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l i s b o atinta ‑da ‑chinaM M X V I

o r g a n i z a ç ã o

Carla Baptista

p r e f á c i o

Teresa Ferreira de Almeida

Í N D I C E

© 2016, Carla Baptistae Edições tinta ‑da ‑china, Lda.

Rua Francisco Ferrer, 6A1500 ‑461 Lisboa

Tels.: 21 726 90 28/9E ‑mail: [email protected]

www.tintadachina.pt

Título: América, The Beautiful — Relatos de escritores portuguesesOrganização: Carla Baptista

Revisão: Tinta ‑da ‑chinaComposição: Tinta ‑da ‑china

Capa: Tinta ‑da ‑china (V. Tavares)

1.ª edição: Julho de 2016

isbn 978 ‑989 ‑671 ‑324‑9Depósito Legal n.º 411 116/16

prefácio · 9apresentação · 13

eça de queirós · 27antero de figueiredo · 51

antónio ferro · 65fidelino de figueiredo · 89

jorge segurado · 107friedrich wohlwill · 115

natália correia · 143joaquim paço d’arcos · 175

guilherme pereira da rosa · 215norberto lopes · 235

manuel rodrigues · 247antónio brochado · 281

jorge de sena · 289a.h. de oliveira marques · 301josé rodrigues miguéis · 315

fichas b iográficas dos autores · 333

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P R E F Á C I O

Antes de a América entrar na história, já era mito que ombreava com as excursões da imaginação literária europeia no dealbar da Idade Moderna em torno da ideia de «novo». Também demandada como Nova Atlântida ou Terra Prometida, a América carrega, desde a sua origem, um lastro poderoso, podendo antes de 1620 figurar na cena do imaginário europeu a par das utopias de Sir Thomas More ou de Tommaso Campanella. A ligação dos Estados Uni‑dos a esse imaginário é fundamental para melhor compreender‑mos esta ideia de espaço geográfico destinado a uma humanidade redimida na travessia do Atlântico, a caminho do Novo Mundo, deixando para trás países de origem em que os privilégios de nas‑cimento pertenciam a poucos, o espartilho de convicções religio‑sas era apertado e a escassez de recursos, agravada pelas guerras entre nações rivais, lançava na miséria uma multidão de famintos.

A condição de país dividido entre a memória algo fantasmática de expectativas utópicas e a realidade das realizações humanas transforma os Estados Unidos num destino de viagens moldadas na intersecção da ideia e da realidade, como se verifica em boa parte dos textos de viagem reunidos por Carla Baptista nesta colectânea. Professora auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da

P R E F Á C I O

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p r e f á c i o

é individualista sem ser antropocêntrica e, na do segundo, carece de uma fórmula interpretativa para a «prospérrima Yankeelandia». Em plena década da celebração do «modo de vida americano», vários autores ligados ao jornalismo da época, entre os quais Gui‑lherme Pereira da Rosa, Raul Rego e Norberto Lopes, exploram nos seus textos diversos ângulos que permitem uma apreciação muito positiva da cultura que Friedrich Wohlwill procura analisar objectivamente, para benefício dos seus «amigos portugueses».

As viagens portuguesas aos Estados Unidos têm, de resto, uma tradição longa e frutuosa, se nos lembrarmos que em pleno Ilu‑minismo um português privou com algumas das figuras mais ilus‑tres do novo país, inaugurando o intercâmbio de ideias e o diálogo raramente interrompido entre as duas culturas. A correspondên‑cia do Abade Correia da Serra (1751 ‑1853), que visitou os Estados Unidos e lá permaneceu entre 1812 e 1820, nos últimos quatro anos como ministro plenipotenciário da monarquia portuguesa, reco‑lhe testemunho dessa primeira instância do olhar português sobre o Novo Mundo. A intimidade de Correia da Serra com algumas das figuras mais importantes da fundação da nacionalidade ame‑ricana mede ‑se, por exemplo, no modo como ele assina a corres‑pondência com os mais próximos, traduzindo o seu nome próprio para “Joseph”, já para não falar do quarto que tinha sempre reser‑vado na casa de Jefferson em Monticello.

Uma viagem que se prolonga por uma estada demorada no país estrangeiro tem naturalmente consequências muito diferentes das de uma viagem que, na experiência de alguns autores deste volume, se estende por períodos bastante mais extensos do que os de uma simples visita de turismo. Quase como um comentário complemen‑tar aos textos anteriores, Carla Baptista inclui na colectânea dois testemunhos finais que nos dão uma ideia da complexa natureza

Universidade Nova de Lisboa e jornalista freelancer, Carla Baptista vai ao encontro dos seus próprios interesses na literatura autobio‑gráfica e oferece ‑nos um conjunto de impressões tanto mais interes‑santes quanto é verdade que são assinadas por portugueses ligados ao mundo da cultura, curiosos sobre a cultura e a vida no outro lado do Atlântico. Marcados pelo estilo de cada um dos seus autores, os excertos escolhidos vão mapeando os contornos dessa realidade outra, tal com esta emerge do olhar estrangeiro, enraizado no tempo e na sensibilidade da sua época.

