqui um conflito com a segunda proposição (épreciso ter dúvida para filosofar). Segundo talperspectiva, a dúvida antecederia qualquer filosofia.Desse modo, aos olhos de Climacus, a primeiraproposição (que toda filosofia começa pela dúvida)parecia mais atraente do que a segunda proposição, umavez que essa não lançava nenhum desafio individual. Seráque a filosofia moderna estaria disposta a tal desafio?Será que a filosofia moderna estaria disposta a igualar asegunda proposição com a terceira (que toda filosofiamoderna começa pela dúvida)? Afinal, tal como lembraráo próprio Climacus, citando Espinosa, um filósofomoderno, no início de sua obra, seu intuito é abordar adúvida verdadeira que existe no espírito e não a falsadúvida, que pode apenas ser um disfarce para evitar adúvida real. Ao partir da dúvida, a filosofia parece partirdo negativo. Todavia, isso, segundo ele, não é totalmenteverdadeiro:

[...] a filosofia começa por um princípio negativo,embora isso compreenda uma polêmica dirigida nãoapenas contra um ou outro elemento alheio à filosofia,mas contra um princípio na filosofia. Já que, com

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efeito, seria sem sentido polemizar contra nada,pressupõe-se um precedente. Se este precedente nãofor um princípio, então a polêmica da filosofia éindigna; neste caso, a proposição não será negativamas positiva; pois se eu, por minha polêmica,simplesmente excluo o heterogêneo, então minhaproposição não é propriamente uma polêmica, masuma declaração sobre um dado mais elevado quepossuo. A proposição não poderia ignorar essapolêmica contra um dado homogêneo a ela; pois,enquanto um princípio positivo, considerado comoimediato, pode ignorar o que exclui, um princípionegativo jamais pode ignorá-lo. A própria proposiçãoreconhece, portanto, um princípio filosóficoprecedente (KIERKEGAARD, 2003, p. 62-63).

Para Climacus, o que coloca a filosofia antiga e afilosofia moderna em antagonismo é que a primeira partedo espanto para o filosofar, enquanto a segunda parteda dúvida. O espanto é uma determinação imediata, já adúvida é uma determinação de reflexão. Sempre que umfilósofo diz duvidar é como se ele rompesse com todauma tradição que o antecede. Todavia, para que ele possaduvidar é necessário que tal tradição exista, casocontrário a polêmica é destituída de sentido. Por isso, nãopode haver superação de uma filosofia pela outra, mascontinuidade e reinterpretação.

Ao arriscar-se num caminho individual para afilosofia, Johannes observa que a filosofia é compostapela dúvida (parte supostamente negativa) e pela certeza(parte supostamente positiva). No entender dos filósofosmodernos, a dúvida seria algo que se relaciona com aquilo

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08que se convencionou denominar como filosofia eterna.

Todavia, tal nomenclatura é bastante contraditória, poisnão se poderia falar num começo para uma dada filosofiase a mesma fosse eterna, uma vez que o eterno éexatamente aquilo que suprime qualquer temporalidade.Surgem aqui expressões tais como começo absoluto,sistema e espírito absoluto. A relação entre subjetivo eobjetivo e o caminho para tornar-se filósofo também sãoestabelecidos aqui. Tais conceitos parecem maisconfundir do que explicar qualquer coisa. Por isso, aocontrário de uma dada filosofia, que parece partir depressuposições que nunca se auto-examinam, é semprepreferível começar tal como sua alma sugere ouconsultando sua própria consciência: “Então, decidiu-sepor começar onde antes se propusera começar, a seguiras exigências da questão como em sua alma o propunha”(KIERKEGAARD, 2003, p. 76).

No entender de Climacus, a proposição e seuproponente são centrais para a temática da filosofiana ética, por exemplo. Figuras como Cristo e Sócratesnão podem ter sua mensagem e seus pensamentosdissociados das suas personalidades individuais.Somente uma proposição matemática é indiferenteao seu proponente. Nesse sentido, não existemdúvidas objetivas quando se trata de um indivíduo quepensa:

A proposição seria a mesma, e contudo se tornariauma outra, ou seja, num caso ela seria umaproposição, e no outro bobagem, enquanto, pelocontrário, é completamente indiferente que umaproposição matemática seja exposta por Arquimedes

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ou por Arv, contanto que esteja correta. Apersonalidade, neste caso, não significa nada, nooutro, tudo, assim como, na vida civil, formalmentefalando, qualquer cidadão poderia ser fiador, e contudofez toda a diferença quem foi o fiador(KIERKEGAARD, 2003, p. 78-79).

