kapran, krori, kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na...

30
Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015 Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos das pinturas indigenas Mebengokre no treinamento corporal de artistas do corpo no grupo Ameríndios Mex Rafael Cabral 1 1. Introdução Em meu percurso como artista, práticas corporais nunca deixaram de existir no processo de ensino nas artes cênicas. Sorte do acaso ou obra do destino me fizeram estar na maioria dos processos de criação de peças teatrais ou experimentos cênicos, imerso em algum tipo de treinamento corporal sistematizado por algum pesquisador da área. Em alguns processos criativos me dei conta da potência da criação de um treinamento que estivesse ligado as minhas necessidades e limitações na atuação cênica. Na graduação em teatro da Universidade Federal do Pará me confrontei com teóricos que me deram possibilidade de argumentação e reflexão de quais caminhos poderia percorrer no processo de uma proposta autoral do treinamento (BARBA, 1995,p11). Nesse confronto de teorias deparei-me com o universo ameríndio do Xingu e com contribuições epistemológicas da etnocenologia e antropologia estética. Neste sentido treinamento para Eugenio Barba é: “Tudo isso nos dá consideráveis informações sobre equilíbrio e a relação entre processos mentais e tensões musculares, mas não nos diz nada de novo sobre o ator. De fato, dizer que os atores estão acostumados a controlar sua própria presença e traduzir suas imagens mentais em ações físicas e vocais simplesmente significa que os atores são atores. Mas a serie de micromovimentos revelada nas experiências de equilíbrio coloca-nos em outra pista. Esses micromovimentos são uma espécie de núcleo que, escondidos nas profundezas das técnicas corporais cotidianas, podem ser modelados e ampliados para aumentar a força da presença do ator ou bailarino, tornando-se assim base das técnicas extracotidianas. (BARBA, 1995, p.11). 1 Professor, ator e fotógrafo, graduado em Teatro pela Universidade Federal do Pará. Especialista em filosofia da educação pela UFPA. Mestrando no Programa de Pós Graduação em Artes - UFPA. Contatos [email protected]

Upload: hoangkhuong

Post on 19-Nov-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos das pinturas

indigenas Mebengokre no treinamento corporal de artistas do corpo no

grupo Ameríndios Mex

Rafael Cabral1

1. Introdução

Em meu percurso como artista, práticas corporais nunca deixaram de existir no

processo de ensino nas artes cênicas. Sorte do acaso ou obra do destino me fizeram estar na

maioria dos processos de criação de peças teatrais ou experimentos cênicos, imerso em algum

tipo de treinamento corporal sistematizado por algum pesquisador da área. Em alguns

processos criativos me dei conta da potência da criação de um treinamento que estivesse

ligado as minhas necessidades e limitações na atuação cênica.

Na graduação em teatro da Universidade Federal do Pará me confrontei com teóricos

que me deram possibilidade de argumentação e reflexão de quais caminhos poderia percorrer

no processo de uma proposta autoral do treinamento (BARBA, 1995,p11). Nesse confronto

de teorias deparei-me com o universo ameríndio do Xingu e com contribuições

epistemológicas da etnocenologia e antropologia estética. Neste sentido treinamento para

Eugenio Barba é:

“Tudo isso nos dá consideráveis informações sobre equilíbrio e a relação entre

processos mentais e tensões musculares, mas não nos diz nada de novo sobre o ator.

De fato, dizer que os atores estão acostumados a controlar sua própria presença e

traduzir suas imagens mentais em ações físicas e vocais simplesmente significa que

os atores são atores. Mas a serie de micromovimentos revelada nas experiências de

equilíbrio coloca-nos em outra pista. Esses micromovimentos são uma espécie de

núcleo que, escondidos nas profundezas das técnicas corporais cotidianas, podem ser

modelados e ampliados para aumentar a força da presença do ator ou bailarino,

tornando-se assim base das técnicas extracotidianas. (BARBA, 1995, p.11).

1 Professor, ator e fotógrafo, graduado em Teatro pela Universidade Federal do Pará. Especialista em filosofia da

educação pela UFPA. Mestrando no Programa de Pós Graduação em Artes - UFPA. Contatos

[email protected]

Page 2: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

No contato com aldeias da etnia mebengokre, desenlaço um nó histórico. Fato este que

ocasiona o esquecimento da identidade étnica do povo brasileiro. A perda da identidade

indígena de minha família foi silenciada pelo processo histórico de colonização e globalização

do Brasil. Indo atrás de vestígios históricos encontro parentes em aldeias mebengokre.

(CABRAL, 2013, p13).

O povo Kayapó, que também pode ser escrita para nós como Caiapó, desde o processo

de contato de antropólogos e pesquisadores com esses povos, a antropologia reconhece essa

etnia como Caiapó, nome de origem tupi, caia – macaco e po- semelhante. Porém a etnia se

autodenomina mebengokre, mebengo- rio e krê- buraco, “povo da nascente d‟agua” ou “povo

do buraco d‟agua”. (HAMÚ, 1992, p24).

Neste momento percebo o trajeto para reflexões e contribuições epistemológicas em

meu processo de investigação no campo da arte. Auxiliando a apropriação de conteúdos

reflexivos para favorecer a valorização e o fortalecimento da cultura indígena aliando a

necessidade artística no processo de construção de minha poética.

A Etnocenologia foi apresentado no Manifesto de criação do 'Centre International

d‟Ethnocénologie', em de 9 de fevereiro de 1995, como um "neologismo" que é um fenômeno

linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da

dimensão orgânica da atividade simbólica que não se reduz ao visual, referindo ao conjunto

das modalidades perceptivas humanas, coloca o aspecto global das manifestações expressivas

humanas desde as cognitivas às espirituais. (BIAO, 2007, p. 28).

No percurso da monografia senti a necessidade de criar um grupo para

experimentarmos técnicas, jogos, exercícios e praticas que eu identifiquei no contato desde

meu primeiro campo com a aldeia de Apexty2. O Grupo Ameríndios Mex (GAM) iniciou a

partir da necessidade de comunicação dos contextos simbólicos-artísticos que fortaleciam o

retorno à reflexão do território que estamos falando. Neste sentido percebendo diversos

trabalhos no campo da arte indigena, contribuindo para minhas reflexões sobre o conceito de

“arte” ocidental e “arte” indigena. Para Els Lagrol:

“Continua, portanto, relevante voltar nossa atenção para contextos nativos cuja

produção „artistica‟ não segue as mesmas leis que as do Ocidente, não entra na lógica

do mercado, e, às vezes, nem na da troca, e não funciona a partir da separação entre a

vida cotidiana e arte. Estudos sobre a relação entre a produção artística e o quadro

conceitual da sociedade ressaltam particularidades que constatam com os cânones

2 A aldeia de Apexty está localizada no município de São Felix do Xingu, nas margens do Rio Fresco.

Page 3: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

tradicionais da arte ocidental, exemplos, aliás, que são encontráveis também em

manifestações da arte conceitual, com obras feitas para não serem vistas ou ouvidas ou

ainda outras, produzidas para desaparecerem ao final do processo de sua fabricação ou

performance”. (LAGROL, 1963, p.80).

