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Linguagem e letramento em foco Língua Portuguesa Leitura, literatura e ensino Márcia Abreu Professora Orna Messer Levin Professora

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literatura e ensino

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Linguagem e letramento em focoLíngua Portuguesa

Leitura, literatura e

ensino

Márcia AbreuProfessora

Orna Messer LevinProfessora

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© Cefiel/IEL/Unicamp

É proibida a reprodução desta obra sem a prévia autorização dos detentores dos direitos.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

Presidente: LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA

Ministro da Educação: FERNANDO HADDAD

Secretária de Educação Básica: MARIA DO PILAR LACERDA ALMEIDA E SILVA

Diretor de Políticas de Formação, Materiais Didáticos e de Tecnologias para a Educação

Básica: MARCELO SOARES PEREIRA DA SILVA

Coordenadora Geral de Política de Formação: ROBERTA DE OLIVEIRA

Cefiel – Centro de Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da

Linguagem (IEL) *

Reitor da Unicamp: Prof. Dr. José Tadeu Jorge

Diretor do IEL: Antonio Alcir Bernárdez Pécora

Coordenação do Cefiel: Marilda do Couto Cavalcanti

Coordenação da coleção: Marilda do Couto Cavalcanti

Coordenação editorial da coleção: REVER - Produção Editorial

Projeto gráfico, edição de arte e diagramação: A+ comunicação

Revisão: REVER - Produção Editorial

* O Cefiel integra a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica.

A Rede é formada pelo MEC, Sistemas de Ensino e Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da

Educação Básica.

Impresso em abril de 2009.

ISBN 978-85-62334-05-4

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Sumário

Introdução: Qual o significado deste texto? / 5

Poesia / 11O que é um poema (das diferenças entre prosa e poesia) / 11De que é feito o poema / 12Lendo um poema na escola / 26Como o poema se organiza / 29Sentidos sugeridos pelo poema / 31Interpretações do poema / 33Uma outra leitura possível / 35Concluindo / 37

Prosa / 38Do que se faz uma narrativa / 38Lendo um romance na escola / 47Traiu ou não traiu? – O leitor fisgado pelo enredo do romance / 55

Conclusão – Leitura e interpretação / 61

Referências / 63

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Introdução – Qual o significado deste texto?

Em sua vida escolar, como professor ou como aluno, você deve ter deparado, diversas vezes, com perguntas do tipo: “Qual o

significado deste verso?”, “O que este conto quer dizer?”, “Qual o sentido deste romance?”.

Questões dessa natureza pressupõem que os textos literários te-nham um sentido oculto a ser decifrado, cabendo aos leitores chegar ao verdadeiro significado da obra, que não se mostraria de imediato.

A idéia de que textos literários guardam um mistério cuja deci-fração pode ser bastante penosa foi abordada, com muita graça, no romance O guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams.1 O livro conta a história de Arthur Dent, um homem comum, salvo da destruição do planeta Terra por Ford Prefect, um alienígena com forma humana, em pesquisa de campo pelo universo para aprimo-

1 O guia do Mochileiro das Galáxias foi, inicialmente, uma série de rádio; depois, compilada

em fita cassete e transformada em livro, tornou-se um best-seller mundial e, em seguida,

um filme: The Hitchhiker’s Guide to the Galaxy (EUA, 2005, direção de Garth Jennings).

Imagens do filme podem ser vistas em: http://www.filmes.net/mochileiro/global/index.html?countryID=&section=&datastr=&.

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rar seu livro O guia do Mochileiro das Galáxias, que contém toda a informação necessária para sobreviver fora da Terra.

Arthur e Ford salvam-se pegando carona em uma nave espacial que sobrevoava a Terra no exato momento de sua destruição. De-safortunadamente, trata-se de uma nave vogon. Conforme adver-te o narrador, os vogons são “uma das raças mais desagradáveis da Galáxia. Não chegam a ser malévolos, mas são mal-humorados, burocráticos, intrometidos e insensíveis”.2 Esse desagradável povo tem uma forma particular de torturar seus prisioneiros: ler para eles suas poesias. Por isso, O guia do Mochileiro das Galáxias adverte: “Jamais, em hipótese alguma, permita que um vogon leia poemas para você.”3 Esse povo pouco evoluído tinha, no princípio, composto poemas com o objetivo de ser aceito “como uma espécie evoluída e culta, mas agora só persistia por puro sadismo”.4

Apesar da orientação, Arthur e Ford não conseguem escapar. São capturados pelos vogon e amarrados em “cadeiras de Apre-ciação Poética”. Em suas têmporas são instalados eletrodos liga-dos a um complicado equipamento eletrônico: “intensificadores de imagens, moduladores de ritmo, residuadores aliterativos e descar-regadores de símiles”. A função desse aparelho era “intensificar a experiência poética e garantir que nenhuma nuança do pensamen-to do poeta passaria despercebida”.5

Os dois prisioneiros sofrem com a simples audição do poema recitado por seu próprio autor:

“– Ó fragúndio bugalhostro... – começou. O corpo de Ford foi sacu-

dido por espasmos; aquilo era bem pior do que esperava.

2 ADAMS, Douglas. O guia do Mochileiro das Galáxias. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p.

61. 3 Op. cit., p. 61.4 Op. cit., p. 72.5 Op. cit., p. 72.

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– ... tua micturição é para mim / Qual manchimucos num lúrgido

mastim. [...] / Fêmeo implochoro-o – prosseguiu o vogon, implacá-

vel – ó meu perlíndromo exangue. – Levantou a voz num crescendo

horrível de estridência apaixonada. – Adrede me não apagianaste a

crímidos dessartes? / Ter-te-ei rabirrotos, raio que o parte!”

Os prisioneiros, que já sentiam intenso sofrimento ao ouvir o incompreensível poema, ficam aterrorizados quando são confronta-dos com as duas opções oferecidas pelo poeta vogon: “ou morrer no vácuo do espaço ou ... – fez uma pausa, para criar suspense – me dizer o quanto gostaram do meu poema!” 6

Prosseguindo com a brincadeira, o livro apresenta a resposta dos prisioneiros, que, inteligentemente, começam declarando que gostaram do poema. Como todo estudante sabe, isso agrada o interlocutor, mas não é suficiente. É preciso comentar o texto.

Arthur e Ford, num arremedo de análise literária, destacam as “imagens metafísicas realmente muito vivas”, os “efeitos rítmicos interessantes” que “fazem contraponto ao... ao... (...) ao surrealis-mo da metáfora subjacente da... ah...(...) da alma compassiva do poeta (...), que consegue, através da estrutura do texto, sublimar isto, transcender aquilo e apreender as dicotomias fundamentais do outro”7.

Como se faz freqüentemente, a análise produzida pelos prisio-neiros articula observações formais com uma interpretação temá-tica. O poeta vogon decodifica a seqüência de palavras em uma chave também muito comum nos estudos literários, acionando ele-mentos biográficos e psicológicos: “em outras palavras, eu escre-vo poesia porque por trás da minha fachada cruel e insensível, no fundo o que eu quero é ser amado.” O tom jocoso acentua-se no

6 Op. cit., p. 73. 7 Op. cit., p. 73-74.

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desfecho da cena. Embora elementos comuns às análises literá-rias tenham sido invocados, o resultado não é o que os prisioneiros esperavam, pois o poeta conclui: “Não, vocês estão completamen-te enganados”. E manda encarcerar Arthur e seu amigo Ford.

A situação, que parece totalmente incomum, tem, como em toda boa sátira, pontos de conexão com a realidade. A graça está na semelhança com situações vividas cotidianamente por nós – e não apenas quando deparamos com autores de poemas que que-rem apresentá-los e ouvir nossa opinião... A tortura vogon lembra também práticas escolares, que fazem com que os alunos tenham que ler, interpretar e – ainda mais – gostar de textos literários apre-sentados por seus professores ou presentes nos livros didáticos. A artificialidade dessas situações é ressaltada pela referência ao equipamento capaz de destacar imagens, ritmo, aliterações, e ex-ternar comparações e metáforas. A seleção das palavras de que se compõe o poema lido e, no caso do filme, o fato de o poeta portar uma peruca como as tipicamente usadas pela nobreza do Antigo Regime, deixam claro que o alvo da ironia é a alta cultura, a literatura erudita e certas análises literárias. A zombaria dirige-se também à prática escolar de interpretação de textos, que espera encontrar uma verdade única por trás das palavras, acreditando que para cada texto existe uma interpretação “correta”.

Como mostra a cena, a chamada “interpretação correta” é aquela que agrada ao nosso interlocutor, o que é especialmente importante quando estamos em uma situação escolar e quando, no lugar do monstruoso vogon, estamos diante de um professor de literatura.

Podemos ficar mais tranqüilos quando percebemos que, mes-mo entre os críticos mais notáveis, não há acordo sobre qual seja a interpretação “correta” de uma obra, pois a leitura jamais repousa sobre a simples decifração de um texto.

Outro romance, também bastante interessante, ironiza o sonho dos críticos de chegar a uma interpretação que esgote o sentido de

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um texto. Trata-se do livro Invertendo papéis, de David Lodge, que narra a trajetória de Morris Zapp, um professor de literatura cujo projeto era analisar todos os romances de Jane Austen:

“A idéia era chegar à completa exaustão, examinar os romances de

todos os pontos de vista concebíveis, histórico, biográfico, retórico,

mítico, freudiano, jungiano, existencialista, marxista, estruturalista,

alegórico-cristão, ético, interpretativo, lingüístico, fenomenológico,

arquetípico, o que fosse; assim, quando cada comentário fosse

escrito, não haveria simplesmente nada mais a ser dito.”

O trecho deixa claro que o sentido percebido em um texto pode variar conforme a postura teórica do intérprete. Ou seja, um adepto das idéias de Freud destacará elementos do texto que pouco cha-marão a atenção de um partidário das concepções de Marx que, por sua vez, dará relevo a questões que serão pouco salientes para um estruturalista e assim por diante. A ironia, nesse caso, consiste em imaginar que uma mesma pessoa pudesse assumir diferentes pontos de vista, produzindo interpretações em série. Levando a zombaria ainda mais longe, o narrador do romance de Lodge informa que “o objetivo de tal empreendimento (...) não era intensificar o prazer e a compreensão da obra de Jane Austen, ainda menos honrar a romancista, mas pôr um ponto-final na pro-dução de tanto lixo sobre o assunto”.

Esse objetivo, felizmente, é inalcançável. O fascinante na leitu-ra é que ela sempre se renova, pois nasce do encontro de um texto com um sujeito. Ainda que o texto permaneça igual, cada tipo de leitor aciona um conjunto distinto de conhecimentos, crenças e su-posições ao ler. Da mesma forma, o fato de o tempo passar, de os livros ganharem novos formatos, de as convicções se alterarem faz com que o texto seja compreendido de maneira diversa. As leitu-ras são, portanto, muitas vezes conflitantes e geram divergências,

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fazendo com que alguns julguem, como o faz Morris Zapp, que a interpretação alheia não passa de “lixo sobre o assunto”.

Em vez de tentar apresentar uma interpretação supostamente mais verdadeira ou mais correta sobre determinadas obras literá-rias, este fascículo – Leitura, literatura e ensino − pretende discutir o modo como se produzem análises literárias.

Assim, em cada uma das partes são apresentados, inicialmen-te, os aspectos formais que caracterizam as composições poéti-cas e ficcionais, pois eles são elementos essenciais para a cons-tituição do sentido. Para dar apenas um exemplo, um leitor que não consiga perceber a diferença entre a fala do narrador e a fala de um personagem não chegará sequer a compreender o texto. Não se trata de memorizar uma nomenclatura e sim de verificar o papel que esses elementos formais podem ter na constituição do sentido. Por isso, observaremos o funcionamento de alguns textos de Manuel Bandeira, de Chico Buarque e de Machado de Assis, destacando elementos formais como métrica, ponto de vista, per-sonagem etc.

Entretanto, o conhecimento desses elementos não assegura, de forma alguma, que as obras sejam entendidas de um único modo. Dessa forma, apresentaremos interpretações conflitantes sobre um mesmo texto, produzidas por críticos renomados, eviden-ciando a multiplicidade de leituras que as obras autorizam.

Esperamos, com isso, afastar da leitura literária desenvolvida na escola a idéia de que interpretações divergentes são fruto de deficiências do intérprete, o que é particularmente grave quando o leitor é um aluno que, muitas vezes, se vê em situação tão descon-fortável quanto a vivida por Arthur Dent e seu amigo Ford Prefect.

