luiz costa lima - a aguarrÁs do tempo - 1989

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8/14/2019 LUIZ COSTA LIMA - A AGUARRÁS DO TEMPO - 1989 http://slidepdf.com/reader/full/luiz-costa-lima-a-aguarras-do-tempo-1989 1/54 LUIZ COSTA LIMA A AGUARRÁS DO TEMPO Estudos sobre a narrativa Rio de Janeiro - 1989 A NARRATIVA N ESCRITA DA . HISTÓRIA E D FICÇÃO And if 1 ever stop talking t will be because therc is nothing more to be said, even though ali has not been said, even though nothing has been said (S. Beckett : Malone dies INSTRUÇÕES PARA O USO Aqui começamos a tratar do que ser á a única teima deste li- vro: qual o sentido e o limite da categoria narrativa . Mas a qual narrativa me refiro? As últimas décadas nos tornaram familiares tratamentos sobré a narrativa em fulano, no gênero ou no período qual. Será disso que se fala? Embora nosso propósito não suponha o abandono de análises concretas, elas tampouco se confundem com nosso escopo. Para dele nos apro ximarmos, consideremos o seguinte: qualquer contemporâneo medianamente instruído será capaz de diferençar a prática d e várias linguagens, seja a do cientista social, do cientista exato, do filósofo ou do ficcionista. Mesmo que todas . sejam feitas numa mesma língua, como o português, cada uma terá seu perfil. Ao estudarmos a narrativa em um autor a ou b comumente identificados como pertencentes à literatura, já damos por sabido que significa narrar; assim nosso esforço se restringe a compreender o que particulariza o relato de a ou b. A situação será menos corriqueira se nosso autor não · for um ficcionista mas um historiador. Por que menos corri- 15

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LUIZ COSTA LIMA

A AGUARRÁS DO TEMPOEstudos sobre a narrativa

Rio de Janeiro - 1989

A NARRATIVA N ESCRITA DA. HISTÓRIA E D FICÇÃO

And if 1 ever stop talking t will be because thercis nothing more to be said, even though ali has notbeen said, even though nothing has been said(S. Beckett: Malone dies

INSTRUÇÕES PARA O USO

Aqui começamos a tratar do que ser á a única teima deste li-

vro: qual o sentido e o limite da categoria narrativa . Mas aqual narrativa me refiro? As últimas décadas nos tornaramfamiliares tratamentos sobré  a narrativa em fulano, no gêneroou no período qual. Será disso que se fala? Embora nossopropósito não suponha o abandono de análises concretas, elastampouco se confundem com nosso escopo. Para dele nos aproximarmos, consideremos o seguinte: qualquer contemporâneomedianamente instruído será capaz de diferençar a práticade várias linguagens, seja a do cientista social, do cientistaexato, do filósofo ou do ficcionista. Mesmo que todas .sejamfeitas numa mesma língua, como o português, cada uma terá

seu perfil. Ao estudarmos a narrativa em um autor a ou bcomumente identificados como pertencentes à literatura, jádamos por sabido que significa narrar; assim nosso esforçose restringe a compreender o que particulariza o relato de a ou b.

A situação será menos corriqueira se nosso autor não ·for um ficcionista mas um historiador. Por que menos corri-

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queira? Por ser idéia generalizada que o cuidado com a narrativa é exclusivo aos escritores  . Contudo, como se mosfrará em Clio em questão , esse já não é um pressupostounânime. Veremos aí que o interesse pelo problema da narra-

. tiva na história corre p ri p ssu ao questionam5-lnto suaafirmad11 c Í ~ n t i f i c i d a d e Deste modo a inclusão da prática dos

historiadores em nossa questão já abala a noção do sensocomum. Mas ainda não a abala de maneira decisiva: mesmosob a forma de imagem imprecisa, temos todos a idéia de que

a narrativa é algo que importa desde que não estejamos alidar com a ciência. Por isso o relacionamento da históriacom a narrativa é capaz de criar uma comoção apenas local:entre os próprios historiadores ou em seu leitor habitual. Aoinvés, o radicalizar a pergunta pelo sentido e pelos limitesda narrativa está fadado a criar uma perturbação maior, porque então se atinge a noção compartilhada de ciência. Tal

desejo de radicalização contudo se choca com uma questãode fato: como fazê-lo se não sou cientista, nem muito menosfilósofo da ciência? As especialidades não se improvisam. Que

ambição ou neurótica ansiedade portanto explicaria que alguém se dispusesse a saltar no escuro?

A própria questão da narrativa exige tal risco. Limitarseu tratamento aos campos da história e da ficção seria insuficiente porque terminaria por r ~ s p e i t r a velha distinçãoentre ciências nomotéticas e idiográficas. l.e., sem se negar aimportância do exame mais acurado das proximidades e diferenças dos discursos historiográfico e ficcional, encerrá-lo aídaria· a entender que aí estaria o próprio limite da narrativa;que o oposto dela seria o nomos a lei, que abrangeria todoo território das ciências exatas. Ora, muito da discussão maisrecente demonstra que a identificação da lei com as ciências

duras está longe de ser correta. Como, entretanto, ser capaz de reconhecê-lo não nos faz ultrapassar nossa incompetência, a solução plausível mostrou-se ser: (a) ao longo do

desenvolvimento do capítulo, ter o cuidado de evitar a esperável combinação entre lei e ciência exata, (b) acrescentar ao

final um pequeno adendo sobre a narrativa na ciência.

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Isso posto, podemos acrescentar: sumariamente, por narrativa estaremos entendendo o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidentalentram em uma ordem; ordem que não é anterior ao ato da

escrita mas ·coincidente com ela; que é pois constitutiva deseu objeto (cf. ainda conclusão 1) . O limite se demarca alionde é possível a formulação de leis e não só de normas. Apropriedade primeira das 1eis é estabel(fcer-se por uma formulação cuja adequação independe de contextos particulares.Uma lei é formulável a partir de fenômenos ou objetos cujomodo de atuação é cognoscível sem se considerarem os momentos particulares de sua incidência ou, se for o caso, em

que o tipo de situação impeditiva é previamente descrito. Comoidentificação de uma conduta geral, a lei subsume e anula arelevância do momento ou da constelação contingente de atores envolvidos. Portanto, já não identificar o território dasciências exatas pelo estabelecimento de leis, implica que já

não se pode dizer que a narrativa, enquanto tal, é secundáriaquanto às ciências.

CLIO EM QUESTÃO: A NARRATIVA NAESCRITA DA HISTÓRIA

Na c1enc1a como na vida cotidiana, quando um paradigmase faz inconteste, teorizar se torna ocioso. Enquanto o modode conduta vitoriano foi paradigmático, o que se chamavahisteria pôde grassar à vontade e os romances de Dickens eHardy podiam· despertar muita lacrimosa emoção, sem que

a sociedade se interessasse em saber que reprimia a sexuali-. dade (ou que, por muito falar sobre ela1 não deixava de re-

1 Em a Volonté de savoir Foucault ironiza a velha afirmação, acima.reiterada, de que o vitorianismo reprimia a sexualidade, aludindo à

verdadeira explosão discursiva que acompanha nossos três últimos

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primi-la) e que favorecia a desigualdade social. A sexualidade

feminina ameaçava os tabus com que se protegia uma socie

dade de classes médias e Kraft-Ebbing apenas reiterava a

opinião científica majoritária quando afirmava que se ela (a

mulher) tem um desenvolvimento mental normal e é bem

educada, seu desejo sexual é pequeno. Não fosse assim, todo

o mundo seria um bordel e o casamento e a família impensáveis (apud Gay, P.: 1984, 154). Assim, as dificuldades

que Freud enfrentaria face à opinião médica do começo do

século (cf. Gay, P.: op. cit., 166) eram semelhantes que

Marx já conhecera. Como seria possível que os protestos e as

interpretações antagônicas de Marx e Freud fossem aceitáveis

se a fragilidade do império austro-húngaro permanecia oculta,

incontestável a estabilidade do império britânico e, em geral,

florescente o capitalismo europeu? Do mesmo modo, enquanto

o modelo da biologia continuou a fascinar as nascentes ciên

cias sociais e o paradigma positivista, com sua exaltação do

científico, continuou a tranqüilizar as testas sérias dos histo

riadores, Droysen podia deblaterar quanto quisesse e Michelet

reviver as sombras épicas do passado de 89, sem que o idealda objetividade historicizada fosse perturbado. Como seria pos

sível o contrário se, ao florescimento das nações-metrópoles,

a escrita da história contribuía com seu destaque dos fatos,

séculos: talvez aí que pela primeira vez se impõe, sob a forma deuma sujeição geral, esta injunção . tão particular ao Ocidente moderno.Não falo da obrigação de confessar as infrações às leis do sexo, comoo exigia a penitência tradicional; mas da tarefa, quase infinita, de dizer,de se dizer a si mesmo e de dizer a um outro, tão freqüentemente q uantopossível, tudo que pode concernir ao jogo dos prazeres, das sensaçõese dos pensamentos inumeráveis que, através da ·alma e do corpo; têmqualquer afinidade com o sexo (Foucault, M.: 1976 29). SegundoFoucault, esta loquacidade se converteria, desde o século XVIII, embase para liberar o sexo e o erotismo da moralidade e, tornando-osracionais, convertê-los em objetos úteis e administráveis. De minha parte,devo acrescentar que não entendo por que essa liberalidade negaria ahip.ótese repressiva . A loquacidade referida é a maneira mesma pela

qual se desloca a repressão da sexualidade, que passa da esfera privadada moral e do controle religioso para a esfera pública do saber positivo.

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seu realce da história política e a biografia dos grandes ho

mens , com que con trapunha seu saber positivo às utopias

da filosofia da história? O interesse em teorizar não se gene

raliza sem que antes se difundam os sinais de crise, seja no

modo de compreender um certo objeto (crise. em uma disci

plina), seja no lidar até com o próprio cotidiano (crise de

um paradigma).

Mas de que crise aqui se fala? Durante o século XX,

tanto dela se tratou que, ao ouvi-la repetida, tendemos ao

bocejo. A que crise nos referimos, quando pensamos nas teses

narrativistas sobre a escrita da história? A pergunta se despe

de qualquer entonação retórica porque, à primeira vista, as

teses narrativistas antes parecem insinuar o reviva da escrita

da história do século XIX do que indicar alguma ruptura.

Com efeito, se recordarmos o primeiríssimo Droysen da His-

tória e Alexandre, o grande Geschichte Alexanders des

Gro{3en, 1833), a História dos papas Die romische Papste,

1834-6), de Ranke ou mesmo um ensaio pouco ortodoxo como

a Sorciere (1862), de Michelet, que têm em comum a força

do relato e, se os contrastarmos com as críticas levantadas pela

primeira geração dos Annales, continuadas pela geração atual

dos Le Roy Ladurie e F. Furet, como entenderemos o incre

mento das teses narrativistas senão como a busca nostálgica

de um retorno; como a tentativa de privilegiar um modo de

fazer história menos dependente de recursos sofisticadamenteabstratos como o das curvas estatísticas e dos métodos quantitativos?

Para efeito do exame necessário, dividiremos a expos1çao pró

xima e imediata conforme dois critérios: (a) de acordo comsua procedência francesa ou anglo-saxônica, (b) dentro da

primeira,. por sua vez, ainda distinguiremos aqueles autores

que, como historiadores, .pertenceram à Ecole des armales(Febvre e Braudel) ou que, embora críticos às pretensões da

história, sempre confessaram seu débito aos anndistes (Lévi-

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Strauss) dos que, historiadores ou não, estiveram menos li

gados à Ecole (Aron, Veyne, De Certeau).

Em 1936, em sua aula inaugural no College de France,

Lucien Febvre expunha criticamente o que fora o programa

ainda há pouco dominante

( ) Pelos textos atingiam-se os fatos? Ora todos o afirmavam:a história era estabelecer os fatos, depois pô-los em funcionamento.Isso era verdadeiro e era claro, mas, em suma, e sobretudo se ahistória era tecida, unicamente ou quase, de acontecimentos. (Pesquisar todos os textos que deste nascimento ou desta batalhafizessem menção; escolher entre eles os únicos dignos de crença;com os melhores compor um relato exato e preciso: tudo isso não

era fácil? (Febvre, L.; · 1936 6-7, grifo nosso)

A histoir évén m nti ll era uma história apoiada na

escrupulosa reconstituição dos fatos, que, depois de testados,

eram cronologicamente dispostos em um relato. Este, de seu

lado, era apenas a ponta visível que manifestava o pressu

posto caro à história positivista: o de captar o passado "como

efetivamente fora". Desmantelar a história narrativa seria comprometer o pressuposto da história objetiva, substituindo-o por

aquele que dá a primazia à seleção e, daí, à interpretação dos

fatos. A históril "sabe que, jamais, determinará o aparelho

inencontrável que, após um sono de vários séculos, lhe faria

escutar, como que registrada para a eternidade, a própria voz

do passado, colhida ao vivo. Ela interpreta. Organiza. Re

constitui e completa as respostas" (Febvre, L.: op. cit. , 15).

Ao futuro autor de e Probleme de l'incroyance au 16  siecle(1942), a correção agora se mostrava imprescindível a fim de

a história manter seu estatuto de científicidade. Era para isso

necessário mesmo a ousadia de aventurar-se pelo campo re- ·

servado aos filósofos e dar cabo da concepção ingênua comque os historiadores continuavam a considerar os fatos; inge

nuidade no entanto requerida para que mantivessem a con

v;icção da objetividade de sua empresa. Contra a idéia da

substancialidade dos fatos, Febvre insistia em seu caráter de

construção; por sua vez paralelo ao pressuposto do trabalho

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do historiador como interpretação. Este era o papel a que

Febvre se reservava em artigo posterior, onde, sintomatica

mente, resenhava, em conjunto, a obra póstuma de Marc Bloch,

Apologie pour l'histoire ou métier d'historien, e a tese há

pouco defendida por Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo

e a dominação espanhola. Para o co-fundador dos Annales

não seria insignificante o júbilo com que, na obra do com

panheiro morto e na daquele que anunciava sua continuação,anotava o postulado comum que os irmanava: a crítica dos

fatos, identificados a substâncias tranqüilizadoras. Só pela

desmistificação de tal fetiche poderia o historiador defender

se da voracidade dos primeiros sociólogos: Tudo que, no

domínio das ciências históricas, lhes parecia suscetível de aná

lise racional lhes pertencia. O resíduo era a história: uma

paginação cronológica, no máximo acontecimentos de super

fície, filhos do acaso, com freqüência. Digamos: um · relato"

(Febvre, L.: 1949, 422-3).

De sua parte, Braudel não frustrará o empenho de seus

ex-mestres e colegas. Sua lição inaugural, no mesmo Colleg

de France, enunciará a continuação da tarefa. Referindo-se àhistória nos moldes de Ranke, ie ., àquela que dominara na

segunda metade do século passado, escreverá

Para ela, a vida dos homens é dominada por acidentes dramáticos;pelo jogo dos seres excepcionais que aí surgem, mestres com freqüência do destino deles e mais ainda do nosso. E, quando fala de

"história geral" é, por fim, no entrecruzamento destes destinos cxcepcionais que pensa, pois é bem preciso que cada herói contecom outro herói. Falaciosa ilusão, sabemo-lo todos. Ou digamos,mais eqüitativamente, visão de um mundo muito estreito ((Braudel, F.: 1950, 23)

Com a segunda geração dos annalistes, o combate contra

a história factual prolongar-se-á pelas categorias da longuedurée, da história das mentalidades, da história quantitativa.