Talvez um dos aspectos mais interessantes deste volume resulte da própria natureza autobiográfica dos textos, visto que estes ofe‑recem ao leitor a possibilidade de contemplar os Estados Unidos de pontos de vista muito diversos, centrados na subjectividade de quem olha o país visitado sem poder esquecer a sua própria cultura nessa tomada de consciência de uma realidade necessariamente diferente daquela com que se identifica. Esta lente aplica ‑se às «curiosidades» que Eça anota para benefício de Ramalho Ortigão e em que Nova Iorque sai a perder em relação a Montreal; ou na mordacidade dos juízos de António Ferro, Antero de Figueiredo e Natália Correia; ou ainda no distanciamento de Joaquim Paço d’Arcos, que percorreu os Estados Unidos de costa a costa. Aqui e além, contudo, insinuam ‑se sentimentos contraditórios, porven‑tura suscitados pela diferença entre a ideia que da América cada um destes autores fazia e a realidade dos Estados Unidos captada na fugacidade de uma viagem.

No entanto, como escreve Jorge Segurado, «pouco mais de um ano nos Estados Unidos, não é nem pode ser tempo suficiente para se ficar conhecendo a psicologia de um povo como o ameri‑cano». Também Alfredo Mesquita e Fidelino de Figueiredo regis‑tam facetas inéditas dessa cultura que, na perspectiva do primeiro,

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A P R E S E N TA Ç Ã O

Porque é que eles (os americanos) são tão felizes?

No epílogo de O Livro de Areia,1 o escritor Jorge Luis Borges afirma que sempre o surpreendeu a «obsessão ética dos americanos do Norte; ‘O Suborno’ pretende refletir esse traço». Trata ‑se de um conto em que um germanista de origem islandesa usa a «curiosa pai‑xão americana da imparcialidade» para iludir um linguista, de «velha cepa puritana, oriundo de Boston», e assim conseguir um parecer favorável. Borges confronta dois imaginários determinantes em qualquer reflexão sobre a América: o do emigrante a quem se impõe fatalmente a obrigação de progredir no país de acolhimento e o do norte ‑americano que acima de tudo deseja ser «fairminded».

Os limites da convivialidade entre esses dois eternos estranhos são definidos no final do conto, quando o professor emigrante diz ao colega: «Outra coisa nos une — respondeu Einarsson. — A nacionalidade. Sou cidadão americano. O meu destino está aqui, não na Última Thule. Você dirá que um passaporte não modifica a índole de um homem.»

1 Borges, Jorge Luis (2012). O Livro de Areia. Quetzal Editores: Lisboa.

da nação que cresceu e se foi diversificando pelo acolhimento de sucessivas vagas de emigrantes vindos de todo o mundo. Escolheu, e muito bem, testemunhos de viajantes portugueses que fizeram dos Estados Unidos destino último das suas vidas. Por intermédio da voz pessoalíssima de José Rodrigues Miguéis, que imigrou para os Estados em 1935 e lá morreu em 1980, essa aventura percorre toda a escala que vai do espanto à identificação, revelando um processo identitário forjado em sucessivas interrogações de resposta sempre adiada. O adiamento não se limita apenas a uma situação particular, a de Miguéis, mas alarga ‑se a toda uma cultura que existe, e conti‑nuará a existir, na interpelação de outras localizadas do outro lado do Atlântico.

Na indagação da psique americana, os portugueses são soli‑dários com o resto da Europa. Nestes termos, faz sentido refe‑rir a tentativa de interpretação do relacionamento transatlântico que, em 2011, deu lugar a uma exposição intitulada America: It’s Also Our History (A América também faz parte da nossa História), uma iniciativa da presidência belga da União Europeia, justamente articulada em função das pontes que unem as margens do «Rio Atlântico», metáfora expressiva de Onésimo Teotónio Almeida para a porosidade intercultural da relação entre os Estados Uni‑dos e a Europa. Esta recolha de textos é uma outra maneira de nós, portugueses e todos aqueles que nos Estados Unidos prosse‑guem na epopeia da identidade em diáspora, interrogarmos uma vocação há muito firmada na abertura ao outro.

Teresa Ferreira de Almeida23 de Julho de 2013

A P R E S E N T A Ç Ã O

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a p r e s e n t a ç ã o

A minha experiência tem ‑se processado em termos inteira‑mente diferentes. Comecei por viver um ano no Alabama, Estado de ‘má cotação’, tanto nos Estados Unidos como fora deles, e onde o número de estrangeiros é limitadíssimo. Passei depois para a Florida, muito mais turística e cosmopolita, mas ainda assim pouco conhecida na Europa, a não ser através do cinema. E embora tenha vivido alguns meses em Nova Iorque e visitado grande parte dos Estados Unidos, é o Sul que continuo a conhe‑cer melhor.2

O texto de Jorge de Sena data de 1968 e foi recentemente inte‑grado na colectânea América, América, editada pela Guimarães e organizada por Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço, reu‑nindo um conjunto de textos redigidos pelo escritor entre 1968 e 1978, sobre a cultura e a política dos Estados Unidos. Encerramos o volume com uma selecção de crónicas de outro escritor exilado, José Rodrigues Miguéis, originalmente compiladas numa edição da Estúdios Cor, de 1972. Privilegiámos o testemunho pessoal as‑sente numa experiência concreta de viagem ou vivência, escolhen‑do textos que todavia evitavam a pretensão de se apresentarem como a visão dos Estados Unidos. Em todos existe vacilação e dú‑vida, que atravessam a memória do que se viveu e se pode contar.

O olhar português sobre o território da América e o seu povo assemelha ‑se ao de outros contemporâneos. Apesar da condição periférica portuguesa — Eduardo Lourenço diria a condição «per‑manentemente excêntrica» de um país dominado pelo impulso centrífugo para outros destinos —, pressentimos um intenso

2 Marques, A.H. de Oliveira (1987), Ensaios de Intervenção. Palas Editores: Lis‑boa, p. 13.

Os textos reunidos neste livro representam uma faceta do olhar que vários portugueses foram lançando sobre os Estados Unidos da América. Foram escritos entre 1866 (data do mais antigo, de Eça de Queirós) e 1972 (data do mais recente, de José Rodrigues Miguéis).

