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Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos das pinturas
indigenas Mebengokre no treinamento corporal de artistas do corpo no
grupo Ameríndios Mex
Rafael Cabral1
1. Introdução
Em meu percurso como artista, práticas corporais nunca deixaram de existir no
processo de ensino nas artes cênicas. Sorte do acaso ou obra do destino me fizeram estar na
maioria dos processos de criação de peças teatrais ou experimentos cênicos, imerso em algum
tipo de treinamento corporal sistematizado por algum pesquisador da área. Em alguns
processos criativos me dei conta da potência da criação de um treinamento que estivesse
ligado as minhas necessidades e limitações na atuação cênica.
Na graduação em teatro da Universidade Federal do Pará me confrontei com teóricos
que me deram possibilidade de argumentação e reflexão de quais caminhos poderia percorrer
no processo de uma proposta autoral do treinamento (BARBA, 1995,p11). Nesse confronto
de teorias deparei-me com o universo ameríndio do Xingu e com contribuições
epistemológicas da etnocenologia e antropologia estética. Neste sentido treinamento para
Eugenio Barba é:
“Tudo isso nos dá consideráveis informações sobre equilíbrio e a relação entre
processos mentais e tensões musculares, mas não nos diz nada de novo sobre o ator.
De fato, dizer que os atores estão acostumados a controlar sua própria presença e
traduzir suas imagens mentais em ações físicas e vocais simplesmente significa que
os atores são atores. Mas a serie de micromovimentos revelada nas experiências de
equilíbrio coloca-nos em outra pista. Esses micromovimentos são uma espécie de
núcleo que, escondidos nas profundezas das técnicas corporais cotidianas, podem ser
modelados e ampliados para aumentar a força da presença do ator ou bailarino,
tornando-se assim base das técnicas extracotidianas. (BARBA, 1995, p.11).
1 Professor, ator e fotógrafo, graduado em Teatro pela Universidade Federal do Pará. Especialista em filosofia da
educação pela UFPA. Mestrando no Programa de Pós Graduação em Artes - UFPA. Contatos
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No contato com aldeias da etnia mebengokre, desenlaço um nó histórico. Fato este que
ocasiona o esquecimento da identidade étnica do povo brasileiro. A perda da identidade
indígena de minha família foi silenciada pelo processo histórico de colonização e globalização
do Brasil. Indo atrás de vestígios históricos encontro parentes em aldeias mebengokre.
(CABRAL, 2013, p13).
O povo Kayapó, que também pode ser escrita para nós como Caiapó, desde o processo
de contato de antropólogos e pesquisadores com esses povos, a antropologia reconhece essa
etnia como Caiapó, nome de origem tupi, caia – macaco e po- semelhante. Porém a etnia se
autodenomina mebengokre, mebengo- rio e krê- buraco, “povo da nascente d‟agua” ou “povo
do buraco d‟agua”. (HAMÚ, 1992, p24).
Neste momento percebo o trajeto para reflexões e contribuições epistemológicas em
meu processo de investigação no campo da arte. Auxiliando a apropriação de conteúdos
reflexivos para favorecer a valorização e o fortalecimento da cultura indígena aliando a
necessidade artística no processo de construção de minha poética.
A Etnocenologia foi apresentado no Manifesto de criação do 'Centre International
d‟Ethnocénologie', em de 9 de fevereiro de 1995, como um "neologismo" que é um fenômeno
linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da
dimensão orgânica da atividade simbólica que não se reduz ao visual, referindo ao conjunto
das modalidades perceptivas humanas, coloca o aspecto global das manifestações expressivas
humanas desde as cognitivas às espirituais. (BIAO, 2007, p. 28).
No percurso da monografia senti a necessidade de criar um grupo para
experimentarmos técnicas, jogos, exercícios e praticas que eu identifiquei no contato desde
meu primeiro campo com a aldeia de Apexty2. O Grupo Ameríndios Mex (GAM) iniciou a
partir da necessidade de comunicação dos contextos simbólicos-artísticos que fortaleciam o
retorno à reflexão do território que estamos falando. Neste sentido percebendo diversos
trabalhos no campo da arte indigena, contribuindo para minhas reflexões sobre o conceito de
“arte” ocidental e “arte” indigena. Para Els Lagrol:
“Continua, portanto, relevante voltar nossa atenção para contextos nativos cuja
produção „artistica‟ não segue as mesmas leis que as do Ocidente, não entra na lógica
do mercado, e, às vezes, nem na da troca, e não funciona a partir da separação entre a
vida cotidiana e arte. Estudos sobre a relação entre a produção artística e o quadro
conceitual da sociedade ressaltam particularidades que constatam com os cânones
2 A aldeia de Apexty está localizada no município de São Felix do Xingu, nas margens do Rio Fresco.
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tradicionais da arte ocidental, exemplos, aliás, que são encontráveis também em
manifestações da arte conceitual, com obras feitas para não serem vistas ou ouvidas ou
ainda outras, produzidas para desaparecerem ao final do processo de sua fabricação ou
performance”. (LAGROL, 1963, p.80).
Na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará até a conclusão desde
trabalho ainda não havia tido uma investigação que colocasse em seu âmbito acadêmico
aspectos artísticos e modos de organização simbólica de povos ameríndios. Este incômodo foi
se estabelecendo a partir do percurso do curso de graduação em Teatro.
Neste percurso investigativo encontramos uma nova forma de organização simbólica
potente para a utilização de aspectos éticos e estéticos da cultura indígena mebengokre. Este
momento torna-se importante para aproximar espectadores à uma nova realizada até então
distante e silenciada na cidade de Belém.
Neste momento interessa perceber a pouca produção que relacione forma e conteúdo
às produções no campo da performance art (COHEN, 1998) no Estado do Pará, abrindo para
reflexões sobre o estranhamento que ocorre no campo das artes em produtos artísticos que a
priori não possuem em seu processo de criação em artes a dimensão ética e estética.
Ocorrendo na maioria das vezes a folclorização3 de aspectos da cultura indígena.
Este percurso em nenhum momento fortalece a ideia da diversidade de povos
indígenas que vivem no território do Estado do Pará. Onde é possível identificar diversos
grupos vivendo modos de organização simbólica peculiares a cada etnia. A folclorização da
cultura indígena acaba por colocar a questão indígena na Amazônia sendo singular e
homogênea diferente da realidade heterogênea e diversa da questão indígena no Estado do
Pará.