Na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará até a conclusão desde

trabalho ainda não havia tido uma investigação que colocasse em seu âmbito acadêmico

aspectos artísticos e modos de organização simbólica de povos ameríndios. Este incômodo foi

se estabelecendo a partir do percurso do curso de graduação em Teatro.

Neste percurso investigativo encontramos uma nova forma de organização simbólica

potente para a utilização de aspectos éticos e estéticos da cultura indígena mebengokre. Este

momento torna-se importante para aproximar espectadores à uma nova realizada até então

distante e silenciada na cidade de Belém.

Neste momento interessa perceber a pouca produção que relacione forma e conteúdo

às produções no campo da performance art (COHEN, 1998) no Estado do Pará, abrindo para

reflexões sobre o estranhamento que ocorre no campo das artes em produtos artísticos que a

priori não possuem em seu processo de criação em artes a dimensão ética e estética.

Ocorrendo na maioria das vezes a folclorização3 de aspectos da cultura indígena.

Este percurso em nenhum momento fortalece a ideia da diversidade de povos

indígenas que vivem no território do Estado do Pará. Onde é possível identificar diversos

grupos vivendo modos de organização simbólica peculiares a cada etnia. A folclorização da

cultura indígena acaba por colocar a questão indígena na Amazônia sendo singular e

homogênea diferente da realidade heterogênea e diversa da questão indígena no Estado do

Pará.

Com isso senti a necessidade no percorrer do processo de criação do treinamento

autoral para atores a criação de um grupo4-laboratório composto por atores e bailarinos do

qual iríamos trabalhar no processo de tradução de qualidades de movimento5 a partir da

3 Ocorre neste momento uma diminuição de aspectos simbólicos reinterpretados por outros indivíduos no

percurso da diferença e não da diversidade, mostrando a cultura folclorizada aspectos que não são

necessariamente os processos de organização simbólica da cultura-fonte.

4 Grupo Ameríndios Mex (GAM)

5 Para Rudolf Laban as qualidades de movimentos são “os componentes constituintes das diferenças nas

qualidades de esforço que resultam em uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativa aos seguintes

fatores de movimento: tempo, espaço, peso e fluência”

Page 4: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

identificação pinturas corporais por meio de fotografias e vídeos de minhas vivencias em

campo.

2. Objetos do trajeto

O encontro com esta perspectiva transciplinar, a etnocenologia, possibilitou a emersão

do artista-etno-pesquisador nas confluências e derivações deste trajeto de vida. Para Armindo

Bião:

“A ideia de trajeto remete à articulação de um sujeito com seus objetos de

interesse e com outros sujeitos, cujos interesses, ainda que parcialmente,

comuns, se encontram na encruzilhada das ciências e das artes, onde

múltiplos grupos de pesquisa se formam transformam ao longo do tempo”

(BIAO, 2007. p21).

Neste momento no GAM, conseguimos criar alguns códigos como a palavra punu

(ruim) e meykumerex (bom, legal) que usávamos como palavras para guiar os comandos.

Experimentamos a combinação dos fatores de movimento sugerido por Laban em atividades

(pescar, caçar, saltar, nadar, correr) do cotidiano mebengokre.

O começo dos encontros era conduzido com um exercício que denomino de sintonia.

O exercício começa com os atores no chão, peito para cima e as palmas das mãos ao lado do

corpo. Pedia para que todos percebessem os movimentos respiratórios com a atenção no

diafragma. Divido o exercício em três momentos: primeiro, consciência corporal (peso) com o

corpo deitado no chão de barriga pra cima; segundo, domínio do corpo no começo do

movimento (fluência); terceiro, domínio do movimento, plano médio e alto (fluência e tempo)

Na primeira etapa observamos com atenção as partes do corpo que não tocavam ao

chão como a nuca, coluna lombar, parte de trás dos joelhos e tornozelos. Percebia com isso

uma alteração no corpo do Grupo na relação com a tensão corporal. Observava que neste

momento os corpos dos participantes estavam mais presentes na sala. Acredito que esse

exercício serviu para uma compreensão e autoconhecimento das estruturas corporais; a

transformação e condução de energia pelo corpo presentes em nosso trajeto. Observamos

também uma exploração continua dos movimentos respiratórios, a sintonia com a terra, com o

solo e a relação do corpo com a gravidade, elementos necessários para a compreensão do

universo cosmológico indígena.

Page 5: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Ainda na primeira etapa do exercício sintonia, percebia que o Grupo quase adormecia,

zerando seus movimentos para iniciar novos. Nesse momento pedia para cada participante

percebesse o peso do corpo no chão, imaginando que seu corpo estivesse sendo puxado para o

centro da terra, na tentativa de dilatar conexões com forças da natureza, com a terra (chão) e

com o espaço. Nos primeiros encontros esse exercício ajudou a conexão e absorção dos

conhecimentos que adquiríamos ao longo dos encontros. O exercício serviu para que o Grupo

Ameríndios Mex pudesse conectar com as forças que atuam no mundo, como a gravidade por

exemplo.

No processo, distribui folhas de papel e pedi para que o Grupo desenhasse um animal

que gostaria de ser, desenhando da forma que conseguisse, colocando ao lado adjetivos e

qualidades de movimento do animal escolhido.

No exercício sintonia solicitava para que o Grupo começasse a imaginar os animais

que haviam desenhado, lembrando texturas, partes do corpo e modos com que os animais

escolhidos eram presentes na memória do Grupo.

Neste sentido, Laban confirma que:

“os animais jovens apreendem, conquanto independentemente de um

controle consciente, a selecionar e desenvolver suas qualidades de esforço

por meio das brincadeiras. Ao brincarem os animais simulam todos os tipos

de ações que lembram, de maneira muito marcante as ações reais que terão

necessidade de praticar quando tiverem que se sustentar no futuro”

(LABAN,1978, p33).

O exercício finalizava com o esticar das partes do corpo (segunda etapa) no objetivo

de acordar músculos, ou movimentar partes do corpo que não movimentamos no cotidiano.

No decorrer dos encontros fui desdobrando esse exercício para que no momento de imaginar

esse animal dentro de cada um, pudesse chegar até o nível alto com qualidades identificadas

dos animais escolhidos pelo Grupo. Cada participante evocava qualidades de movimento que

estariam guardados em locais silenciosos dentro de suas memórias, e isso era precioso para

mim. Percebia a conexão com as qualidades de movimento dos desenhos de forma mais

latente na terceira etapa, quando todos os participantes estariam produzindo seus movimentos

no nível alto.

Este grupo me proporcionou o inicio do projeto em meu trajeto, me possibilitando

recriar o percurso criativo da investigação. O Grupo era composto por atores e dançarinos

Page 6: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

matriculados nos cursos de graduação em dança e teatro, e, técnico em formação de ator da

Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará.