Com excepção dos anos 10, estão representadas todas as déca‑das do século xx: Antero de Figueiredo escreveu em 1905; António Ferro em 1927; o académico Fidelino Figueiredo em 1933; o arqui‑tecto Jorge Segurado em 1940; Friedrich Wohlwill, médico patolo‑gista judeu que trabalhou em Portugal depois de ter escapado da Alemanha nazi, em 1946. Os anos 50 concentram a maioria dos contributos, englobando os textos de Guilherme Pereira da Rosa, antigo director e proprietário de O Século (1953), do escritor Joa‑quim Paço d’Arcos (1953) e dos jornalistas Norberto Lopes, Manuel Rodrigues e António Brochado, cujas impressões de uma viagem patrocinada pelos serviços culturais da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa foram reunidas num livro, em 1955, depois de publicadas em jornais da época, como o Diário de Lisboa, o Diário de Notícias e O Século.

Incluímos dois artigos do historiador A.H. de Oliveira Marques, de uma série de doze publicados no Diário de Lisboa, intitulada «Impressões de Viagem: Os Estados Unidos em 1965 ‑69», resultan‑tes de uma experiência muito singular enquanto professor de His‑tória da Idade Média numa universidade do Sul. Ao contrário da maioria dos europeus que visitam os Estados Unidos, Oliveira Mar‑ques não entrou por Nova Iorque, nem por um estado da chamada Nova Inglaterra (Connecticut, Massachusetts), ou sequer por qual‑quer das restantes metrópoles do país (Filadélfia, Chicago, Detroit, Los Angeles ou São Francisco). É o próprio que afirma:

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mente, no sonho de sê ‑lo melhor e mais autenticamente. Vasto e complexo, feito de contradições a todos os níveis, um país como os Estados Unidos não é todavia um enigma — mas muitos milhões em que há de tudo, como em toda a parte, só que a uma escala que nenhum outro atingiu com tamanho e tão gritante abismo entre a mais desenvolvida tecnologia e a mais atrasada e paroquial das estruturas sociais.

Miguel Torga, que conheceu a outra América (do Sul, a que a repetição no título do livro de Jorge de Sena — América, Amé‑rica — também alude) quando emigrou, aos treze anos, para a fazenda de um tio em Minas Gerais, onde foi capinador, apanha‑dor de café, vaqueiro e caçador de cobras, num texto intitulado «A América Vista pela Europa»4, pressentiu a força desse «poder de tudo amalgamar nas mãos com brutalidade criadora e reno‑vada esperança». Torga interessava ‑se por aqueles que

não vêem o Novo Mundo nem com binóculos de lonjura, nem com lupas de cultura. Aquele incessante caudal de humildes euro‑peus que, desde Quinhentos, integram generosamente a América na sua própria fisiologia. Que não fazem do Novo Mundo pre‑texto de catarses especulativas ou Éden dos seus complexos, mas o ajudam a erguer com o suor quotidiano. Multidão anónima que anda ali fora, a viver.

4 Torga, Miguel, «A América Vista pela Europa», Reparos à tese do Prof. Roger Bastide no Congresso Internacional de Escritores, realizado em São Paulo, em Agosto de 1954. In Ensaios e Discursos . Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001, p. 127.

movimento de pessoas, experiências e saberes. Seleccionámos dezanove textos, incluindo testemunhos de escritores, jornalistas, historiadores e académicos.

A América sempre foi porto e lugar de trabalho, de aprendiza‑gem e de inspiração. Na época em que nos situamos, uma viagem desta dimensão ainda era vivida como uma epopeia longínqua. Como notou Raul Rego em 1955, «todo o europeu que vai à Améri‑ca é uma espécie de Colombo». A grandeza do território confronta o viajante com a exiguidade da potência humana e a impossibili‑dade de tudo viver. Apesar de muito gostados — se fosse hoje, na época das redes sociais e das partilhas globais, seria um álbum fo‑tográfico e de memórias carregado de «likes» —, os Estados Uni‑dos não escaparam à impiedade do olhar estrangeiro. A vontade de fornecer visões felizes da sua existência colectiva, erguida na base do progresso técnico, da tolerância religiosa e política, bem como da liberalidade na educação e nos costumes, fatalmente atraíram o questionamento e a descrença de quem transportava uma experiência mais angustiada e não concebia que a vida pu‑desse ser assim tão simples e confortável.

Uma simplicidade aparente, assente em sofrimento e contra‑dições, como em qualquer outro lugar. Jorge de Sena, num «longo e digressivo artigo»3 que não podemos aqui reproduzir, mas cuja leitura se recomenda vivamente, refere:

Uma ideia eu desejaria que sobressaísse, porém. O quanto é difícil ser ‑se americano, e o quanto o americano de hoje sofre honesta‑

3 Sena, Jorge de, «Sobre a Cultura Norte ‑Americana», publicado originalmente em O Tempo e o Modo, n.º 64 ‑66, Outubro ‑Dezembro de 1968, Lisboa, pp. 826‑‑846, reproduzido na colectânea América, América, edição de Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço, Guimarães/Babel: Lisboa, p. 31.