Todas mantêm sua oposição à história narrativa. Isso não

muda mesmo quando um Le Roy Ladurie publicar uma pes

quisa tão narrativamente conduzida quanto o seu famoso Mon-taillou, village occitan (1975). Não há retificação ou transi-

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gência possível, vista a solidariedade entre a maneira como

aquela historiografia era compósta e a suposição da absoluta

objetividade. Ao passo qµe essa objetividade, que antes seacreditara alcançável pelo mosaico dos fatos, era negada, em

troca a pretensão, que os annalistes mantêm, de constituir umahistória científica não admitiria transigência alguma. Negava

se, pois, uma concepção do fato - sua auto-suficiência - e

a não-problematicidadedo

relato para que melhor semantivesse uma meta: a de contribuir para o alcance de uma

história efetivamente científica.

Aqui aparece o calcanhar-de-aquiles da École des annales:

talvez por considerarem que, não sendo epistemólogos, não lhes

competia desenvolver uma reflexão específica sobre a idéia de

ciência, deixaram-se conduzir por sua noção difusa. A opinião

comum afirmava: fazer ciência é o único modo que importa

para a sociedade. A conjunção exclusiya da ciência com autilidade intelectual era e é) favorecida pela resistência gene

ralizada, tanto nas disciplinas mais nobres como nas mais

fluidas, em considerar a reflexão epistemológica ou mesmo metodológica como derivativos, senão estorvos à pesquisa concreta.

Weber, que partilhava desse ponto de vista, contudo notavaas condições históricas em que a restrição teria de ser suspensa

Só pela revelação e solução de problemas objetivos sachlicher

Probleme) as ciências se fundam e seus métodos se desenvolvem;nunca, ao invés, as puras considerações epistemológicas ou metodológicas desempenharam uma part e decisiva. Tais discussões se tornam importantes ·para a empresa Betrieb) da ciência apenas quando,em decorrência de fortes deslocamentos dos 'pontos de vista' sob os

quais uma matéria .se torna objeto de descrição, surge a imagem de

que ·os novos 'pontos de vista' também condicionam uma revisão

das formas lógicas com as quais se movera a 'empresa' herdada e daí

resulta a insegurança sobre o caráter Wesen) do próprio trabalho.indiscutível que esta situação hoje atinge a história ( .. . ) (Weber,

M . 1906, 217-8)

Ou por acharem mais prudente não entrar na especialidade alheia ou por crerem que seriam suficientes os avanços

positivos que trouxessem, os annalistes a médio prazo, nãoevitaram o advento de novos ataques. Quando surgirem, se

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distinguirão dos que eles próprios haviam promovido por par

tirem de fora de sua disciplina; da antropologia estrutural.

Em nome do mesmo padrão de científicidade, Lévi-Straussacusará a história de forma .mais abrangente e incisiva. A forçada história estaria em promover o mito de crer que a vida

humana é dotada de sentido. Seria por esse mito que o eu

assume uma pretensa continuidade totalizadora (cf. LéviStrauss, C.: 1962, 338-40). O privilégio da história, entre as

ciências humanas, seria portanto conseqüente do travestimenteideológico pelo qual o Ocidente podia, face às outras cultu

ras, encarar-se como ocupante de uma posição superior, a par

tir da qual lançaria seu magnânimo olhar humanista. O sen

tido que o historiador captura e oferta aos outros homens

tem o mesmo caráter da história. Assim como a história não

é portanto jamais a história, mas a história-para (idem, 341),assim também o sentido que se extrai da indagação de um

fenômeno ou período histórico é congruente com o que interessa

e justifica a ação de grupos, classes ou sociedades particulares.

Poder-se-ia pensar que a ui:n historiador desligado dospadrões de objetivismo absoluto do positivismo isso pareceria

bastante aceitável. Mas não é assim. Como notávamos, as

mudanças em que os nn listes se haviam empenhado lhes

pareciam exigíveis em nome da ciência. Ora, o antropólogoatacava a história por ser sempre particularizante e não poder

dispor de resultados universais. Por isso mesmo, á em obra

anterior, embora de modo muito menos virulento, distinguia

entre a história e a etnologia: a primeira organiza seus dados

em relação às expressões conscientes , ao passo que a etno

logia o faz em relação às condições inconscientes da vidasocial (Lévi-Strauss, C.: 1958, 25). Passagem imediata explicita as conseqüências da distinção

Se, como o cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em

impor formas a um conteúdo e se estas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, pri·mitivos e civilizados ( é preciso e bastante alcançar a estruturainconsciente, subjacente a cada instituição ou a cada costume, para

obter-se um princípio de interpretação válido para outras instituições

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e outros costumes. s ~ b a condição, naturalmente, de levar a análise

bastante longe (Lévi-Strauss, C.: 1959, 28)

Não importa pois que ó historiador, a exemplo de Braudel,

busque a história muda que se desenrola na lenta sucessão

dos séculos ou que os métodos da história quantitativa reve

lem constantes com que não atinava a história política; seus

resultados sempre apresentarão significações conscientes, comas quais serão racionalizados os atos de certa sociedade. Por

isso a antropologia estrutural escolhia como seu elemento fun

damental a linguagem: dotada de uma teleologia inconscien

te , parcialmente revelada pela lingüística e pela p s i ~ a n á l i s e(Lévi-Strauss, C.: 1962, 333), ela daria acesso ao umversal,

interditado à história. Em suma, a história era criticada por

sua arbitrária pretensão à científicidade. á não se atacava di

retamente o caráter narrativo da história, conquanto não fosse

improvável que Uvi-Strauss nele t m b ~ m cogitasse - bas ta

pensar que sua estocada d e f i n i t i v ~ r e s u l t ~ v a da . c u s a ~ o do

mito do sentido do eu, que a história termmana por engendrar.

Ora, como o grande analista dos mitos sul e norte-american?snão poderia ignorar o caráter narrativo do mito, acusar a his

tória de forjadora de um mito equivalia a declarar que ela

não ultrapassava seu regime narrativo; que , por isso mesmo,

não podia conter senão projeções ideológicas.

No " ~ b a u c h e d 'un serpent (1921), onde melhor configura

sua obsessão ofídica2, Valéry escrevia os versos que podem

ser tomados como o antilema do pensamentQ oitocentista

Que l'univers n'est qu'un défaut

Dans la pureté de non-être

2 Augusto de Campos escreve na abertura de seu Pau Valéry: a ser-

pente e o p e n s a ~ : A imagem da s e r ~ n ; percorre, obsessiva, a obra de

Valéry e, de certo modo, a emblemat1za (Campos, A. de: 1984, 9).

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Em vez de seduzida pela potência serpêntica do não-ser,

a mente· oitocentista antes se agarrava a l Etre viel et pur /

Qui maudit l morsure breve e,· com ele, se empenhava em

inverter a proposição da inimiga: o mundo é pleno de ser;

os mínimos entes, os ínfimos fatos o repetem e reiteram.

Por este raciocínio o pensamento do século passado é

caracterizado como o da conjunção entre o fato e o Ser; con

junção depositada em sua historiografia. Se o aceitarmos, tornar-se-á direta a compreensão de ser contra ela que se dirige

o realce da seleção do fato e de sua necessária interpretação.

Realce e necessidade que, assinaladas por Febvre, só encon

trariam sua expansão cabal na tese que Raymond Aron defen

deria em 1938, Introduction la philosophie de l histoire.Conquanto seu argumento principal hoje não mais provo

que o alvoroço que causou entre seus examinadores e primei

ros leitores, esquecê-lo aqui seria grave injustiça. Seu ponto

de partida é inequívoco: sob a influência do pensamento ale

mão das últimas décadas do século XIX, sobretudo de Weber,

Aron estabelecia o dossiê condenatório do positivismo. Se esse

partia da absoluta integração do Ser com os fatos era para

que assim previamente esconjurasse, como desprezível metafísica, a afirmação do poeta sobre o universo como falha e

unanimidade do nada; em termos afirmativos, para que loca

lizasse a meta do historiador na recolha dos fatos atestados.

A lucidez do historiador dependeria da docilidade de sua . lin

guagem; no não se arrogar a ser senão um mero meio mafarial

que devolveria aos fatos a voz que de direito lhes pertence.

Ao assim pensarem e praticarem, a tradição positivista e o his

toriador continuavam uma meta que se formulara com os pró

prios pais do pensamento moderno: para que se evitem os

ídolos da tribo, é preciso privilegiar a indução; por sua vez,

para que esta assuma a pureza a que o Novum Organon aspira

é necessário que a linguagem não interfira na observação; i.e.,que ela se confunda com uma transparência útil, nula em si

mesma, apenas dúctil ao que propaga. Pensamos ainda no is-

cours cartesiano e na passagem em que o filósofo enfeixava

as fábulas, a história e os romances como igualmente menos

prezíveis, pois as fábulas fazem imaginar vários acontecimen-

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tos corno possíveis que não o são; e ( mesmo as histórias

mais fiéis, se não mudam nem aumentam o valor das coisas,

para torná-las mais dignas de leitura, ao menos delas omitem

quase sempre as mais baixas e menos ilustres circunstâncias;

donde resulta que o resto não parece tal como é e que aqueles

que regem seus costumes pelos exemplos que daí tiram se

sujeitam a cair nas extravagâncias dos paladinos de nossos ro

mances e a conceber desígnios que ultrapassam suas forças(Descartes, R.: 1637, 129). Essas eram práticas desprezíveis.

Assim sucedia por não permitirem ao homem a apreensão da

certeza pela qual o Ser se afirma - a certeza instalada no

eu, capaz de se reconhecer como verdadeiro, ainda quando

t ~ o mais fosse falso. O eu, portanto, se torna a primeira sóli

da baliza que afirma a certeza do Ser. Progressivamente, a

ciência tornar-se-á a sua afirmação incontestável, tão incon

teste que poderá mesmo descartar-se do pressuposto cartesiano:

a certeza agora se localiza tanto nas leis que controlam o mun

do como no mundo dos fatos. Antes mesmo de se imporem

as leis da ciência expõem.

A tal ponto a ciência acolhe e acumula a confiança que

nela depositara o filósofo que, a exemplo do filho que se crêforte para a rebeldia, com o positivismo, denuncia a metafí

sica que a preparara e, mediante o louvor do fato, ridiculariza

toda a tradição que não fosse a do empirismo bruto.

O contato de Aron com as obras de Dilthey, Rickert,

Simmel e Weber viria a provocar uma sacudidela traumática

nesse otimismo positivista. A tarefa do historiador, dirá então,

não se cumpre por fidelidade passiva senão que por seu

esforço de recriação (Aron, R.: 1938, 121). Se o objeto

apresenta contradições, o positivista dirá que o historiador

não estará obrigado senão a expô-las, tal como as descobre

nos textos ; assim fazendo, estaria respeitando o ideal da

transparência útil da linguagem. De sua parte, Aron respon

derá de bom humor: Que seja, mas ainda deve chegar a uma

interpretação .una em que as diversas teqdências são não con

ciliadas, não ju stapostas, mas organizadas. Ora, essa organi

zação, que não está inscrita nos documentos é o feito do pró

prio historiador  (Aron, R. : idem, 123).

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Da crítica a que então submetia o pressuposto positivista

resultava que o primeiro plano passava a ser o c u p d ~ pelo

prfocípio da seleção

( O historiador que vai além do estabelecimento dos fatos e dasdatas, não evita a incerteza das significações porque estas constituemo próprio ser que se esforça em captar (Aron, R.: ibidem, 124)

O destronamento da absolutidade do fato reintroduzia o

fator subjetivo e isso tanto do ponto de vista do sujeito, quanto

do objeto histórico. Assim, em passagem, que é uma verdadeira

glosa do Droysen de Historik (cujo nome entretanto sequer é

referido), dirá

Os relatos históricos encadeiam acontecimentos, mas os própriosfatos só são inteligíveis pelos motivos, pelo menos imediatos, dos

homens. ( compreensão dos atos, ainda que seja decisiva

para o historiador, supõe portanto a compreensão das consciências(Aron, R.: ib., 126)

Seleção, recriação, análise dos motivos supõem em comum

a derrogação da autonomia do documento. Isso já se implicana afirmação de que teoricamente, interpretação racional e

interp retação psicológica são complementares e não exclusivas

uma quanto à outra (ib., 128). Daí ser freqüente, na prá tica

do historiador, que ele se inquiete com o motivo que não

coincide com o ato  e que se invoquem os móveis para suprir

as insuficiências da interpretação racional . Isso sucede, con

tinua a passagem, porque a pluralidade e a incerteza são,

por assim dizer, dadas nos documentos, na própria vida 

(ib., 131).

Por tais formulações, Aron contribuiu, talvez mais do que

ele próprio depois houvesse querido, para sepultar certezas e

destruir separações tidas por insofismáveis: a certeza da distinção das tarefas do historiador e do ficcionista. Se ele mesmo

dirá que não existe para o homem a verdade de uma exis

tência. Cada intérprete compõe uma imagem  (ib ., 137), então

não haverá fronteiras de substância portanto infranqueáveis,

entre as páginas do historiador e do romancista. Além do mais,

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não é a própria questão da identidade, enquanto absoluta, que

assiro tendia a ser reaberta? No auge da epistemologia da ciên

cia clássica, Kant podia se congratular com que, dependendo

o conhecimento verdadeiro do aparato cognoscitivo do homem,

imutável enquanto faculdade, podia esse conhecimento ser ne

cessário e universal e não contingente e particularizado

Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora negro, ora leve, ora pesado,se um homem mudasse ora nesta, ora naquela forma animal, se nosdias mais longos a te rra ora se cobrisse de frutos, ora de gelo e

neve, então a minha imaginação empírica não poderia ter ocasiãode, pela representação da cor vermelha, trazer ao pensamento opesado cinábrio (Kant, I.: 1781, 163-4

A quebra das fronteiras nítidas com que operavam os -

sitivistas passava a envolver problemas então bem mais sérios.

(Muito mais pela obra posterior de Aron do que por filósofos

tão distintos como Deleuze e Derrida é que se perceberão as

conseqüências do abalo ali sofrido pelas claras identidades.)

Como o ponto contudo está além de nossa competência, limi

temo-nos a acrescentar: contra a confiança positivista no fato,Aron ressalta como dado fundamental para o pensamento e

a pesquisa nas ciências do homem a equivocidade de seu

objeto: A realidade histórica, porque é humana, é equívocae inesgotável (ib., 147).

O primeiro eixo, portanto, em torno do qual a Introduc-tion se configurava era constituído pela oposição entre fato

e princípio de seleção. Enquanto o p r i v i l é ~ i o do fato deixava

o sujeito entre parênteses, o princípio de seleção implicava

que, em momento algum, conforme a lição mantida de Weber,

deixamos de lidar com valores (cf. 163).

Um segundo éixo então se estabelece: a reflexão sobre

o relativismo r e ~ u l t n t e das posições anteriores. Embora essesegundo eixo tenha uma atualidade maior que o primeiro (ain

da que não nos convença a pretensa cientificidade da proba-bilité retrospective que o autor aí postula), sua discussão não

seria aqui funcional. Mas o mesmo não vale para sua discussão

sobre e problema da causalidade em história.