Com isso senti a necessidade no percorrer do processo de criação do treinamento
autoral para atores a criação de um grupo4-laboratório composto por atores e bailarinos do
qual iríamos trabalhar no processo de tradução de qualidades de movimento5 a partir da
3 Ocorre neste momento uma diminuição de aspectos simbólicos reinterpretados por outros indivíduos no
percurso da diferença e não da diversidade, mostrando a cultura folclorizada aspectos que não são
necessariamente os processos de organização simbólica da cultura-fonte.
4 Grupo Ameríndios Mex (GAM)
5 Para Rudolf Laban as qualidades de movimentos são “os componentes constituintes das diferenças nas
qualidades de esforço que resultam em uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativa aos seguintes
fatores de movimento: tempo, espaço, peso e fluência”
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identificação pinturas corporais por meio de fotografias e vídeos de minhas vivencias em
campo.
2. Objetos do trajeto
O encontro com esta perspectiva transciplinar, a etnocenologia, possibilitou a emersão
do artista-etno-pesquisador nas confluências e derivações deste trajeto de vida. Para Armindo
Bião:
“A ideia de trajeto remete à articulação de um sujeito com seus objetos de
interesse e com outros sujeitos, cujos interesses, ainda que parcialmente,
comuns, se encontram na encruzilhada das ciências e das artes, onde
múltiplos grupos de pesquisa se formam transformam ao longo do tempo”
(BIAO, 2007. p21).
Neste momento no GAM, conseguimos criar alguns códigos como a palavra punu
(ruim) e meykumerex (bom, legal) que usávamos como palavras para guiar os comandos.
Experimentamos a combinação dos fatores de movimento sugerido por Laban em atividades
(pescar, caçar, saltar, nadar, correr) do cotidiano mebengokre.
O começo dos encontros era conduzido com um exercício que denomino de sintonia.
O exercício começa com os atores no chão, peito para cima e as palmas das mãos ao lado do
corpo. Pedia para que todos percebessem os movimentos respiratórios com a atenção no
diafragma. Divido o exercício em três momentos: primeiro, consciência corporal (peso) com o
corpo deitado no chão de barriga pra cima; segundo, domínio do corpo no começo do
movimento (fluência); terceiro, domínio do movimento, plano médio e alto (fluência e tempo)
Na primeira etapa observamos com atenção as partes do corpo que não tocavam ao
chão como a nuca, coluna lombar, parte de trás dos joelhos e tornozelos. Percebia com isso
uma alteração no corpo do Grupo na relação com a tensão corporal. Observava que neste
momento os corpos dos participantes estavam mais presentes na sala. Acredito que esse
exercício serviu para uma compreensão e autoconhecimento das estruturas corporais; a
transformação e condução de energia pelo corpo presentes em nosso trajeto. Observamos
também uma exploração continua dos movimentos respiratórios, a sintonia com a terra, com o
solo e a relação do corpo com a gravidade, elementos necessários para a compreensão do
universo cosmológico indígena.
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Ainda na primeira etapa do exercício sintonia, percebia que o Grupo quase adormecia,
zerando seus movimentos para iniciar novos. Nesse momento pedia para cada participante
percebesse o peso do corpo no chão, imaginando que seu corpo estivesse sendo puxado para o
centro da terra, na tentativa de dilatar conexões com forças da natureza, com a terra (chão) e
com o espaço. Nos primeiros encontros esse exercício ajudou a conexão e absorção dos
conhecimentos que adquiríamos ao longo dos encontros. O exercício serviu para que o Grupo
Ameríndios Mex pudesse conectar com as forças que atuam no mundo, como a gravidade por
exemplo.
No processo, distribui folhas de papel e pedi para que o Grupo desenhasse um animal
que gostaria de ser, desenhando da forma que conseguisse, colocando ao lado adjetivos e
qualidades de movimento do animal escolhido.
No exercício sintonia solicitava para que o Grupo começasse a imaginar os animais
que haviam desenhado, lembrando texturas, partes do corpo e modos com que os animais
escolhidos eram presentes na memória do Grupo.
Neste sentido, Laban confirma que:
“os animais jovens apreendem, conquanto independentemente de um
controle consciente, a selecionar e desenvolver suas qualidades de esforço
por meio das brincadeiras. Ao brincarem os animais simulam todos os tipos
de ações que lembram, de maneira muito marcante as ações reais que terão
necessidade de praticar quando tiverem que se sustentar no futuro”
(LABAN,1978, p33).
O exercício finalizava com o esticar das partes do corpo (segunda etapa) no objetivo
de acordar músculos, ou movimentar partes do corpo que não movimentamos no cotidiano.
No decorrer dos encontros fui desdobrando esse exercício para que no momento de imaginar
esse animal dentro de cada um, pudesse chegar até o nível alto com qualidades identificadas
dos animais escolhidos pelo Grupo. Cada participante evocava qualidades de movimento que
estariam guardados em locais silenciosos dentro de suas memórias, e isso era precioso para
mim. Percebia a conexão com as qualidades de movimento dos desenhos de forma mais
latente na terceira etapa, quando todos os participantes estariam produzindo seus movimentos
no nível alto.
Este grupo me proporcionou o inicio do projeto em meu trajeto, me possibilitando
recriar o percurso criativo da investigação. O Grupo era composto por atores e dançarinos
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matriculados nos cursos de graduação em dança e teatro, e, técnico em formação de ator da
Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará.
Abaixo desenhos e relatos descritos pelo Grupo:
Desenho 01 - Desenho da Coruja, com seu olhar atento conectando ao Krori (Onça)
“Acho a coruja um ser bastante bonito. A coruja é um animal rápido e
atento a tudo. Tem qualidades como o voo. Consegue saltar e partir
para o voo. Também é um grande observador.”
Amália Santos.
Fonte: Amália Santo, 2013.
Desenho 02 - Desenho da Libélula, seu voo presente nas qualidades do Âkrê (Gavião).
“A Libélula é um ser puro, positivo e colorido, transmiti
muitas coisas boas. Pra mim a Libélula tem como
qualidades a rapidez. Ela é um ser intenso e constante.”
Andréa Apolinário.
Fonte - Andrea Apolinário, 2013.
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Desenho 03 - Macaco, prestes a dar seu salto do Kukoj (Macaco).