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No percurso de Natália Correia sucedem ‑se os clichês das pere‑grinações aos Estados Unidos, que vemos repetidos em vários dos textos desta colectânea: os automóveis, adereços em per‑pétuo movimento; as auto ‑estradas e os arranha ‑céus como símbolos da destruição sistemática da natureza; os night ‑clubs, lugares de descoberta, mistura e excitação; as cafetarias e as dru‑gstores, onde comer é uma festa visual e um tormento para o pala‑dar e consumir se torna um gesto banal e democratizado; o néon dos anúncios publicitários que invade a noite com uma luz falsa; as mulheres que, apesar da beleza e da independência, não se liber‑taram da condição de oprimidas; as universidades onde se pre‑param as futuras gerações de empreendedores e a palavra circula livremente; o metropolitano, palco despudorado do melting ‑pot norte ‑americano ou, nas suas palavras, «aquela humanidade semi‑nua, arquejante e mole como uma besta vencida pela própria força».

Simone de Beauvoir percorreu em 1947 uma parte dos Estados Unidos, tendo escrito sobre essa viagem de quatro meses num «diá‑rio escrupulosamente exacto, reconstituído com a ajuda de algumas notas, de cartas e de recordações ainda frescas».6 Entre a «história do que lhe aconteceu» (a Simone de Beauvoir) e o «livro que sou eu» (de Natália Correia), que Mário Mesquita definiu como “anti‑‑reportagem”, por se tratar de um texto deliberadamente marcado pela subjectivação, existem traços comuns. Talvez a poesia «espe‑cificamente americana», ao mesmo tempo primitiva e moderna, tocasse mais fundo na alma da escritora francesa. Ela própria diz que na América tudo é festa, o coração bate mais depressa e os dias são curtíssimos. Mas o veredicto é idêntico: na hora da despedida, quando lhe perguntam se gostou, Simone de Beauvoir fica dividida:

6 Beauvoir, Simone de (1949). A América Dia a Dia. Arcádia: Lisboa.

Natália Correia visitou o país durante um mês, em Junho de 1949, tendo identificado nela o sentimento abstracto da «fasci‑nação» e dizendo ser tão impossível gostar como não gostar da América. A fonte deste fascínio reside no «enorme tablado onde se desenrola a esotérica urdidura da tragédia americana. O seu esoterismo não é o inviolável segredo dos deuses. É a crise do desenvolvimento. Uma puberdade física e mental que convive, no seu âmago, com os fantasmas das coisas irreveladas».5

Jorge Luis Borges também vislumbrou a pulsão do estrangeiro para o emaranhamento, uma deriva estranha aos americanos, quando refere, no conto já citado, que «os saxões não tardaram em prescindir dessas metáforas um tanto mecânicas (caminho da baleia em vez de mar, falcão da batalha em vez de águia), ao passo que os poetas escandinavos as foram combinando e entrelaçando até ao inextricável». Miguel Torga acrescenta a «fascinação cons‑ciente» que contagia qualquer intelectual europeu na considera‑ção do fenómeno americano:

Do Alasca à Patagónia surge ‑lhe um tesouro de cintilações diver‑gentes que o encandeiam [...] A voz de Walt Whitman deixa de ser uma modulação íntima e metrificada em quadras e tercetos. É um desbordamento continental, uma torrente que inunda como um rio de águas indisciplinadas. Nem misticismos mace‑radores, nem sentimentalismos ambíguos, nem satânicos requin‑tes. Versos de aço como linhas de caminho ‑de ‑ferro, por onde o progresso desliza, trepidante e optimista.

5 Correia, Natália (2002). Descobri que Era Europeia, Impressões duma Viagem à América. Editorial Notícias: Lisboa.

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a p r e s e n t a ç ã o

‑Marques, nunca existiu verdadeiro «antiamericanismo»: o máximo que encontramos é uma «hostilidade funcional», baseada na di‑vergência de interesses estratégicos e protagonizada, em grande parte, por António de Oliveira Salazar.8

A aliança diplomática secular tremeu em 1961, quando a admi‑nistração Kennedy comunicou ao Governo português que não continuaria a apoiar a política colonial. Ficou célebre o editorial do oficioso Diário de Notícias, em 23 de Março desse ano, afir‑mando que o encorajamento norte ‑americano «à insubordinação e à desordem em África» traria consequências nefastas para todo o Ocidente e advertindo o embaixador em Lisboa, Adlai Steven‑son: «Muitas surpresas o esperam, Sr. Stevenson.»

Após vários incidentes, incluindo a destruição de um carro do consulado em Luanda, o apedrejamento de vidros na embaixada em Lisboa e várias chamadas dos embaixadores dos dois países, o Presidente Kennedy decidiu enviar, em Agosto de 1963, um emissário da sua confiança, George Ball, na altura subsecretá‑rio de Estado, para dialogar com António de Oliveira Salazar. O investigador Luís Nunes Rodrigues refere como aquele polí‑tico preparou cuidadosamente a viagem e, disposto a compreen‑der a «psicologia colectiva» dos portugueses, se preparou lendo Os Lusíadas. Mas a conversa com o intransigente Salazar deixou ‑o pasmado, tendo escrito nas suas memórias que o país parecia ser governado por um «triunvirato composto por Vasco da Gama, o infante Dom Henrique e Salazar».9

8 Soromenho ‑Marques, Viriato. «Representações da América no Pensa‑mento de Eduardo Lourenço”. In Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 170, Jan. 2009, pp. 251 ‑256.9 Ball, George (1982). The Past Has Another Pattern. Memoirs. Nova Iorque: W.W. Norton & Company, pp. 276 ‑277, citado por Luís Nunes Rodrigues. «Os

«não se passou um dia em que não me sentisse deslumbrada; nem um dia em que não me sentisse decepcionada».