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PoesiaO que é um poema (das diferenças entre prosa e poesia)

Muitas vezes, dizemos que algo é poético, pensando em sua beleza ou em sua capacidade de nos comover. Um filme pode

ser considerado poético, assim como um desenho, uma música ou, simplesmente, um entardecer à beira-mar. No senso comum, a poesia não se liga, necessariamente, a um texto e sim às emoções e à percepção do belo. Entretanto, quando o assunto é literatura, poesia tem um sentido muito mais específico, embora não se des-carte o encanto e a formosura.

Literariamente falando, é preciso, de início, fazer uma distinção entre prosa e poesia, ou seja, entre textos organizados de forma contínua, como uma linha que segue seu curso, e textos dispostos em versos, com maior atenção à sonoridade, à apresentação de imagens e à diagramação (forma).

No mundo antigo e, ainda hoje, em culturas orais, a poesia era captada somente por meio da audição. Os poemas eram recitados ou cantados, ouvidos e memorizados. A experiência auditiva da po-esia oral se manteve por muitos séculos, mesmo quando a difusão de poemas, em manuscritos ou em textos impressos, passou a ser

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mais praticada, acrescentando ao aspecto sonoro a forma gráfica das palavras como elemento de constituição do texto.

Até pouco tempo atrás, era comum a prática da audição de poemas em saraus – encontros sociais em que se declamava e se lia em voz alta. Atualmente é possível ouvir poesia em feiras e festas populares, nas quais cantadores apresentam seus ver-sos, esperando agradar os ouvintes e receber algum dinheiro em troca. Nesse contexto são também comuns os desafios, compe-tições poéticas em que dois cantadores se enfrentam para ver quem consegue produzir melhores versos e impedir o outro de responder.

Da mesma forma, é possível ouvir poesia em apresentações de rap. O próprio nome já indica do que se trata: rap é a abreviação, em inglês, de rhythm and poetry (ritmo e poesia). E refere-se ao es-tilo criado nos Estados Unidos, na década de 1970, por jovens po-bres que recorreram à poesia – declamada de maneira fortemente ritmada – para denunciar injustiças vividas por eles nas periferias das grandes cidades.

A poesia erudita assim como a popular e os versos da Anti-guidade assim como os modernos obedecem a determinados pa-drões de composição. Esses padrões estão relacionados com os elementos básicos da poesia: a rima, o ritmo e a métrica, que analisaremos detidamente a partir de agora.

De que é feito o poema

Em sua origem, os versos surgiram para serem recitados ou cantados, sendo, por isso, de fácil memorização. A melodia ba-seava-se em um princípio muito simples: a repetição. Talvez, para pessoas da era tecnológica como nós, ela seja vista como algo desagradável, monótono e indesejado, porque nos faz lembrar da rotina diária do trabalho martelando a nossa cabeça e do tic-tac do

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relógio. Na poesia, entretanto, a repetição funcionou desde o co-meço como um alicerce que deu as bases e sustentou a expressão de emoções e pensamentos. Podemos dizer, assim, que a lingua-gem poética surgiu como uma ordenação das palavras em padrões repetitivos, que imprimiam ritmo, criando com isso a expressão ar-tística, em vez da comunicação usual. Hoje convivemos com outras formas de organização da linguagem artística como, por exemplo, a da poesia visual.

O princípio básico de repetição encontra-se em diferentes ele-mentos que compõem um poema. Ele pode recair sobre os sons, as palavras, os versos ou as estrofes. Em qualquer das ocorrên-cias, ele atua como fator de estruturação do poema.

O funcionamento estrutural da repetição está bem caracterizado no poema “Trem de ferro”, de Manuel Bandeira, publicada pela pri-meira vez em 1936, no livro Estrela da manhã, nele, vários elemen-tos se combinam para produzir um efeito poético impressionante.

Trem de ferro

1 Café com pão

2 Café com pão

3 Café com pão

4 Virge Maria que foi isso

maquinista?

5 Agora sim

6 Café com pão

7 Agora sim

8 Voa, fumaça

9 Corre, cerca

10 Ai seu foguista

11 Bota fogo

12 Na fornalha

13 Que eu preciso

14 Muita força

15 Muita força

16 Muita força

17 Ôo...

18 Foge bicho

19 Foge povo

20 Passa ponte

21 Passa poste

22 Passa pasto

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Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira.

Nesse poema, Manuel Bandeira explorou com muita intensida-de o potencial expressivo da repetição, tanto de sons e palavras, quanto de versos. Mesmo lendo silenciosamente, podemos sen-tir o efeito marcante das sonoridades fortes e do movimento que os versos produzem. Isso ocorre porque o poema se organiza em função da medida métrica (número de sílabas por verso), do ritmo (distribuição das sílabas tônicas e átonas no verso) e da rima (dis-posição de sílabas semelhantes).

Em geral, a reiteração de palavras tem um efeito de reforço, isto é, de uma ênfase imposta pela recorrência dos sons e daquilo que as palavras designam ou potencialmente passam a designar dentro do poema, contribuindo para a sugestão de sentidos. Nesse

23 Passa boi

24 Passa boiada

25 Passa galho

26 De ingazeira

27 Debruçada

28 No riacho

29 Que vontade

30 De cantar!

31 Ôo...

32 Quando me prendero

33 No canaviá

34 Cada pé de cana

35 Era um oficiá

36 Ôo...

37 Menina bonita

38 Do vestido verde

39 Me dá tua boca

40 Para matá minha sede

41 Ôo...

42 Vou mimbora vou

mimbora

43 Não gosto daqui

44 Nasci no sertão

45 Sou de Ouricuri

46 Ôo...

47 Vou depressa

48 Vou correndo

49 Vou na toda

50 Que só levo

51 Pouca gente

52 Pouca gente

53 Pouca gente...

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poema, em particular, a repetição dos três primeiros versos – “café com pão” – lembra o movimento regular das engrenagens das ro-das do trem em seu esforço inicial para arrancar. Tal ideia ganha ainda mais ênfase no ritmo, dado pela alternância de sílabas áto-nas e tônicas, que imitam o andamento do trem: “Ca-fé-com-pão”.

O padrão dado por essa estrofe inicial é retomado ao longo do poema, com a repetição de três versos sucessivos, como nos versos 14, 15 e 16 – “Muita força” –, só que, desta vez, em ordem invertida, tendo uma sílaba forte seguida de outra fraca.

Esse mesmo esquema reaparece nos versos finais – “Pouca gen-te” – para indicar que o trem está bastante acelerado. Além da reto-mada integral dos versos, três vezes, notamos nesse último caso que as aliterações, isto é, a repetição das consoantes p/ c/ faz pensar no atrito das rodas com os trilhos, enquanto g/ ch/ lembram o chia-do emitido quando o trem está se deslocando mais rapidamente.

Cada palavra tem um acento próprio, ou seja, uma sílaba em posição tônica. De acordo com essa posição tônica, a palavra se classifica em aguda (acento na última sílaba), grave (acento na penúltima sílaba) ou esdrúxula (acento na antepenúltima sílaba). Ao se juntarem nos versos, as palavras configuram então uma seqüência ordenada de posições tôni-cas. O valor tônico torna-se, no verso, valor rítmico, pois depende da po-sição que passa a ocupar internamente, ao entrar em contato com outras palavras. Lembre-se: acento rítmico não é sinônimo de acento tônico.

Ao retorno do mesmo som em posições diversas denomina-mos aliteração (se a repetição for de consoantes) ou assonância (se for uma reiteração de vogais). Você talvez esteja familiariza-do com tais figuras de linguagem, porque elas são muito expres-sivas e existem em toda parte: nas frases do tipo “Quem com ferro fere, com ferro será ferido” ou em peças publicitárias, como “Se é Bayer, é bom” e “Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal”.

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Em todo o poema, as sonoridades se alternam, fazendo lem-brar o barulho de um trem nos diversos pontos de seu percurso. O momento de saída é registrado pela aceleração progressiva da má-quina. Note o uso das palavras associadas à combustão – fumaça, fogo, foguista, fornalha, força – todas iniciadas com a consoante “f”. A seguir, o trem ganha velocidade, espantando tudo que vê pela frente – a consoante “f” ainda se mantém na repetição do ver-bo “foge” – em um movimento crescente, marcado pelo paralelis-mo decorrente da repetição do verbo “passa”, para afinal sumir na direção de seu destino – declaração reiterada de “vou mimbora”.

Se você ler novamente o poema, agora em voz alta, respeitando as tônicas e marcando o ritmo, verá que o som das palavras lem-bra o ruído de um trem: do esforço inicial da partida até seu curso acelerado, em disparada.

Vale observar que outros recursos contribuem para a criação da idéia de movimento. A quarta estrofe do poema (versos 17 a 30), por exemplo, se apóia em um duplo recurso poético. De um lado, a sonoridade (a marcação rítmica constante e a aliteração: “f”, “b”, “p” e “g”) – reforça o andamento acelerado. E, de outro lado, a impressão de rapidez é captada pela sucessão de imagens que pa-recem se projetar a partir da janela do trem. A estrofe constrói uma seqüência de cenas fugazes que passam como se fossem fotogra-mas de um filme de cinema, efeito obtido pelo reduzido número de sílabas por verso (três) e pelo uso da anáfora, ou seja, repetição de uma mesma palavra em vários versos.8 A poesia moderna empres-tou do cinema, uma arte que revolucionou a fotografia ao lhe confe-rir movimento, essa técnica de exposição de flashes sucessivos.

8 Segundo o uso retórico, a anáfora se caracteriza pela repetição de uma ou mais pala-vras no início de uma frase ou verso com a finalidade de dar ênfase ao termo repetido. É diferente, portanto, do sentido dado ao termo pela lingüística. para a qual a anáfora define um processo em que um termo gramatical (um pronome, por exemplo) retoma um sintagma anteriormente usado no mesmo discurso.

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Desse ponto em diante, as imagens visuais acompanham a ên-fase nos aspectos rítmicos e sonoros que transmitem a sensação de movimento. Ao longo da quarta e da quinta estrofes, surgem os versos com sons vocálicos “Ôo...”, em intervalos regulares, como uma espécie de refrão. Eles se repetem, a cada quatro versos, criando com o retorno uma subdivisão em quadras, estrutura típica das canções populares.

Existe uma musicalidade evidente nesse refrão vocálico que parece imitar o movimento do trem e do vento, deixando tudo para trás. Sua presença, nas estrofes que retratam o trânsito pela pai-sagem rural, entre folhas e galhos de ingazeira, estimula ainda mais a carga emotiva do poema. A expressão melódica do refrão ecoando parece incentivar a manifestação da voz de um eu (o trem personificado) que confessa, comovido, sua vontade de cantar.

Agora é preciso considerar que, além da sonoridade e do ritmo, a metrificação dos versos é outro elemento importante na construção desses efeitos. Sabemos que a medida métrica corresponde ao número de sílabas poéticas de cada verso. Observe que há nesse poema versos curtos e longos, que parecem exprimir a aceleração maior ou menor do trem. Quando ele inicia o movimento ou perde

Um exemplo de repetição é o paralelismo, que consiste na reiteração de palavras, expressões ou mesmo de versos inteiros, como existe nes-te poema. A repetição de uma ou mais palavras pode se dar em várias posições. Se a retomada é feita no início de versos consecutivos ou de estrofes, ganha o nome de anáfora. Se ela se localiza no final é de-signada como epífora. Bandeira, como você viu, faz uso constante da anáfora.

Outra forma de repetição encontra-se no refrão, ou seja, no conjunto de versos repetidos em intervalos regulares. O refrão é muito usado nas canções da MPB (como Construção, de Chico Buarque, que analisare-mos a seguir) e nos enredos das escolas de samba, pois favorecem a memorização.

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velocidade, os versos têm quatro ou cinco sílabas poéticas; quando está veloz, encontramos versos trissílabos, portanto, mais curtos.

A única exceção é o verso solto mais extenso “Vir/ge /Ma/ri/a /que/ foi/ i/sso/ ma/qui/nis/ta?”, que conta com doze sílabas poéticas. Ele expressa a espontaneidade de uma indagação sobre o movimento inicial do trem. A repetição da vogal “i” em posição tônica faz lembrar o som do apito comumente acionado pelos ma-quinistas na saída e na aproximação das estações. A mesma vogal tônica aparece outras vezes, como se fosse um novo apito, na palavra “sim” da segunda estrofe. Desse modo, o verso dodecas-sílabo, ainda que seja diferente dos demais, por ser extenso, apre-senta uma marcação de posições tônicas com a vogal “i” na 4ª, na 8ª e na 12ª sílaba. De certa maneira, isso significa que o verso conserva o padrão das acentuações dos tetrassílabos do poema, que são os versos quebrados do verso maior. Assim, o dodecassí-labo aqui é formado da junção de três versos tetrassílabos.

