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Lucas Farias - Artigo - Futebolização Da Justiça

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Page 1: Lucas Farias - Artigo - Futebolização Da Justiça

Futebolização da justiça

Lucas Farias

17.09.2015

O Supremo Tribunal Federal retomou na quarta 17 o julgamento da ADI

4650, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, objetivando a declaração de

inconstitucionalidade das normas que atualmente permitem que pessoas jurídicas

(inclusive empresas) façam doações a partidos políticos.

Os fundamentos desta ação são notoriamente públicos. É um assunto na

pauta do dia, assim como o futebol. Porém, ao contrário dos jogadores que vestem os

uniformes de seus clubes com as logomarcas de seus patrocinadores, políticos

financiados por empresas não vestem paletós com os símbolos do seu patrocínio.

A continuidade do julgamento só se tornou possível porque o ministro

Gilmar Mendes finalmente devolveu os autos do processo após mais de 500 dias de

vista.

O pedido de vista do referido ministro suspendeu o julgamento ainda no ano

passado, quando já havia uma maioria formada de 6 (seis) votos favoráveis à

procedência da ADI – seja no todo ou em parte. Um placar de goleada.

É fato que no Judiciário, assim como no futebol, o jogo – ou processo – só

termina quando acaba. Apesar da manifestação majoritária dos membros do STF, é

possível que até a conclusão do julgamento algum ministro reconsidere e mude o

próprio voto já proferido – e, aí, o placar vira antes do apito final.

Não há óbice legal para isso, é verdade, embora seja improvável.

Futebolisticamente falando, seria como o Vasco não ser rebaixado ou o Corinthians

deixar de ganhar o campeonato brasileiro deste ano. É tudo possível, mas nisso nem o

matemático Oswald de Souza apostaria seus vinténs.

O ministro em questão proferiu um voto de quase cinco horas. Foram tantos

dribles hermenêuticos que Casagrande – Casão! – ficaria afônico e gaguejaria tentando

comentar – mas isso não seria nenhuma novidade.

Entre outros lances argumentativos, o ministro – talvez inconscientemente

evocando Maradona – disse: “Foi a mão de Deus que me fez pedir vista deste

processo!”. Parêntese: todos sabem que Maradona marcou um gol de mão no jogo da

Argentina contra a Inglaterra na Copa de 1986. Ao ser indagado sobre o controverso

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episódio, o jogador, esperando redimir o pecado, batizou o lance de “La Mano de Dios”.

Do mesmo jeito fez o ministro.

Voltando ao jogo. É sabido que o presidente da Câmara dos Deputados,

Eduardo Cunha, associado a incontáveis apoiadores de diferentes torcidas organizadas,

tenta a todo custo aprovar uma PEC que, definitivamente, registre na Constituição a

possibilidade de doações empresariais. Só que a votação da PEC na Câmara dos

Deputados tem sido tão marcada de reviravoltas e manobras regimentais que parece

final do Brasileirão tumultuada por cartola de time carioca – não vou falar do

Fluminense porque seria feio.

Nesse meio de campo embolado, o senador Randolfe Rodrigues (PSOL)

afirmou publicamente que o ministro Gilmar Mendes e o deputado Eduardo Cunha

teriam feito uma dobradinha: o primeiro interromperia o julgamento no STF até que o

segundo conseguisse a aprovação da PEC (cf. http://odia.ig.com.br/…/randolfe-

rodrigues-a-dobradinha-edu…).

Se a jogada foi ensaiada ou manobra do mais puro acaso, cada um que tire

sua própria conclusão. No fim das contas, a política, a justiça e a tabela do Brasileirão

são caixinhas de surpresa.

Mas, bem, o fato é que a partida foi retomada. Em dado momento,

novamente invocando uma divindade superior – coisa muito comum entre jogadores de

futebol –, o ministro disse: “O que houve foi um projeto de poder de um partido,

adotado pela Ordem dos Advogados do Brasil. Esses iluminados da OAB e da UERJ

decidiram ver Deus!” (cf. http://jota.info/gilmar-ataca-conspirata-de-pt-e-oab-em-

vot…).