28

Não é ·preciso assinalar a importância do princípio da

causalidade, tanto na visão cotidiana como na interpretação

científica. Entendida como antecedência constante e geradora,

a causa implica a determinação de certa ordei:n no tempo. Em

termos kantianos, como categoria, a causa não está na expe

riência empírica senão que nela se põe conectando-se à expe

riência do tempo, a esta imprimindo sua lei da sucessão, que

então se torna a condição da validade objetiva de nossosjulgamentos empíricos (Kant, 1.: op. cit., 236). Noutras pala

vras, a mera sucessividade temporal, em nós realizada por efei

to do a priori do tempo, não seria acessível a nosso entendi

mento se à nossa experiência do empírico não se articulasse

a categoria do tempo. Essa conexã9, identificadora da causa

com o antecedente, contudo, não significa que, para Kant, a

causa fosse o que necessariamente precedesse o efeito. Não,

como escreve no tratamento da Segunda Analogia, a grande

maioria das causas eficientes, na natureza, é simultânea com

seus efeitos e a seqüência temporal da última é devida apenas

a que a causa não pode realizar todo seu efeito em um mo

mento (idem, ibidem). A causa tanto pode preceder seu efeito

quanto lhe ser simultânea; essa aparente ambigüidade não cria

problema, pois se deve observar que é a ordem do tempo e

não o seu decurso o que se considera; a relação permanece,

mesmo se tempo algum transcorreu (idem, ib.). Ora, essa

ordem é tão mais inflexível porque não é produzida pela ex

periência, senão que se lhe impõe. Daí seu caráter de necessi-

dade portanto de universalidade, e, por fim, sua força de lei.dentro deste circuito que nosso entendimento comanda ne

cessária e permanentemente nossa experiência das coisas e se

torna merecedor do nome de legislador para a natureza

[(der Verstand) ist selbst die Gesetzgebung vor die Natur ]

(idem, 180). De acordo pois com a epistemologia kantiana, sem

a subordinação a esse mecanismo nenhuma disciplina mereceria a designação apropriada de científica. E, se a história

não se quiser ver no campo da razão prática . não se poderá

mostrar senão praticante daquela engrenagem.

Ainda que Aron não tematize sua posição fac:;e à dou.

trina kantiana, é evidente que suas colocações sobre o papel

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da causalidade em história implicam a retirada desta do campo

onde opera o entendimento, assim a a descoberto da

legitimação kantiana. O historiador é um prophete apres

l'événement3; a interpretação propriamente histórica abre uma

perspectiva sobre o passado, perspectiva que deriva do queveio depois (Aron, R.: op. cit., 169), com o que o historiador

concede ao futuro passado seu caráter de futuro (idem, 225).

Desta maneira, o trabalho do historiador consiste em constituira expressãó de uma probabilidade retrospectiva (ibidem,

202).

Não é acidental que Aron chegasse a essas deduções não

mais operando com a concepção kantiana da ciência una senão

que com a divisão entre ciências da explicação e da compreensão. Ciência da compreensão, ligada pois aos valores, no sen

tido weberiano do termo, a história não é uma ciência nomotética -   à medida que se exige mais historicidade, a legali-dade tende a se dissipar (ib., 299). O que vale dizer, o tempo

já não é o a priori transcendental a que a categoria de causa

se conecta e a cuja ordem necessariamente se subordina. O

caráter de retrodição q4e a causa assume, na investigação histórica, afasta-a do traçado necessário que, para Kant, ela terianas ciências dignas de seu nome. Em vez desta necessidade,

a história passa a ser vista como a compreensão do provável

( A indagação causal do historiad or tem por sentido menos de·senhar os grandes traços do relevo histórico do que conservar ourestituir ao passado a incerteza do futuro (Aron, R.: ib., 224)

A história assim teria a qualidade de nos fazer escapar

de a ilusão retrospectiva da fatalidade (ib., 230).

Como aqui não nos importa acompanhar o autor na dife.

rença que · então estabelece da · história quanto à sociologia -

cf. 235 ss - limitemo-nos a perguntar que conseqüências esta

3 Expressão que curiosamente repete o fragmento 80 dos Fragmentosdo Athenaum, de F. Schlegel: O historiador é um profeta voltado para

trás (Schlegel, F.: 1798 1, 199).

30

retirada da história do campo do nomotético teria do pontode vista de sua relação com a narratividade4

Seria um otimismo ingênuo supor-se que Aron aqui desseo passo que hoje nos pareceria previsível. Isso contudo não

se verifica. O autor não ousa a aproximação que a época ainda

não favorecia. Como vimos a propósito da reflexão muito me-nos elaborada de Febvre, não é que a relação da história com

o récit deixasse de estar no ar. Contudo Aron não ousa des

fazer a oposição tradicional; ao invés, a reitera, conforme senota na passagem da discussão que move contra a interpreta

ção causalista de Simiand: Contra o .relato puro, o gosto daanedota, exigia a explicação causal ( . . . ) (ib., grifo nosso,

233). e provável que não cogitasse de ultrapassar essa marcamesmo porque o seu modelo, o da sociologia compreensiva,

não se formulava senão como uma forma ainda de ciênciacf. a oposição feita entre causalidade determinista e proba

bilista, feita a respeito da geografia humana, ib. 243).

Em suma, sem que haja sido nosso propósito passar emrevista a totalidade das questões básicas da Introduction, vemosque, com ela, (a) o primado p o s i t i v i ~ t do fato encontra sua

pá de cal; (b) em seu lugar, agora ressaltam os princípios daseleção e da interpretação conseqüente; (e) se se nega o cará

ter nomotético ·da história, não se lhe retira contudo do campo

administrado pelas exigências da ciência. Poder-se-ia mesmoacrescentar: à recusa do nomotétiéo corresponde, por um lado,a negação de uma concepção substancialista de verdade - a

verdade de como as coisas necessariamente são - e, por outro,

a sua afirmação como construção probabilista; (d) o deslocamento do estatuto de· científicidade da história não afeta a per-

4 Na verdade, o passo a ser dado poderia ser mais complexo. Como 11ãotemos competência em teoria da ciência, só podemos dizer que o fato

de a causalidade histórica estar investida deste caráter anômalo ·derétrodíçtion não a exclui forçosamente senão do campo da teoria clássicada ciência. Sua científicidade, ao invés, poderia ser recuperável  diantede uma concepção indeterminista da ciência, que já não confunde anatureza, como a mecânica clássica, com um Íl}terlocutor mudo ·e idiota

(cf. Prigogine, 1. e Stengers, 1.: 1979).

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manência de sua opos1çao com o récit, que Aron continua a

identificar com le goút de l anecdotique.

Trinta e três anos medeiam a Introduct ion la philoso-

phie de l histoire, de R. Aron e o Comment on écrit l hlstoire,

de P. Veyne. Explicitamente declarando seu débito à Intro-

ducticn, a obra de Veyne contudo se diferencia pelo tom diretocom que trata a questão do estatuto da história. Que caracte

rizaria a escrita da história? Ser uma atividade intelectual

mente pouco sofisticada, onde problemas de método e teoria

constitui riam seu lado n atimorto (cf. Veyne, P : 1971). Cogi

tar de sua científicidade? Isso seria comparável a confundir

uma recitação escolar com uma verdadeira encenação de tea

tro. Face à explicação que é própria das ciências, físicas ou

humanas, a história aparece como uma simples descrição do

que se passou; ela explica como as coisas sucedera m ( )

(Veyne, P.: 1971, 201). A história factual se conduzira como

se a qualquer instante seus · representantes pudessem ser cha

mados a se identificar diante do tribunal da razão. A ilusão se

desfizera com Weber, com um Weber que operava dentro do

raio criado pela gaia ciência nietzschiana. A idéia de uma ver

dade-inscrita-nas-coisas não passaria de um prestigioso engo

do. O historiador que hoje continuasse a crer na substanciali

dade da verdade, que se lhe revelaria pela reconstituição dos

fatos, seria tãó tragicômico quanto o personagem de Kafka

que acreditava que os guardiães da lei lhe abririam as portas

do castelo. Este próprio tribunal não poderia ser constituído

senão por um decreto injustificável (idem, 68). Mas, enquanto

Weber e Aron ainda buscavam conciliar a prática da história

com a dignidade da ciência, a razzia agora efetuada não per

mitiria, para Veyne, senão o reconhecimento de uma capitisdiminutio: a história não passa de um relato

32

Ela permanece fundamentalmente um relato e o que se chama explicação não é senão a maneira que tem o relato de se organizar

em uma intriga compreensível (idem, 111)

Daí o estilo direto e desabusado do livro· muitas vezesmesmo grosseiro e arbitrário; assim, p. ex., o' Verstehen

beriano não ·vai além do que é próprio às modestas dimensões

de todo relato -   E assim a explicação histórica: absoluta

mente sublunar e não científica; lhe reservaremos o nome de

compreensão''. (ibidem, 112). Não melhor destino se reserva

para o não menos admirado Aron. e este se ·esforçara em

formular a especificidade da causalidade em história, paraVeyne tal especificidade se caracteriza por afastar a história

por completo do campo das leis

( .. ) Em história, em que o sistema 4e referência é a intriga, aperspeétiva da causalidade é específica e ( não se pode passar à

legalidade senão por uma mudança total de sistema (ib., 203)

Ainda que não pensemos diferente, haveríamos de acres

centar: (a) a· oposição entre causalidade histórica e lei cien

tífica é insofismável apenas do ponto de vista da teoria lás-

sica da ciência; (b) ainda que não se considere que a teoria

da. ciência hoje em elaboração admite a possibilidade doutro

enlace (cf. nota 4), aquela oposição propõe, e não resolve, oproblema da relação da história com outro campo em que a

narrativa é também primordial: o campo da narrativa ficcio

nal. Ora, a forma desabusada de expressão do autor, melhor

dito, o papel assumido de angry .scholar, não ajuda ao trato de

questão assim difícil. Apenas em um momento, em que, ade·

mais, mostra seu questionamento da científicidade não se res

tringir à história, Veyne se dispõe a tematizar a relação das

pseudociências com os gêneros literári os: ( .   Os livros que

se publicam na qualidade de sociologia podem ser agrupados

sob três rubricas: como. uma filosofia política que não se con

fessa, como uma história das civilizaçõés contemporâneas e

enfim como um gênero literário sedutor ( .   ) e que assumiu

inconscientemente a sucessão dos moralistas e tratadistas dos

séculos XVI e XVII (ib.; 321). (E sintomático que a aproxi

mação seja feita com gêneros não diretamente ficcionais.)

O próprio tom assumido pelo Comment nos permite ver

com nitidez a diferença que o separa da tese de R. Aron. Antes

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de. tudo, a história é um relato (récit), cujo potencial de expli

cação e compreensão são inerentes ao próprio relato

A história não explica, no sentido de que ela não pode deduzir eprever (só o pode um sistema hipotético-dedutivo); suas explica·

ções não são o reenvio a um princípio que tomasse o acontecimentointeligível; são o · sentido que o historiador empresta ao relato(ib., 114

Se alguilla marca diferencial assinala o relato histórico,

essa não se encontra, fora do rotineiro trabalho de autentifi

cação das fontes, senão na captura de um tipo de aconteci

mento que até então tinha sido desprezado pelos outros his

toriadores (cf. nota 5, 118-9). Fora disso, não há o que acres

centar. A história é narráção (ih., 118). Não há narrativa

s_m enredo e, sem ·enredo, tampouco há o fato histórico

Quais são portanto os fatos que são dignos de suscitar o interessedo historiador? Tudo depende da intriga escolhida; em si mesmo,um fato nem é nem interessante, nem o contrário. ( Na históriacomo no teatro, mostrar tudo é impossível, não porque fosse necessá

ria uma demasia de páginas mas porque não existe o fato históricoelementar, o átomo do evento (l'atome événementiel) (ib., 47)

Veyne, em suma, tira a conseqüência do que a tese de

Aron preparara: o relato, em vez de se confundir com seu as

pecto anedótico, é a parte fundamental na escrita da história.

Se o andamento adotado neste capítulo houvesse sido pu·

ramente diacrônico e, portanto, a · reflexão sobre M. Weber

houvesse antecedido à reservada a ·R. Aron, teríamos ocasião

de verificar agora o ·progressivo divórcio que se estabelece entre

a prática do historiador e o ideal de científicidade. Seria então

tranqüilo mostrar que essa crescente ruptura teve seu ponto

de partida em Nietzsche. Não tendo sido este o nosso interes

se, o deixamos apenas marginalmente apontado.

Com M. de Certeau um novo interlocutor entra em cena:

Foucault. Com elet o debate ganha uma nova dimensão: não

34

apenas acadêmica ou epistemológica mas também ética5• Esta

dupla dimensão já se manifesta na passagem que nos servirá

de abertura: A história não mais ocupa, como no século

XIX, este lugar central organizado por uma epistemologia que,

perdendo a realidade como substância ontológica, buscava reen

contrá-la como força hist6rica, Zeitgeist e devir oculto na inte

rioridade do corpo social (De Certeau, M.: 1975, 93). A

perda da centralidade que a história ainda há pouco ocupava

tem como conseqüência que; de imediato, se libere uma ques

tão que pudera se manter ocultada: a questão de seu próprio

estatuto. Dentro da articulação epistemológica-ética que orien

ta o trabalho de De Certeau, a questão implica a pergunta

pelo lugar d história

O real que se inscreve no discurso historiográfico provém dasdeterminações de um lugar. Dependência quanto a um poder poroutro lado estabelecido, domínio das técnicas concernentes às estra

tégias sociais, jogo com os símbolos e com as referências que têmautoridade no público, estas são as relações efetivas que parecem

caracterizar este lugar de escrita (De Certeau, M.: idem, 17

Por ela, o autor diminuirá seu débito a Aron e, ao invés,

acentuará a falha que encontra na Introduction: ressaltando

o quanto a seleção dos fatos pelo historiador dependia da po

sição deste face ao universo dos valores, Aron incorporava'

os historiadores a um grupo isolável de sua sociedade e,

assim, o recurso às opções pessoais obscurecia (court-circuitait)

o papel exercido pelas localizações sociais sobre as idéias

(ibidem, 66). O que vale dizer, para De Certeau toda a inda

gação sobre o lugar da história será uma mascarada ideológica

se não se desdobrar na indagação ·do lugar social preenchido

pelo historiador. E exemplifica: quando o cristianismo deixou

5 Por economia de espaço, nosso exame será restrito a L E cr.iture e

l'histoire. Para um quadro mais amplo, cf. ainda a reunião de ensaiosdo autor, quer já então publicados em francês, quer ainda inéditos nooriginal, intitulado Heterologies (1986).

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de ter uma pos1çao saliente na sociedade francesa, a historiografia religiosa pôde assumir um outro interesse, . semelhante

no caso ao que se abria para o etnólogo, a indagar os sel

vagens do interior , os feiticeiros de província cf. 45). De

maneira semelhante, aquela perda de relevância explicava que,

entre as duas Grandes Guerras, L. Febvre viesse a tratar de

Rabelais como cristão, i e. debaixo de um nome que subsumia

a velha querela entre católicos e protestantes. Indagação for-

temente ética e, daí, política, a determinação do lugar ocupado

pela história e pelo historiador teria solidariamente a função

epistemológica de explicar seus temas prediletos e interditos,

pois esta é a dupla função do lugar (ib., 78). B bem verdade

que esta indagação do lugar não se confunde· com a análise

da própria produção historiográfica; é ela contudo indispen

sável para que alguma coisa pudesse ser dita, que não fosse

nem lendária (ou edificante ), nem at6pica (sem pertinên

cia) (ih., 79). Por isso ainda declara que, se a história aban

dona seu lugar próprio - o limite que põe e que recebe -

se decompõe para não ser mais do que ficção (o narrado doque se passou) ou reflexão epistemológica (a elucidação das

regras de seu trabalho) (ib., 58). Que é pois o lugar da his

tória, como doutra qualquer disciplina, senão a determinação

do limite do por ela dizível? Limite que ela tanto recebe (do

poder instituído), quanto estabelece, numa interlocução tanto

consciente, quanto não-consciente, com a ordem do poder.