Eu acho o macaco um ser genial, muito parecido com ser
humano. Eu acho ele muito perspicaz, ágil e acrobático. Pra
mim ele tem qualidades que ajudam muito na movimentação
para o teatro. Pra mim as qualidades que enxergo é poder de
contorção para fugir, possui a qualidade
também de saltar, muito interessante, sabe
dar rolamentos também.”
Kallew Max
Fonte: Kallew Max, 2013.
Consideramos em nosso processo a palavra animal, todo ser vivo presente na floresta
Amazônica. Sendo assim, cada animal intuitivamente nos auxiliou na investigação de
qualidades de movimento similares, encontrado em outros animais. Para exemplo, a libélula
possibilitou Andrea Apolinário a mostrar a cada encontro a investigação em seu corpo, a
qualidade do voo, presente também em outros animais de grande ou pequeno porte que
tenham essa habilidade.
Quando todos estavam no plano alto, Max gerava no “impulso pessoal” movimentos
nos três níveis: baixo, médio e alto. Amália, ao escolher a coruja, percebia um olhar
penetrante com um corpo tensionado, que a atriz desenvolvia no processo do exercício
sintonia, que poderíamos posteriormente observar qualidades da onça, como a atenção e olhar
atento.
O principio metodológico em utilizar a potencia dos desenhos para delimitarmos
qualidades de movimentos e especificidades de animais da fauna amazônica, foi também uma
inspiração retirada da autora Lux Vidal em “Grafismo Indígena” (1992). A autora nesta obra
coloca um procedimento metodológico ao analisar grafismos dos Xikrins, ao dar folhas de
papel e canetas para que as nira (mulheres indígenas) desenhassem intuitivamente os
grafismos que achavam importantes na comunidade.
No processo do Grupo Ameríndios Mex foi realizado desenhos para que
começássemos a observar em quais princípios se era construído a corporeidade mebengokre.
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Os desenhos serviram para acessar qualidades de movimento animal, ancestrais para os
mebengokre, pertinentes na memória de uma cultura. O conhecimento sobre o animal
escolhido materializava o imaginário amazônico presente no corpo e na ancestralidade.
Ressaltando assim o “esforço de identificação de sua filiação histórica e de seu parentesco
atual como outros fenômenos” (BIAO, Armindo. 2009. p37).
A escolha dos grafismos para a criação do treinamento corporal surgiu a partir da
necessidade de estabelecer relação do corpo com os três níveis existentes: nível baixo, médio
e alto. Elegi quatro grafismos encontrados no material audiovisual do ultimo mergulho em
2013 com a comunidade de Apexty: Kapran (jabuti), Krori (onça), Kukoj (macaco), Âkrê
(gavião). Os grafismos identificados fazem relação com animais da floresta, porem é
necessário lembrar que existem outros tipos de grafismos com variação dos temas seguindo a
dicotomia: individuo – planta, individuo – animal, e individuo – objeto. Tal escolha da
relação individuo-animal partiu da necessidade de estabelecer relações corporais com
qualidades de movimento que pudessem ser sentidas no corpo para serem utilizadas na
atuação performativa.
No contato com os indígenas, observei a relação com a memória dos antepassados que
se tornam vivos no ato da pintura. É algo não dizível com palavras, porem muito bem
estruturado como destaca Lux Vidal:
“Os motivos decorativos se adaptam a um suporte plástico, o corpo que por
sua vez, é portador de outro conjunto de significados. Aplicada no corpo, a
pintura possui função essencialmente social e mágico-religiosa, mas também
é a maneira reconhecidamente estética (mei) e correta (kumrem) de se
apresentar. Estabelece-se aqui uma correspondência entre ético e estético. A
decoração é concebida para o corpo, mas este só existe através dela. Como
afirma Marcel Mauss e mais tarde Claude Lévi-Strauss, essa dualidade corpo
(forma plástica) e grafismo (comunicação visual) expressa outra dualidade
mais profunda e essencial: de um lado o individuo, de outro o personagem
social que ele deve encarnar”. (VIDAL, 1992, p.144).
Assim é reconhecido que os grafismos fazem parte de um elaborado sistema de
significados e códigos existente dentro da cultura mebengokre, forma de comunicação entre
os indígenas, estabelecendo códigos para habilidades presentes no corpo de cada individuo,
evocando forças e relação de poder com os grafismos pintados no corpo. Sendo observado
uma segunda pele social, personagem social, que este indivíduo vive. Percebendo então, o
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corpo (forma plástica) e grafismo (comunicação visual), a presença do corpografismo6 na
construção dos movimentos nesta proposição metodológica.
No sentido destacado por Pavis:
“O teatro pode redundar numa dificuldade da antropologia, a saber:
traduzir/visualizar os elementos abstratos de uma cultura como um sistema
de crenças ou valores, utilizando-se dos meios concretos; por exemplo, ao
invés de explicar um ritual, realiza-lo; em vez de dissertar sobre as condições
sociais dos indivíduos, mostra-la através dos gestus imediatamente legível”
(PAVIS, 1990).
O caminho metodológico denominado como corpografismo acompanha a escolha de
grafismos e sua tradução em movimentos por meio de procedimentos artísticos como o
exercício “sintonia” no processo de criação e mergulho na etnia mebengokre, encontrando
rastros para a criação dos movimentos e suas contribuições na construção de princípios para o
treinamento corporal de atores. Este treinamento em nenhum momento quer tornar este
mergulho um condicionamento corporal, e sim, possibilitar por meio do ensino de questões no
universo da cosmologia indígena, das pinturas corporais e sua analise, a valorização e o
fortalecimento da cultura indígena mebengokre. Podendo ser vivenciado e reinterpretado por
qualquer neófito a fim do mergulho na experimentação destes princípios.
A escolha dos grafismos partiu da necessidade de estabelecer relação com os três
níveis existentes para o domínio expressivo na atuação cênica: nível baixo, médio e alto. Os
grafismos identificados fazem relação com animais da floresta. No decorrer da pesquisa e na
analise dos vídeos a intenção é identificar e conectar qualidades de movimento dos animais
presentes na representação visual (grafismo) pintados no corpo da etnia mebengokre.
Qualidades de movimento encontrado nos animais, servindo para a preparação corporal dos
participantes do Grupo Ameríndios Mex, como confirma Laban ao dizer que:
“O movimento, portanto, revela evidentemente muitas coisas diferentes. É o
resultado, ou da busca de um objeto datado de valor, ou de uma condição mental.