Abaixo desenhos e relatos descritos pelo Grupo:

Desenho 01 - Desenho da Coruja, com seu olhar atento conectando ao Krori (Onça)

“Acho a coruja um ser bastante bonito. A coruja é um animal rápido e

atento a tudo. Tem qualidades como o voo. Consegue saltar e partir

para o voo. Também é um grande observador.”

Amália Santos.

Fonte: Amália Santo, 2013.

Desenho 02 - Desenho da Libélula, seu voo presente nas qualidades do Âkrê (Gavião).

“A Libélula é um ser puro, positivo e colorido, transmiti

muitas coisas boas. Pra mim a Libélula tem como

qualidades a rapidez. Ela é um ser intenso e constante.”

Andréa Apolinário.

Fonte - Andrea Apolinário, 2013.

Page 7: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Desenho 03 - Macaco, prestes a dar seu salto do Kukoj (Macaco).

Eu acho o macaco um ser genial, muito parecido com ser

humano. Eu acho ele muito perspicaz, ágil e acrobático. Pra

mim ele tem qualidades que ajudam muito na movimentação

para o teatro. Pra mim as qualidades que enxergo é poder de

contorção para fugir, possui a qualidade

também de saltar, muito interessante, sabe

dar rolamentos também.”

Kallew Max

Fonte: Kallew Max, 2013.

Consideramos em nosso processo a palavra animal, todo ser vivo presente na floresta

Amazônica. Sendo assim, cada animal intuitivamente nos auxiliou na investigação de

qualidades de movimento similares, encontrado em outros animais. Para exemplo, a libélula

possibilitou Andrea Apolinário a mostrar a cada encontro a investigação em seu corpo, a

qualidade do voo, presente também em outros animais de grande ou pequeno porte que

tenham essa habilidade.

Quando todos estavam no plano alto, Max gerava no “impulso pessoal” movimentos

nos três níveis: baixo, médio e alto. Amália, ao escolher a coruja, percebia um olhar

penetrante com um corpo tensionado, que a atriz desenvolvia no processo do exercício

sintonia, que poderíamos posteriormente observar qualidades da onça, como a atenção e olhar

atento.

O principio metodológico em utilizar a potencia dos desenhos para delimitarmos

qualidades de movimentos e especificidades de animais da fauna amazônica, foi também uma

inspiração retirada da autora Lux Vidal em “Grafismo Indígena” (1992). A autora nesta obra

coloca um procedimento metodológico ao analisar grafismos dos Xikrins, ao dar folhas de

papel e canetas para que as nira (mulheres indígenas) desenhassem intuitivamente os

grafismos que achavam importantes na comunidade.

No processo do Grupo Ameríndios Mex foi realizado desenhos para que

começássemos a observar em quais princípios se era construído a corporeidade mebengokre.

Page 8: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Os desenhos serviram para acessar qualidades de movimento animal, ancestrais para os

mebengokre, pertinentes na memória de uma cultura. O conhecimento sobre o animal

escolhido materializava o imaginário amazônico presente no corpo e na ancestralidade.

Ressaltando assim o “esforço de identificação de sua filiação histórica e de seu parentesco

atual como outros fenômenos” (BIAO, Armindo. 2009. p37).

A escolha dos grafismos para a criação do treinamento corporal surgiu a partir da

necessidade de estabelecer relação do corpo com os três níveis existentes: nível baixo, médio

e alto. Elegi quatro grafismos encontrados no material audiovisual do ultimo mergulho em

2013 com a comunidade de Apexty: Kapran (jabuti), Krori (onça), Kukoj (macaco), Âkrê

(gavião). Os grafismos identificados fazem relação com animais da floresta, porem é

necessário lembrar que existem outros tipos de grafismos com variação dos temas seguindo a

dicotomia: individuo – planta, individuo – animal, e individuo – objeto. Tal escolha da

relação individuo-animal partiu da necessidade de estabelecer relações corporais com

qualidades de movimento que pudessem ser sentidas no corpo para serem utilizadas na

atuação performativa.

No contato com os indígenas, observei a relação com a memória dos antepassados que

se tornam vivos no ato da pintura. É algo não dizível com palavras, porem muito bem

estruturado como destaca Lux Vidal:

“Os motivos decorativos se adaptam a um suporte plástico, o corpo que por

sua vez, é portador de outro conjunto de significados. Aplicada no corpo, a

pintura possui função essencialmente social e mágico-religiosa, mas também

é a maneira reconhecidamente estética (mei) e correta (kumrem) de se

apresentar. Estabelece-se aqui uma correspondência entre ético e estético. A

decoração é concebida para o corpo, mas este só existe através dela. Como

afirma Marcel Mauss e mais tarde Claude Lévi-Strauss, essa dualidade corpo

(forma plástica) e grafismo (comunicação visual) expressa outra dualidade

mais profunda e essencial: de um lado o individuo, de outro o personagem

social que ele deve encarnar”. (VIDAL, 1992, p.144).

Assim é reconhecido que os grafismos fazem parte de um elaborado sistema de

significados e códigos existente dentro da cultura mebengokre, forma de comunicação entre

os indígenas, estabelecendo códigos para habilidades presentes no corpo de cada individuo,

evocando forças e relação de poder com os grafismos pintados no corpo. Sendo observado

uma segunda pele social, personagem social, que este indivíduo vive. Percebendo então, o

Page 9: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

corpo (forma plástica) e grafismo (comunicação visual), a presença do corpografismo6 na

construção dos movimentos nesta proposição metodológica.

No sentido destacado por Pavis:

“O teatro pode redundar numa dificuldade da antropologia, a saber:

traduzir/visualizar os elementos abstratos de uma cultura como um sistema

de crenças ou valores, utilizando-se dos meios concretos; por exemplo, ao

invés de explicar um ritual, realiza-lo; em vez de dissertar sobre as condições

sociais dos indivíduos, mostra-la através dos gestus imediatamente legível”

(PAVIS, 1990).

O caminho metodológico denominado como corpografismo acompanha a escolha de

grafismos e sua tradução em movimentos por meio de procedimentos artísticos como o

exercício “sintonia” no processo de criação e mergulho na etnia mebengokre, encontrando

rastros para a criação dos movimentos e suas contribuições na construção de princípios para o

treinamento corporal de atores. Este treinamento em nenhum momento quer tornar este

mergulho um condicionamento corporal, e sim, possibilitar por meio do ensino de questões no

universo da cosmologia indígena, das pinturas corporais e sua analise, a valorização e o

fortalecimento da cultura indígena mebengokre. Podendo ser vivenciado e reinterpretado por

qualquer neófito a fim do mergulho na experimentação destes princípios.

A escolha dos grafismos partiu da necessidade de estabelecer relação com os três

níveis existentes para o domínio expressivo na atuação cênica: nível baixo, médio e alto. Os

grafismos identificados fazem relação com animais da floresta. No decorrer da pesquisa e na

analise dos vídeos a intenção é identificar e conectar qualidades de movimento dos animais

presentes na representação visual (grafismo) pintados no corpo da etnia mebengokre.