Deste modo, por sua constante relação com a sociedade e com

o poder, o lugar da história nunca é isento de infiltrações ideo

lógicas e o exame concreto deste lugar revela o inconsciente

dos historiadores ou, mais exatamente, do grupo a per-tencem (ib., 39). ·

Até aqui, destacamos a contribuição de De Certeau doponto de vista sobretudo ético. O realce desta dimensão deveser relacionado à ·noção de crise que temos discutido desde

o início deste capítulo. Para explicitá-lo é suficiente acrescentar um dado: o efeito de desmistificação a que se propõe o

exanie do lug r da história e de seu praticante abrange tanto

36

a história liberal como a marxista, em vez de se dirigir a uma,

em nome da outra. Que isso significa senão que as visões comque se separa o mundo contemporâneo deixaram de estar radi

calmente isoladas e, ao invés, se mostram carentes de um mes-

mo exame? Se ass im se explica o interesse que concedemos

a esse aspecto, deve-se agorá acrescentar que L Ecriture de

l hístoire ainda contém outras faces indispensáveis. Considere

mos o seguinte: se afastamos da história o que não lhe é per

tinente, o campo das leis, automaticamente declaramos que

seu objeto é o particular. Mas ainda é pouco dizê-lo

Se é verdade que o particular especifica, ao mesmo tempo, a atenção

e a pesquisa históricas, não é tanto enquanto ele é um objeto pensado, é sim porque ele é, ao contrário, o limite do pensável. Só o

pensado é universal (ib., 99)

Identificar-se o pensado ao universal e o limite do pen

sável ao particular, tarefa do historiador, significa afirmar que

ao historiador cabe não a aplicação retrospectiva de algum mé-

todo ou meio de ampliar o conhecimento do passado mas, aoinvés, cogitar dos próprios limites em que esta aplicação é

adequada. Daí, por sua vez, se define a posição da históriaquanto à narrativa. Por efeito de seu lugar, tal como acimadescrito, a história trabalha com uma semantização advinda

de sua interlocução com a sociedade e o poder. Semantizaçãono caso significa temas e linhas de interesse, que demarcam,

de um lado, o passível de indagação, de outro, o interdito ousequer cogitável (não porque proibido senão porque historicamente ignorado) .Esta semantização, ademais, é, em um extre

mo marcada por uma impossibilidade - a de o historiador

contribuir para o conhecimento de leis a que a sociedade humana estaria submetida - de outro, por uma porosidade -

a do saber de se não desliga a goma ideológica. Postoentre essas fronteiras, o discurso do historiador se dispõe entrea pura narrativa e o puro discurso lógico. 1. e. , ele não se orien

ta nem pela seleção efetuada na ordem da sucessão, nem tam

pouco pela cadeia formada pela 'verdade' das proposições. Odiscurso da história é um discurso impuro, que se constitui

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pela passagem constante da narrativização para o exame lógi-

co de seus dados e vice-versa.

Até aqui nos permitimos não seguir a terminologia estrita

do autor. Agora em troca é preciso a máxima fidelidade

( ) Estes procedimentos geradores do texto não poderiam escondero deslizamento metafórico que, segundo a definição aristotélica,

opera a passagem de um gênero para o outro . índice deste misto,a metáfora e ~ t á em toda a parte presente. El a afeta a explicação

histórica de um caráter entimêmico (ib., 111)

A passagem tem dois termos básicos: metáfora e caráter

entimêmico. Ambos nos levarão a repensar Aristóteles. Dei

xando para o cap. o exame aqui anunciado, ·avancemos

umas poucas palavras sobre o entimema.

Na Retórica, Aristóteles considerava o entimema uma es

pécie de silogismo, próprio a três gêneros de discurso, o judi

cial, o deliberativo e o demonstrativo, caracterizados por se

fundarem apenas no verossímil. Estabelecido pois o afastamento da história do espaço da ciência, do campo dos silogis

mos lógicos, era previsível que, mais cedo ou mais tarde, seestabelecesse seu vínculo com as práticas entimêmicas. Seria

também p r e v i ~ í v e l a resistência qu.e se desenvolveria diantedessa passagem, pois os silogismos apenas verossímeis sãotomados como cognoscitivamente inferiores. Tudo isso faz

parte do previsível corriqueiro. Mas já não o é a necessidade

que assim instiga o pesquisador a repensar uma questão tãoantiga e aparentemente encerrada como a do lugar do enti

mema. Deste modo, a tese narrativista em história passa aapresentar outro ângulo: já não ó o de estabelecer-se melhor

o que se entende por narrativa, como o. de vir-se à própria

discussão sobre a hierarquia dos saberes, daquele qtie produz

leis que comandam a natureza frente àqueles que só fornecemo verossímil.

Se a inferência estiver correta, a tese narrativista não

apenas se encerra na crise de um paradigma senão que nosobriga a tomar consciência de suas dimensões; por ela, não

apenas a . história repensa o direito de sua inserção entre as

38

ciências, senão que indiretamente · se indaga sobre os privi

légios que o pensamento moderno reservara à ciência.

A questão da narrativa apresenta outros pressupostos e outro

alcance na frente anglo-saxônica6• Mesmo por respeitarmos

seu desenvolvimento autônomo, seremos levados a repetir argumentos já oferecidos no item anterior.) Outros pressupostos:

ao passo que a reflexão dos Annales criticava o conjunto for

mado pelo ideal objetivista da história positiva com o privi

légio do fato ·e a forma do relato cronológico, e tudo em nome

de uma história em moldes científicos, a indagação anglo-saxô

nica virá à tese narrativista pelo exame de um modelo expli

citamente científico da história. Noutras palavras: a história

positivista possibilitava aos annalistes propor uma mudança

significativa de produção historiográfica sem comprometer a

pretensão de cientificidade da disciplina (cf. 5-10), ao passo

que a discussão em língua inglesa enfrentava diretamente o

e ~ t t u t o da história como ciência. O modelo gerador des ta dis-cussão fora formulado em 1942, pelo .alemão emigrado C. G.

Hempel, no artigo The Function of general Iaws in history .

Objeto de atenuações progressivas, a tese de Hempel veio aser 'melhor conhecida sob o nome de modelo das covering

laws (leis abrangentes). Baste-nos seu exame superficial.

Por lei gáal, e n t e n d e r ~ m o s aqui uma afirmação de forma condicional

e universal capaz de ser confirmada ou infirmada por descobertasempíricas adequadas (Hempel, e. G : 1942, 35)

6 Não nos referimos à reflexão alemã porque a discussão sobre as relações entre história e narrativa aí tem tido um impacto bem menor. Detoda maneira há colaborações fecundas no que foi o V simpósio dogrupo Poetik u. Hermeneutik Koselleck, R. e Stempel, W.-D.: 1973 , no

livro organizado por K. Ehlich sobre a narrativa no cotidiano (cf. Ehlich,K.: 1980) e, mais especificamente, para o organizado por R Koselleck,

H. Lutz e J. Rüsen (1982).

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Assim entendidas, as leis gerais têm, na história e nas

ciências naturais, funções perfeitamente análogas (idem, ibi

dem). Se a história tem alguma peculiaridade, esta não se

daria senão· por falta: as análises explicativas de eventos his

tóricos não passam, na maioria dos casos, de um esboço

de explicação (idem, 42). Se tal característica daria à escrita

da história uma cientificidade menor, esta contudo não deve

ria deixar de ser reconhecida, porquanto, de qualquer modo,

os esboços de explicação não ser iam confundíveis co m as

pseudo-explicações (idem, ibidem).

Propondo um modelo unitário de ciência e tendo por ini

migo a concepção empática tida por um Dilthey como própria

das ciências humanas, o ensaio de Hempel encontrou seus

interlocutores ideais nos representantes da filosofia analítica.

Dizemos ideais porque, como· o Círculo de Viena, também a

filosofia analítica inglesa propunha um modelo unitário de

ciência. Como, contudo, conciliá-lo com a prática e os resul

tados da escrita da história? Para sentirmos melhor a dife

rença da ambiência anglo-saxônica frente à que correspondiao caso dos annalistes7 convém que acompanhemos o artigo com

que o renomado Isaiah Berlin abria sintomaticamente o pri

meiro número da revista History and theory.

Por que, pergunta-se inicialmente o autor., tem havido o

desejo insistente de encarar-se a história como ciência? A pró

pria · pergunta .equivale a repor o programa do Iluminismo e

a acompanhá-lo entre pensadores do século XIX, a exemplo

de Comte, Buckle, Spencer, Taine e entre behavioristas e posi

tivistas de hoje. Esta continuidade programática porém não

7 A diferença entre as duas reflexões teria tido condições de ser menor

se L'lntroduction à l philosophie de l'histoire houvesse sido conhecidapor seus colegas de língua inglesa. Contudo, como veremos ao discutirDanto, que não o cita mesmo quando reflete sobre ponto de que Aroná tratara (como sucede com sua discussão sobre a peculiaridade da

causa em história), este desconhecimento parecia continuar em data tãoavançada quanto a década dos 60.

4

significa que vigorasse o mesmo padrão ideal. Na verdade,

ainda no século XVIII o padrão matemático dos mecanicistas,

tipo d'Holbach, fora substituído, graças à influência de Buffon,

pelo biológico, a ser expandido pelos evolucioniStas. Por que,

pergunta-se então Berlin, a permanência da aspiração, senão

mesmo a mudança de ciência-modelo não teria precipitado o

desideratum que tanto se buscava? Porque, responde, a his

tória não realizou nem o ideal de uma ciência dedutiva, a

exemplo da matemática, nem o de uma ciência indutiva, como

a biologia. Esse fracasso entretanto não se fez escutar pela

opinião comum, que continua a julgar a história como ciência.

Isso se mostra pelos clichês com que se costuma jus tificar a

antinomia entre políticas racionais e utópicas; clichês que,

do tipo 'o fluxo do tempo', 'as forças da história', a impossi

bilidade de 'fazer o relógio voltar atrás', bem dizem da teimo

sa expectativa de científicidade. Glosando Lévi-Strauss, pode

ríamos mesmo afirmar que o juízo comum contemporâneo se

afana em conciliar dois de seus mais caros mitos: o mito da

ciência, encarado como garantia de progresso, e o mito da his

tória, como constitutiva do sentido da trajetória individual.

Essa expectativa de uma história afinal científica ainda se

atualiza, continua Berlin, por outra manifestação do juízo co

mum: aquela que envolve a prenoção de causas e efeitos, que

explicariam o caráter e a especificidade das épocas. Assim

sucede quando se explica por que certo personagem não agiu

como certo outro, doutra época. Como em um jogo de enca i

xes, tal prenoção é indispensável para a entrada em cena dou

tra: Tudo que é inalterável o é porque obedece a leis e tudo

que obedece a leis sempre pode ser sistematizado em uma

ciência (Berlin, I.: 1960, 6). Assim a força do senso comun:i.

malgrado o fracasso da proposta iluminista, se manifestaria

na presunção dos historiadores de, trabalharem em (ou por)uma ciência. Mas, afinal, por que tal sonho continua a se reve

lar uma ilusão? A formulação mais eficiente de Berlin con

siste em atentar para a seguinte diferença: ao passo que a

eficácia das ciências naturais depende ·de as suas leis se fun

darem em uma margem estreita. de constantes, as quais não

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comprometem a textura geral do objeto a que se referem, ohistoriador lida com um objeto dotado de tantas variáveis, que

o destaque de qualquer constância· compromete a inteligênciado próprio objeto. Deste modo a diferença na textura dos

objetos das ciências naturais e da história impossibilitaria o

ideal oitocentista de uniformidade científica. Daí resulta o

papel apenas auxiliar que as técnicas científicas teriam na es-

crita da história, bem como a justificativa de sua antiga apro

ximação com a arte: Em larga medida, a explicação histó

rica é a organização (arrangement) dos fatos descobertos em

padrões que nos satisfazem porque concordam com a vida

como a conhecemos e imaginamos (Berlin, I.: 1960, 24).

Sintomático pelo ·lugar onde era publicado e pel a p o s i ~ção que o autor aí ocupava, não se pode entretànto dizer queo ensaio de Berlin contivesse argumentação inédita, De fato,

ele nos interessou apenas para mostrarmos a diferença das

preocupações que o ·orientavam frente aos similares assinadospor membros da Ecole dés annales. Essa diferença é a clara

resultante da diversidade dos dois meios historiográficos. Para

sermos mais precisos, do. fato de que, no meio anglo-saxônico,a formulação do padrão de científicidade para a história hçu

vesse se tornado bástante explícita. O enunciado proveniente

de uma figura do prestígio acadêmico de um Hempel, aliadoà influência neopositivista que então abarl:ava as ciências

ciais na universidade norte-.americana, impunha aos interessa

dos no estatuto da história respostas bem mais diretas do queaos annalistes. Se, para estes, o avanço da reflexão e das téc

nicas operacionais da e s r i t ~ da história ainda se podia cumprir pela oposição a .um positivismo já genericamente desacre

ditado, no caso inglês e norte-americano era o próprio postulado da científicidade que · precisava ser enfrentado. Da{ a

oportunidade do texto de Berlin: a história não é uma ciênciaporque o modelo vigente de ciência lhe é inadequado. E nestecontexto, e não em qualquer outro mais, . que as teses narrati

vistas irão prosperar.

Já na· década dos 50, William H. Dray, com o seu Lawsand explanation in history (1957), empreende uma primeira

42

discussão, na verdade moderada, da tese de Hempel8• Mas será

na década seguinte . que o debate entrará em ebulição. Sãoentão publicados pelo menos três livros salientes: Philosophyand historical understanding (1964), de W. D. Gallie, Foun-dations o historical knowledge (1965), de M. White e Ana-lytical philosophy oj history (1965), de A. C. Danto.

Mesmo antes portanto de entrarmos no exame das teses

narrativistas, já temos condições de responder nossa perguntainicial: .em sua ambiência original as teses narrativistas niioeram guiadas pelo propósito de recuperar uma prática anteriorde escrita da história. E isso.porque seu confronto se dava não

com a diversidade de propostas h i s t o r i o g r á f i ~ s senão que com

o próprio padrão comum a essas distintas propostas. Noutras

palavras, em um ambiente acadêmico saturado de modelos decientificidade, como era o dos departamentos norte-americanos

de ciências sociais, nas décadas de 60 e 70, o desafio lançado

aos pensadores da história era o da adequação de sua disciplina à exigência científica. Como veremos melhor a seguir,pela análise do livro de Danto, sua tese narrativista, apesar

de certa respeitosa ambigüidade, negava validez à tese hem

peliana. Daí podemos completar nossa resposta: a tematizaçãocontemporânea da narratividade, em vez de repre:sentar um

reviva , é uma resposta negativa, muitas vezes embaraçada,

à demanda de uma história de fato científica. Ou, para for

mulá-lo de modo afirmativo: ( O movimento para a nar

rativa pelos 'novos historiadores' marca o fim de uma era:

o fim da tentativa de produzir uma explicação científica coe

rente da mudança no passado (Stone, L.: 1979, 19).

Resolvida esta primeira dificuldade, torna-se possível retomar a reflexão com que havíamos aberto este texto; maisdo que isso, de reformulá-la de modo mais direto. Se então

dizíamos que a crise contemporâneâ do paradigma que tem

s O debate entre as duas posições permaneceria vivo nos anos próximosseguintes. Cf. a respeito as comunicações de Hempel ( Reasons andcoveríng laws in historical explanation ) e de Dray ( The Historicalexplanation of actions reconsidered ), in Hook, S. (1963).