6 A criação deste conceito partiu do estudo da obra “Antropologia estética” de Lux Vidal, onde a autora destaca
corpo (forma plástica), grafismo (comunicação visual). Unindo assim estas duas palavras para criação do
conceito de corpografismo, no mergulho em praticas corporais por meio de qualidades de movimentos
identificado nas pinturas corporais mebengokre análogos à qualidade de movimento animal.
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Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que se move numa determinada
situação. Pode tanto caracterizar um estado de espírito e uma reação, como atributos
mais constantes da personalidade. O movimento pode ser influenciado pelo meio
ambiente do ser que se move.” (LABAN, 1978, p.20).
A necessidade da busca pelo movimento estabelecia ao longo do processo de
laboratório com o Grupo Amerindios Mex (GAM) a escuta de processos sensíveis
vivenciados no corpo a partir do encontro com a realidade corporal existentes no convívio
com diferentes espécies de animais da floresta amazônica. Este contato no qual os indígenas
estabelecem com a natureza proporciona ao corpo indígena habilidades corporais presentes
em animais da floresta. Esta aproximação era o percurso investigativo que gostaríamos de
chegar e vivenciar no corpo tais domínios pré-expressivos que contribuirão para a atuação
cênica no mergulho de aspectos étnicos e estéticos da cultura indígena mebengokre.
Figura 1Ao desenhar os grafismos existentes na primeira etapa do projeto Kapran Ok: Pinturas Indígenas de
Apexti possibilitou o encontro com o
“voo”.
Fonte: Rafael Cabral, 2013.
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As mulheres são as únicas a realizar a pintura corporal, elas desempenham esse papel
dentro das comunidades Mebengokre. As habilidades técnicas estão presentes nos modos
como as nira7 pegam seus pinceis e desenvolvem cada traço, imprimindo também sua marca,
seu estilo. É percebido essa alteração do estilo das pinturas. Uma com habilidades mais
desenvolvidas que outras. Lux Vidal analisa em seu livro “Morte e vida de uma sociedade
brasileira” o domínio da técnica do qual as mulheres que desenvolvem as melhores pinturas
são aquelas que possuem uma quantidade maior de filho outras, pois as crianças são suas telas
vivas.
3. Mex: o treinamento
Neste estudo irei incorporar a palavra treinamento à palavra Mex por perceber que a
construção de nossa preparação corporal se estabelece com a troca de informações e troca de
praticas corporais indígenas, conceito bastante forte e que vai mais além do conceito de
treinamento no universo ameríndio mebengokre, estabelecendo o contato com dimensões
simbólicas presentes na cultura Ameríndia, trazendo-as para as artes cênicas e princípios e
valores negados durante muito tempo, pelo menos em minha família.
A negação da cultura indígena se estabelece com a não afirmação da cultura que
percebo ser muito próxima a cultura paraense. Utilizando-se assim da tradução artística para
desenvolver princípios e métodos para o acesso a informações importantes de serem testadas
em locais do ensino da cultura indígena e do teatro. Assim Patrice Pavis diz:
“[...] que se utilize o teatro com o instrumento para transmitir e produzir
informações sobre a cultura veiculada. O teatro pode redundar numa dificuldade da
antropologia, a saber: traduzir/visualizar os elementos abstratos de uma cultura
como um sistema de crenças ou valores, utilizando-se dos meios concretos; por
exemplo, ao invés de explicar um ritual, realiza-lo; em vez de dissertar sobre a
condições sociais dos indivíduos, mostra-la através dos gestus imediatamente
legível.” (PAVIS, 2008 p.15).
Usando assim a tradução como confirma na citação acima por Patrice Pavis, traduzo
os grafismos (identificados) em movimentos por uma percepção simbólica e afetiva no campo
da sensorialidade defendido por Armindo Bião como a categoria da percepção que se
7 Significa mulher na língua Mebengokre.
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distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção, faculdade perceptiva e
reativa e fragilidade é muito forte e distinta do que se pretende compreender como essa nova
palavra (BIÃO, 2009).
Assim a sensorialidade do corpo na aplicação do grafismo cotidiano se da no percurso
até encontrar os movimentos para a preparação corporal passando por estímulos sensoriais,
afetivos e simbólicos dos momentos vivenciados na Aldeia de Apexti e no universo
cosmogônico presentes na cultura indígena. Assim como a analise dos traços e formas
presentes nos grafismos identificados por esta pesquisa, seleciono qualidades dos animais da
fauna amazônica, representados pelos grafismos indígenas Kapran, Krori, Kukoj e Âkre.
É visível em nossas observações dos arquivos (pinturas scaneadas) na primeira etapa
do projeto Karpan Ok: Pinturas Indígenas de Apexti, a identificação dos grafismos que
estávamos traduzindo em movimentos, relação com os animais da floresta amazônica, sendo
desenvolvida nesse momento uma tradução simbólica, afetiva e sensorial dos estímulos
vivenciados pelo corpo material e espiritual dentro da aldeia de Apexti. Encontrando nos
aportes teóricos referencias relevantes para entender a importância e a complexidade dos
significados dos grafismos dentro da aldeia Mebengokre.
Segundo Lux Vida:
“Por intermédio de numerosas publicações e especialmente de fotografias
veiculadas pelos meios de comunicação de massa, a arte gráfica desses
índios é possivelmente a mais conhecida entre nós. No entanto, o significado
profundo dessa ornamentação do corpo, um idioma-codigo expresso
graficamente, ainda fica para ser desvendado e entendido em seus próprios
termos. Cabe ao etnólogo lê-lo e interpreta-lo no contexto sociocultural a
que pertence.” (LUX, 1992, p.143.).
É notório no processo de execução do nosso Mex, durante os quatro meses de
realização dos movimentos traduzidos, faculdades perceptivas de concentração, dilatação e
atenção no espaço. Cada movimento desenvolve habilidades para o exercício pratico da
atuação, tentando resgatar qualidades que permeiam a vida, o bios, presentes na cultura
ameríndia, encontradas na aldeia de Apexti, porém percebemos que o desenvolvimento das
praticas construídas no Grupo, precisam ser testadas com um maior tempo para podermos
derivar outras vivencias e aperfeiçoar nossos princípios investigativos.