Segundo a escritora francesa, na América ninguém fica «sere‑namente em casa à espera da morte, os homens julgam ‑se pelos seus actos: para ser, é preciso fazer». O foco no resultado bruto e não no movimento do espírito, a pretensão de isolar a parte do todo, visível na especialização técnica e científica, a recusa em olhar o instante como um espelho do eterno, mergulha os ame‑ricanos na abstracção dos objectos erigidos em ídolos e trans‑forma a sua história num cemitério. Simone de Beauvoir conclui: «Os desportos, os cinemas, os comics oferecem à vida derivativos. Mas, para terminar, cai ‑se no que precisamente se queria evitar: o árido fundo da vida americana é o tédio».

Natália Correia formulou um juízo semelhante, talvez eivado de uma arrogância que Simone de Beauvoir procurou evitar:

Essa sociedade que se formou da substância filosófica do quo‑tidiano, estando abaixo de nós, da nossa perpétua inquietação em que domina um alto sentido da vida, supera ‑nos num ponto: a ciência de viver. Eles vivem dentro das fronteiras da sua limi‑tação, sem tentar ultrapassá ‑las. Têm a força da conformação, a energia vital da felicidade. Um americano comum que se propu‑sesse resolver o conflito espiritual dum europeu comum sugerir‑‑me ‑ia a imagem de um menino, perplexo, tentando decifrar o mistério do voo duma ave.7

As representações dos Estados Unidos no pensamento portu‑guês são genericamente positivas. Segundo Viriato Soromenho‑

7 Correia, Natália, op.cit.

e ç a d e q u e i r ó s

E Ç A D E Q U E I R Ó S

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A R A M A L H O O RT I G Ã O 1

Canadá — Montreal, 20 de Julho de 1873

Querido e bom Ramalho

Querido: Estou em Montreal, capital do Canadá, como diz a data. Cheguei aqui, depois de uma excursão pelo estado de Pensilvânia, Niágara, lago Ontário — o lado Ontário de F. Cooper — rio St. Lawrence, etc. Há vinte dias que saí de Nova Iorque — e desde então não lhe tornei a escrever. Isto precisa de uma humilde e envergonhada explicação. Eu escrevi ‑lhe de Nova Iorque uma longa carta, curiosa e interessante pelos seus pormenores ame‑ricanos — e sei que V. não recebeu essa carta. E não a recebeu — porque, no dia em que eu saí de Nova Iorque, na ocasião sem‑pre triste e sempre confusa de fazer as malas, lacrei, cerrei a carta, escrevi ‑lhe uma adresse nítida e soignée, encarreguei ‑a de longas e longas saudades para levar através da água, e depois, com toda

1 Queirós, Eça de, «A Ramalho Ortigão» (1873). In Correspondência — Leitura, Coordenação, Prefácio e Notas de Guilherme de Castilho (1983), 1.º volume, Biblioteca de Autores Portugueses. Imprensa Nacional Casa da Moeda: Lisboa.

a n t e r o d e f i g u e i r e d o

A N T E R O D E

F I G U E I R E D O

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P Á G I N A S D E U M « B L O C ‑ N O T E S » : P A S S A N D O P O R WA S H I N G T O N 1

Um dia, na Pennsylvania Avenue, a meu lado, um rapaz de quinze anos atropelou, com o seu dog ‑cart, um velho e, em seguida, deso‑bedeceu à polícia. Capturado. E, como ninguém o afiançara, para a cadeia.

Este rapaz era filho de poderoso senador que, só com escrever nas costas de um bilhete uma palavra de afiançamento, pouparia ao filho esses dias de reclusão. Não o fez; e esperou em casa o seguimento natural do incidente.

Na América, os pais educam liberrimamente os filhos, mas cedo os convencem da responsabilidade das suas acções, a que eles, pais, ficam estranhos, tanto para as boas como para as más. Assim como só se aprende a nadar em sítios onde não há pé, assim estes pais ensinam a vida aos filhos lançando ‑os na vida. Aos que não morrem afogados, quero dizer, aos que não se perdem nos perigos de tal liberdade, esta prova os enrijece para a conquista da vida, que é feita com energias tenazes.

1 Figueiredo, Antero de. Recordações e Viagens, Primeira Série. Paris ‑Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1916 (2.ª edição).

a n t ó n i o f e r r o

A N T Ó N I O F E R R O

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U M F I L H O D E VA N D E R B I LT 1

No expresso de Houston — St. Louis. Regresso de Galveston, da praia imensa de Galveston, onde os corpos das girls, que se banham, são toalhas que nos refrescam os olhos húmidos e bri‑lhantes. Um calor sufocante que não permite friezas, que não per‑mite distâncias entre os passageiros. Sentado à minha frente, no banco do pullman, um americano loiro, vestido modestamente, cabelo encaracolado, olhos fugidios, enigmáticos. Ao seu lado um Cine Kodak, gracioso e prático como um estojo de viagem. À sua volta, ondas e ondas revoltas de jornais e magazines: Daily Mirror, New York Herald, The World, etc., etc. O calor aperta. Olhamo ‑nos como náufragos reunidos no mesmo barco salvador. As palavras saem ‑nos dos lábios sem darmos por isso, como gotas de suor:

— Vai para muito longe?— Para Memphis, cidade negra. E o senhor? Respondo, quase desfalecido:— Para Nova Iorque que me aparece, na distância, como um

copo de água irónico e fugitivo… Dormi três dias em Galveston,

1 Ferro, António (1927). Novo Mundo. Mundo Novo. Editora Portugal Brasil: Lisboa.

f i d e l i n o d e f i g u e i r e d o

F I D E L I N O D E

F I G U E I R E D O

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A M E R I C A T H E B E AU T I F U L 1 A A RT E D E V I A J A R

São muitas as maneiras de viajar. A mais antiga e também a mais rudimentar é a outiva: contentar ‑se com ouvir narrar as histórias de mundos exóticos e maravilhosos. É a que praticam as crianças. A imediata é a leitura de livros de reais viagens e consiste em reco‑lher a imagem que os horizontes novos deixaram noutros espíri‑tos. Ainda indirecta, mas já menos distante da realidade, é aquela outra dos velhos serões familiares: ver as fotografias através de um estereoscópio. Mas esta já foi superada pelo cinema, que aperfei‑çoou a ilusão.