Qualidades de movimento encontrado nos animais, servindo para a preparação corporal dos

participantes do Grupo Ameríndios Mex, como confirma Laban ao dizer que:

“O movimento, portanto, revela evidentemente muitas coisas diferentes. É o

resultado, ou da busca de um objeto datado de valor, ou de uma condição mental.

6 A criação deste conceito partiu do estudo da obra “Antropologia estética” de Lux Vidal, onde a autora destaca

corpo (forma plástica), grafismo (comunicação visual). Unindo assim estas duas palavras para criação do

conceito de corpografismo, no mergulho em praticas corporais por meio de qualidades de movimentos

identificado nas pinturas corporais mebengokre análogos à qualidade de movimento animal.

Page 10: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que se move numa determinada

situação. Pode tanto caracterizar um estado de espírito e uma reação, como atributos

mais constantes da personalidade. O movimento pode ser influenciado pelo meio

ambiente do ser que se move.” (LABAN, 1978, p.20).

A necessidade da busca pelo movimento estabelecia ao longo do processo de

laboratório com o Grupo Amerindios Mex (GAM) a escuta de processos sensíveis

vivenciados no corpo a partir do encontro com a realidade corporal existentes no convívio

com diferentes espécies de animais da floresta amazônica. Este contato no qual os indígenas

estabelecem com a natureza proporciona ao corpo indígena habilidades corporais presentes

em animais da floresta. Esta aproximação era o percurso investigativo que gostaríamos de

chegar e vivenciar no corpo tais domínios pré-expressivos que contribuirão para a atuação

cênica no mergulho de aspectos étnicos e estéticos da cultura indígena mebengokre.

Figura 1Ao desenhar os grafismos existentes na primeira etapa do projeto Kapran Ok: Pinturas Indígenas de

Apexti possibilitou o encontro com o

“voo”.

Fonte: Rafael Cabral, 2013.

Page 11: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

As mulheres são as únicas a realizar a pintura corporal, elas desempenham esse papel

dentro das comunidades Mebengokre. As habilidades técnicas estão presentes nos modos

como as nira7 pegam seus pinceis e desenvolvem cada traço, imprimindo também sua marca,

seu estilo. É percebido essa alteração do estilo das pinturas. Uma com habilidades mais

desenvolvidas que outras. Lux Vidal analisa em seu livro “Morte e vida de uma sociedade

brasileira” o domínio da técnica do qual as mulheres que desenvolvem as melhores pinturas

são aquelas que possuem uma quantidade maior de filho outras, pois as crianças são suas telas

vivas.

3. Mex: o treinamento

Neste estudo irei incorporar a palavra treinamento à palavra Mex por perceber que a

construção de nossa preparação corporal se estabelece com a troca de informações e troca de

praticas corporais indígenas, conceito bastante forte e que vai mais além do conceito de

treinamento no universo ameríndio mebengokre, estabelecendo o contato com dimensões

simbólicas presentes na cultura Ameríndia, trazendo-as para as artes cênicas e princípios e

valores negados durante muito tempo, pelo menos em minha família.

A negação da cultura indígena se estabelece com a não afirmação da cultura que

percebo ser muito próxima a cultura paraense. Utilizando-se assim da tradução artística para

desenvolver princípios e métodos para o acesso a informações importantes de serem testadas

em locais do ensino da cultura indígena e do teatro. Assim Patrice Pavis diz:

“[...] que se utilize o teatro com o instrumento para transmitir e produzir

informações sobre a cultura veiculada. O teatro pode redundar numa dificuldade da

antropologia, a saber: traduzir/visualizar os elementos abstratos de uma cultura

como um sistema de crenças ou valores, utilizando-se dos meios concretos; por

exemplo, ao invés de explicar um ritual, realiza-lo; em vez de dissertar sobre a

condições sociais dos indivíduos, mostra-la através dos gestus imediatamente

legível.” (PAVIS, 2008 p.15).

Usando assim a tradução como confirma na citação acima por Patrice Pavis, traduzo

os grafismos (identificados) em movimentos por uma percepção simbólica e afetiva no campo

da sensorialidade defendido por Armindo Bião como a categoria da percepção que se

7 Significa mulher na língua Mebengokre.

Page 12: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção, faculdade perceptiva e

reativa e fragilidade é muito forte e distinta do que se pretende compreender como essa nova

palavra (BIÃO, 2009).

Assim a sensorialidade do corpo na aplicação do grafismo cotidiano se da no percurso

até encontrar os movimentos para a preparação corporal passando por estímulos sensoriais,

afetivos e simbólicos dos momentos vivenciados na Aldeia de Apexti e no universo

cosmogônico presentes na cultura indígena. Assim como a analise dos traços e formas

presentes nos grafismos identificados por esta pesquisa, seleciono qualidades dos animais da

fauna amazônica, representados pelos grafismos indígenas Kapran, Krori, Kukoj e Âkre.

É visível em nossas observações dos arquivos (pinturas scaneadas) na primeira etapa

do projeto Karpan Ok: Pinturas Indígenas de Apexti, a identificação dos grafismos que

estávamos traduzindo em movimentos, relação com os animais da floresta amazônica, sendo

desenvolvida nesse momento uma tradução simbólica, afetiva e sensorial dos estímulos

vivenciados pelo corpo material e espiritual dentro da aldeia de Apexti. Encontrando nos

aportes teóricos referencias relevantes para entender a importância e a complexidade dos

significados dos grafismos dentro da aldeia Mebengokre.

Segundo Lux Vida:

“Por intermédio de numerosas publicações e especialmente de fotografias

veiculadas pelos meios de comunicação de massa, a arte gráfica desses

índios é possivelmente a mais conhecida entre nós. No entanto, o significado

profundo dessa ornamentação do corpo, um idioma-codigo expresso

graficamente, ainda fica para ser desvendado e entendido em seus próprios

termos. Cabe ao etnólogo lê-lo e interpreta-lo no contexto sociocultural a

que pertence.” (LUX, 1992, p.143.).

É notório no processo de execução do nosso Mex, durante os quatro meses de

realização dos movimentos traduzidos, faculdades perceptivas de concentração, dilatação e

atenção no espaço. Cada movimento desenvolve habilidades para o exercício pratico da

atuação, tentando resgatar qualidades que permeiam a vida, o bios, presentes na cultura

ameríndia, encontradas na aldeia de Apexti, porém percebemos que o desenvolvimento das

praticas construídas no Grupo, precisam ser testadas com um maior tempo para podermos

derivar outras vivencias e aperfeiçoar nossos princípios investigativos.