4

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guiado a produção intelectual do O'cidente desde fins do século

XVII se desdobra e se atualiza no debate sobre o estatuto dahist6ria, podemos agora acrescentar que este desdobramento seconcretiza na reabilitação da idéia de história como narrati

va9. Assim caracterizada, a questão ganha a vantagem da ela·

reza: discutir o estatuto narrativo da história implica f s t á ~ ldo sonho iluminista de uma cientificização cada vez mais

abrangente. Esta abrangência era o corolário necessário dopostulado implícito de que a ciência era o único discurso efe

tivamente sério, porque antidogmático, antimítico e propulsio

nador do progresso. Assim a crise de nosso paradigma implica

a necessidade de discutir-se a justificação da hegemonia que

o discurso científico continua a desempenhar. Explicitamente,

tal será o prisma que estará ·guiando a nossa argumentação.

Sendo desnecessário discutirmos as teses narrativistas em blo

co, prender-nos-emos à mais saliente. A partir de sua exposi

ção, viremos à discussão das objeções mais importantes que

se têm apresentado.Do Analytical philosophy o history, vamos destacar o

capítulo q u ~ nos .Parece decisivo, o intitulado Historical ex

planation: the role of narratives .

Comecemos, bem ao estilo da filosofia analítica, por umapergunta tão simples quanto embaraçosa: que entende o autor

por narrativa? Sua resposta é precisa

( Qúalquer narrativa é uma estrutura imposta sobre· eventos,agrupando alguns deles com outros e descartando alguns mais comocarentes de relevância. Assim não seria uma marca ·distintiva dequalquer espécie de narrativa que faça isso (Danto, A. C.: 1965132) . •

9 Esta reabilitação já permite mesmo a releitura da historiografia quese p r o p u ~ h em finais do século XVIII, por parte de um A. Ferguson,na Escócm, de Schlõzer e Gatterer, na Alemanha, mostrando-se não s6 aimportância que a narrativa aí assumia, quanto sua desidentificação com ·o mero arranjo cronológico (cf. Reill, P. H.: 1986, 286-298).

44

Para que melhor notemos seu contraste com a caracterização usual, lembremo-nos da que, no campo da literatura, apa

rece em uma muito citada obra contemporânea

Por narrativa entendemos todas aquelas obras literárias que se dis·tinguem por duas características: a presença de uma estória story)

e de um narrador (Scholes, R. e Kellogg, R.: 1966, 6

Segundo esta descrição, não haveria problema algum coma narrativa: ela seria exclusiva das obras literárias e teria por

variáveis constitutivas, a estória e o narrador, termos tão ele

mentares e irredutíveis que seria ociosa uma indagação mais

apurada. Em contraparte, a caracterização de Danto envolve

variáveis bem distintas: estrutura, agrupamento e seleção, que,

combinadas, não distinguem uma modalidade de narrativa, por·

que definem o próprio gênero. Em vez de esmiuçarmos o sen·

tido de cada variável, é preferível termos em conta aproxima

ções complementares. A primeira concerne à presença do ele

mento 'causa' na constituição da story. Considere-se E-1 um

evento sucedido em um ·tempo x, anterior a um momento y .

e E-2, um evento sucedido em y. Se tomarmos E-1 como oelemento causador de E·2, estaremos considerando E-2 como

a condição necessária de E-1. Se, ao invés, E-2 não advém,

isso não será .motivo bastante para tomar-se E-1 como condi

ção suficiente para E-2 , pois presumivelmente, não gostaría

mos de dizer, em geral, que cada causa de um evento 'é uma

condição suficiente para aquele evento (Danto, A. C.: op.cit., 157). Contudo a descrição da primeira possibilidade, i.e.,

aquela em que E-2 efetivamente ocorre, sendo tomado como

condição necessária do evento anterior, E-1, não seria menos

logicamente chocante. Daí o autor acrescentar: O que seria

próprio dizer é que a ocorrência de E 2 é uma condição n ~ ·cessária para que E 1 seia uma causa ou, mais precisamente,

uma causa de E-2 (idem, 157, grifo nosso). Que problema

a passagem procura resolver senão o da partiCularidade que

a idéia de 'causa' tem, na narrativa? Daí a própr ia solução

verbal que Danto dá à frase que traduzíamos: What it would. be proper to say is that the occurrence of E-2 is a necessary

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condition for E-1 being a cause ( . Assim ocorre porque,

na narrativa, a admissão de ·um termo (no caso, E-1) em fun

ção causal não sucede senão depois do advento do efeito (no

caso, E-2 . O que vale dizer, onde impere a estrutura da nar

rativa .não opera a possibilidade de previsão própria à inci

dência de uma (possível ou estabelecida) lei científica. Assim

a possibilidade de previsibilidade na história não seria pre

judicada pelo fato de que, normalmente, os historiadores. nãoapresentem mais do que esboços de explicação, conforme' se

Inferia do ensaio de Hempel, senão de que, conformando-se a

escrita da história à estrutura da narrativa, nela a idéia de

causa implica um contexto discursivo diverso do contexto es

tritamente científico.

Muito embora a pequena passagem comentada longe es

teja de acalmar o debate sobre o papel de causas e leis no re

lato histórico (cf. adiante as observações de von Wright e

Mink), por orà ela é ba.stante para fundamentar a afirmação

da relação sinuosa da reflexão de Dante com a de Hempel.

Dizemo-la sinuosa porque, se já é evidente · que a categoria

'estrutura narrativa' impede que se fale na extensão até à his

tória das leis abrangentes covering laws), por outro lado Dantonão se recusa à tcmtativa de manter, mesmo à distância, certo

elo com a reflexão de Hempel.

A segunda observação complementar llareceria menos pro

blemática. Se a narrativa é uma estrutura seletiva de fatos, de

sua seletividade mesma resulta o aráter de agrupamento que

concederá aos eventos organizados. Os eventos descontínuos

assim reunidos têm, mesmo por serem descontínuos, um cará·

ter temporal, e a estrutura que os abrange se investe de idên·

tica temporalidade .(cf. Danto, A. C.: 1'965 , 166). Mas tam

bém veremos que, .embora a réplica não seja consistente, essa

temporalidade não é inequívoca.

· Os comentários preliminares anteriores nos permitem me

lhor acesso ao aspecto decisivo. Trata-se aí de indagar se a

narrativa constitui, por si mesma, uma forma de explicação.

A posição do autor pode ser assim resumida: a narrativa é

um procedimento expressivo que visa a explicar uma mudança

sucedida entre dois pontos terminais. A explicação que ela

6 ·

busca ensejar se localiza no meio dos referidos pontos termi

nais. Das estórias, exigimos que tenham um começo, um

meio e um fim. A explicação então consiste no preenchimento

do meio entre os pontos finais e temporais de uma m u d a n ç ~(idem, 233). Esta explicação portanto oferece uma c o n e ~ a ocom 0 caráter que o princípio de causa assume na narrativa,

que não pode ser confundida com a idéia usual de ~ a u s a -

nas narrativas a 'causa' é sempre localizada a posteriori; temela pois uma função antes e x p l i c t i ~ que . orça ? r e v i s o ~ aMelhor dito, a explicação aí produzida e de tipo sui. g e n ~ r i s ,não significando nada de relevante de um ponto vista c ~ e n -tífico. Essa distinção é reforçada por observaçao posterior:

( ) Parece-me que podemos começar a especificar u 11 cri

tério de unidade narrativa ao levar a sério a sugestao de

que uma narrativa e um argumento dedutivo poderiam cons

tituir formas alternativas de explicação (ibidem, 248). Em

bora se pudesse replicar que a ciência não opera apenas com

cadeias dedutivas e embora o próprio Danto não desenvolva

sua argumentação neste sentido, na discussão conseqüente n:ios

traremos como estas formas alternativas de fato ' afastam a ciên

cia da escrita da história. Mas este, insistamos, não é um enun

êiado que encontremos explicitamente formulado no autor.

o seu modo preferido antes será a s i n u o s i d a ~ e á referida,

adequada ao que se poderia chamar um hempeltamsmo mode·

rado. O trecho decisivo é o seguinte

( . . ) O único ponto que procuro estabelecer é o de. qu: a construção de uma narrativa requer, como requer a ace1taçao de. umanarrativa como explicativa o uso de leis gerais. Mas, como vimos,estas devem ser suplementadas por regras que nos concedam iden·tificar as coisas que acontecem como exemplos da descrição geralque é tudo o que a lei geral n_s permite dar (Danto, A. C.: 1965,

239)

Para melhor entendimento, retomemos o exemplo em que

se baseara: um carro, em um momento x, está em perfeita or

dem· já em um momento y apresenta uma batida. A lei geral

se llmitaria a afirmar que, em um momento intermédio entre

x e y, algo contra ele se chocara e causara o dano em sua

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carroceria. . . Obviamente, essa lei geral não satisfará nem ao

proprietário, nem aos encarregados da reconstituição do aci

dente. A lei é tão genérica e redundante que· é. ociosa para

a explicação do caso particular. Daí a necessidade de ser ela

suplementada por regras subordinadas à lei geral - do tipo

às tantas horas soltavam-se foguetes na . rua e alguns deles

tomaram a direção errada, estourando contra os carros esta•

cionados. Neste suplemento, está a tentativa de Dail.to demanter um elo com a proposta de Hempel. Ainda que um apa

rato lógico muito simplista assjm o admita, na verdade a co-

nexão entre a explicação oferecida para o caso concreto e a

incidência de lei(s) geral(is) é de tal ordem que: (a) a nomea

ção da lei geral é absolutamente ociosa; (b) em troca, a ex

plicação suplementar nada acrescentará ao conhecimento da

lei geral em pauta. Assim a concordfincia do autor com Hem

pel não· passa de um gentleman s agreement - nada acres

centa aos argumentos de um·ou de ·outro. Além do mais, como

Danto aponta a seguir, o caso da história é bem mais compli

cado do que indiea o exemplo banal q u ~ reproduzimos: Não

se sabendo que lei está implicada, a indagação histórica é, nesta

medida, desgovernada. Uma vez, contudo, que temos a explicação, não é .difícil encontrar a descrição geral requerida e a

lei (ibidem, 240). Isso equivale a dizer que a indagação en-.

gendra uma forma de explicação, cuja peculiaridade deriva

de sua anterioridade lógica à determinação da lei. I.e., que

investe o objeto analisado de . uma racionalidade independente

da verdade da lei. Não é a . ei geral que exige a .explicação

adequada, mas todo o c o n t ~ á r i o E o que a enunciação da lei

acrescenta à explicação senão um adendo redundante e ocioso?

Na argumentação de Danto, Hempel se mantém de modo para

sitário. O que em Danto é original é a mostra de que a expli

·caçãó engendrada pela narrativa histórica nem ajuda o me-

lhor ·conhecimento das leis, nem tem por condição necessáriaa articulação de leis previamente conhecidas. E assim sucede

porque, em seu cóntex:tó es,Pecífico, a ' causa' tem uma a n a ~tomia peculiar - por enquanto, nos baste .seu traçado regres

sivo, i.e., seu caráter de descoberta posteriori. Mas o autor,

qualquer que tenha sido seu motivo, prefere uma formulação

4 8

menos inclSlva. Talvez mesmo por isso os pontos capitais de ·

sua argumentação serão mais sujeitos a dúvidas e críticas.

Dir-se-á, p. ex., que não demonstra que a narrativa contenha

m;na forma sui generis de explicação W. H. Dray). Ora, à me

dida que o relato histórico tem de explicar seu objeto, negar.

aquela propriedade da narrativa implicará negar que a história

seja narrativa. Assim, para sua argumentação, teria sidó pre

ferível insistir na conexão peculiar entre a modalidade de causae ,a posição específica· ocupada pela explicação na narrativa

do que a tentativa de mostrá-la obediente a leis. Deste modo

um enunciado simples como . . ) Falar de uma mudança éimplicitamente supor alguma identidade contínua no sujeito da

m u d n ç ~ (Danto, A C.: op. cit., 235); ao se conjugar aos ar

gumentos anteriores, indica que o sujeito da narrativa (histó

rica) não é uma substância, algo sempre constante a si mesmo,

mas que sua identidade é verdadeira apenas naquele contexto,

i.e., correta apenas dentro do lapso coberto pela narrativa ou

ainda pelo lapso temporal a que seria apropriado estender a

explicação narrativa. Assim se evitaria a tentação de estender

para qualquer período da história os instrumentos ou catego

rias com que outra época foi explicada. Não é .•que o uso dascategorias gerais .na escrita da história se tornem por si con

denadas. Como elas não se podem atualizar senão por uma

narrativa, que necessariamente visa ao pàrticular, a cada exame

as categorias gerais têm de ser repensadas e não só aplicadas.

Seja como for, o esforço de determinar-se a peculiaridade

da explicação presente na narrativà face à. questão da inci-

. dência das leis gerais ainda não é bastante porque se limita

a caracterizá-la pela negação do que não é (não uma expli·

cação geral que valesse pára todos os casos 'semelhantes').

A ênfase nesta caracterização negativa ·resulta de que, impli

citamente, estamos governados pela hierarquia entre 'geral'

(universal) e 'particular', em que o segundo termo é considerado cognoscitivamente inferior. A tal ponto. a lei , encar .

nação do geral, é tomada por superior à explicação particula

rizada que, para o resgate da especificidade .desta, nos esfor

çamos em mostrar sua resistência à lei; isso se não, a exemplo

de Danto • procuramos conciliá-la com a incidência de leis. Se,

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contudo, negamos a fecundidade dessa conciliação, teremos

de enfrentar a própria raiz em que se sustenta, no paradigma

moderno, a superioridade da explicação científica. l o que

faremos a seguir. Antes porém de tentá-lo, venhamos às obje

ções ao modelo proposto.

Focalizando a discussão empreendida por W. H. Dray,

destacaremos três objeções principais: (a) será a narrativa um

traço universal da escrita da história?; (b) adquire a históriaforça explicativa por efeito da presença da narração que a

caracterizaria?; (c) a escrita da história se restringe a explicar

mudanças?

Conquanto Dray aceite que a .construção da narrativa seja

um aspecto admissível e proeminente da história , nega-lhe

contudo um caráter universal. Assim a necessidade de prefa

ciar uma narrativa histórica por um esboço do contexto em

que a ação se desenrola é geralmente reconhecida, sem que

ele próprio seja uma narrativa (Dray, W. H.: 1971, 155).

Mas, perguntemo-nos, que é um prefácio sem o que prefacia?

Que é ele senão uma forma de explicação do que se segue?

Daí entretanto não se infere que o prefácio tenha forçosamente

o mesmo estatuto discursivo: os diversos prefácios que HenryJames escreveu para seus romances foram reunidos em publi

cação autônoma e têm um renome próprio; o que supõe que

tenham um rendimento expressivo independente das peças que

introduziam A passagem para o caso de um prefácio a um

livro de história pareceria dar razão ao objetor. Pois, se é ver

dade que o prefácio a um romance ainda não é o romance,

que seria o prefácio a uma obra de história senão já história,

sem que, entretanto, fosse uma narrativa? Na verdade, a obje

ção de Dray nos encaminha para o esboço de um ponto que

esteve pouco presente na consideração de Danto: as diferenças

entre as narrativas histórica e ficcional. A diferença desta, a

narrativa histórica necessita centralmente de um aparato do

cumental (cf. conclusão 2) . o prefácio, fora os casos em que

trata das motivações ou condições sob as quais foi escrito o

que vem a seguir, caso em que seu caráter narrativo é indiscutí

vel, faz parte desse aparato. Ou seja, o prefácio em uma obra

de história não tem possibilidade de destaque porque é uma

50

peça integrada ao aparato exigido pela modalidade de narra-

tiva qu é a escrita d história. Em si, o prefácio, em uma obra

de história, tem o mesmo estatuto que as notas bibliográficas.