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O modo como os indígenas utilizam seus corpos para realizar atividades diárias não
está descolado de conexões como todo o seu universo cosmológico e mítico, dos grafismos e
da relação com a natureza. A utilização de seus corpos para a realização de atividades como
pescar, caçar e plantar, está intrinsecamente ligado à praticas executadas desde seu
nascimento como nadar, correr, pular, cair. Identificando assim uma construção ordinária do
corpo indígena podendo ser utilizado para cena. Em minha analise, essa vida, esse bios para
nós, artistas da cena, precisa esta intimamente ligada na percepção de qualidades de
movimentos para a cena passando para o extracotidiano. Assim para Eugenio Barba:
“A maneira como usamos nossos corpos na vida cotidiana é substancialmente
diferente de como o fazemos na representação. Não somos conscientes das nossas
técnicas cotidianas: nós nos movemos, sentamos, carregamos coisas, beijamos,
concordamos e discordamos em gestos que acreditamos serem naturais, mas que de
fato, são determinados culturalmente. Culturas diferentes determinam técnicas
corporais diferentes, se a pessoa caminha com ou sem sapatos, carrega coisas em sua
cabeça ou com as mãos beijam com os lábios e com nariz. O primeiro passo em
descobrir quais os princípios que governam um bios cênico, ou vida, do ator, deve
ser compreender que as técnicas corporais podem ser substituídas por técnicas
extracotidianas, isto é, técnicas que não respeitam os condicionamentos habituais do
corpo. Os atores usam essas técnicas extracotidianas.” (BARBA, 1995, p.9).
Assim na citação acima mostrar-nos uma alteração de valores presentes nos escritos
por Eugenio Barba. Pois é identificada a necessária utilização de praticas cotidianas indígenas
necessárias para usarmos na representação. É fato que muitas das praticas observadas
encontram-se na memória ancestral dos povos indígenas, praticas que são (re) feitas
cotidianamente, como suas ações na pesca, na caça, como também na utilização da pintura
como forma de socialização do individuo, passando despercebidas pelos mesmos. Esta aqui a
importância que cabe o etnocenologo analisar com as vivencias a partir da observação
testadas em seu próprio corpo, praticas que serão “recortadas” para a utilização no palco, na
cena e na vida.
Neste momento se tornam conscientes do seu bios cênico. Praticas que são
determinadas pela imersão na cultura ameríndia percebendo única e peculiar semelhança com
qualidades essenciais para o corpo na cena. Percebendo nesta pesquisa princípios indígenas
com o auxilio dos conhecimentos da etnocenologia para identificar qualidades sensórias
perceptivas para entender e analisar técnicas corporais indígenas para Mex do ator.
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Percebi ao final do processo a necessidade do estudo de um Mex vocal, porem será um
desdobramento para trabalhos posteriores, por identificar potencias sonoras nas musicas e
notas, que poderão servir para uma preparação vocal do ator para cena a partir do universo
aqui investigado.
A utilização da sala de aula como nossa Aldeia é fundamental para evocarmos
princípios vivenciados na Aldeia de Apexti, como o reconhecimento do espaço, que serviu
para entendermos também qual o local que nossas investigações habitam. Nos encontros com
o Grupo, não usávamos o ar condicionado, deixando todas as portas e janelas abertas para que
nosso oxigênio fosse o mais natural possível, deixando que raios de sol pudessem entrar em
nosso trabalho, conectando a faculdades reativas vividas na Aldeia. Também a fumaça de
tabaco no cachimbo foi experimentado em nossos encontros como meio de percepção
profunda do corpo e da alma.
Figura 2. Alongamento é necessário para iniciarmos nosso encontro.
Foto: Rafael Cabral, 2013.
O inicio dos nossos encontros sentíamos a necessidade de alongarmos todas as partes do
corpo. Em seguida, começávamos a realizar um aquecimento que denominei de “circulo de
pykatoti”. Onde todos ficam em círculo sem movimentar as pernas, o corpo balança para um
lado e para o outro, alongando as pernas. Logo depois começa o movimento para o lado
direito, iniciando com a velocidade lenta, passando para a moderada e depois rápido, ate
chegar no ápice da velocidade rápida e começando a decrescer tal velocidade. O movimento
se repete quando o corpo chega ao momento inicial do exercício.
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Nesse processo fomos construindo juntos os movimentos que servem de princípios
para o nosso Mex. A seguir iremos encontrar os movimentos e seus grafismos respectivos. Na
investigação tentamos olhar, na criação dos movimentos, a partir dos fatores labanianos de
movimento estudado por Rudolf Laban em seu SLA (Sistema Laban de Analise do
Movimento).
3.1. Kapran Ok e movimento Kapran.
Kapran significa Jabuti e “Ok” significa pintura em Mebengokre. Esse grafismo é pintado
com o pincel de nervura da folha do babaçu. O grafismo Kapran é pintado com traços que
formam hexágonos que interligam outros da mesma proporção, criando uma profundidade ao
desenho. Os traços levam ao hexágono.
Os grafismos abaixo nos confirmam sua forma e seus traços presentes na analise dos
grafismos. Cada um desses grafismos foi realizado por cada nira8. É observada uma alteração
de traços quando as nira desenham no papel um estilo diferente da outra como podemos
observar:
Desenho 08 - Grafismos Kapran Ok, pintura de jabuti. Desenho: 1.Erejanê; 2. Irekabô Djê; 3.
Bekwyinhô; 4. Nhakpuroro; 5. Bekwynh-rax; 6. Não identificado;
8 Significa “mulher” na língua mebengokre.
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Desenho 01 Desenho 02 Desenho 03
Desenho 04 Desenho 05 Desenho 06
Fonte: indígenas da aldeia de Apexty, 2013
Todos os desenhos possuem hexágonos que acompanham traços. Nos desenhos 1 e 5 é
identificado uma construção de outros motivos dentro dos hexágonos. No desenho 1 é
observado dentro das proporções dos traços o grafismo da anta e do jabuti nas linhas que os
ligam. No desenho 5 é identificado dentro dos hexágonos o grafismo do peixe.
Os jabutis são animais que possuem casco convexo, carapaça bem arqueada e pernas
grossas. A carapaça é uma estrutura óssea formada pelas vértebras do tórax e pelas costelas.
Funciona como uma caixa protetora na qual o animal se recolhe quando atacado.
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É possível identificar o desenho quando aplicado no corpo, porém com as alterações
sofridas na imagem do desenho. O grafismo no corpo é alterado devido termos estruturas
corporais diferentes de individuo para individuo.
Figura 3. Grafismo do Kapran realizado no corpo do pesquisador as margens do Riozinho.
Foto: Edmir Amanajás, 2013.
A imagem acima mostra o grafismo do Kapran em minhas dimensões corporais.