O indivíduo não deve construir explicaçõesmatemáticas para a dúvida, abstraindo-se dela, mas devevivenciá-la. Entretanto, Climacus percebe que asproposições da filosofia moderna são construídas deforma religiosa, sempre remontando a uma idéia deautoridade:

Será que ela se deixaria receber, um indivíduo poderiarecebê-la de um outro, será que precisaria crer nela?Com efeito, se acolho uma proposição como umcrente, não estou imediatamente em condições decompreendê-la ou de realizá-la, mas somente arecebo, porque acredito naquele que a formula. Estaproposição teria, talvez, por natureza, de exigir,daquele que a formula, autoridade e, daquele que arecebe, confiança e dedicação? Seria preciso acreditarna proposição de tal modo, que o indivíduo nãorealizasse o que dissesse, acreditando que outro ofizera? Seria possível, talvez, que um único filósofotivesse duvidado por todos, assim como Cristo sofreupor todos, e agora só fosse necessário crer nisso semter de duvidar? Neste caso, a proposição não estavatotalmente correta; pois então, para o indivíduo, afilosofia não começaria com a dúvida, mas com a féde que o filósofo X duvidara por ele (KIERKEGAARD,2003, p. 83-84).

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08Ao se aperceber de tais coisas, Johannes sente-se

culpado por haver derrubado muitos dos seus antigosmestres e filósofos. Afinal, se não basta apenas seguir o queeles dizem, os mesmos perdem o seu caráter mitológico eencantado. Agora a primeira proposição (a filosofia começapela dúvida) e a segunda proposição (é preciso ter dúvidapara filosofar) tornam-se equivalentes, fato nuncacompreendido pelos intérpretes da filosofia moderna do seutempo. Se a ênfase recai agora sobre a segunda proposição,o cerne passa a ser o indivíduo. Climacus entra em crise aoperceber que a antiga filosofia e suas mais diversas escolassempre exigiram coisas mais simples e humildes do que adúvida. Desse modo, seria correto ou não duvidar? Suainquietação residia em notar que um dado tipo de dúvidapode ser apenas uma arrogância:

Aquele que duvida eleva-se acima daquele de quemaprende; e é por isso que não há nenhum sentimentoque um professor deva reprovar mais num discípulodo que o da dúvida. E, contudo, era a dúvida o que sedesejava dele, era duvidando que deveria se prepararpara ser filósofo. Ei-lo de novo embaraçado(KIERKEGAARD, 2003, p. 92).

Contudo, a proposição é preciso duvidar de tudojá entrou na sua consciência, e ainda que ele não saibamuito bem por quais motivos, não a consegueabandonar, deve agora levá-la adiante: “apenas sigo seucaminho; ‘como aquele que rema num barco, avanço decostas para a meta’ “ (KIERKEGAARD, 2003, p. 94).

Na Pars secunda da obra, nosso autor tentarealizar um empreendimento: pensar por sua conta

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própria. A metáfora aqui utilizada será a do navegador.Para Climacus, parece bastante claro que ele nãoencontrará com os filósofos o mesmo grau deesclarecimento que um marinheiro seria capaz de lhefornecer ao observar um dado mapa. Aliás, os filósofosparecem não apreciar as viagens ou, ao menos, nãoapreciam falar sobre elas. O tom deve ser sempreimpessoal e, ao narrar suas próprias viagens, não se podeagir de tal modo. Tal analogia é tanto mais significativase pensarmos o quanto as navegações possuemafinidade com a filosofia desde as suas origens na antigaGrécia. Assim sendo, Johannes se desencanta dos filósofose prefere, ele próprio, fazer a sua navegação:

Johannes despediu-se de uma vez por todas dessesfilósofos. Mesmo que, aqui ou ali, ouvisse algumaobservação solta, resolveu não mais atentar a elas,dadas tantas experiências entristecedoras que tivera,de como eram enganadoras estas palavras. Seguiu,então, o método que fora habituado a seguir, o detornar tudo tão simples quanto possível(KIERKEGAARD, 2003, p. 102).