Page 13: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

O modo como os indígenas utilizam seus corpos para realizar atividades diárias não

está descolado de conexões como todo o seu universo cosmológico e mítico, dos grafismos e

da relação com a natureza. A utilização de seus corpos para a realização de atividades como

pescar, caçar e plantar, está intrinsecamente ligado à praticas executadas desde seu

nascimento como nadar, correr, pular, cair. Identificando assim uma construção ordinária do

corpo indígena podendo ser utilizado para cena. Em minha analise, essa vida, esse bios para

nós, artistas da cena, precisa esta intimamente ligada na percepção de qualidades de

movimentos para a cena passando para o extracotidiano. Assim para Eugenio Barba:

“A maneira como usamos nossos corpos na vida cotidiana é substancialmente

diferente de como o fazemos na representação. Não somos conscientes das nossas

técnicas cotidianas: nós nos movemos, sentamos, carregamos coisas, beijamos,

concordamos e discordamos em gestos que acreditamos serem naturais, mas que de

fato, são determinados culturalmente. Culturas diferentes determinam técnicas

corporais diferentes, se a pessoa caminha com ou sem sapatos, carrega coisas em sua

cabeça ou com as mãos beijam com os lábios e com nariz. O primeiro passo em

descobrir quais os princípios que governam um bios cênico, ou vida, do ator, deve

ser compreender que as técnicas corporais podem ser substituídas por técnicas

extracotidianas, isto é, técnicas que não respeitam os condicionamentos habituais do

corpo. Os atores usam essas técnicas extracotidianas.” (BARBA, 1995, p.9).

Assim na citação acima mostrar-nos uma alteração de valores presentes nos escritos

por Eugenio Barba. Pois é identificada a necessária utilização de praticas cotidianas indígenas

necessárias para usarmos na representação. É fato que muitas das praticas observadas

encontram-se na memória ancestral dos povos indígenas, praticas que são (re) feitas

cotidianamente, como suas ações na pesca, na caça, como também na utilização da pintura

como forma de socialização do individuo, passando despercebidas pelos mesmos. Esta aqui a

importância que cabe o etnocenologo analisar com as vivencias a partir da observação

testadas em seu próprio corpo, praticas que serão “recortadas” para a utilização no palco, na

cena e na vida.

Neste momento se tornam conscientes do seu bios cênico. Praticas que são

determinadas pela imersão na cultura ameríndia percebendo única e peculiar semelhança com

qualidades essenciais para o corpo na cena. Percebendo nesta pesquisa princípios indígenas

com o auxilio dos conhecimentos da etnocenologia para identificar qualidades sensórias

perceptivas para entender e analisar técnicas corporais indígenas para Mex do ator.

Page 14: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Percebi ao final do processo a necessidade do estudo de um Mex vocal, porem será um

desdobramento para trabalhos posteriores, por identificar potencias sonoras nas musicas e

notas, que poderão servir para uma preparação vocal do ator para cena a partir do universo

aqui investigado.

A utilização da sala de aula como nossa Aldeia é fundamental para evocarmos

princípios vivenciados na Aldeia de Apexti, como o reconhecimento do espaço, que serviu

para entendermos também qual o local que nossas investigações habitam. Nos encontros com

o Grupo, não usávamos o ar condicionado, deixando todas as portas e janelas abertas para que

nosso oxigênio fosse o mais natural possível, deixando que raios de sol pudessem entrar em

nosso trabalho, conectando a faculdades reativas vividas na Aldeia. Também a fumaça de

tabaco no cachimbo foi experimentado em nossos encontros como meio de percepção

profunda do corpo e da alma.

Figura 2. Alongamento é necessário para iniciarmos nosso encontro.

Foto: Rafael Cabral, 2013.

O inicio dos nossos encontros sentíamos a necessidade de alongarmos todas as partes do

corpo. Em seguida, começávamos a realizar um aquecimento que denominei de “circulo de

pykatoti”. Onde todos ficam em círculo sem movimentar as pernas, o corpo balança para um

lado e para o outro, alongando as pernas. Logo depois começa o movimento para o lado

direito, iniciando com a velocidade lenta, passando para a moderada e depois rápido, ate

chegar no ápice da velocidade rápida e começando a decrescer tal velocidade. O movimento

se repete quando o corpo chega ao momento inicial do exercício.

Page 15: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Nesse processo fomos construindo juntos os movimentos que servem de princípios

para o nosso Mex. A seguir iremos encontrar os movimentos e seus grafismos respectivos. Na

investigação tentamos olhar, na criação dos movimentos, a partir dos fatores labanianos de

movimento estudado por Rudolf Laban em seu SLA (Sistema Laban de Analise do

Movimento).

3.1. Kapran Ok e movimento Kapran.

Kapran significa Jabuti e “Ok” significa pintura em Mebengokre. Esse grafismo é pintado

com o pincel de nervura da folha do babaçu. O grafismo Kapran é pintado com traços que

formam hexágonos que interligam outros da mesma proporção, criando uma profundidade ao

desenho. Os traços levam ao hexágono.

Os grafismos abaixo nos confirmam sua forma e seus traços presentes na analise dos

grafismos. Cada um desses grafismos foi realizado por cada nira8. É observada uma alteração

de traços quando as nira desenham no papel um estilo diferente da outra como podemos

observar:

Desenho 08 - Grafismos Kapran Ok, pintura de jabuti. Desenho: 1.Erejanê; 2. Irekabô Djê; 3.

Bekwyinhô; 4. Nhakpuroro; 5. Bekwynh-rax; 6. Não identificado;

8 Significa “mulher” na língua mebengokre.

Page 16: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Desenho 01 Desenho 02 Desenho 03

Desenho 04 Desenho 05 Desenho 06

Fonte: indígenas da aldeia de Apexty, 2013

Todos os desenhos possuem hexágonos que acompanham traços. Nos desenhos 1 e 5 é

identificado uma construção de outros motivos dentro dos hexágonos. No desenho 1 é

observado dentro das proporções dos traços o grafismo da anta e do jabuti nas linhas que os

ligam. No desenho 5 é identificado dentro dos hexágonos o grafismo do peixe.

Os jabutis são animais que possuem casco convexo, carapaça bem arqueada e pernas

grossas. A carapaça é uma estrutura óssea formada pelas vértebras do tórax e pelas costelas.

Funciona como uma caixa protetora na qual o animal se recolhe quando atacado.

Page 17: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

É possível identificar o desenho quando aplicado no corpo, porém com as alterações

sofridas na imagem do desenho. O grafismo no corpo é alterado devido termos estruturas

corporais diferentes de individuo para individuo.

Figura 3. Grafismo do Kapran realizado no corpo do pesquisador as margens do Riozinho.

Foto: Edmir Amanajás, 2013.

A imagem acima mostra o grafismo do Kapran em minhas dimensões corporais.

Geralmente esse grafismo não é feito no corpo todo, pois demanda tempo e trabalho. É

presente nos caciques e indivíduos com nomeação. A fotografia acima foi registrada logo

após eu ser pintado, estava impressionado com os detalhes que em alguns momentos aparecia

em meu corpo.

Assim meu corpo ia registrando estímulos sensórios e afetivos como o momento da

pintura, estímulos estes que desenvolvia em mim princípios como ator para que pudessem ser

analisados nesta pesquisa.