Geralmente esse grafismo não é feito no corpo todo, pois demanda tempo e trabalho. É
presente nos caciques e indivíduos com nomeação. A fotografia acima foi registrada logo
após eu ser pintado, estava impressionado com os detalhes que em alguns momentos aparecia
em meu corpo.
Assim meu corpo ia registrando estímulos sensórios e afetivos como o momento da
pintura, estímulos estes que desenvolvia em mim princípios como ator para que pudessem ser
analisados nesta pesquisa.
O movimento Kapran desenvolve possibilidade de deslocamento utilizando os braços
para a mudança de posição do corpo, conduzidos pelos processos respiratórios de inspiração e
expiração. Criar tensões e percepção de atividades corporais presentes no domínio pré-
expressivo.
O movimento em Kapran partiu da observação de qualidades de movimento presentes
no jabuti, por perceber sua precisão ao deslocar-se. O movimento começa com as mãos
esticadas em frente à cabeça, olhos direcionados para frente, onde se dar o deslocamento do
corpo. As mãos à frente direcionam-se para trás seguindo os traços hexagonais do grafismo do
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Kapran. As mãos ao terminam próximas a parte lateral do tórax auxiliando no deslocamento
do corpo. O movimento em Kapran se desenvolve sempre no nível baixo.
Figura 4. GAM realizando o primeiro deslocamento do braço.
Fonte: Rafael Cabral, 2013
3.2. Krori e movimento Krori.
Krori significa onça na língua mebengokre. A pintura deste grafismo se divide em
duas, a pintura de onça no rosto, Nokre Krori, ou no corpo, Catchet Krori. Diferente dos
outros grafismos, este não é pintado com o pincel de nervura da folha do babaçu. Esse
grafismo é pintado por meio de aplicação da parte de dentro de algumas frutas que possuem o
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circulo que lembra as marcas presente no corpo da onça pintada. O grafismo é aplicado no
corpo respeitando as relações simétricas existentes, frontal, medial e lateral como é
identificado nas pinturas.
A onça é um animal carnívoro. Alimenta-se, principalmente, de capivaras,
serpentes, coelhos, veados, antas e outros mamíferos de pequeno porte. Come também peixes
que ela mesma captura em rios, pois possui a capacidade de nadar. Na imagem abaixo é
possível perceber a semelhança do grafismo do Krori com as pintas da onça da Amazônia.
Figura 5. Rop Kran preste a entregar na dançar
Fonte: Rafael Cabral, 2013.
Este indígena esta a um passo de colocar seu corpo no circulo da dança. Ele entrou
sozinho, dançou, sorriu. Essa festa foi uma comemoração da finalização da oficina de
etnomapeamento acontecido na aldeia de Apexti. Este indígena esta com o grafismo do Krori,
percebendo a mesma disposição dos círculos nas dimensões da lateralidade e frontalidade do
corpo humano. Esse grafismo não foi pintado no papel.
O movimento Kroki possibilita o domínio do deslocamento da coluna vertebral para os
lados, em movimento de torção da coluna, encontrando possibilidades de deslocamento e
tensão. O movimento em Krori está localizado no nível médio. A tensão esta presente na
região dos braços e pernas, o quadril se desloca acompanhando as mãos, desenvolvimento
diferente de equilíbrio e tensão analisados por Eugenio Barba ao observar que:
“Quando caminhamos usamos as técnicas cotidianas do corpo, o quadril
acompanham as pernas. Nas técnicas extracotidianas do ator de Kabuki e Nô o
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quadril, ao contrario, permanece fixo. Para bloquear o quadril enquanto se caminha é
necessário dobrar os joelhos ligeiramente e, ajustando a coluna vertebral. Usar o
tronco como um bloco, que então pressiona para baixo. Desta maneira diferentes
tensões são criadas nas partes superior e inferior do corpo. Essas tensões obrigam o
corpo a encontrar um novo ponto de equilíbrio. Não é uma escolha estilística, é uma
maneira para gerar a vida do ator. Então, ele se torna, em um segundo momento,
uma característica estilística particular.” (BARBA, 1995, p.10).
Assim é perceptível no movimento do krori a tensão muscular, principalmente das
mãos e pernas, que são alternados conforme o movimento. O olhar do animal remete a
perspicácia do ataque que encontro no olhar preciso dos Mebengokre. O movimento é fluido,
sem interrupções. A inspiração e expiração acompanham o deslocamento do corpo em Krori.
A rotação para o lado direito e para lado esquerdo partiu da observação dos
movimentos que para mim o grafismo do Krori se fazia presente em minha analise, por
perceber os círculos da aplicação do grafismo no corpo ter quebras, que em minha
compreensão se liga as quebras da semi rotação do quadril.
Figura 6. Movimentos respiratórios na sequencia do movimento em Krori.
Fonte: Rafael Cabral, 2013.
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Figura 7. O coletivo dos atores no movimento Krori que ativa as articulações dos braços, pernas e quadril.
Fonte: Rafael Cabral, 2013.
É observado nessa imagem apenas o deslocamento de um lado. No movimento Krori
essa posição da fotografia acima e presente nos dois lados, direito e esquerdo. O movimento
vai deslocando o corpo pelo espaço.
3.3. Kukôj Ok e movimento Kukôj
Kukoj significa macaco na língua mebengokre. Sua pintura é completa por jenipapo,
não sendo observados, os belos traços e marcações presentes nos outros grafismos,
começando na região media do antebraço até a região media das pernas. O limite da pintura
no pescoço vai até região das escapulas, onde é presente um circulo completo que acompanha
o pescoço. Esse grafismo é usado quando os indivíduos vão para uma situação de risco ou
para guerra. Este grafismo é muito importante, pois faz relação direta com a etimologia da
palavra Kayapo (cara de macaco).
O grafismo do Kukoj (macaco) que comumente utilizam alguns dos indígenas de
Apexti, observo uma utilização em situações que eles não se encontram nos limites da aldeia,
acreditando que essa pintura possa lhe dar mais força para possíveis batalhas. O grafismo do
Kukoj é usado com maior frequência pelos guerreiros, sendo as alterações de seus traços e
acabamentos dependendo da nomeação que esse guerreiro recebe ou do seu momento atual.