Esse verso dodecassílabo, apesar de tradicional, é formado de uma expressão espontânea transcrita da fala comum de pessoas do interior. Tais marcas de oralidade se estendem por todo o po-ema, como na expressão inicial que lembra o mote popular “café com pão, bolacha não”. Há uma preocupação poética com a re-produção dos usos populares da língua, que explica a inclusão de termos como “virge”, “oficiá”, “canaviá”, “matá”. Esse é o jeito pelo qual o poeta insere seu trem no universo popular, não apenas porque, no trajeto, a locomotiva atravessa o sertão, recortando o

Os versos designam-se conforme o número de sílabas que apresen-tam, de uma a doze: monossílabo, dissílabo, trissílabo, tetrassílabo, pentassílabo, hexassílabo, heptassílabo, octossílabo, eneassílabo, de-cassílabo, hendecassílabo e dodecassílabo.

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território pernambucano, mas também porque incorpora o modo de falar da gente que transporta. Nesse sentido, a aproximação com as formas populares justifica que a quinta estrofe (versos 31 a 46) se organize internamente, com auxílio do refrão, em quadras de versos pentassílabos e heptassílabos, que são conhecidos tam-bém como versos de redondilha menor e maior, característicos das cantigas populares.

A poesia popular de língua portuguesa recorre com freqüência às qua-dras. Em geral, as cantigas de roda são compostas em quadras. Quase todos se lembram destes versos:

Batatinha quando nasceSe esparrama pelo chãoMenininha quando dormePõe a mão no coração

Trata-se de uma quadra de heptassílabos. Embora os versos não transmitam nenhuma verdade essencial, nós os decoramos na infância e nunca mais os esquecemos. Isso ocorre por causa do efeito mnemô-nico da regularidade métrica e por causa da rima.

No Nordeste brasileiro, as quadras foram abandonadas em favor das sextilhas no final do século XIX. Dizem que os poetas populares sentiam falta de espaço nas quadras, por isso acrescentaram dois versos e cria-ram um padrão para as cantorias e para os folhetos de cordel: sextilhas com versos de 7 sílabas (ou redondilha maior).

As sílabas métricas resultam de uma contagem das sílabas conforme a pronúncia. Portanto, algumas sílabas poéticas se fundem, como, por exemplo, quando há duas vogais seguidas. Na fusão, uma das vogais se enfraquece em favor da outra.

“Quieu / pre / ci // so” (verso com três sílabas poéticas)Observe abaixo como próprio poeta já realizou a elisão das sílabas:“Vou/ mim/ bo/ ra / vou / mim/ bo// ra” (verso com sete sílabas)Faz parte da convenção métrica contar as sílabas somente até o últi-

mo acento tônico, ignorando as sílabas átonas finais.

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O poeta procura fazer com que o texto se torne um registro da prosódia popular. Se a pronúncia erudita em nada atrapalharia a rima de fim de verso entre “oficial” e “canavial”, no caso de “ma-tar” a pronúncia padrão destruiria a sonoridade interna, impedindo a rima com “dá”. Ao adotar o modo coloquial de pronúncia das palavras, o registro poético acaba por favorecer a semelhança de sons, que assim criam uma rima também entre as palavras “ofi-cial”, “canavial” e “matar”.

O uso coloquial, em lugar do uso formal, caracteriza uma opera-ção de ruptura com a linguagem poética, convencionalmente mais sublime e elevada. Os autores modernistas, como Manuel Bandei-ra, realizaram essa ruptura com a convenção a partir de pesquisas e levantamentos de tradições do cancioneiro popular. Assimilaram alguns temas, vocabulário e expressões das matrizes nacionais, com as quais rejeitaram a forma e o estilo da poesia parnasiana que vigorava à época. Entre os elementos que absorveram, estão narrativas orais, ditos populares, frases-feitas, cantigas e provér-

A rima é um procedimento que cria uma identidade de sons, a partir da repetição da vogal tônica de uma palavra, situada no final do ver-so. A rima ajuda a sustentar o ritmo dos versos, assim como o ritmo da estrofe. Há rimas de dois tipos: soante (ou consoante) e assonante (ou toante). A rima consoante ocorre quando há identidade completa de som – incluindo vogais e consoantes – a partir da vogal tônica. Já a rima toante marca a homofonia apenas das vogais tônicas, por isso, às vezes também é chamada de vocálica.

Lembrete: as rimas finais, em posições externas, podem ocorrer em versos seguidos ou não. Quando a rima recai sobre versos que se su-cedem, a chamamos de rima emparelhada (aa-bb-cc). Quando há uma alternância com um verso sem rima ou com um verso de rima diferente, dizemos que essa é uma rima cruzada ou alternada (ab-ab-ab). Se a dis-tância da rima é grande, ou seja, se há mais de um verso separando os versos que rimam entre si, de maneira que a sonoridade fique remota, chamamos essa rima de interpolada ou oposta (abba)

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bios anônimos, captados de acordo com um uso próprio dessa linguagem falada, a exemplo do que encontramos na quinta estrofe de “Trem de ferro”.

Simultaneamente, outro aspecto relevante nessa composição poética é o uso das palavras com sentido figurado. O trem viaja por uma região rural, em que predomina o plantio de cana-de-açúcar. Ao retratar os canaviais, o poeta associou os pés de cana a situações de vida, conferindo-lhes atributos humanos. Num primeiro instante, os pés de cana aparecem como as barras de uma prisão. Nela as pessoas são enclausuradas em nome do cumprimento da lei, indi-cada pela palavra “oficiá”. Num segundo momento, o pé de cana surge associado à “menina bonita do vestido verde”, que mata a sede afetiva dos homens, assim como o caldo de cana mata a sede objetiva. Em ambos os casos criam-se imagens poéticas pelo emprego da metáfora, uma figura de estilo que permite comparar a cana – um objeto – a pessoas (um policial e uma moça).

Até esse ponto, em nossa leitura do poema, vimos que o au-tor utilizou vários procedimentos formais de modo a explorar ao

Diz-se que a poesia é uma arte que fala por imagens. Em outros ter-mos, uma construção verbal que se utiliza da palavra explorando seu as-pecto sonoro, assim como semântico. O poema organiza uma estrutura única, em que as palavras traduzem um sentido denotativo e, ao mesmo tempo, adquirem um sentido conotativo, próprio daquela construção sin-gular. Cada palavra, então, funciona como um objeto e como um signo, carregado de sentidos potenciais.

A metáfora é uma figura de estilo que consiste na comparação entre dois elementos, transferindo atributos de um a outro. Por exemplo, nos versos “Cada pé de cana / Era um oficiá”, há transferência de uma ca-racterística de certa categoria de indivíduos – a polícia − para os pés de cana. Assim como um “oficiá” tem o dever controlar as pessoas, para que elas não ultrapassem os limites da liberdade individual e venham a infringir a lei, o trabalho no canavial cerceia a liberdade dos homens.

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máximo o potencial expressivo da língua. Com a organização que deu às palavras, enfatizou o ritmo, para criar uma sensação de velocidade; valorizou o aspecto sonoro, imitando os ruídos do trem e a maneira de falar dos sertanejos; e criou imagens poéticas por meio de figuras de linguagem, com as quais inovou os significados dos vocábulos empregados na composição.

Lendo o poema, descobrimos também que esse trem a vapor não é um trem qualquer. Seria inadequado imaginá-lo, por exemplo, na Europa de nossos dias, pois há informações temporais e espa-ciais relevantes que precisam ser consideradas. O trem prossegue sua viagem – “vou mimbora vou mimbora” – em meio à paisagem ca-navieira transfigurada em pessoas. Declara que prefere voltar para a sua cidade de origem, Ouricuri, situada no sertão de Pernambuco. Afirma não gostar dali; por isso vai depressa, a toda velocidade.

O poema indica que ele é de Ouricuri, pequena cidade do ser-tão pernambucano. O fato de possuir uma fornalha indica, por sua vez, que operou numa época em que os trens eram movidos a carvão ou a lenha. Outro dado significativo está na menção à cana-de-açúcar, sugerindo que naquele momento a produção açucareira

Veja o depoimento do escritor argentino Jorge Luís Borges sobre a metáfora:

“(...) quando eu era jovem, estava sempre caçando novas metáforas. Aí descobri que as metáforas realmente boas são sempre as mesmas. Quero dizer, compara-se o tempo a uma estrada, a morte ao sono, a vida ao sonho, e essas são as grandes metáforas, porque correspon-dem a algo essencial. Se você inventa metáforas, elas podem ser uma surpresa durante uma fração de segundos, mas não provocam qualquer emoção profunda. Se você pensar a vida como um sonho, esse é um pensamento, um pensamento que é real, ou pelo menos que a maioria dos homens está sujeito a ter (...) Penso que isso é melhor do que a idéia de chocar as pessoas, de encontrar conexões entre coisas que nunca foram conectadas anteriormente, porque não existe uma conexão real, de modo que tudo não passa de uma espécie de malabarismo.”

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era intensa no estado de Pernambuco, destacando-se a cidade de Ouricuri como produtora importante.

Se as informações dadas pelo poema despertarem nossa curio-sidade a ponto de decidirmos realizar uma pesquisa histórica, to-maremos conhecimento de que foi no estado de Pernambuco que se construiu a segunda estrada de ferro brasileira, cuja inauguração ocorreu em 1858. Essa estrada ficou conhecida como “Ferrovia Re-cife ao São Francisco”, pois faria a ligação da capital, a cidade lito-rânea do Recife, com as margens do Rio São Francisco, a fim de fa-cilitar o escoamento de mercadorias e o deslocamento de pessoas pelo interior. O plano de chegar ao rio, porém, não se concretizou, e a ferrovia chegou apenas até a cidade de Palmares, onde a esta-ção foi inaugurada em 1862. Apesar de não ter atingido o objetivo inicial, a ferrovia ajudou a desenvolver as cidades e os pequenos povoados do interior. Uma década após a interrupção das obras, em 1872, investidores ingleses fundaram a Great Western of Brazil Railway Company, subsidiária brasileira da empresa que já fazia a linha Londres−Liverpool desde 1835. A empresa inglesa recebeu concessão do Imperador Pedro II para desenvolver a estrada de ferro em direção ao agreste pernambucano, ligando Recife ao leste do Estado. Em poucos anos, essa empresa se expandiu por outras áreas, aproveitando o tronco pioneiro e anexando outras linhas fer-roviárias existentes. A Great Western passou então a operar tanto as linhas estaduais quanto as municipais. Oferecia transporte de passageiros e de carga para produtos como cana-de-açúcar, álcool, madeira, algodão e feijão. Sua atividade foi muito importante para o desenvolvimento sócio-econômico da região e se prolongou até meados do século XX, quando deixou de atuar.

O desenvolvimento da literatura de cordel ocorreu, no Nordeste, no fi-nal do século XIX, e se favoreceu da implantação das estradas de ferro.

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Se quisermos associar as informações de natureza histórica, geográfica e econômica aos procedimentos formais e à temática do poema, seria necessário, por fim, interpretar os sentidos de “Trem de ferro”. Seria possível pensar que Manuel Bandeira tenha escolhido esse assunto porque, nos anos 1930, quando seu livro de poemas Estrela da manhã (1936) foi publicado, o trem sob ad-ministração dos ingleses era um meio de transporte essencial para a região produtora de mercadorias agrícolas. Seria válido imaginar que essa máquina a vapor figurou no imaginário popular como sím-bolo de modernidade e prosperidade, como hoje acontece com o automóvel, e também como sinônimo da opressão exercida pelos ingleses. Seria possível ainda associar a voz humanizada do trem (o eu lírico do poema) com a própria voz do poeta, que em outra

Grande parte das vendas se dava em viagens realizadas pelos auto-res ou por revendedores, que percorriam fazendas e vilarejos distribuin-do folhetos tanto pelas cidades quanto pela região agrícola.

Não obstante os benefícios trazidos pelas estradas de ferro, os poe-tas reclamavam do preço cobrado pelos bilhetes e provocavam os ingle-ses. O grande poeta popular do início do século XX, Leandro Gomes de Barros, escreveu um folheto para criticar os ingleses e o alto custo dos bilhetes. No folheto, intitulado Os colectores da Great Western ele diz:

“Eu nunca vi a estradaComo agora desta vez,Outr’ora tinha um fiscal,Agora tem dois ou trez.Não viaja mais no molle,Nem mesma a mãe do inglez.[...]E se alguém for se queixarDiz-lhe o inglez: o senhorDeve agradecer a mimTer trem seja como fôr,Mim bota trem em BrazilPara fazer-lhe favor.

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composição sonha com um lugar idílico, anunciando:

“Vou-me embora pra Pasárgada.Lá sou amigo do rei.Lá tenho a mulher que eu quero.Na cama que escolherei.Vou-me embora pra Pasárgada”.