O partido a que se refere o ministro seria o PT. Segundo tal raciocínio – e

minha interpretação, tal qual uma bola de futebol, pode estar redondamente enganada –

o PT, a OAB e a UERJ (!!!) teriam planejado vencer o jogo a qualquer custo,

emplacando o fim do financiamento empresarial de campanha.

Essa ilação é bem pesada e não pode prescindir, é claro, do famoso ônus da

prova, que recai sobre quem acusa.

O representante da OAB, muito dignamente, sentiu o ataque e acusou a falta

grave. Quis usar da palavra, pela ordem, conforme lhe assegura o artigo 7.º, inciso X, do

Estatuto da OAB. Trata-se do direito de intervir para esclarecer equívoco ou dúvida

ocorrida na contenda, uma espécie de tira-teima, a fim de prestigiar o “fair play” durante

o julgamento, certo?

Page 3: Lucas Farias - Artigo - Futebolização Da Justiça

O ministro Ricardo Lewandovski, presidente do STF, assinalou o pedido e

concedeu ao nobre advogado o direito a uso da palavra para se pronunciar sobre aquilo

que foi dito – mal dito, na verdade – pelo ministro em seu voto vista.

Eis que, no breve instante de 57 (cinquenta e sete) segundos abaixo

reproduzidos, uma sucessão de bate-bolas estarreceu o sofrível telespectador.

Ministro Gilmar: “Não tem nada de questão de fato, tudo isso está dito no voto.”

Ministro Lewandovski: “Mas vamos garantir a palavra ao advogado. Vossa excelência

falou por quase cinco horas.”

Ministro Gilmar: “Só que eu sou ministro da corte e o advogado é advogado.”

Ministro Lewandovski: “Não, o advogado representa a OAB e merece ter o direito a

palavra. Vossa excelência (o advogado) está com a palavra.”

Ministro Gilmar: “Vossa excelência pode deixar ele falar por dez horas, mas não...”

Ministro Lewandovski: “Quem preside a sessão sou eu, ministro. Vossa excelência

(dirigindo-se ao advogado) tem a palavra.”

O advogado fazia uso da palavra quando foi interrompido pelo ministro

Gilmar. Ministro Lewandovski, atento ao desenlace, apitou e mandou repetir o lance.

Bola com o advogado. Ministro Gilmar, visivelmente transtornado, proferiu

o mais clássico dos clássicos argumentos de autoridade, amplamente conhecido por

todos que labutam, de um modo geral, nos tribunais, balcões, púlpitos e salões do

Judiciário e do Estado. “Eu sou isso e aquilo, e o advogado é (só) advogado”.

Talvez você não conheça esse argumento, mas se trata de uma variação mais

barata, um transgênico, do coronelista e oligárquico “Sabe com quem está falando?”.

A regra é clara. O argumento em questão é falta grave. Penalidade que

enseja cartão vermelho e expulsão da partida. Até onde se sabe e a lei alcança, não há

hierarquia nem subordinação entre advogado e juiz, ainda que o dito-cujo seja do STF e

traje uma longa e imperiosa toga. O que indigna é saber que esse “fato legal” é

notoriamente negligenciado e não se realiza como “fato social”.

Quando o advogado está em campo, não há dono da bola. Não pode a

autoridade encerrar arbitrariamente a partida e ir embora com a bola debaixo do braço.

Como no caso daquele outro ministro que, num acontecimento inédito, determinou que

seguranças impedissem à força que um advogado exercesse sua própria profisssão,

expulsando-o do tribunal. Tudo ao vivo e a cores. Aquilo foi mais vergonhoso de se

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assistir que o “sete-a-um” que o Brasil levou da Alemanha. Mas isso foi outro jogo.

Hoje, pelo menos, o advogado teve assegurado o direito de se expressar.

Aguardemos os próximos lances dessa partida. Futebolisticamente falando,

é claro.

Confira no link o momento narrado:

https://www.youtube.com/watch?v=6xjzURBphNE