Até aqui, todas as maneiras se reduzem a uma categoria modes‑ta: viajar em casa. Formas empíricas ou formas técnicas do processo inventado por Xavier de Maistre: soltar o espírito, enquanto la bête vagabundeia no curto perímetro do nosso quarto.

A segunda categoria envolve deslocação, inquietação de real curiosidade, como a que impelia o Cid, na sua deambulação pelo mundo hispânico, então imenso:

1 Figueiredo, Fidelino de (1933). «America The Beautiful». In Separata de O Ins‑tituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, volume LXXXV, n.º 5: Coimbra.

j o r g e s e g u r a d o

J O R G E S E G U R A D O

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H A R L E M : C A P I TA L D A A L M A N E G R A 1

Foi de noite a primeira vez que vi Harlem, o bairro negro de New York.

Um táxi deixou ‑me quase de repente na sua espinha dorsal, a Lenox Avenue e, confesso, o aspecto interessou ‑me imediata‑mente. A multidão aqui tem uma cor única. Não se vêem bran‑cos. Até os polícias muitas vezes também são escuros. Os táxis têm sempre a conduzi ‑los chauffeurs de origem africana, mais ou menos acentuada. Os automóveis são guiados por pretos que fumam charuto, ao lado de damas elegantemente vestidas, tudo com o ar de quem está bem instalado na vida. Os buses seguem nos dois sentidos, conduzindo manchas escuras. Grupos de homens e de mulheres conversam nos passeios.

Os reclamos luminosos; as entradas dos cinemas fortemente iluminadas; as luzes, ora verdes, ora vermelhas, que regulam o trân‑sito a perder de vista; tudo empresta uma animação, pinceladas

1 Segurado, Jorge. Sinfonia do Degrau. Impressões de New York e de Outras Terras dos Estados Unidos da América do Norte. Lisboa: Oficinas da Sociedade Nacional de Tipografia.

f r i e d r i c h w o h l w i l l

F R I E D R I C H W O H L W I L L

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A M E D I C I N A E A V I D A N A A M É R I C A 1

Prometi aos meus amigos portugueses uma exposição sobre as experiências e impressões colhidas por mim nos Estados Unidos. Tendo estado, agora, neste país por mais de um ano, achava que não devia adiar por mais tempo o cumprimento deste propó‑sito. É certo que já escrevi algumas das seguintes observações nas minhas cartas dirigidas aos amigos; mas talvez um pequeno con‑junto ainda tenha algum interesse.

Claro está que o que se segue não deve e não pode ser genera‑lizado.

1) Porque todas as generalizações são enganadoras. Nós, os judeus, sofremos, de uma maneira trágica, as consequências de tais gene‑ralizações. Mas, se não é lícito dizer os portugueses, os judeus, os alemães, é menos lícito ainda falar dos americanos, porque os habitantes dos Estados Unidos constituem um povo muitíssimo heterogéneo: é uma mistura de imigrantes de variadas origens

1 Wohlwill, Friedrich (1.ª edição em 1946). Impressões dos Estados Unidos da Amé‑rica. Fundação Professor Francisco Pulido Valente: Lisboa.

n a t á l i a c o r r e i a

N A T Á L I A C O R R E I A

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D E S C O B R I Q U E E R A E U RO P E I A 1

Já era tarde quando entrei na cafetaria para jantar. Tarde, para a gente da Nova Inglaterra, que janta por volta das seis horas. Passava das nove.

Peguei no tabuleiro e, da comida exposta, escolhi a única coisa que até ali me fora possível comer com prazer na América: uma san‑duíche e torta de maçã. Quanto à bebida, tive de me cingir a uma chávena de chá porque a cerveja não é permitida nas cafetarias.

Segundo me disseram, o motivo desta medida é evitar que as «pessoas respeitáveis» sejam chocadas pelo espectáculo de indiví‑duos embriagados, nos lugares frequentados pelas mesmas «pes‑soas respeitáveis».

A explicação não me satisfez, a mim, muito pessoalmente, que considero esta medida de adaptação aos pontos de vista das pes‑soas respeitáveis uma espécie de tortura pública, que atinge por tabela as verdadeiras pessoas respeitáveis, que não precisam de torcer o nariz perante o que se convencionou ser repugnante para serem muito simplesmente respeitáveis.

1 Correia, Natália (2002). Descobri que Era Europeia. Impressões duma Viagem à América. Editorial Notícias: Lisboa (1.ª edição 1951).

j o a q u i m pa ç o d ’ a r c o s

J O A Q U I M P A Ç O

D ’ A R C O S

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C R I M E S Y N D I C AT E D 1

Por vinte e cinco cêntimos de dólar podemos fruir no nosso quarto de hotel, durante uma hora, o espectáculo da televisão no pequeno ecrã do aparelho de radiotelefonia e de TV.