O movimento Kapran desenvolve possibilidade de deslocamento utilizando os braços

para a mudança de posição do corpo, conduzidos pelos processos respiratórios de inspiração e

expiração. Criar tensões e percepção de atividades corporais presentes no domínio pré-

expressivo.

O movimento em Kapran partiu da observação de qualidades de movimento presentes

no jabuti, por perceber sua precisão ao deslocar-se. O movimento começa com as mãos

esticadas em frente à cabeça, olhos direcionados para frente, onde se dar o deslocamento do

corpo. As mãos à frente direcionam-se para trás seguindo os traços hexagonais do grafismo do

Page 18: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Kapran. As mãos ao terminam próximas a parte lateral do tórax auxiliando no deslocamento

do corpo. O movimento em Kapran se desenvolve sempre no nível baixo.

Figura 4. GAM realizando o primeiro deslocamento do braço.

Fonte: Rafael Cabral, 2013

3.2. Krori e movimento Krori.

Krori significa onça na língua mebengokre. A pintura deste grafismo se divide em

duas, a pintura de onça no rosto, Nokre Krori, ou no corpo, Catchet Krori. Diferente dos

outros grafismos, este não é pintado com o pincel de nervura da folha do babaçu. Esse

grafismo é pintado por meio de aplicação da parte de dentro de algumas frutas que possuem o

Page 19: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

circulo que lembra as marcas presente no corpo da onça pintada. O grafismo é aplicado no

corpo respeitando as relações simétricas existentes, frontal, medial e lateral como é

identificado nas pinturas.

A onça é um animal carnívoro. Alimenta-se, principalmente, de capivaras,

serpentes, coelhos, veados, antas e outros mamíferos de pequeno porte. Come também peixes

que ela mesma captura em rios, pois possui a capacidade de nadar. Na imagem abaixo é

possível perceber a semelhança do grafismo do Krori com as pintas da onça da Amazônia.

Figura 5. Rop Kran preste a entregar na dançar

Fonte: Rafael Cabral, 2013.

Este indígena esta a um passo de colocar seu corpo no circulo da dança. Ele entrou

sozinho, dançou, sorriu. Essa festa foi uma comemoração da finalização da oficina de

etnomapeamento acontecido na aldeia de Apexti. Este indígena esta com o grafismo do Krori,

percebendo a mesma disposição dos círculos nas dimensões da lateralidade e frontalidade do

corpo humano. Esse grafismo não foi pintado no papel.

O movimento Kroki possibilita o domínio do deslocamento da coluna vertebral para os

lados, em movimento de torção da coluna, encontrando possibilidades de deslocamento e

tensão. O movimento em Krori está localizado no nível médio. A tensão esta presente na

região dos braços e pernas, o quadril se desloca acompanhando as mãos, desenvolvimento

diferente de equilíbrio e tensão analisados por Eugenio Barba ao observar que:

“Quando caminhamos usamos as técnicas cotidianas do corpo, o quadril

acompanham as pernas. Nas técnicas extracotidianas do ator de Kabuki e Nô o

Page 20: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

quadril, ao contrario, permanece fixo. Para bloquear o quadril enquanto se caminha é

necessário dobrar os joelhos ligeiramente e, ajustando a coluna vertebral. Usar o

tronco como um bloco, que então pressiona para baixo. Desta maneira diferentes

tensões são criadas nas partes superior e inferior do corpo. Essas tensões obrigam o

corpo a encontrar um novo ponto de equilíbrio. Não é uma escolha estilística, é uma

maneira para gerar a vida do ator. Então, ele se torna, em um segundo momento,

uma característica estilística particular.” (BARBA, 1995, p.10).

Assim é perceptível no movimento do krori a tensão muscular, principalmente das

mãos e pernas, que são alternados conforme o movimento. O olhar do animal remete a

perspicácia do ataque que encontro no olhar preciso dos Mebengokre. O movimento é fluido,

sem interrupções. A inspiração e expiração acompanham o deslocamento do corpo em Krori.

A rotação para o lado direito e para lado esquerdo partiu da observação dos

movimentos que para mim o grafismo do Krori se fazia presente em minha analise, por

perceber os círculos da aplicação do grafismo no corpo ter quebras, que em minha

compreensão se liga as quebras da semi rotação do quadril.

Figura 6. Movimentos respiratórios na sequencia do movimento em Krori.

Fonte: Rafael Cabral, 2013.

Page 21: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Figura 7. O coletivo dos atores no movimento Krori que ativa as articulações dos braços, pernas e quadril.

Fonte: Rafael Cabral, 2013.

É observado nessa imagem apenas o deslocamento de um lado. No movimento Krori

essa posição da fotografia acima e presente nos dois lados, direito e esquerdo. O movimento

vai deslocando o corpo pelo espaço.

3.3. Kukôj Ok e movimento Kukôj

Kukoj significa macaco na língua mebengokre. Sua pintura é completa por jenipapo,

não sendo observados, os belos traços e marcações presentes nos outros grafismos,

começando na região media do antebraço até a região media das pernas. O limite da pintura

no pescoço vai até região das escapulas, onde é presente um circulo completo que acompanha

o pescoço. Esse grafismo é usado quando os indivíduos vão para uma situação de risco ou

para guerra. Este grafismo é muito importante, pois faz relação direta com a etimologia da

palavra Kayapo (cara de macaco).

O grafismo do Kukoj (macaco) que comumente utilizam alguns dos indígenas de

Apexti, observo uma utilização em situações que eles não se encontram nos limites da aldeia,

acreditando que essa pintura possa lhe dar mais força para possíveis batalhas. O grafismo do

Kukoj é usado com maior frequência pelos guerreiros, sendo as alterações de seus traços e

acabamentos dependendo da nomeação que esse guerreiro recebe ou do seu momento atual.

Essa observação que exemplifico na investigação dos grafismos, a do kukoj chama

minha atenção por perceber que esses códigos são simbolicamente incorporados no cotidiano

da aldeia de Apexti, sendo o grafismo uma segunda pele social como confirma Lux Vidal ao

falar que a pintura corporal sobrepõe uma segunda „‟pele social‟‟, constituída de padrões

Page 22: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

“estandardizados”, exprime simbolicamente a „‟socialização‟‟ do corpo humano: a

subordinação dos aspectos físicos da existência individual ao comportamento e aos valores

sociais comuns (VIDAL, 1992).

Esse grafismo não é pintado com o pincel de nervura da folha de babaçu, geralmente as

nira executam esse grafismo mergulhando a mão no jenipapo e passando no corpo do

individuo. Na imagem a seguir verifica-se a panorâmica no momento de preparação para a

entrada no espaço da dança. A seta revela os indígenas que estão com o grafismo do Kukoj.

Figura 8. Preparação para a entrada da dança

Fonte: Rafael Cabra, 2013.

O guerreiro em Apexti usa bastante o grafismo do Kukoj em seu corpo, nesse

momento todos estão prestes a entrar no circulo da dança, com chocalhos nos pés dando uma

sonoridade para a dança. Observando a presença de muitos grafismos Kapran Ok neste

momento.