Assim como estas, o prefácio aí só tem sentido enquanto su-

bordinado à narrativa explícita a que se pre.{lde. Não sendo

em si integradas à narrativa, as peças indispensáveis ao apa

rato da escrita da his tória fazem parte pois da diferença espe

cífica da narrativa histórica. Não estão senão em sua ambiência.

Pode-se entretanto argumentar que a objeção de Dray é

prejudicada por seu exemplo, pois que haveria outros melho

res. Na verdade, um bem mais agudo é apresentado por H.

White. Previamente à passagem que destacaremos, a partir

de trecho das Conferências sobre a filosofia da história de

Hegel, H. White formulara a hipótese de que toda a narrativa,

desde o conto folclórico até o romance, supõe uma busca de

ordenação, a partir de uma norma socialmente configurada.

Tomando então como exemplo a forma dos anais, tão freqüente

na Idade Média, escreve

O que falta na lista de eventos para lhe dar uma regularidade e

plenitude semelhantes é a noção de um centro social pelo qual tantofossem eles localizados uns quanto aos outros e pelo qual fossemeles carregados de significação ética ou moral. E a ausência dequalquer consciência de um centro social que proíbe o analista deenfileirar os elementos de que trata como elementos de um campohistórico de ocorrência (White, H.: 1980, 15

Pela própria citação, fica claro que o autor não apresenta

o caso dos anais como objeção à tese. n a r r ~ t i v i s t a somos nós

que para aí o deslocamos.

Duas soluções parecem viáveis: (a) considerando que a

tese narrativista não encontra obstáculo imediato nas obras da

historiografia antiga; de um Xenofonte, de um Tucídides ou

de um Tácito, senão que nas crônicas e anais medievais, de

veríamos dizer que a tese não tem alcance universal porque

a ordenação de princípio-meio-fim não se aplica aos exem

plos medievais; (b) o caminho oposto consistiria em con

trapor a idéia de norma social como elemento indispensável

à ordenação narrativa à explicação pela qual White excluíra

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os anais do âmbito da narrativa histórica. Dir-se-á então: é

indiscutível que os anais não incorporam o traço mais visível

da explicação narrativa: aquele que se introduz pelo 'porquê'

ou conectivos semelhantes. Mas não o fazem por efeito da

concepção cosmo-teológica que os governa, i.e. , pela norma a

que seus autores obedecem. Tomemos o início do exemplo dos

Anais de Saint Gall

709 . Inverno duro. O duque Gottfried morreu.

710. Ano difícil e deficiente em colheitas.711.712 . Inundação em todas as partes (apud White, H.: 1980, 11

Se os anos assinalam pouéos eventos ou mesmo nenhum

é porque supõem um centro, a lei divina, que seria inescrutável

pela criatura humana ou que para ela ofereceriam razões sem

pre inadequadas. Portanto não é que aí irlexista uma estrutura

narrativa, senão que, dependente de uma lei inacessível pobre

razão humana, não se poderiam declinar as conexões certas

que lhe assegurariam o caráter visível de uma narrativa.

O mesmo raciocínio seria aplicável à típica crônica medieval, p. ex., à Crónica general de Espafía Se, portanto, con

cordamos com H. White quando, noutro artigo, declara que

foi o interesse em um modo especificamente político de comu

nidade humana que tomou possível um modo especificamente

histórico de indagação; e (que foi) a natureza política deste

modo de comunidade que necessitou um modo narrativo para

sua representação (White, H.: 1984, 5), objetamos porém

que a conclusão do autor parece prejudicada por não pensar

melhor sobre esse specifically political mode of human com-

munity. A ausência de Estado na Idade Média por certo não

implicava uma ausência de normas; a comunidade humana ali

se organizava em torno de uma lei que, inescrutável, impunha

a impossibilidade de conexões causais explicativas dos eventos

do mundo. Se, portanto, aceitamos com White que a narrativa

supõe a procura de um acordo com uma norma social, parece

inevitável que, afirmemos, contra White, que os anais e as

crônicas medievais típicas são . . . narrativas.

52

De qualquer maneira, se considerarmos o argumento cons

tituído em (b) como especioso ou sofístico, deveremos concluir

que os anais e as crônicas medievais demonstram a não uni

versalidade da narrativa histórica. Neste caso, o problema pas

saria para o medievalista: que significa dizer que, na época de

sua especialidade, a história perde a marca que tivera na An

tigüidade e recuperará, mesmo antes do Renascimento, com as

crônicas de Fernão Lopes? ·Passemos à segunda objeção Dray. A dificuldade é aí

mais séria. Em primeiro lugar, Dray nota que a explicação não

pode ser confundida com o ·ato narrativo po rque 1. os eventos

explicativos não necessitam estar na narrativa , 2. se uma

narrativa será mais inteligível ou significativa caso utilize re

cursos explicativos, nada impedirá que alguma narrativa os

renegue, possivelmente na tentativa de representar o passado

inteiramente do ponto de vista dos participantes (Dray, W. H.:

1971, 159). Quanto a 1.: que o autor entenderá por not to

be in the narrative ? Suponhamos que ele pense no próprio

ato material do historiador que, depois de estabelecer a cone

xão entre dois eventos temporalmente descontínuos, abra uma

nota ao pé de página , remetendo para outra passagem de algummodo enriquecedora da conexão que estabelecia. A nota estará_

fora da narrativa apenas do ponto de vista material e a objeção

soa inválida: o fora o é apenas quanto à linha narrativa, sem

que por isso extrapole o volume discursivo .

De todo modp não consideramos bastante o argumento já

exposto para combater essa objeção porque sabemos que a

idéia que até agora expusemos de narrativa não é suficiente.

Adiantando argumento a ser ainda formulado, acrescentemos

que a objeção de Dray supõe que a narrativa possui apenas

uma dimensão, a dimensão linear, quando, com efeito, toda

narrativa é invebtida de duas dimensões: a que representa a

diacronia, indicada p l ~ linha, e a que possibilita representar

a sincronia, papel normalmente desempenhado pelo volume ou

conexão vertical.A objeção 2 é menos facilmente descartável. Por certo,

é possível imaginar um discípulo de Collingwood que acre

ditasse seguir à risca a idéia de seu mestre - a escrita ·da

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história como reefetivação reenactement) do passado - me

diante a mera coleção das vozes testemunhadoras do que o

passado teria sido. Mas como seria esse ideal realizável pela

mera superposição. dos testemunhos, i.e., sem que estes se arti

cuiassem de modo a oferecer uma explicação do tempo ou fenô

meno histórico ·considerado? Parece pois relevante levantar a

suspeita de que as objeções do autor resultam de confundir

explicação com apresentação de causas; confusão indiretamenteestimulada pelo próprio Danto. Essa confusão transparece na

passagem: ( As conexões asseguradas pelas sentenças n r ~rativas, onde sejam empregadas, não necessitam ser explica

tivas; pelo menos, não necessitam ser explicativas no sentido

de mostrar por que o evento diretamente referido (i.e. antes)

sucedeu. A questão Úhe point) de uma sentença narrativa não

é mostrar por que algo aconteceu, mas mostrar qual era· sua

signüicação  (iderri, 159-60). O único defeito da afirmação

está em que pretende ter força de objeção. Essa só se cum

prirá se mantivermos, como de fato sucedia com Danto, o vín

culo entre a explicação pela narrativa e as leis abrangentes .

A significação buscada pelas conexões, na narrativa, com fre

qüência, assume a aparência ou até o caráter de causas. Mas

isso nem é obrigatório, nem .é decisivo: Ao invés o decisivo

é que a conexão tenha força ·explicativa própria, i.e., que seja

constitutiva e não frouxamente analógica.

Passemos à terceira objeção. Mesmo admitindo-se que as

histórias em geral tratam de explicar mudanças, algumas vezes

elas também se perguntam por que as coisas permaneceram

as mesmas (il;>idem, 164) . Por economia de espaço, reformu

lemos a questão para torná-la mais abrangente. A tarefa do

historiador o conduz a lidar com eventos e estruturas tempO

rais. Assim a mudança de eventos pode ser usada para mostrar

se que na estrutura nada mudou - os exemplos seriam ablirt·

dantes na história do Egito antigo ou na consideração de uma

l 1igue durée. Neste caso, a mudança dos eventos serviria então

de contraponto à permanência de hábitos, valores, instituições.

em suma de formas identificadoras de uma estrutura de lenta

54

e longa vida. Ora, à medida que não há escrita da história

com acesso direto às estrutúras, que então pusesse entre parên

teses todo e qualquer evento, · há de se concluir que não há

escrita da história que não abrigue mudanças, mesmo que

s c:ja no sentido superficial de event.os que não interferem em

estruturas enraizadas. Pode-se aindâ-• contestar doutra maneira:

sincronia e diacronia, em vez de direções mutuamente exclu

dentes, mutuamente se implicam. As mudanças podem estar

tanto em um eixo sincrônico, quanto, e mais freqüentemente,

em um eixo diacrônico. A · absoluta ausência de mudança nos

dois eixos talvez só seja possível na morte - e isso se, esque

cendo o Squelette laboureur de Baudelaire, excluirmos da

limpeza da história o trabalho dos vermes.

No item anterior, nosso principal cuidado consistiu em defen·

der o argumento central de Danto. 'Fizemo-lo apenas pelo mo

tivo estratégico de deixar o terreno limpo para a complexifi

cação de sua tese. Trata-se agora de tentar o aperfeiçoamentode pontos que, no autor inglês, permaneceram insuficientes.

O primeiro deles concerne à questão da causa. á notamos que

a discussão do papel da causa na explicação pela narrativa

· constituiu um dos pontos básicos das críticas à tese de Danto.

Notamos também que estas críticas derivavam (a} da ambi

güidade do autor face à argumentação de Hempel s6bre a cien

tíficidade em história; (b) da dificuldade em aceitar-se a idéia

de causa fora do contexto consagrado pelas ciências ·naturais.

Destacamos ainda como uma das contribuições fortes de Danto

a demonstração do caráter sui generis que a categoria 'causa'

assume na escrita da história. Como dirá Mink, há esperan·

ças, planos, batalhas e idéias mas só nas estórias stories) re- . ·

trospectivas há esperanças não realizadas, planos fracassados ,

batalhas decisivas e idéias seminais (Mink, L.: 1970, 123).

Pode-se replicar, como efetivamente já se fez, que a pró

pria ciência não desconhece a descoberta de causas por um

caminho retrospectivo. A objeção entretanto não leva em conta

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a diferença capital entre os dois contextos: no contexto cien

tífico, a descoberta a posteriori de uma causa é cientificamente

aceitável apenas se esta causa passa a funcionar como lei,

i.e., se de seu conhecimento resulta a previsão de seus efei

tos. Convertida em lei, a causa por assim dizer recupera seu

lugar 'normal' - ela é o que vem antes dos efeitos. No con

texto histórico, ao invés, isso não se verifica; em contradição

ao lugar que lhe oferece a boa lógica, ela insiste em só aparecer depois dos efeitos. Isso equivale a dizer que a história,

para ter seu estatuto definido, necessita doutros parâmetros

que os adequados à ciência, tal como classicamente concebida.

Mas que outros parâmetros serão estes? Dentro do paradigma

vigente, com seu privilégio da hard science, ademais concebida

em termos clássicos, a solução é difícil, se não impossível. O

caminho freqüente tem sido o de repetir-se que a história é

meio ciência e meio arte, antes se abafando que solucionando

o problema. Duas contribuições contudo nos permitem ir além

do impasse. Ambas nos fazem compreender melhor a atuaçãodas 'causas' na escrita da história. Quanto à primeira, da

autoria de G. H. von Wright, nos limitamos a uma apresentação sumária.

O autor de início observa que a explicação causal· pode

ser. duas espécies; ela se expliçita em termos de condições

s ~ f c e n t e s quando é passível de ser traduzida em pergunta do

tipo por que é necessário?' ou em termos de condições neces

sárias quando traduzível em pergunta do tipo como é possí

vel?' As explicações causais fundadas em condições suficien

tes não são diretamente relevantes para a pesquisa social e

historiográfica. Assim porém se tornam quando se trata de

ligar as causas não humianas de seu explanans (i.s., do ante-.

cedente causal) com os efeitos não humianos de seu expla-

nandum (i.e., cio resuitado da ação) (Wright, G. H. von: 1971,137}. (Uma relação causal se diz humiana quando causa e

efeito são logicamente independentes. Por exemplo, um ar

queólogo se impressiona com as imensas câmaras mortuárias

que eram as pirâmides e se indaga como sua construção foipossível, i.e., de que meios técnicos e de que domínio da

56

matemática dispunham os eg1pc1 s antigos. Temos no caso do

exemplo a combinação de uma explicação por condição neces

sária com uma causa humiana (o avanço técnico e o domínio

da matemática são logicamente independentes do explanandum,

a pirâmide). Ao invés, temos uma relação causal não humiana

quando os termos em pauta são vontade e comportamento hu

manos, pois aí inexiste í independência lógica entre causa e

efeito. (Assim sucede quando se explica a destruição de uma

cidade como efeito causado pela inveja ou pela vontade devingança de um povo vizinho.)

Afirmar que determinado .campo de conhecimento opera

com a explicação causal de. tipo suficiente significa que, nesse

campo, a predição é possível. Afirmar, ao contrário, que ou-

tro campo opera fundamentalmente com causas necessárias

significa que nele não é a predição que é possível, mas sim·

a retrodição. Como veremos pelo exemplo seguinte, essa carac

terização dará às ciências sociais e à historiografia um perfil

bem distinto do das ciências (impropriamente chamadas) exa

tas. Von Wright ilustra sua tese com o exame sumário do

assassinato do arquiduque austríaco, em julho de 1914, nacidade sérv ia de Sarajevo. Em que .sentido, pergunta-se, po

deria o acidente ser tomado como a causa da Primeira Grande

Guerra? De imediato, podemos notar que o episódio de Sara

jevo pode ser analisado em termos de causação necessária,

mas não suficiente. Seria absurdo que, ante a pergunta por que

começou a guerra de 1914, se respondesse porque um anar

quista matou o arquiduque austríaco. Em troca, seria correto

responder-se: o assassinato do arquiduque provocou o ultimato

austríaco, que provocou a mobilização do exército russo na

fronteira, que de sua parte alimentou o propósito de resis

tência dos sérvios, etc., etc. I.e., como condição necessária, a

morte do arquiduque motivou uma série de atos independen

tes, não forço:samente atualizáveis, série que se articulará enquanto cadeia explicativa de certo desfecho. Traduzindo o

exemplo em termos gerais: Se os antecedentes são chamadosexplanantia, então explananda e explanantia em tais explica

ções históricas são com efeito logicamente independentes. O

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que contudo as conecta não é um conjunto de leis gerais mas

um conjunto de enunciados singulares, que constituem as pre

missas de inferências práticas (Wright, G. H. von: 1971, 142).

Considerando então que a validade da explicação não resulta

da incidência de leis gerais senão qúe da conjunção de causas

entre si independentes, o autor se legitima a reservar o nome

de explicação quase-causal àquela assim processada. Em suma,

a explicação histórica se .distingue da operante nas ciências

exatas por (a) não permitir a predição, (b) fundar-se na retro

dição, (c) ser de tipo quase-causal1°.

Um outro passo, no mesmo sentido, já fora dado no co

meço do século por M. Weber. Em contribuição, pouco di

fundida, à teoria do conhecimento histórico, Weber notava que

aí há também fatos que não são eles mesmos partes das· s é ~ries causais históricas senão que servem para revelar fatos a

serem integrados nestas séries causais" (Weber, M.: 1906,

244). Em virtude de que assim sucederia senão porque a his

tória é rebelde à pura determinação causal? Por que esta: não

exaure a descrição necessária? Na verdade, mais do que to

mar a escrita da história como condicionada pela busca de

causas e/ ou algo mais, Weber a considera uma disciplina em

que a determinação causal é subordinada a um interesse axio

lógico, de que o historiador é o portador (cf. op. cit., 251).