Como se nota, vários passos interpretativos poderiam ser da-dos em nossa leitura desse poema de Manuel Bandeira. Existem diversos caminhos possíveis para a interpretação de um texto poé-tico, desde que os elementos que o compõem sejam respeitados; ou seja, respeitados os elementos da composição, um mesmo po-ema pode significar coisas diferentes, dependendo de quem o lê e das circunstâncias em que é lido. Por isso, encontramos tantas discordâncias entre os críticos literários, que atribuem sentidos distintos para as composições artísticas, como veremos adiante.

A linguagem artística se manifesta por meio de figuras, que são mo-dificações introduzidas pelo poeta. Existem modificações que caracteri-zam figuras fonológicas e ocorrem no plano da expressão das palavras (afetam os aspectos sonoros ou gráficos) e figuras semânticas ou tro-pos que modificam a significação das palavras (afetam o significado).

Do que se faz um poema

Um poema é uma composição verbal que ordena palavras em versos, de modo a criar uma medida métrica que produz ritmo. No poema é freqüente o uso de figuras, embora nenhuma figura seja exclusiva da poesia.

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Lendo um poema na escola

Os jovens gostam muito de tocar e de ouvir música. Uns gostam de música popular brasileira, outros preferem o rock internacional, mas quase todos confessam gostar de algum tipo de música. Para despertar o prazer da leitura de poesia, nada mais fácil do que cul-tivar esse gosto pela música. Uma boa maneira de pôr o jovem em contato com a poesia é fazer com que não perceba que está apren-dendo; fazer com que tudo soe como um divertimento musical.

Um segundo aspecto a ser considerado no estudo de poesia na escola é a seleção dos poemas. Não vale a pena iniciar a sensibili-zação dos alunos com poemas traduzidos, porque neles dificilmen-te os recursos formais dos textos originais se preservam. Escolher um poema em português seguramente permitirá ao aluno perceber os efeitos poéticos da linguagem. Então, nada de rock americano, pelo menos no início.

Entre os autores contemporâneos, Chico Buarque se destaca por ser um poeta que não só cria a letra, como também compõe a música de suas canções. Na época em que o Brasil vivia sob a ditadura de um regime militar, suas canções entusiasmavam os estudantes, porque traziam uma mensagem de esperança e de resistência.

A canção “Construção” dá título ao disco que Chico Buarque lançou em 1971 pela gravadora Philips. Essa canção focaliza um dia na vida de um operário da construção civil, descrevendo o que lhe sucedeu durante aquele dia. Conta que o operário saiu de casa para trabalhar, caminhou até chegar ao canteiro de obras, subiu no edifício em construção e realizou sua tarefa de pedreiro

Francisco Buarque de Hollanda, conhe-

cido como Chico Buarque, nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Viveu em São Paulo e na Itália. Participou dos primeiros festivais de música popular brasileira, na década de 1960. Tam-bém participou da passe-ata dos 100 mil contra o regime militar. Auto-exilou-se na Itália e retornou em 1970. Escreveu dezenas de canções, peças de teatro e romances.

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até a hora do almoço. No intervalo de almoço, sentou-se para fazer a refeição e beber. Depois, tropeçou, desequilibrou-se e caiu na rua, onde ficou estendido, em agonia, até morrer. A canção parece se resumir ao aspecto narrativo, que dá notícia sobre a seqüência das ações de um operário. Vê-se o desenrolar de ações rotineiras de uma pessoa anônima, que começam de manhã e seguem até o momento do acidente. Os fatos são apresentados logo na primeira estrofe do poema e evoluem de maneira, até certo ponto, linear. Só até certo ponto, é claro, porque a canção, em vez de concluir com o acidente, prossegue retomando os acontecimentos, repeti-damente. O modo pelo qual esses acontecimentos encontram-se dispostos em versos é o que constitui o poema e o torna diferente de uma narrativa em prosa, apesar de ele se parecer com um mi-niconto.

Construção

1 Amou daquela vez como se fosse a última 2 Beijou sua mulher como se fosse a última 3 E cada filho seu como se fosse o único 4 E atravessou a rua com seu passo tímido

5 Subiu a construção como se fosse máquina 6 Ergueu no patamar quatro paredes sólidas 7 Tijolo com tijolo num desenho mágico 8 Seus olhos embotados de cimento e lágrima

9 Sentou pra descansar como se fosse sábado10 Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe11 Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago12 Dançou e gargalhou como se ouvisse música

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13 E tropeçou no céu como se fosse um bêbado14 E flutuou no ar como se fosse um pássaro15 E se acabou no chão feito um pacote flácido16 Agonizou no meio do passeio público

17 Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

18 Amou daquela vez como se fosse o último19 Beijou sua mulher como se fosse a única20 E cada filho seu como se fosse o pródigo21 E atravessou a rua com seu passo bêbado22 Subiu a construção como se fosse sólido23 Ergueu no patamar quatro paredes mágicas24 Tijolo com tijolo num desenho lógico25 Seus olhos embotados de cimento e tráfego

26 Sentou pra descansar como se fosse um príncipe27 Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo28 Bebeu e soluçou como se fosse máquina29 Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

30 E tropeçou no céu como se ouvisse música31 E flutuou no ar como se fosse sábado32 E se acabou no chão feito um pacote tímido33 Agonizou no meio do passeio náufrago

34 Morreu na contramão atrapalhando o público

35 Amou daquela vez como se fosse máquina36 Beijou sua mulher como se fosse lógico37 Ergueu no patamar quatro paredes flácidas38 Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

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39 E flutuou no ar como se fosse um príncipe40 E se acabou no chão feito um pacote bêbado

41 Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Como o poema se organiza

Observe que a letra da canção se estrutura em grupos de ver-sos, que formam as estrofes, intercalados por versos isolados. São estrofes de quatro versos, as quadras, seguidas de uma es-trofe com seis versos e intercaladas entre si com versos soltos. Tal distribuição, segundo a crítica Adélia Bezerra de Menezes, indica que há uma seqüência construída em torno do núcleo narrativo ini-cial, isto é, há um esquema que constitui a arquitetura do poema. O esquema fica claro quando constatamos a repetição quase inte-gral dos versos. A retomada dos versos marca a passagem de um bloco a outro. Nesse movimento de retomada constante, as ações do operário se repetem com variações.

Versos que se repetem 1ª vez 2ª vez 3ª vez

Amou daquela vez como se fosse a última o último máquina

Beijou sua mulher como se fosse a última a única lógico

E cada filho seu como se fosse o único o pródigo -----

E atravessou a rua com seu passo tímido bêbado -----

Note que a repetição dos versos tem uma regularidade impres-sionante. Há uma estrutura, por assim dizer, fixa que repõe quase integralmente o verso, reiterando o conjunto (as palavras, a sin-taxe, a métrica, o ritmo, os sons). Observe ainda que todos os versos têm 12 sílabas poéticas, medida métrica que corresponde

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ao dodecassílabo, ou alexandrino, com acentos principais na 6ª e na 10ª posição tônica. Uma mudança ocorre sempre nas palavras finais, que vão sendo substituídas. Os estudiosos da obra de Chico Buarque chamaram a atenção para o fato de que essa mudança, no fim do verso, provoca uma substituição constante de palavras proparoxítonas, pelas quais o poeta confessou ter predileção es-pecial, utilizando-as em várias composições. A troca das proparo-xítonas ocorre inclusive nos versos soltos (versos 17, 34 e 41), que introduzem a quebra no ciclo de vida repetitiva do operário, por efeito da morte prematura.

Verso solto que se repete v. 17 v. 34 v. 41

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego público sábado

Os versos que tratam da morte estão isolados dos blocos maio-res, talvez porque instaurem um dado perturbador, que entra em choque com a regularidade do conjunto, embora o mesmo proce-dimento reiterativo das estrofes se mantenha neles também. A morte ocorre “na contramão” e por isso “atrapalha” o movimento cotidiano das pessoas, do trânsito, do trabalho. O fato de a morte ser um elemento de perturbação repercute imediatamente a se-guir, na própria lógica das frases, que a partir do verso 17 ganham novos sentidos.

Após a queda do edifício em construção e da morte do traba-lhador, inicia-se uma série de substituições das palavras propa-roxítonas, que instalam uma troca aleatória em relação às ações objetivas do operário. Com esse intercâmbio de palavras, um sen-tido poético intervém para desarticular o relato lógico, linear e ordenado das ações apresentadas nas estrofes iniciais.

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Sentidos sugeridos pelo poema

No plano do conteúdo, percebemos haver uma relação entre essa desarticulação lógica instalada pela troca de palavras e o fato de o pedreiro ter ficado bêbado. Tal relação encontra-se sugerida na seqüência dos verbos – sentou, comeu, bebeu e soluçou, dançou e gargalhou, tropeçou, flutuou, se acabou, agonizou, morreu – que ligam sua queda fatal à bebedeira. As ações indicam que o estado de embriaguez suspende o operário de suas funções rotineiras, levando-o a um descontrole do próprio corpo, a um desequilíbrio trágico, que culmina na queda.

Como se vê, o tema da canção está diretamente relacionado ao universo do trabalho operário na construção civil, apontando de certo modo para os riscos e para as condições de segurança des-se tipo de atividade. O poeta aborda a vida pessoal e profissional de uma pessoa comum, que pertence à camada menos favorecida da sociedade. Do ponto de vista do conteúdo, portanto, a canção desenvolve uma temática social que chama a atenção para a preca-riedade das condições de vida e de trabalho do operariado urbano.

Simultaneamente, a canção apresenta uma forma composicional que alude a esse conteúdo, uma vez que reproduz a própria noção de construção, fazendo com que a expressão “tijolo por tijolo” encontre um correlato no jogo de repetições e alterações, tanto de palavra com palavra, quanto de verso com verso, estrofe com estrofe. É como se o poeta fizesse equivaler a edificação de um prédio à composição do poema, aproximando o operário ao poeta, ambos construtores.

A canção “Construção” tem sido alinhada, junto a “Pedro Pe-dreiro”, como exemplo da vertente de crítica social que Chico Buar-que abraçou na passagem dos anos 1960 para os 1970. Ao eleger uma situação de vida cotidiana do trabalhador – nas duas canções, trata-se de um pedreiro – o escritor estaria conferindo um sentido

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crítico à sua poesia, interpretada, por isso, como instrumento de denúncia contra a injustiça social. Em suas canções, o tratamento poético dado aos temas da realidade brasileira, ora pelo viés trá-gico, como se viu aqui, ora pela ironia ou pela sátira, configura um engajamento político, que teve nas canções de protesto a mais expressiva manifestação.

O curioso é que em entrevista à revista Status, em 1973, Chico Buarque negou enfaticamente que sua intenção fosse criar uma canção de denúncia social e ressaltou sua preocupação com o aspecto formal de “Construção”:

Chico: Não passava de uma experiência formal, jogo de tijolos. Não

tinha nada a ver com o problema dos operários – evidente, aliás,

sempre que se abre a janela.

Status: Portanto, não havia nenhuma intenção na música.

Chico: Exatamente. Na hora em que componho, não há intenção

– só emoção. Em “Construção”, a emoção estava no jogo de pala-

vras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano

dentro de um jogo de palavras, como se fosse... um tijolo – acaba

mexendo com a emoção das pessoas.

Revista Status, 1973

Mesmo que Chico Buarque rejeitasse o rótulo de poeta dos oprimidos e marginalizados (o poeta que cantou prostitutas, ho-mossexuais e saltimbancos), o fato é que alguns de seus poemas marcaram época também como gestos de oposição. No plano polí-tico, suas canções se opunham à ditadura militar e, no econômico, ao capitalismo industrial, que punha à margem da sociedade per-sonagens como o operário da construção civil. Hoje, o desafio para o leitor de suas canções é justamente saber lidar com um conteú-do crítico que se liga, de modo indissociável, à forma poética.

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Interpretações do poema

Em sala de aula, “Construção” pode ser uma boa escolha, caso você opte por trabalhar com as canções de Chico Buarque, para en-sinar seus alunos a analisarem um poema. A canção é interessante tanto sob o aspecto temático, quanto pelas características formais que já comentamos. Além disso, serve para ilustrar abordagens in-terpretativas diversas, que valorizam mais fortemente o engajamen-to do poeta com a crítica social ou o seu trabalho com a linguagem.