Essa observação que exemplifico na investigação dos grafismos, a do kukoj chama
minha atenção por perceber que esses códigos são simbolicamente incorporados no cotidiano
da aldeia de Apexti, sendo o grafismo uma segunda pele social como confirma Lux Vidal ao
falar que a pintura corporal sobrepõe uma segunda „‟pele social‟‟, constituída de padrões
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“estandardizados”, exprime simbolicamente a „‟socialização‟‟ do corpo humano: a
subordinação dos aspectos físicos da existência individual ao comportamento e aos valores
sociais comuns (VIDAL, 1992).
Esse grafismo não é pintado com o pincel de nervura da folha de babaçu, geralmente as
nira executam esse grafismo mergulhando a mão no jenipapo e passando no corpo do
individuo. Na imagem a seguir verifica-se a panorâmica no momento de preparação para a
entrada no espaço da dança. A seta revela os indígenas que estão com o grafismo do Kukoj.
Figura 8. Preparação para a entrada da dança
Fonte: Rafael Cabra, 2013.
O guerreiro em Apexti usa bastante o grafismo do Kukoj em seu corpo, nesse
momento todos estão prestes a entrar no circulo da dança, com chocalhos nos pés dando uma
sonoridade para a dança. Observando a presença de muitos grafismos Kapran Ok neste
momento.
O movimento Kukôj desenvolve um domínio da qualidade do salto, sendo criado
ponto de tensões nas pernas no momento do salto. Os movimentos respiratórios são
fundamentais para o deslocamento do movimento, possibilitando qualidades e esforço
corporal presentes nos processos de atuação pré-expressiva. O movimento em Kukoj é o
único que passa pelos níveis médio e alto.
A tradução do movimento do grafismo Kukoj partiu da necessidade de deslocamento
no espaço sem o auxilio do uso normal dos pés, criando conexões observando a dimensão
espacial que a pintura no corpo em Kukoj se mostra. Este grafismo não possui traços
codificador e pode ser pintado pelos homens, que precisam das habilidades do salto.
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A percepção de deslocamentos para frente e o controle do corpo usando a força da
gravidade é também observado por Eugenio Barba:
“Outro exercício pode resultar da tentativa de deslocar seu peso para frente, até não
se ter controle sobre o corpo. Neste momento, o corpo arrastado somente pela força
da gravidade, cai para frente. É necessário encontrar um contra-impulso no meio da
queda, que nos permita evitar cair para a frente, amortecendo para o lado, de modo a
absorver o choque contra o solo, gradualmente, ao longo do lado do corpo.”
(BARBA, 1995, p. 245).
Assim, é necessário para a preparação corporal do ator habilidades como o saltar,
usando forças na natureza ao nosso favor, sendo importantes para exercício de habilidades de
deslocamento na cena. Como mostra a imagem abaixo, atores do Grupo realizando o
movimento em Kukoj com seus saltos.
Figura 9. A primeira pessoa da esquerda pra direita esta posicionada no inicio do movimento.
Foto: Rafael Cabral, 2013.
Figura 10. Max, esta localizado ao meio em sua plenitude do salto, permitido em Kukoj
Foto: Rafael Cabral, 2013.
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Em Kukoj o movimento é usado para ajudá-lo a sobrepujar o medo e a resistência, a
ultrapassar seus limites, depois, ele se torna um meio de controlar energias aparentemente
incontroláveis, de encontrar, por exemplo, os contra-impulsos, necessários para cair sem se
ferir ou de plantar no ar o desafio à lei da gravidade. “Acima e além do exercício, essas
conquistas encorajam o ator: mesmo que não faça isso sou capaz de fazê-lo. E no palco, por
causa do seu conhecimento, o corpo torna-se um corpo decidido”” (BARBA, 1995). Isso
confirma, pois no inicio é notado o medo de saltar da atriz Amália Santos, pois segundo ela,
esse movimento lhe recordava um queda que sofreu quando era criança, lhe impedindo de
saltar. Conforme o desenvolvimento do Mex, ela conseguiu ultrapassar o medo do salto,
executando belíssimos saltos, confirmando assim a potência do treinamento.
3.4. Àkrê Ok e movimento Âkrê
A pintura do Âkrê Ok é pintada com jenipapo, porem se utiliza do pincel de nervura
da folha de babaçu para fazer os traços retos de contorno da pintura que é feita a mão. No
momento da pintura pude observar os traços que dividiram o corpo em duas partes,
primeiramente, passando o jenipapo na parte frontal, fazendo um traço que começa na região
do tórax e termina na região da crista ilíaca. São realizados traços ao longo da lateral do
corpo, tanto na região superior quanto inferior do corpo, com a mão coberta de jenipapo, para
depois ser traçado as linhas que ligam aos ombros, aos braços e antebraços, criando um
formato de asa de ave.
Quando os braços são balançados para cima e para baixo é possível ver a pintura
criando movimento em uma perspectiva impressionante. Em seguida é realizado com o dedo
indicador os pontos da pintura. O pescoço é pintado até o começo da região do pescoço,
criando um circulo em volta do mesmo. Essa pintura como as demais, termina na parte media
do antebraço e parte media da perna.
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Figura 11. Âkrê Ok na dimensão corporal de Rafael Cabral
Foto: Edmir Amanajas, 2013
É possível observar nessa imagem um estilo próprio de Erejane, pois ela utiliza tanto a
pintura á mão como com o pincel de nervura. No momento da pintura foi pedido por mim
para que esse grafismo pudesse ser desenhado.
As Praticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO) me
deram o olhar para analisar praticas afirmativas de descoberta da minha ancestralidade, agora
traduzidas para princípios do treinamento corporal do ator. A imagem abaixo presentifica no
corpo de um ator, um momento fundamental na compreensão da arte não distante do
cotidiano, como olham os Mebengokre, auxiliando esse momento vivenciado para as
reflexões e analise de materiais que a pesquisa se debruça a investigar.
As fotografias em sequencia acima demonstram a passagem do tempo na pintura em
Âkre Ok. Esta pintura demanda tempo e dedicação para que ela fique com a perspectiva exata
das asas do gavião.
O movimento do Âkrê desenvolve um domínio preciso da respiração e do movimento
do diafragma. O corpo interage com direções no percurso do movimento, dilatando no ator
noções de dimensão espacial.
O movimento em Âkrê parte da observação de qualidades de voo do animal que o
grafismo representa. Os braços representam suas asas que levantam e descem ao lado do
corpo, seguindo a expiração e inspiração, respectivamente. Os movimentos respiratórios
foram observados a partir dos pontos presentes nos grafismos em Âkrê. Este movimento está
localizado no nível alto e seu deslocamento no espaço acompanha a direção do olhar, sendo o
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corpo deslocado com o desequilíbrio para frente do corpo, analogicamente, a ave caindo para
frente e alçando voo.