Mas temos o mesmo espectáculo gratuitamente numa sala contígua ao hall de entrada do hotel e aí sem qualquer limite de tempo. Existiam, há cinco anos, dez mil aparelhos de televisão nos Estados Unidos, ainda em fase experimental. Hoje há mais de vinte milhões e a televisão está a modificar os hábitos deste povo e a torná ‑lo mais sedentário. Nesta sala do hotel, onde entro por curiosidade e só por breves instantes, permanecem inúmeros hóspedes, de todas as idades, desde garotos de cinco anos a velhos de oitenta, horas a fio no escuro e em silêncio.

Os programas de televisão, pelo que me é dado ver, parecem‑‑me muito pouco interessantes. Mas Miss Sargeant, que é nossa companheira no hotel e se preocupa, por dever de ofício e inclina‑ção, com os problemas educativos, diz ‑me que a televisão é hoje a mais espraiada e eficiente escola de crime nos Estados Unidos.

1 Paço d’Arcos, Joaquim (1953). A Floresta de Cimento. Claridade e Sombras dos Estados Unidos. Guimarães Editores: Lisboa.

g u i l h e r m e p e r e i r a d a r o s a

G U I L H E R M E P E R E I R A D A R O S A

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N O VA I O RQ U E 1

Nova Iorque tem um clima muito duro, já o afirmámos noutra altura. No Inverno a temperatura vai para muitos graus abaixo de zero; os períodos moderados da Primavera e do Outono são curtos e, na altura do Estio, vêm as andas de calor, cuja dureza me foi dado experimentar. Não é só o termómetro a marcar qua‑renta ou cinquenta graus à sombra; é a humidade, uma humidade na atmosfera a que não estamos habituados, que desconhecemos completamente e que arrasa, que quebranta até ao desânimo.

Mas Nova Iorque é rica, muito rica mesmo e defende ‑se galhar‑damente das inclemências da natureza. O ar condicionado é uma instituição: encontra ‑se por toda a parte e não constitui um luxo, embora tenha preço elevado, mas é antes uma necessidade pre‑mente, com aplicação bastante generalizada. Que alívio fugir à rua escaldante e entrar num desses ambientes climatizados! Tem ‑se a sensação que sentirá o náufrago, quando já desespera, e se entrega à voragem das ondas e se vê, subitamente, miraculosamente, salvo!

Nova Iorque usa, pois, de todos os recursos para se defender dos golpes do meio ambiente. E se sob este aspecto busca o conforto,

1 Pereira da Rosa, Guilherme (1953). Estados Unidos. Editorial Século: Lisboa.

n o r b e r t o l o p e s

N O R B E R T O L O P E S

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A G O R A C O M P R E E N D O O Q U E E L E S Q U E R E M D E F E N D E R 1

Se me perguntarem o que me surpreendeu mais nos Estados Unidos, durante esta viagem breve e apressada que hoje termina, respondo sem hesitação: o espírito moço do seu povo, a boa dis‑posição que mostra no trabalho, ainda o mais violento, e a serena confiança que deposita no futuro. Uma impressão de força tran‑quila, de ordem nas ruas, de disciplina nos espíritos e de método no trabalho. Este é o verdadeiro rosto da América.

Quando se fala do «democratic way of life», que o povo ameri‑cano pretende defender a todo o custo contra a invasão de dou‑trinas sociais que não encontram eco nem clima propício no seu país, é preciso conhecer o conteúdo desta expressão para se com‑preender melhor o propósito firme que anima os americanos de estabelecer em bases sólidas a sua segurança, não se poupando a sacrifícios de espécie alguma, a começar pelos pesados impostos com que estão sobrecarregados, para que o país atinja aquele grau de defesa que as autoridades militares reputam indispensável.

1 Lopes, Norberto. «Agora Compreendo o que eles Querem Defender». In Rodrigues, Manuel L. (org.), Os Estados Unidos Vistos por Jornalistas Portugueses. Livraria Bertrand: Lisboa 1955. Originalmente publicado no Diário de Lisboa.

m a n u e l r o d r i g u e s

M A N U E L R O D R I G U E S

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O S I S T E M A D E C O M P RO M I S S O 1

Todas as ideias correntes sobre a política dos Estados Unidos são dominadas pela acção da existência de duas grandes organizações políticas rivais — o Partido Democrático e o Partido Republicano — que se sucedem no poder, assumindo alternadamente, por períodos de extensão variável, as responsabilidades de governo. Ambas são quase tão antigas como a República, pois as suas ori‑gens remontam a uma cisão que se deu no seio do Gabinete de George Washington, entre Alexander Hamilton, Secretário do Tesouro, e Thomas Jefferson, Secretário do Estado. Uma aná‑lise sumária desse acontecimento histórico revela, porém, uma contradição aparente. A genealogia dessas organizações políticas mostra que o Partido Democrático descende da facção chefiada por Alexander Hamilton. Ora, o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos tomara como ponto de partida o axioma de que as comunidades se dividem «em poucos e muitos» — o que era a sua forma de dizer «em poderosos e humildes» ou «em ricos e

1 Rodrigues, Manuel L. «O Sistema de Compromisso». In Rodrigues, Manuel L. (org.), Os Estados Unidos Vistos por Jornalistas Portugueses. Livraria Bertrand: Lis‑boa, 1955. Originalmente publicado no Diário Popular.

a n t ó n i o b r o c h a d o

A N T Ó N I O B R O C H A D O

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N O FA R W E S T , T E R R A D E C O W B O Y S E D E M U L H E R E S B O N I TA S 1

Texas ! Planícies a perder de vista, quase desarborizadas. Manadas de gado, cereais, algodão, florestas de derriks, ranchos com dois milhões e meio de metros quadrados. Sensação impres‑sionante de imensidade…

Amigos americanos perguntaram:— Vai ao Texas?— Vou!— Então acautele ‑se…— Porquê?— É que os texanos são uma espécie de gascões da América.