Johannes entra, então, num processo denominadodialética da dúvida. Nela, ocorre uma estranha relação:quando alguém duvida, pode alcançar a fé e quandoalguém tem fé, pode chegar até a dúvida. Trata-se de umadialética paradoxal:

Aquilo que provocava a dúvida no indivíduo poderianão só ser muito diferente, mas bem poderia ser ooposto; pois alguém, que, para despertar a dúvida

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08num outro, discorresse sobre a dúvida, juntamente

com ela, poderia despertar a fé, assim como,inversamente, a fé poderia suscitar a dúvida(KIERKEGAARD, p. 103).

Deve-se buscar a possibilidade ideal da dúvidana consciência, nesse sentido, ela deve partir doindivíduo. Não se trata, portanto, de algo empírico: “Apossibilidade da dúvida situa-se na consciência, cujanatureza é uma contradição, que é produzida por umaduplicidade e, ela mesma, produz uma duplicidade”(KIERKEGAARD, 2003, p. 108).

Propositadamente aparecem aqui, termosclaramente utilizados por Hegel como: imediatidade,mediatidade, consciência e real. Seu uso é feito aqui deforma confusa por deliberação do próprio autor, pois,no seu entender, era exatamente desse modo que ascoisas eram apresentadas pelo pensador de Berlim. Nalinguagem comum, a dúvida não envolve raciocínios tãocomplexos. Na maioria dos idiomas, é apenas umaescolha. A expressão dubitare ou duo evoca a escolhaque alguém deve fazer diante de duas opções.

Mesmo discordando de boa parte da análisehegeliana, Climacus acrescenta aqui, por influência dopensador alemão, um terceiro elemento na dúvida: oespírito. Hegel teria o mérito de ter introduzido de formaminuciosa a consciência no real, mas errou ao julgar quea filosofia moderna teria superado a dúvida:

Assim, enquanto alguém pretendesse vencer a dúvidapor um raciocínio, assim chamado objetivo, haveriaum mal-entendido; pois a dúvida é uma forma

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superior a todo raciocínio objetivo; pois esta opressupõe, mas tem um algo a mais, um terceiro, oqual é o interesse ou a consciência. Neste sentido, oprocedimento dos céticos gregos pareceu-lhe muitomais conseqüente que a moderna superação dadúvida (KIERKEGAARD, 2003, p. 114).

No seu entender, a grandiosidade dos céticosgregos foi compreender que falar de dúvida objetiva é,na verdade, um equívoco. Afinal, ainda que idealidade erealidade vivessem em constante combate, isso nadasignificaria se nenhuma consciência se interessasse portal conflito. Desse modo, a consciência está sempre nomeio do confronto e na possível busca da reconciliação.

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08REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CLIMACUS, J. 1982. The ladder of divine ascent. New York:Paulist Press.

KIERKEGAARD, S.A. 2003. É preciso duvidar de tudo. SãoPaulo: Martins Fontes.

______ . 1967-1978. Kierkegaard´s Journals and Papers –6 vol. Bloomington: Indiana University Press.

______ . Temor e Tremor (“Os Pensadores - vol. Kierkegaard).1979. São Paulo: Abril Cultural.

MAIA NETO, J. R. Dúvida antiga e dúvida moderna segundoKierkegaard. Revista Latinoamericana de Filosofia, BuenosAires, Volume XVII, Número 02, 243-257, 1991.

MALANTSCHUK, G. Oeuvres Completes de SørenKierkegaard- vol. 20- Index Terminologique. 1986. Paris:Éditions de L´Orante.

MARTENSEN, H.L. Between Hegel and Kierkegaard- HansL. Martensen Philosophy of Religion. 1997. Atlanta:Scholars Press.

THULSTRUP, Niels. Kierkegaard’s relation to Hegel. 1980.New Jersey: Princeton University Press.

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