O movimento Kukôj desenvolve um domínio da qualidade do salto, sendo criado

ponto de tensões nas pernas no momento do salto. Os movimentos respiratórios são

fundamentais para o deslocamento do movimento, possibilitando qualidades e esforço

corporal presentes nos processos de atuação pré-expressiva. O movimento em Kukoj é o

único que passa pelos níveis médio e alto.

A tradução do movimento do grafismo Kukoj partiu da necessidade de deslocamento

no espaço sem o auxilio do uso normal dos pés, criando conexões observando a dimensão

espacial que a pintura no corpo em Kukoj se mostra. Este grafismo não possui traços

codificador e pode ser pintado pelos homens, que precisam das habilidades do salto.

Page 23: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

A percepção de deslocamentos para frente e o controle do corpo usando a força da

gravidade é também observado por Eugenio Barba:

“Outro exercício pode resultar da tentativa de deslocar seu peso para frente, até não

se ter controle sobre o corpo. Neste momento, o corpo arrastado somente pela força

da gravidade, cai para frente. É necessário encontrar um contra-impulso no meio da

queda, que nos permita evitar cair para a frente, amortecendo para o lado, de modo a

absorver o choque contra o solo, gradualmente, ao longo do lado do corpo.”

(BARBA, 1995, p. 245).

Assim, é necessário para a preparação corporal do ator habilidades como o saltar,

usando forças na natureza ao nosso favor, sendo importantes para exercício de habilidades de

deslocamento na cena. Como mostra a imagem abaixo, atores do Grupo realizando o

movimento em Kukoj com seus saltos.

Figura 9. A primeira pessoa da esquerda pra direita esta posicionada no inicio do movimento.

Foto: Rafael Cabral, 2013.

Figura 10. Max, esta localizado ao meio em sua plenitude do salto, permitido em Kukoj

Foto: Rafael Cabral, 2013.

Page 24: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Em Kukoj o movimento é usado para ajudá-lo a sobrepujar o medo e a resistência, a

ultrapassar seus limites, depois, ele se torna um meio de controlar energias aparentemente

incontroláveis, de encontrar, por exemplo, os contra-impulsos, necessários para cair sem se

ferir ou de plantar no ar o desafio à lei da gravidade. “Acima e além do exercício, essas

conquistas encorajam o ator: mesmo que não faça isso sou capaz de fazê-lo. E no palco, por

causa do seu conhecimento, o corpo torna-se um corpo decidido”” (BARBA, 1995). Isso

confirma, pois no inicio é notado o medo de saltar da atriz Amália Santos, pois segundo ela,

esse movimento lhe recordava um queda que sofreu quando era criança, lhe impedindo de

saltar. Conforme o desenvolvimento do Mex, ela conseguiu ultrapassar o medo do salto,

executando belíssimos saltos, confirmando assim a potência do treinamento.

3.4. Àkrê Ok e movimento Âkrê

A pintura do Âkrê Ok é pintada com jenipapo, porem se utiliza do pincel de nervura

da folha de babaçu para fazer os traços retos de contorno da pintura que é feita a mão. No

momento da pintura pude observar os traços que dividiram o corpo em duas partes,

primeiramente, passando o jenipapo na parte frontal, fazendo um traço que começa na região

do tórax e termina na região da crista ilíaca. São realizados traços ao longo da lateral do

corpo, tanto na região superior quanto inferior do corpo, com a mão coberta de jenipapo, para

depois ser traçado as linhas que ligam aos ombros, aos braços e antebraços, criando um

formato de asa de ave.

Quando os braços são balançados para cima e para baixo é possível ver a pintura

criando movimento em uma perspectiva impressionante. Em seguida é realizado com o dedo

indicador os pontos da pintura. O pescoço é pintado até o começo da região do pescoço,

criando um circulo em volta do mesmo. Essa pintura como as demais, termina na parte media

do antebraço e parte media da perna.

Page 25: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Figura 11. Âkrê Ok na dimensão corporal de Rafael Cabral

Foto: Edmir Amanajas, 2013

É possível observar nessa imagem um estilo próprio de Erejane, pois ela utiliza tanto a

pintura á mão como com o pincel de nervura. No momento da pintura foi pedido por mim

para que esse grafismo pudesse ser desenhado.

As Praticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO) me

deram o olhar para analisar praticas afirmativas de descoberta da minha ancestralidade, agora

traduzidas para princípios do treinamento corporal do ator. A imagem abaixo presentifica no

corpo de um ator, um momento fundamental na compreensão da arte não distante do

cotidiano, como olham os Mebengokre, auxiliando esse momento vivenciado para as

reflexões e analise de materiais que a pesquisa se debruça a investigar.

As fotografias em sequencia acima demonstram a passagem do tempo na pintura em

Âkre Ok. Esta pintura demanda tempo e dedicação para que ela fique com a perspectiva exata

das asas do gavião.

O movimento do Âkrê desenvolve um domínio preciso da respiração e do movimento

do diafragma. O corpo interage com direções no percurso do movimento, dilatando no ator

noções de dimensão espacial.

O movimento em Âkrê parte da observação de qualidades de voo do animal que o

grafismo representa. Os braços representam suas asas que levantam e descem ao lado do

corpo, seguindo a expiração e inspiração, respectivamente. Os movimentos respiratórios

foram observados a partir dos pontos presentes nos grafismos em Âkrê. Este movimento está

localizado no nível alto e seu deslocamento no espaço acompanha a direção do olhar, sendo o

Page 26: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

corpo deslocado com o desequilíbrio para frente do corpo, analogicamente, a ave caindo para

frente e alçando voo.

Figura 12. Amália alçando voo no movimento Âkre.

Foto: Rafael Cabral, 2013.

Este movimento faz com que o ator obtenha uma compreensão precisa nos

movimentos respiratórios, se utilizando deste movimento para a compreensão do corpo no

espaço. Os braços sobem e descem acompanhando a inspiração e expiração, deslocando o

corpo no espaço, com um passo para frente que lhe leva a um desequilíbrio no corpo para

frente. Este desequilíbrio esta na direção do olhar no espaço.

4. Os Fatores de Movimento em Kapran, Kukoj, Krori e Âkrê

Analisados esses aspectos no treinamento, em seis meses de vivencias e trocas com o

GAM – Grupo Ameríndios Mex, sintetizo no quadro abaixo os princípios fundamentais que

caracterizam a dominante corporal dos animais a partir dos fatores de movimento estudados

por meio do SLA (Sistema Laban de Analise do Movimento).

Page 27: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Esquema 03 - Cada grafismo possui rastros do animal no movimento Mex que caracterizam

cada movimento para o ator.