O poeta e crítico literário Mário Chamie acredita que estejam presentes nas composições de Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom, Jobim, Gilberto Gil, e em tantos outros autores da música popular brasileira (MPB), os mesmos recursos empregados pela autodenominada “vanguarda nova”, que propôs a renovação da poesia no início dos anos 1960. A “vanguarda nova”, mais conhe-cida pelo nome de Poesia Práxis – uma das correntes poéticas inovadoras surgidas nesse período, que coincide com a cons-trução de Brasília e a política desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek – procurou criar poemas que mostrassem o sentido prático da vida. Sua estratégia consistia em definir um tema para o poema a ser criado, buscar vocábulos associados a esse tema e cultivar eixos vocabulares. De acordo com essa es-tratégia, os poetas faziam permutações semânticas, montagens de anagramas (formavam palavras por meio de transposição de letras de outras palavras), encadeamentos fonéticos e jogos paro-nomásicos (combinações de palavras que têm semelhança fônica e sentidos diferentes), a fim de aproveitar ao máximo tanto o as-pecto sonoro, quanto os sentidos das palavras escolhidas. Essas soluções pretendiam, segundo explica Mário Chamie, explorar a potencialidade comunicativa dos vocábulos.9

9 Mário Chamie. “A Práxis de Construção”, em Chico Buarque do Brasil, p. 313-324.

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Ainda na opinião de Mário Chamie, o processo criativo da Poe-sia Práxis – o de construir e reconstruir os dados da realidade ex-terna na realidade composicional do poema por meio da manipula-ção das palavras e de um jogo com a ambivalência nos sentidos –, repercutiu nas letras das músicas de Chico Buarque, desde o seu primeiro disco. Em “Pedro Pedreiro”, o crítico aponta o uso circular das palavras “espera”, esperar” e “esperança” criando um ciclo de “esperança desesperadora de tanto esperar” com o qual o poema denuncia a injustiça social. Segundo Chamie, esse uso poético das palavras que procura explorar os ecos internos, as inversões de sentido ou as divergências semânticas, marca uma dicção que é constante nas canções de Chico Buarque.

“Construção”, para Chamie, é um exemplo desse processo cria-tivo da Poesia Práxis que Chico Buarque incorporou como compo-sitor. O poema tenta, por meio do jogo de trocas e permutações, reconstruir o projeto de vida (sonhado e falido) de um operário da construção civil, impotente diante de sua condição.

A palavra é, na concepção de Praxis, um núcleo incessante de sig-nificações possíveis, que faz do poema um organismo vivo, em que a realidade externa é incorporada e transfigurada.

SIDERURGIA S.O.S.

Se der o ouro sidéreo opus horáriO Sem sol o sal do erário saláriO

Se der orgia semistério o empresáriO

Siderurgia do opus o só do eráriO

Se der a via do pus opus erradO Se der o certo no errado o empregadO

Se der errado no certo o emprecáriOMário Chamie

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Segundo Mário Chamie, essa estratégia permite intercambiar palavras e versos, desdobrando e ampliando o sentido do poema. A estrutura maleável do poema, diz, possibilitaria trocas infini-tas, mas o autor, no caso Chico Buarque, interveio para localizar as permutas nas últimas palavras de cada verso, nos trissílabos proparoxítonos, que fecham a fronteira do verso e, de modo sim-bólico, levam o operário a trombar de frente com “as fronteiras da liberdade”. Na interpretação de Chamie, as permutações de-finidas por Chico Buarque reforçam, assim, o sentido central da metáfora da infelicidade que o poema propõe, isto é, o drama do operário da construção civil condenado a ser um incômodo so-cial. Como crítico e poeta, Chamie valoriza, sobretudo, o aspecto formal dessa composição, isto é, aprecia o jogo com as palavras e entende que este cria um organismo vivo que permite expressar o sentido do poema.

Uma outra leitura possível

A crítica Adélia Bezerra de Menezes, por sua vez, em estudo que publicou sobre a obra de Chico Buarque, seguiu caminho diferente e enfocou os aspectos históricos e sociais presentes no poema. Na sua leitura, o poema “Construção” é identificado com um projeto, um desenho lógico, racional – uma estrutura quase matemática – que traduz, pelo contrário, o caráter mecanizado e o automatismo da sociedade capitalista industrializada. Para Adélia, Chico Buarque tratou o tema da morte por meio de uma composição que expressa a transformação do homem em objeto sem vida.

Na opinião de Adélia, a estrutura rígida e simétrica desse de-senho poético sugere o eterno retorno dos gestos, que são reto-mados e repetidos, mostrando a mecanização do corpo e da vida. Ela afirma que a morte do corpo estendido na rua, o corpo que atrapalha tudo, mostra o ponto limite para o qual tende o homem

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numa sociedade em que o trabalho é alienado. Por isso, de ho-mem, o operário passa a máquina e logo a objeto desprovido de movimento, como se fosse um pacote lançado à rua. Daí seu cará-ter de “coisa” substituível, manipulada como os tijolos do edifício em construção.

Na interpretação de Adélia Bezerra de Menezes, além de reme-ter à questão social do trabalho, o corpo físico do operário remete também ao corpo social, por intermédio da metáfora da queda, em sua opinião, uma das mais importantes no poema. Ela mostra que o pedreiro sobe no edifício em construção para cair, como se a que-da já fosse certa. O resultado de sua queda é o despedaçamento, a fratura do indivíduo, mas é, ao mesmo tempo, a fratura de toda a sociedade. O poema “Construção”, na opinião de Adélia Bezerra de Menezes, cria principalmente uma imagem do corpo social fragmen-tado, ou seja, da sociedade brasileira em crise, que estava sendo desintegrada e dilacerada pelo governo militar, pela repressão e pela tortura durante o governo de Emílio Garrastazu Médici.

Adélia Menezes considera que, com a metáfora da queda (o corpo que cai como representação do homem e da sociedade), Chico Buarque consegue retratar a realidade psíquica e social vivi-da no período da ditadura militar. A ditadura, ela afirma, configurou um tipo de violência tão forte quanto aquela exercida pelo capital sobre os desafortunados. É desse modo que a crise da sociedade brasileira, historicamente associada a um regime político repres-sor, estaria representada pela metáfora da queda.

Concluindo

Ao entrarmos em contato com as leituras críticas de Mário Chamie e Adélia Bezerra de Menezes, é possível observar que um mesmo texto − no caso, “Construção”, de Chico Buarque − é pas-sível de diferentes análises e interpretações. A estrutura de sua

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composição, a ordenação dos versos e a escolha das palavras que o autor fez foram captadas, explicadas e valorizadas a partir de percursos interpretativos diferentes e de acordo com a perspectiva teórica de cada crítico. Um destacou mais os aspectos formais do poema, porque os julgou segundo o olhar conceitual da Poesia Práxis, para a qual, como vimos, a poesia se faz como um jogo com as palavras. Outro destacou as relações com o contexto (histórico, político, econômico e social) brasileiro da década de 1960, pois observou na poesia a expressão de uma realidade exterior, que se manifesta por meio de um projeto racional de composição da linguagem. Vale frisar que, em ambos os casos, a interpretação se apoiou nos elementos fornecidos pelo próprio poema, enriquecen-do sua leitura e ampliando sua significação.

Assim, concluímos que os sentidos que os leitores podem atri-buir aos recursos formais empregados em um poema e aos efeitos por eles produzidos estão longe de se esgotar em uma ou mais leituras. Isso porque os sentidos dependem, em grande parte, do quanto uma determinada cultura, em uma determinada época, os valoriza ou, pelo contrário, não lhes atribua qualquer importância.

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ProsaDo que se faz uma narrativa

Não há quem não tenha conhecimentos e expectativas sobre narrativas. Afinal, desde crianças, ouvimos e contamos his-

tórias. A partir de uma infinidade de narrativas lidas, ouvidas e assistidas na televisão e no cinema, vão se formando idéias sobre como devem ser narradas e de que matéria se compõem as boas histórias. Essas idéias são tão variadas quanto as experiências de vida, os modos de viver e as maneiras de compreender o sentido da existência. Para uns, a boa história é a que tem muita ação e pouca interferência do narrador; outros pensam justamente o con-trário, dando mais valor às reflexões do narrador do que ao enredo. Não vale a pena tentar chegar a uma definição de narrativa ideal ou buscar um padrão de excelência a partir do qual se poderiam julgar todas as histórias. Mas vale a pena saber de que elementos as narrativas se compõem.

Aristóteles acreditava que aquilo que hoje chamamos de enre-do é o elemento mais básico de uma narrativa e que ele deveria ser organizado com começo, meio e fim.10 Todos concordam que

10 ARISTÓTELES, Poética. In: A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1990.

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não existe narrativa sem enredo, mas muitos críticos modernos não vêem nenhuma graça em uma história linear em que há um encadeamento de fatos, organizados em torno de suas causas e conseqüências, que conduzem da apresentação à solução de um conflito. O filósofo grego pensava que o prazer que sentimos ao ler ou ouvir uma história é resultado justamente dessa ordenação, que imita o que acontece na vida, mas de maneira muito mais or-ganizada e compreensível.

Assim como não há narrativa sem enredo, não há narrativa sem narrador, pois é ele que se incumbe de contar a história para os leitores ou para os ouvintes. Ele não tem relação necessária com o escritor, aquele sujeito empírico que concebeu a narrativa. Pode haver, por exemplo, um autor branco que cria um narrador negro e escravo para contar uma história ou uma mulher que inventa um narrador homem e machista.

Nesses casos, o autor não está, como é claro, falando sobre si mesmo. Ele está imitando e inventando um jeito de se expressar e de narrar; está criando uma figura, o narrador, que só tem existência no texto. Ele pode participar da narrativa – nesse caso, se diz que é um narrador em primeira pessoa – ou pode se colocar fora do enredo – sendo chamado, nessa situação, de narrador em terceira pessoa.

O livro Menina e Moça principia com as seguintes frases: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube”.

Embora a história seja contada por uma garota, o livro foi escrito por um homem adulto: Bernardim Ribeiro. E não adianta duvidar da mascu-linidade dele: autor e narrador não têm nada a ver!

Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, foi um livro de grande sucesso. Teve uma primeira edição em 1554, feita em Ferrara, e uma segunda, datada

de 1557-58, publicada em Évora. No ano seguinte, 1559, foi feita nova edição em Colônia.

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O narrador em primeira pessoa pode ser o protagonista da his-tória (seu personagem principal), pode ocupar um lugar de menor destaque no enredo (como um personagem secundário) ou pode ser apenas um observador, que não toma parte na ação e se en-carrega de descrever e apresentar os acontecimentos.

Já o narrador em terceira pessoa necessariamente se coloca na posição de observador, não participando da ação. Ele pode ter um conhecimento limitado dos fatos, assim como qualquer um de nós que, ao presenciar uma cena, não tem certeza sobre as intenções e motivações dos que dela participaram. Mas, em muitos casos, ele tem um conhecimento superior ao que teria qualquer mortal. Ele pode ser onipresente, ou seja, pode estar em todos os lugares, e pode ser onisciente, quer dizer, pode saber tudo sobre as ações e os personagens, conhecendo, até mesmo, seus pensamentos e desejos mais secretos.

Em A Moreninha, romance de Joaquim Manuel de Macedo publicado em 1844, o narrador conhece os pensamentos, sentimentos e ações de todos os personagens, assim como é capaz de saber o que se passa em todos os lugares. É, portanto, um narrador onisciente e onipresente. Entretanto, para aguçar a curiosidade de seus leitores, esse narrador inventava restrições, como por exemplo, não especificar o local onde se passa a história – a famosa “ilha de...”. Para criar um efeito de intimi-dade com o leitor, fingia certos impedimentos morais, como na cena em que devia relatar o que acontecia no quarto das moças e dos rapazes, logo cedo pela manhã. Diz ele no capítulo 15:

“São seis horas da manhã e todos dormem ainda a sono solto.Um autor pode entrar em toda a parte e, pois... Não, não, alto lá! no

gabinete das moças... não senhor; no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta.”

Alguns críticos chamam esse tipo de narrador em terceira pessoa de “narrador intruso”, pois ele fala com o leitor e comenta com ele seu próprio comportamento e o dos personagens. No caso acima, ele brinca com os leitores, fingindo haver um empecilho que o impedia de entrar no quarto de moças adormecidas.

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O narrador, além de expor e comentar os acontecimentos, apre-senta os personagens. Eles são figuras essenciais das narrativas, pois é quase impossível conceber uma narrativa sem personagens, já que são eles os responsáveis pela ação e por algumas falas.

Aristóteles definiu a narrativa (mais especificamente a epopéia) como o texto em que fala o poeta e falam os personagens, opon-do-o ao lírico, em que só fala o poeta, e ao dramático, em que falam apenas os personagens. Assim, já se nota quanta importân-cia ele conferia aos personagens e suas falas, sem os quais não haveria narrativa.