Figura 12. Amália alçando voo no movimento Âkre.
Foto: Rafael Cabral, 2013.
Este movimento faz com que o ator obtenha uma compreensão precisa nos
movimentos respiratórios, se utilizando deste movimento para a compreensão do corpo no
espaço. Os braços sobem e descem acompanhando a inspiração e expiração, deslocando o
corpo no espaço, com um passo para frente que lhe leva a um desequilíbrio no corpo para
frente. Este desequilíbrio esta na direção do olhar no espaço.
4. Os Fatores de Movimento em Kapran, Kukoj, Krori e Âkrê
Analisados esses aspectos no treinamento, em seis meses de vivencias e trocas com o
GAM – Grupo Ameríndios Mex, sintetizo no quadro abaixo os princípios fundamentais que
caracterizam a dominante corporal dos animais a partir dos fatores de movimento estudados
por meio do SLA (Sistema Laban de Analise do Movimento).
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Esquema 03 - Cada grafismo possui rastros do animal no movimento Mex que caracterizam
cada movimento para o ator.
Fonte: Rafael Cabral, 2013
O intérprete deve conhecer os esforços, mas, além disso, deve poder altera-los
conscientemente, mudar suas qualidades, ou seja, o modo segundo o qual é liberada a energia
nervosa, por uma modificação dos componentes do movimento: peso, espaço, tempo e
fluência; que, por sua vez, aliam-se a uma atitude interior consciente ou inconsciente
(MACHADO, 2002). Segundo a autora, essas características de esforço podem ser
desenvolvidas, modificadas e treinadas, já que dizem respeito também à relação estabelecida
com o meio ambiente, com os outros homens, como nas Aldeias Mebengokre, onde encontro
características peculiares e os fatores de movimento (peso, espaço, tempo e fluência) se
comunicam no percurso da vida na floresta, no corpo dos Mebengokre e agora no meu. A
riqueza e a própria diversidade dos esforços humanos são a própria fonte de sua
dramaticidade, que podem ser fortalecida através de um treinamento sistemático e objetivo
(MACHADO, 2002).
Entendendo que movimento é uma resposta ativa a massa muscular, por uma reação
em cadeia que percorre o corpo de um ponto a outro. Essa ativação pode gerar um
deslocamento visível no espaço, ou, caso não se produza conformar uma resposta
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aparentemente estática (BRIKMAN, 1989). Para Brikman o importante é o que o movimento
deva ser uma resultante de uma atitude muscular receptiva, de um estado de tonicidade
muscular. Assim observamos no Mex todos os movimentos desenvolvendo pontos de tensão,
levando à tonicidade de regiões do corpo peculiar de cada animal investigado.
Esta investigação deu-se na tradução de movimentos exteriores, facilmente observável
no corpo quando ativado musculaturas periféricas facilmente identificadas. Talvez em etapa
posterior investiguemos mais detalhado os movimentos interiores ainda pouco visíveis,
ativando massas musculares mais profundas.
Nos princípios labanianos a qualidade do movimento deve-se mencionar a quantidade
de energia que o corpo deve empregar para realizar certo esforço. Esse esforço se cumpre em
certo tempo e em um espaço particular e resulta em ações básicas. Assim os movimentos com
são realizados no Mex podem ser alterados por qualquer praticante que possa enxergar como
potentes as qualidades dos animais identificados por essa investigação, por meio dos
grafismos Mebengokre. A sua contribuição poderá, então, modificar aspectos presentes no
quadro analisado anteriormente. Modificando tais qualidades o ator poderá produzir infinitas
outras qualidades de movimento que ele próprio irá combinar.
Constatei no decorrer desses seis meses de encontro uma sensível modificação
corporal, tonicidade dos músculos observado nos atores do Grupo, porem não analisado nesta
investigação, percebendo também, uma disposição corporal maior dos participantes no
decorrer do Mex. Acredito que esta vivencia e reflexão na etapa objetivada nesta pesquisa
sinaliza o começo de um rastro que me levará a outros encontros, possíveis achados e grandes
conquistas como ator e pesquisador imerso no universo ameríndio do Xingu na construção do
conhecimento em Artes Cênicas.
Considerações finais
A construção de princípios para o treinamento corporal para atores não é recente.
Vários pensadores e grupos pelo mundo desenvolvem técnicas que permearam pelo Brasil ou
pelo mundo praticas que nortearam seus fazeres e de outros grupos. Evidentemente esta
pesquisa não é o único modo de preparação corporal para atores, porem é desconhecido, um
treinamento para atores que partiu de pressupostos simbólicos e afetivos da etnia
Mebengokre.
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Rafael Cabral
Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015
Na tradução dos quatro movimentos (Kapran, Kukoj, Krori e Âkrê) partindo dos
grafismos indígenas, encontrei caminhos metodológicos em referencias como Lux Vidal para
elaborar novos princípios, para a preparação física de atores. Podendo ter como
desdobramentos a investigação de potenciais sonoros presentes nas musicas dos Mebegonkre
sendo usado como treinamento vocal para atores. Derivações daí advindas pretendo investigar
em futuros trabalhos. Sendo necessária a construção de uma nova linguagem que se faz
através do uso de experimentos técnicos e praticas a partir do universo ameríndio do Xingu.
Renovando com sua poética, seus jogos de cores, ilusões de belíssimas imagens e grandes
emoções a pesquisa em artes cênicas.
Os grafismos são representações simbólicas na cultura indígena. Qualidades de
movimento animal presentes em nossa tradução, potentes para entendermos questões
relacionado a questão indígena na Amazônia. Neste sentido traduzimos os grafismos em
qualidades de movimento de animais, análogo aos grafismos escolhidos, com o objetivo de
comunicar os princípios éticos e estéticos da cultura indígena mebengokre. Sendo de grande
importância para professores de modo geral se apropriarem do percurso desta tradução ou
recria-la.
As contribuições epistemológicas da etnocenologia e da antropologia estética foram de
grande importância para a criação deste trajeto. Os princípios para o treinamento corporal de
atores, em nenhum momento pretende condicionar a potencia corporal criativa, e sim,
possibilitar o encontro de novas práticas corporais, incentivando a reinterpretação,
favorecendo outras formas do fazer artístico nas possibilidades de domínio do corpo na cena.
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Rafael Cabral
Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015
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