Daí, insurgindo-se contra o juízo comum de que o passado só

importa quando seus efeitos ainda se fazem sentir no presente,

escreve: Uma história da Antigüidade que só desejasse co

nhecer ,o·,que tivesse efeitos causais sobre alguma época pos·

terfor ;: . . ) apareceria como tão vazia quanto uma 'história

de Goethe' que, conforme a expressão de Ranke, o 'mediati

zasse' em favor de seus epígonos, i.e., que de sua originali·

dade e das manifestações de sua vidà· apenas constatasse as

partes que permaneceram 'eficazes' na literatura. ( l . o

nosso interesse orientado por 'valores' e não s6 a relação causal objetiva entre nossa civilização e a dos gregos que ®ter-

mina o âmbito dos valores culturais decisivos para uma histó-

10· Para uma exposição mais abrangente, cf. Ricoeur, P.: 1983 187-202.

58

ria da civilização grega" (Weber, M.: op. cit., 256-9). Uma

mente .treinada apenas nos parâmetros da ciência 'normal' logo

protestaria: os ditos valores deformam a objetividade que a

ciência procura. Mesmo qu e, para efeito de raciocínio, aceite·

mos que a ciência pura põe entre parênteses a subjetividade

do pesquisador, e, portanto, seus valores, esta convivência do

fazer intelectual com os valo,res não significa que a produção

resultante seja um epifenômeno da subjetividade cf. aindaconclusão 2, a propósito de comentário de Faye). Dizê.to não

passaria de uma caricatura feita em nonie do modelo da ciên·

eia. No ~ s o de Weber, ensaiei recente de F. Jameson serviria

de amostra do trânsito entre valores, até mesmo inconscientes,

de seu autor e o desenho que sua obra constituirá (cf. Jame

son, F.: 1974, 52-89).

As contribuições que recorda.mos permanecerão contudo

prejudicadas se continuarmos a encará-las por um prisma que

se ajuste apenas à produção inequivocamente científica. Ora,

se considerarmos que as teses narrativistas fecundam em um

momento em que a crise do paradigma vigente alcança o ideal

da história científica, ·necessitamos estabelecer outros prismas

avaliativos. Esbocemo-ló chamando a atenção para a reflexão

empreendida por L. Min t.

Em ensaio de 1970, o fil ósofo norte-americano, opondo-se

a identificar os discursos ",sérios" com o filosófico e o cientí

fico, mostrava que a compreensão humana, não entendida como

sinônimo de conhecimento, abarca três modalidades: a teó

rica - definida pela sujeição dos casos particulares a uma

lei . ...- a categorial - determinada pelas categorias com as

quais um objeto é compreendido - e a configuracional -

determinadora do "complexo singular e concreto de relações"

que especifica certo objeto. Ao passo que a compreensão teó

rica é própria à ciência, enquanto a categorial constitui a meta

ideal dos filósofos sistemáticos

11

, a configuracional abrange

11 Como não vamos trabalhar senão com seu terceiro termo, baste-nosobservar que sua caracterização do teórico é ainda depep.dente da identiíicação da ciência com a formulação de leis e que sua caracterizaçãodo categorial exclui da filosofia seu caráter problematizador.

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objetos ou ações formados por elementos à primeira vista hete

róclitos, cuja conjunção se trata de compreender em sua espe

cificidade, sem os separar em constantes que seriam os su

portes dos dois primeiros tipos de compreensão - e aci-

dentes. É neste modo configuracional que vemos juntos o

complexo de imagens ei;n um poema ou a combinação de mo·

tivas, pressões, promessas e princípios que explicam o voto

de um senador ou o padrão de palavras, gestos e ações que

constituem nosso entendimento da personalidade de um amigo"

(Mink, L.: 1970, 117).

Considerando que os dois primeiros modos visam à gene-

ralidade, podemos acrescentar que, deste ponto de vista, a com-

preensão configuracional é a mais pobre de todas. Esta dife

rença se articula com outra. As compreensões teórica e cate

gorial, mesmo por seu efeito generalizador, são formas de co-

nhecimento; como tal, podem ser socializadas. Note-se: o efeito

de conhecimento não deriva diretamente da compreensão alcan

çada senão que dos efeitos que pode engendrar. Por isso mesmo

é que Mink não confunde compreensão e conhecimento. Quando a compreensão não permite ·generalização, ela permanece

um ato individual de ver-as-coisas-juntas" (ibidem, 119} . Daí,

diga-se de passagem, não podermos confundir os lugares de

onde atuam o poema e a ficção, por um lado, e a análise

e a teoria da literatura, por outrc. Ao passo que os pri·

meiros são formas de compreensão configuracional, a análise

e a teoria o são da compreensão categorial e, portanto, proble·

matizante cf. nota 11). e na condição de instrumentos proh e

matizantes que a análise e a tropia da literatura visam a cons

tituir uma mediação entre os insights personalizados do poema

e da ficção e seu leitor. A narrativa, e não só a histórica,

pertence ao . modo configuracional. Ela visa, não à inserção

em uma lei geral ou a revelar as categorias que indicassem

as propriedades e fronteiras de um objeto, senão que a cons

tituir o significado de uma mudança. O interesse e mesmo

o fascínio apresentado pelas estórias consiste na configuração,

60

i.e., na coerência que se concede ao que apenas parecia dís·

par e desconectada12•

Embora o que o autor ofereça seja apenas um passo em

prol de uma teoria mais abrangente do conhecimento, teoria

que já não se contente em privilegiar as operações teórico

científicas e analíticas, seu curto ensaio tem ainda o mérito

de contribuir para a questão da explicação fornecida pela

narrativa

Por certo, nem todas as partes de uma estória são relativas a ações

corretamente descritíveis apenas por enunciados da estória. Mas, segeneralizamos a partir deste paradigma, podemos dizer que as a ções

e os eventos de uma estória, compreendidos como um todo, sã

conectados por uma rede de descrições que se superpõem E que a

12 A partir daí Mink rejeita a tese de que o tempo participa da essência

da narrativa. Ainda que as ações e os evenios sejam representados, em

urna narrativa, como ocorrentes na ordem do tempo, "podem ser explorados por assim dizer em um relance de olhos como ligados em uma

ordem de significação, como uma representação do totum símul que sóparcialmente podemos alcançar" (Mink, L.: op. cit., 120). Se bem quea afirmação tenha sentido no interior da discussão particular que o autortravava contra a followability de W. B Gallie, em termos absolutos ela

é arbitrária. O efeito de significação propiciado pela narrativa é umefeito sobre o tempo, mesmo porque sua configuração é sempre temporal

e não só "faz de conta" que trata do tempo. Mink reserva a incidênciado tempo à organização linear do enredo, sem verificar que a significa

ção da narrativa não se cumpre senão numa ordem temporal e, por isso,particularizada e não generalizável. Nossa conclusão é reforçada considerando um texto posterior do próprio Mink. Em Narrative form as acognitive instrument", observa que, para nos desvencilharmos da concepção iactualista da história, é preciso nos descartarmos de prenoção de

que as narrativas históricas tenham por referente "a estória story) nãonarrada do passado" . Ao contrário, a significação das ocorrências pas

sadas é compreensível apenas quando são localizáveis no conjunto dasinter-relações só passíveis de ser captadas na construção da forma narra·tiva" (Mink, L.: 1978, 148). Isso é muito importante. Daí entretantoque se infere? Por acaso que o historiador nos provê apenas significações

extraídas de fatos perdidos no passado ou, ao invés, que nos provê info r·mações acerca de um tempo passado? Concluir em favor da primeiraparte da alternativa comprometeria a exatidão da crítica de Mink.

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superposição de descrições pode não fazer parte da própria estória(como uma coisa depois da outra) mas apenas de sua compreensãocomo um todo {Mink, L.: op. cit., 122

O debate a que submetêramos a tese de Danto, a partirdas objeções de Dray, aqui recebe outro reforço, ligeiramentediverso do que já enunciáramos. A narrativa há de ser compreendida em relação a um termo maior, a compreensão confi

guracional. A explicação que a narrativa contém pode estartanto dentro quanto fora da estória, propriamente dita. Estefora, contudo, continua pertencente ao modo configuracional.Dito doutro modo: no sentido estrito do termo, a ação narrativa é constituída por uma linha (um evento atrás do outro).Como os eventos são conectados de maneira a oferecer u m ~.explicação, esta pode-se apresentar ou dentro da própria açãoou se superpor ao ponto deste evento que se procura melhorcompreender. Empregando nossa explicação anterior: a .narrativa é constituída por pontos dispostos diacronicamente (geradores da ação stricto sensu) e por expansões verticais, necessárias toda vez que a mer.a localização na cadeia da estória

não baste para a compreensão do significado de um pontopa rticular. Linha e volume são, portanto, elementos constitu·t v o ~ da narrativa. Estas expansões verticais (suplementadorasda explicação) não são, por conseguinte, recursos alheios ànarrativa, mesmo porque a narrativa é uma modalidade doconfiguracional. Assim não só se entende melhor a inadequação do modelo nomo16gico quanto à narrativa - modelo aquisempre representado pela abordagem hempeliana - quanto ainsuficiência da solução de compromisso a que chega Ricoeurem sua obra, por tantos outros títulos decisiva (cf. Ricoeur,P.: 1983·5).

Acreditando que já tenhamos chegado a um solo concreto, umúltimo ponto crucial precisa ser abordado.

Toda a indagação anterior fornece elementos para queaceitemos como W . B. Gallie que a história history) "é uma

62

espécie do gênero estória story)". Mas, se é uma espécie,que a distingue das outras do mesmo gênero? Diretamente aquestão se converte em como, dentro da tese narrativista,a história s e distingue da larga margem de gêneros ficcionaisque empregam' a narrati va? Bem sabemos que uma das tendências hoje vigentes, em consonância com o questionamentoda superioridade concedida à ciência e à filosofia , consisteem considerar artificiais as fronteiras entre o discurso da ver:

dade e ·o ficcional (cf. Cl, L.: 1987, cap. VI). É nesta linhaque se orienta a reflexão que Hayden White iniciara comMetahistory (1973). Consideraremos aqui apenas sua reflexãomais recente.

A posição de H. White não se inclui simplesmente na

narrativista; ao invés, abre uma trilha divergente. A tese narrativista pecaria por não considerar · " a enorme quantidade detipos de narrativa à disposição de cada cultura" (White, H .:1984, 18); tipos que não utilizam monoliticamente o mesmocódigo, senão que se diferenciam justamente pelo emprego, ora

mais, ora menos, de um conjunto complexo de códigos". Osnarrativistas falhariam por considerar a escrita da história des

tinada a fornecer apenas informações; portanto, por não sus·peitarem da proximidade que a história guarda com a itera·tura. Ao contrário pois dos narrativistas, é esta multiplicidade complexa de camadas do discurso e sua conseqüentecapacidade de admitir uma ampla variedade de interpretaçõesde seu significado que o modelo performativo do discurso

tenta iluminar" (White, H.: 1984, 19). Implicitamente, se declara que este complex multilayeredness o discourse aproximade modo mais estreito a história das narrativas ficcionais.

A bem da verdade deve-se acrescentar que White nãopretende estabelecer uma identidade absoluta . Entre literaturae história haveria uma diferença de grau

Ao contrário da narrativa, a narrativa histórica não dissemina falsascrenças sobre o passado, sobre a vida humana, sobre a comunidade,etc.; o que ela faz é testar a capacidade das ficções de uma cultura .em dotar os eventos reais com os tipos de significado que a litera·tura revela à consciência, através de sua modelagem jashioning)de padrões de eventos ' imaginários' {White, H.: 1984, 22 ·

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Por esse teste, a história mudaria o curso natural dasficções, empregando-as como meios de penetração no ·significado de eventos reais. Se a narrativa histórica não tráta deobjetos ficcionais, no entanto aborda os eventos reais por meiodas formas ficcionais vigentes em uma cultura.

Consideremos um · exemplo com que White ilustra suaposição. Marx, na análise do golpe de Napoleão III, terminava por caracterizar todo o processo que ali culminava comouma farsa

Não é o 'fato' que legitima a representação dos eventos como uma'farsa' e não é a 'lógica' que permite a projeção do fato comouma 'farsa'. Não há maneira pela qual se pudesse conceber, combase lógica, que qualquer conjunto de eventos 'reais' é uma farsa.Este é um julgamento e não uma conclusão; e é um julgamentoque pode ser justificado apenas com base em uma figuração poéticaa poetic troping) dos 'fatos', de modo a conceder-lhes, no próprio

processo de sua descrição inicial, o aspecto dos elementos de umaforma de estória conhecida, no código literário de nossa época,como 'farsa' idem, 24)

White quer dizer que, no esforço de emprestar signi

ficado ao conjunto de eventos analisados, Marx, sem que nissose distinguisse de qualquer outro intérprete, recorreu a um

dos trapos constitutivos das formas ficcionais de nossa cultura. Não sendo a farsa uma propriedade inerente dos fatos,como tampouco seriam a comédia, a tragédia ou a apresentação épica ou burlesca, não sendo muito menos um traçouniversal a todas as culturas, seu uso, portanto, dependeria deuma 'escolha' feita no arsenal das ·formas culturais, à disposição dos membros desta cultura para emprestar um significado aos eventos. Assim à disposição de Marx - os doutroshistoriadores - estava a possibilidade de uso doutros trapos.Escolher um destes outros,_porém, implicaria dar ao objeto sobanálise outra possibilidade de compreensão. (Para maiores es

clarecimentos, cf. as análises de Metahistory.Conquanto engenhosa, a conclusão não nos convence. A

estratégia política de Napoleão, le petit  é chamada de farsapor relação aos acontecimentos próximos que haviam levadoNapoleão 1 à posição de herdeiro dos ideais de 89. E inegável

64

que o conhecimento de literatura e a sensibilidade de Marxfizeram-no eleger o tropo adequado. E mais evidente aindaque a configuração através da farsa não é imposta pela merapresença material do citado evento. Um fato qualquer só adquire significação pela seleção que o agrupa a estes e nãoàqueles outros fatos, historicamente também comprováveis. Aseleção esboça um pré-enredo, que se configura em uma nar

rativa através da adoção de um princípio de interpretação dosfatos selecionados. (Na verdade, podemos supor que este princípio é anterior à seleção adotada. Mas este detalhe aqui nãonos importa.) Aceitamos que esse princípio de interpretaçãose funda em. uma figura reconhecida como um trapo poéticoou, noutras palavras, que pinça uma das formas poéticas (melhor seria dizer poiéticas, i.e., produtoras) armazenadas na cultura do intérprete. Mas todas essas admissões não são suficientes para justificar a proximidade que o autor afirma haverentre as narrativas histórica e literária. Se assim fosse, poderse-ia também falar na proximidade de uma teoria científica

qualquer porque edificasse seus conceitos a partir de metáforas (cf. cap. II). EmbÓra a ressalva do autor contra as tesesnarralivistas não atentar para o uso diferenciado dos có-

digos culturais pelos diversos historiadores - seja válida efecunda, parece-nos que ele a prejudica por uma conclusãoainda precipitada. ·

Embora discordemos de H. White, é inegável que suareflexão tem um peso considerável para os que se interessemem melhor especificar os estatutos e inter-relações da históriae da ficção. Por efeito da pressão em prol de uma históriacientífica, os historiadores têm genericamente descurado o papel que em seu trabalho desempenha o imaginário e, pelo

temor de se distanciarem da objetividade , têm desperdiçado a própria riqueza de seu material (cf. LaCapra, D.:1985, caps. 1 e V); por confundirem metáfora com ornamentalidade, têm optado por uma linguagem pobre, objetiva .Em troca, H. White bem aponta para o fato de a menos que,quando nada, duas versões do mesmo conjunto de eventos pos-

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sam ser imaginadas, não há razão para o historiador invocar

para si a autoridade de que oferece a explicação verdadeira

'éio que realmente aconteceu" (White, H.: 1980, 23); o mt: :lmo

reconhecimento que Collingwood assinalava e em que hoje

P. Ricoeur insiste. Mas o destaque do imaginário, mesmo por

haver sido por tantos séculos recalcado pela teoria clássica

do conhecimento, corre o risco de provocar identificações não

menos abusivas. Há décadas, Danto enunciava com precisão

que, enquanto uma narrativa fictícia é aquela que requer so

mente evidência conceitua ", a narrativa histórica combina argu

mentação conceituai e teste factual (op. cit., 123). Por certo,

isso ainda é muito pouco para a caracterização desejada do

ficcional. Mas tem pelo menos o mérito de apontar para a

diferença que as narrativa_s histórica e ficcional guardam entre

si, mesmo reconhecendo-se a proximidade que mantêm as ma

térias de seus discursos - ambos igualmente sujeitos à con

figuração narracional, ambos articulados às formas poiéticas

abrigadas pelas culturas em que se praticam.