A fala dos personagens pode ser apresentada sob a forma de discurso direto, ou seja, o narrador cede a palavra aos persona-gens, limitando-se a introduzi-la, por meio de verbos, como dizer, perguntar, responder, contestar, e pelo uso de travessão ou de as-pas nos trechos das falas. Desse modo, constroem-se diálogos em que as falas dos personagens se alternam.

O narrador, entretanto, pode se responsabilizar por apresentar ele mesmo a fala dos personagens. Nesses casos, dizemos que há um discurso indireto, pois o narrador recria, com suas palavras, o que teria sido dito.

Você, que já sabe que autor e narrador são figuras distintas, pode achar graça no procedimento, mas não vai acreditar nisso! Um autor não pode entrar em qualquer lugar, um narrador onipresente, sim, este pode.

O inglês Henry Fielding, autor do romance Tom Jones, publicado em 1729, construiu um narrador onisciente e bastante intrometido (lembra do “narrador intruso”?). Diz ele: “cuido razoado, leitor, antes de prosse-guirmos juntos, significar-te que pretendo fazer digressões no decurso de toda esta história sempre que me ensejar ocasião, da qual sou o melhor juiz do que qualquer lastimoso crítico que exista; e cumpre-me pedir aqui a todos esses críticos que tratem da sua vida, e não se metam em negó-

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É possível, ainda, que ocorra uma mescla entre a voz do narra-dor e a dos personagens, criando o que se designa por discurso indireto livre. Nesse caso, a fala do personagem não é indicada por travessão, nem por aspas, tampouco o narrador a anuncia por meio de verbos como dizer, perguntar ou responder. A fala dos per-sonagens mistura-se às palavras do narrador.

cios ou obras que, de maneira nenhuma, lhes dizem respeito.” (p. 15)Como vemos, o narrador fala diretamente com o leitor e se coloca

como aquele que tem todos os direitos sobre o texto (fará digressões e comentários sempre que sentir vontade), dando alfinetadas nos críticos, que não seriam pessoas autorizadas a opinar sobre as obras.

Esse narrador, impositivo e cheio de opinião, às vezes tem que ceder a voz para os personagens, como se vê no trecho abaixo, que trata de um casamento feito às escondidas. O Sr. Blifil deve contar ao Sr. Allwor-thy que a irmã dele se casou com seu irmão:

“enquanto o Sr. Allworthy passeava no jardim, acercou-se dele o dou-tor e, com grande gravidade de aspecto, e toda a aflição que lhe era possível atrair ao semblante, declarou: – Aqui estou, senhor, para dar-vos ciência de um assunto da máxima importância; mas como haverei de dizer-vos o que o simples pensar quase me enlouquece? – Em se-guida, começou a proferir as mais acerbas invectivas contra homens e mulheres; acusando os primeiros de não terem apego senão aos seus interesses, e as últimas de serem tão propensas a inclinações viciosas que nunca podiam ser confiadas sem perigo a uma pessoa do outro sexo.” (p. 35)

Como percebemos, esse narrador gosta mesmo de falar e sequer deixou que o Sr. Blifil concluísse sua frase para retomar a voz narrativa. Nesse caso, transitou do discurso direto (“Aqui estou, senhor, para dar-vos ciência de um assunto da máxima importância; mas como haverei de dizer-vos o que o simples pensar quase me enlouquece?”) para o indireto (“Em seguida, começou a proferir as mais acerbas invectivas contra homens e mulheres; acusando os primeiros de não terem apego senão aos seus interesses, e as últimas de serem tão propensas a inclinações viciosas que nunca podiam ser confiadas sem perigo a uma pessoa do outro sexo.”).

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Além desses elementos essenciais (enredo, narrador e perso-nagens), as narrativas costumam contar com a criação de um es-paço – ou seja, um ou vários cenários nos quais se desenrola a história – e de um tempo.

O espaço é não apenas a descrição de lugares físicos onde os eventos acontecem, mas também a caracterização social, econô-mica, religiosa da narrativa (o que pode ser também chamado de ambiente). Da mesma forma, o tempo diz respeito não apenas ao momento histórico em que se desenrolam os fatos, mas também ao andamento da narrativa que pode se valer do tempo cronológi-co, apresentando linear e sucessivamente os fatos na ordem em que ocorreram, ou do tempo psicológico, rompendo a linearidade e

Somente a partir do século XIX o discurso indireto livre começou a ganhar espaço nas narrativas. Muitos acreditam que o escritor francês Gustave Flaubert tenha sido o primeiro a empregar esse procedimento.

Em Madame Bovary, de Flaubert, no momento em que Emma encontra seu marido Charles, logo após ter recebido uma carta de seu amante, Rodolphe, pondo fim ao caso entre eles, o narrador diz:

“De repente, voltou a lembrança da carta. Tê-la-ia perdido? Onde en-contrá-la? Mas sentia um tal cansaço no espírito que de forma alguma pôde inventar um pretexto para deixar a mesa. Além disso, tornara-se covarde, tinha medo de Charles; ele sabia de tudo, era claro!” (p. 220)

As falas de Emma misturam-se à do narrador, sem qualquer distinção clara. Suas perguntas são inseridas na seqüência de uma frase do narra-dor, sem aspas ou travessões. No último período, a mistura é ainda mais intensa, pois não há sequer uma separação entre as frases, criando uma sutil transição entre as falas. Quem diz “tornara-se covarde, tinha medo de Charles” é o narrador. Apenas um ponto-e-vírgula separa sua fala da fala interior de Emma, que pensa “ele sabia de tudo, era claro!”

Madame Bovary, romance do escritor francês Gustave Flaubert, publicado em 1857, causou grande tumulto, devido à narrativa dos amores adúlteros de Emma Bovary. O escândalo aumentou quando o autor foi levado aos

tribunais, processado pela falta de moralidade da narrativa. Flaubert foi absolvido em fevereiro de 1857.

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seguindo as motivações internas do narrador. Existem diversos tipos de narrativa em prosa – como os contos

de fadas, as biografias, os causos etc. Entre esses tipos, destaca-se o romance moderno, forma narrativa que surgiu no século XVIII. Para o teórico inglês Ian Watt, a articulação entre um tempo e um espa-ço específicos é uma das características essenciais dos romances modernos, pois ela era responsável pela individuação. Afinal, como se aprende nas aulas de física, dois corpos não podem ocupar, ao mesmo tempo, um único lugar no espaço. Assim, uma das manei-ras de definir um indivíduo é observar o lugar que ele ocupa em determinado tempo. Citando o filósofo inglês Locke, Ian Watt, em A ascensão do romance (p. 22), lembra que “as idéias se tornam gerais separando-se delas as circunstâncias de tempo e lugar”.

Contam-se narrativas em prosa há muitos, muitos séculos, mas elas ganharam notável impulso com o surgimento do romance moderno na In-glaterra no século XVIII. Diferentemente das histórias que o precederam, ele se caracteriza pelo realismo formal, ou seja, pela tentativa de produzir uma narrativa que fosse uma representação fiel da realidade cotidiana, recorrendo, portanto, às histórias de pessoas comuns, aos eventos corri-queiros, às descrições minuciosas, à apresentação de detalhes.

Veja, por exemplo, como começa um dos mais célebres romances ingleses setecentistas, Robinson Crusoe, de Daniel Defoe:

“Nasci no ano de 1632, na cidade de York, filho de boa família estran-geira, pois que meu pai era natural de Bremen e se fixara primeiramente em Hull. Aí conseguira boa fortuna no comércio e, depois de deixar os negócios, se retirara para York, berço natal de minha mãe, cuja parente-la, os Robinson, era uma distinta família local, razão por que me chama-ram Robinson Kreutznaer. Entretanto, devido à habitual corrupção das palavras na Inglaterra, somos agora chamados Crusoe, escrevendo as-sim nosso nome”.

O narrador se preocupou em apresentar dados minuciosos sobre o tempo, o lugar e as pessoas envolvidas na narrativa. Ao longo do livro, acompanhamos dia a dia, minuto a minuto os fatos em que Crusoe se envolve, em suas viagens, na ilha em que naufraga e na Europa, por ocasião de seu regresso.

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Ao conceber uma narrativa, um autor precisa trabalhar os ele-mentos internos à composição, de modo a construir uma história em que se possa acreditar. Ou seja, o autor tem de obedecer ao princípio da verossimilhança. Os fatos não precisam ser verdadei-ros, nem é necessário que venham a acontecer no mundo real, mas devem criar uma ilusão de verdade. É preciso que haja uma lógica interna ao enredo.

Em uma narrativa memorialística sobre a vida cotidiana de uma presidiária, não seria verossímil o aparecimento de um cavalo vo-ador, que a libertasse e a fizesse fugir, voando sobre suas costas. Já em uma narrativa sobre Pégasus, o cavalo alado, não haveria nenhum problema, já que o regime de verdade ali presente torna possíveis os seres mitológicos, como seu pai, Posêidon, o Deus do Mar, ou sua mãe Medusa, de cujo pescoço decepado ele surgiu. Uma narrativa sobre a família de Pégasus pode ser inteiramente verossímil, ainda que não corresponda à realidade observável, des-de que haja uma organização lógica do enredo.

Os romancistas, principalmente aqueles que escreveram suas obras no século XVIII e no XIX, esforçaram-se para criar uma im-pressão de que as histórias que narravam eram mais do que ve-rossímeis, eram autênticas, tinham mesmo acontecido. Para criar essa ilusão de realidade, parecia-lhes essencial prestar atenção aos detalhes, descrever minuciosamente os lugares, criar persona-gens com características, linguagem e comportamentos peculiares e envolvê-los em situações cotidianas.

O romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, foi publicado em três par-tes: Vida e aventuras pasmosas, surpreendentes do marinheiro Robinson

Crusoe, de York (1719); Ulteriores aventuras de Robinson Crusoe (1719) e Refle-xões graves de Robinson Crusoe (1720).

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Do que se faz uma narrativa

As narrativas dão a conhecer personagens realizando ações em um determinado espaço e tempo. O desenrolar dos acontecimentos compõe o enredo, apresentado pelo narrador, de maneira verossímil.Sem isso, não dá para contar uma história.

Para criar uma ilusão de realidade, muitos romancistas alegavam não

serem os autores das obras. Eles afirmavam haver encontrado manuscri-tos contendo histórias tão interessantes, que julgavam útil publicá-las.

José de Alencar faz uso desse procedimento no romance O Guarani. Antes de iniciar a narração, ele criou um “Prólogo”, em que finge estar escrevendo para sua prima, e diz:

“Minha prima gostou da minha história, e pede-me um romance; acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura.

Engana-se; [...] não me julgo habilitado a escrever um romance, ape-sar de já ter feito um com a minha vida.

Entretanto, para satisfazê-la, quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa, quando a comprei.

Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim, esse roedor eterno, que antes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé, e pôde assim escapar ao cataclisma.”

Ele não se contenta em criar em uma história verossímil. Quer fazer seu leitor acreditar que não está lendo algo inventado e sim uma antiga narrativa registrada em um velho manuscrito.

O Guarani, de José de Alencar, foi publicado na forma de folhetins no Diário do Rio de Janeiro entre os meses de janeiro e abril de 1857. Ou seja, a

narrativa foi sendo apresentada aos poucos aos leitores do jornal, que ficavam cada dia mais curiosos. O sucesso foi tão grande que, nesse mesmo ano, a his-tória foi editada em livro.

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Lendo um romance na escola

Lá pelos 13 ou 14 anos, o ciúme é um sen-timento que já entrou na vida da gente. A essa altura, em geral, não é mais apenas o ciúme do irmãozinho que ganhou um brinquedo mais inte-ressante... Nesse momento, os alunos podem se interessar pela história de Bento, um garoto de 15 anos, apaixonado por sua vizinha, Capitu. Você já percebeu, é claro, que se trata da história de Dom Casmurro, mas não custa avivar a memória.

Bentinho e sua vizinha, apesar de apaixonados, enfrentam difi-culdades em seu namoro, pois o rapaz estava destinado a ser pa-dre, para cumprir uma promessa de sua mãe, Dona Glória – coisa não muito usual hoje em dia, mas perfeitamente compreensível para quem já enfrentou (ou ainda enfrenta) as mais variadas for-mas de oposição dos pais aos namoros.

Sem ter como escapar, Bentinho vai ao seminário por dois anos e lá conhece Escobar, que se tornaria seu melhor amigo. É ele que encontra a solução para que Bentinho não se torne padre: bastaria enviar ao seminário, no lugar do rapaz, algum jovem pobre e arcar com todas as despesas necessárias para fazê-lo padre. Depois de alguma relutância, Dona Glória concorda e cumpre sua promessa por meio de um substituto. Paralelamente, Escobar, que tinha mais vocação para o comércio do que para o sacerdócio, também aban-dona o seminário.