Têm o culto do colossal e gostam muito de exagerar. Para eles, só existe o Texas… e são os melhores do mundo em tudo.

Foi em Fort Worth que tomámos contacto com o Texas e vimos os primeiros cowboys a valer, um pouco diferentes daqueles que se topam de passeio na Broadway.

1 Brochado, António. «No Far West, Terra de Cowboys e de Mulheres Bonitas». In Rodrigues, Manuel L. (org.), Os Estados Unidos Vistos por Jornalistas Portugueses. Livraria Bertrand: Lisboa, 1955. Originalmente publicado no Diário de Notícias.

j o r g e d e s e n a

J O R G E D E S E N A

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T E S T E M U N H O P E S S O A L S O B R E V I V E R N O S E S TA D O S U N I D O S D A A M É R I C A 1

Há quase três anos que vivo na América do Norte, aonde cheguei, menos de visita que para ficar, em Outubro de 1965. Durante esse período, tenho residido sempre em Madison, capital do estado de Wisconsin, e viajado extensamente por outras regiões, em geral correspondendo a convites para conferências em universi‑dades ou para participar em congressos mais ou menos univer‑sitários. Porque detesto viajar de avião, estas viagens têm ‑me permitido conhecer melhor os Estados Unidos do que muitos americanos conhecem. De aeroporto em aeroporto, que é como hoje em dia a classe afluente deste mundo viaja, só se conhecem aeroportos, as estradas que os ligam às grandes cidades, os hotéis todos iguais como os aeroportos e aquelas estradas, e a mesma gente que percorre tudo isso ou nisso pousa. Mas de camioneta (que é na América um transporte tão confortável como um avião) uma pessoa, em vinte e quatro horas de viagem contínua, tem oportunidade de ver muita gente entrar em muitas cidades de

1 Sena, Jorge de. «Testemunho Pessoal sobre Viver nos Estados Unido da Amé‑ricas». In América, América. Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço (eds). Gui‑marães/Babel: Lisboa, 2011.

a . h . d e o l i v e i r a m a r q u e s

A . H . D E O L I V E I R A M A R Q U E S

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A S C I D A D E S 1

Embora as estatísticas actuais acusem mais de setenta por cento de população urbana nos Estados Unidos, nada mais erróneo do que imaginar este país assim à maneira da Bélgica ou da Holanda, com suas cidades praticamente contínuas. Uma «cidade» ameri‑cana (e, aqui, o Sul e o Norte quase se equivalem) nada tem de comum com uma cidade europeia. Descontem ‑se, diga ‑se de pas‑sagem, Nova Iorque ou Chicago ou mesmo Washington, com outras poucas excepções, onde o europeu se pode sentir à von‑tade e no seu meio habitual. E falemos antes da grande maioria das pequenas e médias urbes dos Estados Unidos.

Na cidade europeia, a «unidade» é a rua, ou mesmo a casa, que determinam a forma de aglomeração. Nas cidades americanas, a «unidade» é antes a estrada, a que tudo se subordina. As ruas têm a feição característica das nossas estradas, cortadas a direito, sem fim, quase sem passeios laterais, divididas em faixas de rodagem, bordejadas de casas baixas (rés ‑do ‑chão ou rés ‑do ‑chão e primeiro

1 Oliveira Marques, A. H. de (1987). Ensaios de Intervenção. Palas Editores: Lis‑boa. Os textos aqui reproduzidos fazem parte de uma série de doze artigos publi‑cados no Diário de Lisboa, em 1969, com o título «Impressões dos Estados Unidos».

j o s é r o d r i g u e s m i g u é i s

J O S É R O D R I G U E S

M I G U É I S

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L I N Ó L E O ‘ 3 6 1

Estas manhãs de Nova Iorque, com a sua calma às vezes pro‑vinciana, já não sabem cantar a canção do silêncio: ou nasce‑ram desaprendidas. (Sou eu talvez que a não ouço?) Sábado, sol pálido, downtown: lá em cima, os arranha ‑céus, hoje vazios, lembram a carcaça de uma perdida civilização, ou falésias sub‑marinas erguidas há milénios por legiões de espongiários ou foraminíferos. As torres claras, faiscantes, parecem absorver a luz do céu e irradiá ‑la depois cá para baixo, sobre o velho casa‑rio leproso, num contraste empolgante de grandeza e pequenez. Por entre as fachadas de tijolo, uniformes, encardidas, pintadas de vermelhão, algumas de alvaiade, por onde trepam como ver‑mes as escadas de salvação engrinaldadas de trapos e plantas sem clorofila, as ruas estreitas, coevas dos holandeses, cheiram a café torrado, a especiarias, a apetrechos navais: evocam um empório cosmopolita, como a Lisboa das naus e das conquistas. Mas tudo é negro por trás das janelas, como órbitas cegas, empoeiradas. E mora gente por aqui! Na luz do sol, oblíqua e ausente, cintilam poeiras de ferro, de petróleo e carvão queimado. Respiramos

1 Miguéis, José Rodrigues. O Espelho Poliédrico (1983). Edições Estampa: Odivelas.

foi composto em caracteres Hoefler Text e P22 Eaglefeather, .

impresso na Eigal, Indústria Gráfica S. A. , .em papel Coral Book de 80 gramas, .

em Junho de 2016. .