Fonte: Rafael Cabral, 2013

O intérprete deve conhecer os esforços, mas, além disso, deve poder altera-los

conscientemente, mudar suas qualidades, ou seja, o modo segundo o qual é liberada a energia

nervosa, por uma modificação dos componentes do movimento: peso, espaço, tempo e

fluência; que, por sua vez, aliam-se a uma atitude interior consciente ou inconsciente

(MACHADO, 2002). Segundo a autora, essas características de esforço podem ser

desenvolvidas, modificadas e treinadas, já que dizem respeito também à relação estabelecida

com o meio ambiente, com os outros homens, como nas Aldeias Mebengokre, onde encontro

características peculiares e os fatores de movimento (peso, espaço, tempo e fluência) se

comunicam no percurso da vida na floresta, no corpo dos Mebengokre e agora no meu. A

riqueza e a própria diversidade dos esforços humanos são a própria fonte de sua

dramaticidade, que podem ser fortalecida através de um treinamento sistemático e objetivo

(MACHADO, 2002).

Entendendo que movimento é uma resposta ativa a massa muscular, por uma reação

em cadeia que percorre o corpo de um ponto a outro. Essa ativação pode gerar um

deslocamento visível no espaço, ou, caso não se produza conformar uma resposta

Page 28: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

aparentemente estática (BRIKMAN, 1989). Para Brikman o importante é o que o movimento

deva ser uma resultante de uma atitude muscular receptiva, de um estado de tonicidade

muscular. Assim observamos no Mex todos os movimentos desenvolvendo pontos de tensão,

levando à tonicidade de regiões do corpo peculiar de cada animal investigado.

Esta investigação deu-se na tradução de movimentos exteriores, facilmente observável

no corpo quando ativado musculaturas periféricas facilmente identificadas. Talvez em etapa

posterior investiguemos mais detalhado os movimentos interiores ainda pouco visíveis,

ativando massas musculares mais profundas.

Nos princípios labanianos a qualidade do movimento deve-se mencionar a quantidade

de energia que o corpo deve empregar para realizar certo esforço. Esse esforço se cumpre em

certo tempo e em um espaço particular e resulta em ações básicas. Assim os movimentos com

são realizados no Mex podem ser alterados por qualquer praticante que possa enxergar como

potentes as qualidades dos animais identificados por essa investigação, por meio dos

grafismos Mebengokre. A sua contribuição poderá, então, modificar aspectos presentes no

quadro analisado anteriormente. Modificando tais qualidades o ator poderá produzir infinitas

outras qualidades de movimento que ele próprio irá combinar.

Constatei no decorrer desses seis meses de encontro uma sensível modificação

corporal, tonicidade dos músculos observado nos atores do Grupo, porem não analisado nesta

investigação, percebendo também, uma disposição corporal maior dos participantes no

decorrer do Mex. Acredito que esta vivencia e reflexão na etapa objetivada nesta pesquisa

sinaliza o começo de um rastro que me levará a outros encontros, possíveis achados e grandes

conquistas como ator e pesquisador imerso no universo ameríndio do Xingu na construção do

conhecimento em Artes Cênicas.

Considerações finais

A construção de princípios para o treinamento corporal para atores não é recente.

Vários pensadores e grupos pelo mundo desenvolvem técnicas que permearam pelo Brasil ou

pelo mundo praticas que nortearam seus fazeres e de outros grupos. Evidentemente esta

pesquisa não é o único modo de preparação corporal para atores, porem é desconhecido, um

treinamento para atores que partiu de pressupostos simbólicos e afetivos da etnia

Mebengokre.

Page 29: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

Na tradução dos quatro movimentos (Kapran, Kukoj, Krori e Âkrê) partindo dos

grafismos indígenas, encontrei caminhos metodológicos em referencias como Lux Vidal para

elaborar novos princípios, para a preparação física de atores. Podendo ter como

desdobramentos a investigação de potenciais sonoros presentes nas musicas dos Mebegonkre

sendo usado como treinamento vocal para atores. Derivações daí advindas pretendo investigar

em futuros trabalhos. Sendo necessária a construção de uma nova linguagem que se faz

através do uso de experimentos técnicos e praticas a partir do universo ameríndio do Xingu.

Renovando com sua poética, seus jogos de cores, ilusões de belíssimas imagens e grandes

emoções a pesquisa em artes cênicas.

Os grafismos são representações simbólicas na cultura indígena. Qualidades de

movimento animal presentes em nossa tradução, potentes para entendermos questões

relacionado a questão indígena na Amazônia. Neste sentido traduzimos os grafismos em

qualidades de movimento de animais, análogo aos grafismos escolhidos, com o objetivo de

comunicar os princípios éticos e estéticos da cultura indígena mebengokre. Sendo de grande

importância para professores de modo geral se apropriarem do percurso desta tradução ou

recria-la.

As contribuições epistemológicas da etnocenologia e da antropologia estética foram de

grande importância para a criação deste trajeto. Os princípios para o treinamento corporal de

atores, em nenhum momento pretende condicionar a potencia corporal criativa, e sim,

possibilitar o encontro de novas práticas corporais, incentivando a reinterpretação,

favorecendo outras formas do fazer artístico nas possibilidades de domínio do corpo na cena.

Page 30: Kapran, Krori, Kukoj e Âkre: uma tradução em movimentos ... · linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, se inspira no uso da dimensão orgânica

Rafael Cabral

Belém, vol. 1, n. 2, p. 300-329, julho/dezembro 2015

REFERÊNCIAS

BARBA, Eugenio. A arte secreta do ator. Campinas: Editora da UNICAMP,1995.

BIÃO, Armindo. Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia. Bahia: P&A,

2007.

BIÃO, Armindo. Colóquio internacional de Etnocenologia. Bahia: Fast Design, 2007.

BIÃO, Armindo. Etnocenologia e a Cena Baiana: textos reunidos. Bahia : P&G Grafica e

Editora, 2009.

BRIKMAN, Lola. A linguagem do movimento corporal. São Paulo: Summus, 1989.

CABRAL, Rafael. Amerindios Mex: Um estudo do treinamento corporal a partir dos

grafismos de animais sagrados para etnia mebengokre da aldeia de Apexty. Universidade

Federal do Pará, 2013.

COHEN, Renato. Work in progresso na cena contemporânea. São Paulo: Ed. Perspectiva,

1998.

HAMÚ, Denise. Ciência Kayapó. Belém: Museu Paraense Emilio Goeldi, 1992.

LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus editorial, 1978.

LAGROL, Els. Arte indígena no Brasil. Belo Horizonte: C/ Arte, 2009.

LUKESCH, Anton. Mito e vida dos índios Caiapós. São Paulo: Pioneira, 1976.

MACHADO, Sonia. Papel do corpo no corpo do ator.São Paulo: Perspectiva, 2002.

PAVIS, Patrice. Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008.

RIBEIRO, Darcy. Índios e a Civilização. 3.ed. São Paulo: Vozes, 1979.

TREVISAN, Renato. Dicionário Kayapo. Brasília: FUNAI, 1991.

VIDAL, Luz. Grafismos Indígenas: estudos de antropologia estética. São Paulo: Edusp,

1992.

VIDAL, Luz. Morte e vida de uma sociedade brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1977.