De volta a casa, Bentinho e Capitu reatam o namoro e acabam por se casar. Escobar, por sua vez, casa-se com Sancha, amiga de infância de Capitu. Desde logo, o jovem marido Bento dá mostras de ciúmes, quando percebe, por exemplo, que nos bailes os ho-mens olham com interesse para os braços descobertos de Capitu.

Dom Casmurro, de Machado de Assis,

foi publicado pelo maior edi-tor carioca do século XIX: B.L. Garnier. O livro foi im-presso em Paris, em 1899, mas só chegou ao Brasil no início de 1900. É um dos li-vros brasileiros mais tradu-zidos para outras línguas.

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Coisas de um tempo em que ver os braços nus das moças já era muito...

Os ciúmes pioram quando nasce seu filho, chamado Ezequiel. Bentinho acredita que o garoto se parece com Escobar, seja no comportamento, seja nas feições. Quando Escobar morre, o com-portamento de Capitu durante o velório convence Bentinho de que ele havia sido traído e de que o filho não era seu. Pensa em se matar, depois pensa em matar Ezequiel. Afinal, se decide por uma solução menos dramática: manda Capitu e o menino para a Europa e fica vivendo sozinho no Rio de Janeiro. Depois de anos de reclu-são, os vizinhos o apelidam de Dom Casmurro ou, em termos de hoje, sr. Mal-humorado.

Os parágrafos anteriores sintetizam o enredo do romance, mas o interesse do livro não se esgota aí. Pelo contrário, mais do que dar a ver “o que ocorreu”, a narrativa faz pensar na maneira de apresentar e conduzir os acontecimentos.

Ao identificar “o que ocorre” na história, poucos leitores se fixam nos ciúmes de Bentinho/Casmurro. Boa parte deles volta sua atenção para o comportamento de Capitu e toma partido, seja defendendo-a, seja acusando-a. Esse desejo de chegar a uma con-clusão sobre as atitudes da protagonista é fruto de uma leitura centrada no enredo e na expectativa de que a história apresente um conjunto de fatos pelos quais se tornem claras as causas e as conseqüências das ações.

O debate centrado no enredo do romance já tem mais de cem anos, durante os quais especialistas e leigos têm discutido acalo-

Lembra-se que Aristóteles achava que um dos prazeres da narrativa

é originado pela organização dos fatos que nela se tornam muito mais claros do que na realidade? Nos romances modernos, como Dom Cas-murro, a ficção pode ser tão incerta quanto a vida. Nem por isso se torna menos prazerosa...

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radamente o comportamento de Capitu e os indícios de sua traição ou de sua inocência.

Em 2008, o jornal O Estado de S. Paulo decidiu homenagear o centenário da morte de Machado de Assis, criando uma seção chamada “Meu Machado de Assis”, em que personalidades davam depoimentos sobre sua relação com a obra do escritor. A primeira convidada foi Lygia Fagundes Teles, que escolheu comentar, jus-tamente, Dom Casmurro, lembrando as diferentes interpretações que a leitura da obra suscitou ao longo de sua vida. Quando leu o livro pela primeira vez, nos anos de faculdade, concluiu que “Capi-tu era uma santa, uma pobrezinha; e ele, Bentinho, um neurótico, um doido varrido, histérico.” Anos depois, retomou a obra e mudou de idéia: “a mulher traiu ele, sim, o filho não era dele. [...] esse homem é um doido, coitada dessa mulher.” Hoje, ela se diz em dúvida: “não sei mais. Minha última versão é essa, não sei. Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na se-gunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei.”

A polêmica acerca da traição de Capitu não se resolverá jamais, enquanto a atenção se fixar apenas no enredo. O ardil está na ma-neira como os fatos foram apresentados. É preciso ler Dom Casmur-

ro observando elementos que vão além do enredo e da ação dos personagens. O teórico americano Jonathan Culler, em sua obra Teoria Literária: uma introdução, propõe que se observem algumas

Acompanhando os comentários de Lygia Fagundes Telles, o jornal O

Estado de S. Paulo decidiu lançar uma enquete, perguntando, durante cin-co dias, “Capitu traiu Bentinho?”. Das 1.796 pessoas que responderam, 50% afirmaram “Sim, Capitu traiu Bentinho”, 32% disseram que não, e 18% afirmaram não saber.

Em uma pesquisa de opinião como essa, o enredo é o centro da atenção.

O Estado de S. Paulo, Domingo, 27 jan. 2008 (entrevista) e Domingo, 3 fev. 2008 (resultado da enquete)

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questões quando se lê uma narrativa: “quem fala”, “quem fala com que autoridade”, “quem vê”, “quem fala que linguagem”, “quem fala quando” e “quem fala para quem”. De olho nesses tópicos, fica fácil entender por que há tanta controvérsia em torno do livro.

A primeira grande questão é pensar sobre quem fala. A história é narrada em primeira pessoa por Bento Santiago que, na velhice, decide rememorar sua vida. Ele se apresenta como um cavalheiro distinto, bem-posto na vida, um advogado, filho de família de pos-ses, que se mostra preso às recordações de infância, quando era um filho obediente e um namorado apaixonado. Aí está um dos truques dessa narrativa. O narrador parece inteiramente confiável: culto, rico, amoroso e apegado à família. Como duvidar de alguém assim? Antes de apostar todas as fichas em Bentinho, no entanto, é melhor olhar com um pouco mais de atenção e pensar sobre quem fala com que autoridade.

Os leitores costumam conferir autoridade ao narrador, acreditan-do naquilo que ele diz. Quando o agregado José Dias, que vivia jun-to com a família de Bentinho, é apresentado como sendo “magro, chupado, com um princípio de calva”, ninguém fica se perguntando “Será que ele era assim mesmo?”; “Será que ele estava mesmo começando a ficar careca, ou o narrador é que está de implicância com ele?”. Se alguém ler assim, não irá muito longe...

Em geral, aceitamos aquilo que nos contam. Mas alguns narra-dores, chamados de não-confiáveis, usam todo seu engenho para confundir o leitor, embora deixem pistas para que ele perceba que nem tudo é como parece ser. Não é plausível duvidar de que José Dias fosse magro e careca, mas o que dizer da descrição dos olhos de Capitu diante do corpo de Escobar? Diz o narrador: “Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamen-te fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” E continua: “Momento houve em que os olhos de Capi-tu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras

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desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã” (cap. CXXIII).

A descrição da cena é filtrada pela sensibilidade do narrador e está longe de ser imparcial como a descrição de uma careca. Capi-tu olhou fixamente para o cadáver. Nisso podemos acreditar. Mas olhou “apaixonadamente”? Quis mesmo “tragar” Escobar para dentro de si? Isso depende dos olhos de quem vê.

Quem interpretou as atitudes de Capitu no velório como mos-tras de paixão e traição foi seu ciumento marido. Como ele é, ao mesmo tempo, o narrador, os fatos a que temos acesso são aque-les filtrados por seus sentimentos íntimos.

Ao ler um romance – e, especialmente, esse romance – é pre-ciso observar a partir de que perspectiva os acontecimentos são vistos e apresentados. Há narrativas em que diferentes pontos de vista, sustentados por diversos personagens, são apresenta-dos e até postos em confronto, permitindo ao leitor ter acesso a múltiplas opiniões antes de formar a sua. O teórico russo Mikhail Bakhtin, em Questões de literatura e estética (a teoria do romance), caracteriza o romance como fundamentalmente polifônico (por apre-sentar diversas vozes e modos de dizer, sobretudo nos diálogos) e dialógico (por dar a ver distintas perspectivas sociais e pontos de vista em confronto). É a isso que Culler se refere ao dizer que nos romances devemos observar quem fala que linguagem.

No caso de Dom Casmurro isso é particularmente relevante, pois predomina a visão de Bentinho, que narra os fatos a partir de sua perspectiva ciumenta e insegura.

O romance não apresenta o ponto de vista de Capitu, tampou-co o de Escobar. Não nos é dado saber o que ela e ele faziam quando estavam fora das vistas do marido. A traição é apenas suposta e assentada em indícios impalpáveis. Quando Bentinho, finalmente, diz a Capitu que Ezequiel não era seu filho, o narrador apresenta assim sua reação: “grande foi a estupefação de Capitu,

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e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam dúvidas as primeiras testemunhas de vista do nosso foro” (cap. CXXXVIII). Ela parece inocente e se diz injuriada. Ao saber que seu marido acreditava que o pai de Ezequiel era Esco-bar, “Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui”, diz o narrador. O que significava esse riso? Confissão de culpa? Resignação diante da injustiça? Jamais saberemos, pois só temos acesso à perspectiva do narrador – que apostou na culpa.

A história, focalizada por meio de um único personagem, apre-senta o que Jonathan Culler chama de limitações do conhecimen-to – uma das variáveis da focalização (ou ponto de vista) –, o que torna a “narração não-confiável”, pois percebemos que não temos acesso a todos os elementos relevantes da história.

A não-confiabilidade é acentuada pelo manejo do tempo, pois, como também lembra Culler, “a escolha da focalização temporal faz uma diferença enorme nos efeitos de uma narrativa” (p. 90). Ben-tinho declara escrever a história para “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”. Portanto, ele não conta os fatos à medida que vão acontecendo e sim filtrados por sua memó-ria e seus sentimentos. Ou seja, ele revê sua vida ao lado de Capitu sob o prisma da traição. Quando conta o que aconteceu em sua in-fância e adolescência, já tem em mente a infidelidade e espalha in-dícios de que a moça tinha extraordinária capacidade de dissimular e manipular. O livro é construído, como diz o narrador, para verificar “se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente”. A idéia, aqui formulada como dúvida, é transformada, linhas abai-xo, em certeza: “uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” (cap. CXLVIII). Em outras palavras, a história é contada muito tempo depois de ter ocorrido, combinando a perspectiva do garoto Bentinho com a do velho Casmurro, já convencido de ter

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sido traído. Por isso, importa pensar sobre quem fala quando. Se a história fosse apresentada sob a forma de um diário escrito por Bentinho, dia a dia, o efeito seria necessariamente outro.

Culler lembra também que distância e velocidade interferem na focalização. No caso de Dom Casmurro há muito mais minúcia no relato dos fatos ocorridos até o casamento do que na apresentação dos acontecimentos posteriores ao nascimento de Ezequiel. São cem capítulos destinados a contar o que ocorreu até o casamento. Tantos, que o narrador chega a temer que o leitor desanime. No capítulo 101, intitulado “No céu”, ele diz: “pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos”. Dos ciúmes difusos que surgiram após o casamento até a consolidação da idéia de que Capitu o traía com seu melhor amigo são apenas 23 capítulos; desse momento à explicitação da certeza de que Ezequiel não era seu filho, nada além de 8 capítulos. Acelerando a narrativa, não há tempo para muitas justificativas e minúcias, o que reforça o clima de suspeita em torno ao comportamento de Capitu.

A curiosa dosagem entre lentidão (quando se narram os aconte-cimentos da vida infantil e juvenil) e aceleração narrativa (quando se apresentam os fatos posteriores ao nascimento de Ezequiel) é justificada como sendo fruto do gosto que os velhos têm pelas primeiras lembranças, associada à falta de necessidade de expli-citação de detalhes, que supostamente todos conhecem. Assim, o narrador chama o leitor para seu lado, reforçando a identificação com suas opiniões. Quando, em uma única e curta sentença, con-duz Ezequiel da pia batismal, aos cinco anos de idade (cap. CIX), o narrador comenta: “A tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto”. Ora, nin-guém deseja se sentir “obtuso”. Então, o leitor que quiser passar por inteligente será levado a tirar conclusões a partir de uns pou-

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cos indícios apresentados pelo narrador que, no caso da suposta traição, pouco diz. Essas artimanhas narrativas tornam imprescin-dível observar quem fala para quem em um romance.

As narrativas implicitamente constroem um leitor capaz de re-conhecer certas referências e disposto a compartilhar pressupos-tos. O narrador de Dom Casmurro deixa isso claro com freqüência. Em certa altura, ao dizer que Escobar havia comprado uma casa no Flamengo, comenta: “Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo número. Não digo que número é para não irem indagar e cavar a história”. Ao fazer isso, o narrador cria um leitor que é seu contemporâneo e que não ape-nas partilha conhecimentos, mas que pode atestar a verdade dos fatos indo à casa de um dos personagens. Lembra da tentativa de criar uma ilusão de realidade? Essa é uma estratégia muito eficaz, pois confunde a ficção e o real. Se a casa existe, os fatos devem ter existido também.

Esse efeito pode ser obtido também por meio das referências ao tempo. No enterro de Escobar, o narrador comenta: “um e outro discutia o recente gabinete Rio Branco; estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.” Os leitores, que es-tão distantes dessa época, também são afetados pela simulação de verdade, pois compreendem as alusões a espaços reais e a um tempo histórico específico como indícios de que o narrador quer fazê-los acreditar na história.

O desejo de fazer a história parecer verídica é intensificado, quando o autor cria um capítulo em que entra em interlocução di-reta com D. Sancha, a esposa do amigo falecido, com a qual tinha flertado pouco antes do acidente, segurando fortemente em sua mão. No capítulo 129, o narrador diz:

“D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido

até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo,

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para não lhe dar tentação e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso,

quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que re-

ceber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sába-

do, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles,

desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é

indelével. Não, amiga minha, não leia mais” (cap. CXXIX).

A estratégia aqui empregada pretende alterar o estatuto do nar-rador e do personagem, fazendo-os passar por pessoas. A interlocu-ção interna à narrativa escapa para fora do texto quando o narrador finge a possibilidade de seu livro estar sendo lido por um de seus personagens, como se fosse uma pessoa de carne e osso. Ele se diz preocupado, pois, capítulos antes, havia descrito o comporta-mento de Sancha como demonstração de interesse por ele. Aqui, confessa que se enganou ao pensar que ela se interessava por ele. Teria se enganado também ao acreditar que Capitu o traía?

Traiu ou não traiu? – O leitor fisgado pelo enredo do romance

Se você decidir discutir esse livro com seus alunos e resolver preparar uma boa aula, lendo as críticas produzidas a seu respeito, talvez fique um tanto hesitante diante de opiniões tão desencon-tradas. Não desanime! É aí que está a graça: não há uma opinião consensual sobre este (nem sobre nenhum outro) texto literário.

O livro gerou um animado debate desde seu lançamento. O professor e crítico Alfredo Bosi, em seu livro Machado de Assis (p. 67), sintetizou a secular polêmica:

“A incerteza quanto ao fundamento dos ciúmes de Bento dividiu os

intérpretes do romance. Em vida de Machado, o seu melhor leitor

na época, José Veríssimo, aceitou sem reservas o teor suspeitoso

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e afinal acusador da narrativa de Dom Casmurro: ‘Era impossível

em história de adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar,

advertir o fato sem jamais indicá-lo’. Outros intérpretes disseram,

de vários modos, a mesma coisa: basta ler Alfredo Pujol, Lúcia

Miguel Pereira, Augusto Meyer e Barreto Filho. A ‘arte de insinuar’,

sem provar com a narração do flagrante, deixou perplexo um dos

mais finos estudiosos do romance, Eugênio Gomes, que, insistin-

do no fato de que só conhecemos a história pelo testemunho de

Bento, atribui a Capitu o estatuto de ‘enigma’, de resto indecifrá-

vel, porque não há, fora da narrativa em primeira pessoa, outra,

paralela, que nos esclareça sobre a ‘verdadeira’ personalidade da

moça.”

Divididos os críticos entre crentes, descrentes e perplexos, va-mos conhecer seus argumentos.

Alfredo Pujol, um dos primeiros a analisar a obra de Machado de Assis, não teve muita dúvida ao ler Dom Casmurro e disse:

“Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santia-

go, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacri-

fício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha,

Capitolina − Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu

é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela

traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça.

Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e

talvez inconsciente. Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre,

consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em di-

reito e casa com a companheira de infância. Capitu engana-o com

seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o

filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e

quase mau.”

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Está clara a integral adesão à perspectiva do narrador, de quem o crítico jamais desconfia. Ele divide os personagens em bons e maus e concentra sua atenção sobre o enredo. Apesar de achar a história “cruel”, ele a avalia positivamente, sobretudo no que diz respeito à construção do personagem Capitu.

Outros leitores tiveram atitude menos benevolente. Pouco depois do lançamento, Frota Pessoa revelou seu desagrado com o livro:

“O seu último livro, Dom Casmurro, é de concepção inferior. Expur-

gando-o das pequeninas observações que o recheiam, pedacinhos

de vida e pedacinhos de alma, vistos como através de um buraco

de fechadura, ele resume-se em mostrar como uma criança licen-

ciosa por educação e talvez por atavismo dará uma mulher adúlte-

ra. E esta moralidade explícita lá está no livro: – Uma estava dentro

da outra, como a fruta dentro da casca. Parece-me exagerado qua-

trocentas páginas para tão pouco.” 11

É evidente a concentração do crítico sobre o personagem. Se-quer o enredo o mobilizou, pois para ele pouco se aproveita no livro, exceto umas “pequeninas observações”, uns “pedacinhos de vida e pedacinhos de alma”, que não deveriam ter rendido tantas páginas. Se um estudante chegasse à conclusão semelhante so-bre a obra de Machado de Assis, certamente seria repreendido por sua professora.

Em 1902, quando Frota Pessoa manifestou seu desagrado em relação ao livro, em Crítica e polêmica, Machado de Assis já gozava de grande prestígio, mas ainda estava longe de ser o clássico que é hoje. Escrevendo no calor da hora, sem o respaldo da fortuna crí-tica posteriormente produzida, e imbuído de idéias que apontavam

11 PESSOA, Frota. Crítica e polêmica. Apud MONTELO, Josué. Os inimigos de Machado de Assis, p. 127-128.

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o ambiente e a constituição individual (“uma criança licenciosa por educação e talvez por atavismo dará uma mulher adúltera”) como determinantes do comportamento, Frota Pessoa não se impressio-nou com a obra. Lendo-a com critérios que privilegiavam a morali-dade da narrativa e o andamento do enredo, o livro pareceu-lhe “de concepção inferior”.

As leituras centradas no enredo prosseguiram por toda a pri-meira metade do século XX, indicando, na maioria das vezes, a culpa de Capitu. Somente depois de transcorridos sessenta anos, uma pesquisadora norte-americana chamou a atenção para o ca-ráter interessado da narração, destacando a figura do narrador e seu poder de manipular as informações: “o fato – se é que seja um fato – de Ezequiel se parecer em algo com Escobar não significa necessariamente concluir que aquele é filho deste.” Ela revê cada passagem do livro, buscando indícios da arbitrariedade de Benti-nho e da integridade de Capitu:

“A ‘narrativa’ de Santiago não passa de uma longa defesa em cau-

sa própria. Por meio de sofrimentos infindáveis, ele estabelece seu

próprio bom caráter, a dedicação de seu amor, sua gentileza, inge-

nuidade e probidade. Ele admite certas falhas perdoáveis, como ci-

úme, vaidade, inveja, suscetibilidade a encantos femininos e gula.

[...] A única prova tangível da culpa de Capitu é a semelhança de

Ezequiel com Escobar. Esse é o ‘lenço de Desdêmona’, o acessório

que Santiago faz dominar a ação. Quem, na estória, percebe essa

semelhança? Santiago e Capitu, possivelmente também Sancha e

possivelmente Escobar. Ninguém mais. [...] Há um outro [argumen-

to], mais solene, que declara a verdadeira origem de Ezequiel, que

é nada menos que a Sagrada Escritura: ‘Tu eras perfeito em teus

caminhos, desde o dia da tua criação’ – sobre o qual Santiago

lança descrença cética com sua pergunta ‘Quando seria o dia da

criação de Ezequiel?’ Mas, se dermos mais atenção à reprimenda

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de Machado, aceitaremos a citação bíblica solenemente. Nesse

caso, teremos que Ezequiel é o filho legítimo de Santiago, sendo

este infiel e ciumento, e Capitu, inocente.” 12

Helen Caldwell examinou e compreendeu o livro de maneira bas-tante distinta da que havia sido feita até aquele momento. Inverten-do os juízos, vê culpa em Bentinho e pureza em Capitu. Provavelmen-te ela leu o livro de modo distinto por ser norte-americana, mulher, inserida numa tradição protestante, o que a fez estranhar e rejeitar o autoritarismo de Bentinho e a submissão de sua mulher. Escrevendo nos anos de 1960, ela certamente estava a par das reivindicações feministas. Nessas condições, interpretou a obra buscando provar a inocência de Capitu e a parcialidade do relato de Bentinho.

Hoje, quando, em geral, se aceita que as mulheres têm direi-tos e não devem se submeter inteiramente às vontades de seus maridos, são os homossexuais que têm lutado para terem direitos semelhantes aos dos heterossexuais. Nesse contexto, surgiram novas leituras, como a feita pelo humorista Millôr Fernandes, que compilou trechos da obra para sustentar a idéia de que, na verdade, haveria uma atração homossexual entre Bentinho e Escobar. 13

A polêmica, entretanto, está longe de ter chegado ao final, pois mesmo quando se lê o livro de olho em outros elementos que não o enredo e o comportamento dos personagens, as interpretações variam. Muitos críticos perceberam que a história é narrada por Bentinho de modo a condenar Capitu, tornando impossível ter cer-teza sobre seu comportamento. Estarem de acordo sobre isso não conduziu necessariamente a interpretações semelhantes, pois le-ram a obra segundo opiniões políticas, lugares sociais, condições

12 CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Cas-murro, p. 99, 103, 119.

13 “O outro lado de Dom Casmurro”. In: Veja, Edição 1889. 26 jan. 2005.

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culturais diversos. Para uns, o conflito de classe explica a obra; para outros, a crise do patriarcalismo é o elemento central; para outros ainda, só um exame da psicologia do narrador é capaz de revelar o sentido oculto da obra.

Em vez de buscar a “verdade” encoberta no texto, pensamos que interessa mais observar como as convicções íntimas dos leito-res produzem leituras distintas.

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Conclusão – Leitura e interpretação

A escola tem sido um importante espaço de sacralização da lite-ratura, da leitura e do discurso crítico. Ela tem inserido os livros

em um lugar de repressão e de controle e tem ensinado, sobretu-do, qual é o discurso “certo” a ser produzido (ou, mais freqüente-mente, reproduzido) sobre determinadas obras. Muitas vezes, as interpretações criadas pelos alunos são desqualificadas por não estarem em acordo com a prevista pelo livro didático adotado, com um texto de crítica literária conhecido, ou, simplesmente, por não estarem em acordo com a interpretação concebida pelo professor. Leituras diferentes produzidas pelos alunos são, em geral, perce-bidas como erro, fruto da má formação, do despreparo, da falta de cultura. O resultado dessa atitude, tão comum nas salas de aula, costuma ser o silenciamento dos estudantes e seu desinteresse pelas obras literárias e seu sentido supostamente enigmático. A leitura literária, em vez de ser espaço pessoal de sentimento e reflexão, converte-se num esforço para adivinhar o que o professor (ou o autor do livro didático) espera que se diga sobre os textos.

Acreditamos que a escola poderia se liberar do infrutífero esfor-ço de estabelecer a interpretação “verdadeira” das obras literárias, fomentando um contato mais pessoal com os textos e consideran-

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do a literatura (e os discursos sobre ela) como forma privilegiada de contato consigo mesmo e com os outros, ou seja, como espaço privilegiado para a descoberta de si e das idéias que os cercam.

Essa maneira de encarar a leitura literária costuma ser objeto de incompreensão, associando-a a um tipo de “vale-tudo”, que tor-naria aceitável todo e qualquer comentário sobre as obras lidas. Não se trata disso.

Em primeiro lugar, antes de pensar em interpretação, é preciso assegurar-se de que o texto foi efetivamente compreendido. Por exemplo, é inviável pensar em interpretar Dom Casmurro se não se tiver percebido que Bento é filho de D. Glória e não de D. Justina, que José Dias é um agregado e não o dono da casa, que a história é narrada por um dos personagens e não por um narrador oniscien-te. Da mesma forma, não se pode pensar que “Construção”, de Chico Buarque, apresenta um dia na vida de um engenheiro civil. Há questões de compreensão dos textos que cumpre à escola ensinar e garantir.

Além disso, o texto impõe limites à interpretação. Não seria aceitável, por exemplo, dizer que Bentinho afastou-se de Capitu por ter percebido que ela era sua irmã, fruto de uma relação clandesti-na entre D. Glória e Pádua, que teria levado à morte precoce do pai do narrador. Não há, no texto de Machado de Assis, elementos que sustentem tal interpretação, por isso ela é inaceitável. Do mesmo modo, seria inadmissível propor que Chico Buarque apresenta o processo de ascensão social dos operários da construção civil, pois não há nada no texto que dê suporte a essa idéia.

Não se trata, portanto, de banir qualquer limite à livre imagina-ção. Trata-se, sim, de reconhecer que os textos autorizam múltiplas leituras e que não há benefício algum em impor uma sobre as de-mais. Trata-se, sim, de perceber que o fascínio da literatura está, em grande medida, em sua capacidade de suscitar sempre novas e estimulantes interpretações.

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