Terminemos esta parte por um balanço do questionamento a

que as teses narrativistas submetem a musa da história. Não

é exagero declarar que o realce da narrativa, através de reti

ficações e acréscimos que não cessam de surgir, constitui uma

das mais importantes contribuições contemporâneas para, afas

tando o clássico modelo nomológico, definir-se o estatuto da

escrita 'da história e melhor esclarecer-se sua relação com o

ficcional literário. Este realce tornou-se a base a partir da ·qual

Ricoeur pôde definir o tempo histórico como uma ponte entre

o tempo vivido e o tempo uniforme e impessoal do mundo;

ponte constituída pela criação e uso de certos conectores, en

tre quais privilegia o calendário, a seqüência das gerações,

os arquivos, documentos e traços cf. Ricoeur, P.: 1985, 153-

83). Ele assim verá confirmada sua hipótese inicial

66

O tempo se torna humano medida que se t11 ficula com um modonarrativo e . .. ) o relato alcança sua plena significação quando se

torna uma condição da existéncía temporal (Ricoeur, P.: 1983, 85)

Não seria contudo cabível detalhar neste espaço nossa

discordância de sua afirmação de que o lugar da história é

entre as leis gerais da ciência e o modo configuracional pró

prio da narrativa, entendendo-se que por este 'entre' a his

tória tem propriedades de uma e outra. O aparato justifica

tivo da história, i.e., a autentificação das fontes, a validação

dos conceitos, o teste das hipóteses, a explicitação do a rca

bouço bibliográfico e, por outro lado, seu caráter narrativo,

sua disposição configuracional e o papel desempenhado pelas

quase-causas determinam que a história tenha outro estatuto,

não confundível nem com o da ciência, nem com o da ficção.

Estabelecer um compromisso seja com a ciência, seja com a

ficção é diluir o que há de mais ousado e promissor na re

flexão contemporânea. Há mais de duas décadas Foucault assi

nalava que as "figuras epistemológicas" engendradas a partir

do século XVUI podem seguir duas organizações diversas:

" ( . . . ) Umas apresentam caracteres de objetividade e de sistematicidade que permitem defini-las como ciências; as outras

não respondem a estes critérios, ou seja, sua forma de coerên

cia e sua relação com seu objeto são determinadas por sua

positividade apenas. A estas é escusado não possuírem os cri

térios formais de um conhecimento científico, elas no en

tanto pertencem ao domínio positivo do saber" (Foucault, M.:

1966, 377). Uma das questões decisivas para os envolvidos

nesta discussão consiste em virem a caracterizar melhor, e não

só, como ainda sucede em Foucault, de forma apenas negativa,

a positividade do saber não-científico. Mas outra possibilidade

ainda se levanta. Não podemos já saber se as mudanças a

serem criadas pela teoria do conhecimento científico, hoje em

processo, não provocará outro mapeamento da ciência. De um

modo ou de outro, ou pela linha da reflexão de Foucault,

ou pela via que venha a trilhar a nova teoria da ciência, o

certo é que sem uma preocupação epistemológica o realce da

narratividade arrisca a confundir a ficção com qualquer uso

6

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não rotineiro de códigos. Sem anteciparmos a discussão seguinte,

acentue-se que a poiesis não privilégio do poeta.

NARRATIVA E FICÇÃO

Quando iniciei este estudo não pretendia mais do que en

as razões que levavam alguns epistemólogos a ver em

uma teoria ampliada da narrativa a forma mais adequada para

o reconhecimento do que, de fato, fazem os historiadores. Na

quela etapa, podia, é verdade, sup.or que em algum momento

da exposição seria preciso refletir sobre a proximidade das

narrativas histórica e ficcional. Quando nada, a difusão de

Hayden. White ê dos desconstrucionistas indicava a urgência de

e-xplicitar um relacionamento que ainda há pouco era esquecido

ou estigmatizado. Esperava contudo que isso se fizesse com certa

facilidade. Terminada a primeira versão de Clio em questão 13,

compreendi meu engano: esforço semelhante de elucidação de

veria ser empregado quanto à narrativa ficcional. e o que

procurarei fa:ler em seguida, sem prejuízo do equilíbrio expositivo. A narrativa ficcional portanto será tratada enquanto meio

próximo e distinto da narrativa histórica.

Para fazê-lo, pareceu-me que a forma mais adequada con

sistiria·em (a) considerar com Hayden White a que fim visara

a constituição do estatuto da história, agora questionado pela

tese narrativista; (b) oferecer um entendimento correto do

ponto de vista de que discordo.

1. ocioso insisti r no fato de que, como o reconhecemos,

o estudo da história se opõe à concepção retórica que a pre

sidia, desde o Renascimento até princípios do século XVIII.

Como disciplina, a história só se constituiu no início do sé· .

13 Apresentada no simpósio Narrat iva: história e ficção , realizadona UERJ, enti:e 25 e 27 de novembro, 1987 A forma revista q u ~ aqui

· se publica muito deve às discussões com os amigos R Benzaquen e E

Alliez.

68

culo XIX. Enquanto tal, servia ela a um propósito tanto cognos-

citivo quanto ideológico. Ambos se fundavam no destaque dos

fatos. Por meio deste, o historiador emprestava objetividade

ao tipo de filosofia da história nacionalmente endossado e,

sobretudo, distinguia sua atividade, enquanto empi.ricamente

configurada, do caráter inerentemente metafísico da filosofia

da história (White, H.: 1982, 117). Poderíamos mesmo acres

centarque, nesta constituição empíric da história, pesava me·nos a sintonia com certa filosofia da história do que seu

ultr p sse objetivo; ou seja, que importava menos o intuito

de avaliar a objetividade, a verificabilidade e o realismo das

filosofias da história que autorizavam os diversos programas

políticos (White, H.: idem) do que apagar o investimento

utópico de tais filosofias. Mas a discordância é ao menos aqui

secundária. Quer se· aceite com White aquela sintonia ou se

prefira a idéia de ultrapasse e apagamento do marco utópico

metafísico das filosofias da história, o decisivo será que, en

quanto instrumento cognoscitivo, a nova disciplina estava obri

gada a repudiar o caráter retórico que, nos tempos clássicos,

a mantivera subordinada às belas-letras; condição mesma para

que, paralelamente, prestasse um serviço ideológico às naçõesdaquela Europa pós-napoleônica. H . White vai além deste ponto

e a fecundidade de seu ensaio está na formulação conseqüente:

a diferença quanto à versão retórica não se concretizaria se o

historiador não praticasse certas exclusões estilísticas : o que

tinha implicações pa ra o tipo de eventos que podiam ser

representados em uma narrativa. excluída a espécie de even

tos tradicionalmente concebida como matéria da crença e do

ritual religiosos (milagres, acontecimentos mágicos ou divinos),

por um lado, e a espécie de eventos 'grotescos', que são o tema

da farsa, da sátira e da calúnia, por outro. Acima de tudo,

estas duas ordens de exclusão consignam ao pensamento histó·

rico a espécie de eventos que se presta ao entendimento doque quer que correntemente passe por o senso comum edu·

cado. Elas efetuam uma disciplinação da imaginação ( . )

(White. H.: idem, 122). Em suma, as stylistic exclusions su

punham· o tomar partido entre as formas do belo e do sublimeAo passo que o belo, por ser mais facilmente integrável à

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razão e à expectativa do otimismo burguês (então inquestioná·1el é privilegiªdo, o sublime, porque favorecedor da ex·pressão do excesso, é preterido da narração histórica.

Desenvolvamos este ponto: (a) a disciplinarização da história implicava a exclusão de certo imagini'Í.rio; não só daquelefantástico, por onde transitavam crenças, lendas e mitos ridicularizados por um tempo de orientação leiga e científica,

como de toda a forma que pusesse em suspeita o senti o davida humana e a evolução cumprida pela sociedade; (b) oprivilégi9 que cercava o belo e interditava o sublime tornava

o esteticismo endêmico ao olhar do historiador14; (c) o ques

tionamento da científicidade da história tem um interesse e umalcance muito mais do que apenas âcadêmico, pois·: indica tanto

a falência do modelo de razão que se construíra desde o cartesianismo quanto a discordância com a domesticação do imaginário, que ainda aqui se acusa15•

Embora seccionando, com certa arbitrariedade, o ensaiode White, assim alcançamos um ponto de maior clareza quanto

à discussão em pauta. sob esse pressuposto que agora passamos a acompanhar duas posições que divergem da nossa.

2. A primeira, porque menos elaborada, é imediatamenteresumível. No auge da expansão estruturalista, R. Barthes publicava um pequeno ensaio, de cujo sentido hoje melhor nosdamos conta. Seu argumento se prende a dois mínimos enunciados: (a) na concepção moderna de história, o 'real concreto' se torna a justificação suficiente do dizer" (Barthes, R.:Í968, 87); (b) entendido como todo discurso que aceita enun·ciações creditadas pelo só referente" (idem, 88), o realismo,mais do que uma "escola" literária, é o próprio codificadordo verossímil moderno. e evidente a concordância que circula entre as duas afirmações. Que significa ela? De ime·diato, o paralelismo (se não for mais correto falar-se em homo-

 4 Este ponto já fora destacado por J. Rüsen (cf. Rüsen, J.: 1976).s Aspecto que explicita a solidariedade da reflexão que aqui fazemoscom a que desenvolvíamos na série sobre o controle do imaginário (cf.CL, L : 1984, 1986, 1988 .

70

logia) entre o modelo da hist6ria narrativo-factualista e a lite·fatura realista16

; de maneira mais profunda, o realce pelo historiador dos detalhes do real concreto, se justifica pela presunção de que os fatos falariam por si mesmos; que seriam suficientemente objetivos para que tivessem sentido por si. Ora,

à medida que já não somos adeptos do otimismo da linha do

progresso constante, que se "comprovaria" pela história à medida que antes nos pomos a uma suspeitosa d i s t â n i ~ dessacrença, podemos perceber no momento mesmo em que estesdetalhes são reputados denotar diretamente o real (que) elesnão fazem nada de diverso, sem o dizer, senão o significar"(ibidem, 88). Ou seja, dentro da concepção realista, o sentido parecia exilar-se dos fatos simplesmente porque aí já

estava desde antes, desde a sua instalação. O verossímil moderno, portanto, não se localiza apenas no romance que segueo cânone realista, senão que ainda abarca os exemplares daciência da hist6ria. Ao passo que o naturalismo à maneirade Zola podia supor que o. mérito de sua obra estivesse emse ater às pautas da ciência natural, a melhor compreensão doverossímil moderno indica que a hist6ria é um gênero de fic

ção: uma ficção que ignora seu próprio estatuto.Sem que se negue a pointe do argumento barthesiano,

pode-se alegar que sua desmistificação da história só seriaplenamente eficaz para quem não houvesse acompanhado areflexão desenvolvida desde a tese de Aron. E mais ainda

que sua eficácia dependeria de se manter intacta uma con-cepção substancialista e pré-kantiana da v e r d ~ d e a verdadeé o que condensa o qui do objeto a que se refere. Mas, em

16 Ela não é só reiterada, senão que ampliada, a ponto de confundir ahistória com um gênero literário, em passagem de artigo anterior (1967):A narração de eventos passados, que, em nossa cultura, desde os tempos

~ o s gregos, tein sido geralmente sujeita à sanção da 'ciência histórica',ligada ao padrão subjacente do 'real' e justificada pelos princípios daexposição 'racional', tal forma de narração realmente difere, por alguma

c r c t ~ r í s t i c específica, por algum traço indubitavelmente específico,da narração imaginária, como a encontramos na épica, no romance e nodrama?" (apud White, H.: 1984, 12).

7

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favor de Barthes, pode-se contestar que ·a indagação mais re

finada de Kermode, examinada a seguir, continua a ser dirigida por essa concepção pré-kantiana da verdade.

O diálogo então a se processar tem por interlocutor o. crítico e historiador da literatura F. Kermode, tomando por

base seus dois livros, he Sense o m ending (1966) e The

Genes s of secreey (1979). De modo a evitar um equívoco

banal, uma observação prévia se impõe: em ambos os livros,

Kermode não toma a ficção nem como uma ineludível misti·

ficação (ineludível porque o autor ou desconhecesse a natu

reza do que fazia ou tivesse a propósito de enganar o leitor),

nem tampouco como uma forma de expressão específica, confundível com a literatura. Este é justamente o primeiro pontoa fixar.

Para Kermode, as ficções se iniciam muito antes de nossoreconhecimento, p . .ex., em uma peça teatral ou em uma obra

literária. Essa sua muito maior vastidão resulta da necessidade

humana de estabelecer padrões patterns) significativos sobre

o tempo físico. Enquanto transcurso, o tempo nos transmite

apenas angústia e horror; não passamos de insignificâncias a

qualquer instante destruíveis. As próprias indagações: 'por quetanto esforço? Afinal, por que existimos?' já implicam a ne·

cessidade de uma ficção, se é que, como parece mais correto

dizer, não se formulam senão quando já existente o respaldo

de uma ficção protetora. A ficção é o que permite a passa

gem de chronos para kairos, i.e., da sensação de um fluxo

irremediável para a de estações . ou paradas, que assinalam

marcas no tempo (da vida individual, de sua sociedade e dahistória humana) preenchidas de significação, carregadas de

um significado que deriva de sua relação com o fim. (Ker·

mode: 1966, 47); construção que nos dá direito de entrada

ao k a i r o ~ a ficção, portanto, não se afirma sem um projeto

escatológico, de que o apocalipse é apenas uma das variantes.Chama-se esta construção de ficcional porque não tein, no

mundo do tempo físico, uma correspondência objetivável. En

quanto processo biológico, a vida não ·acena para sentido al-

gum. Mais do que construções, as ficções são construções

7

seminais, respostas básicas à necessidade humana de descobrirum sentido para a sua história. Poderiam assim ser compa

radas a uma tela que interpomos entre nós e o mundo, t:la

pela qual o momento imaginário da ficção concorda e com·cide com o mundo. O tempo não pode ser encara<;lo como

bruto e presente coarse and actual), como um r e p o s i t ó r i ~ do

contingente;· nós o humanizamos pelas ficções sucess.ao_eda morte ordenadas (idem, 160). Assim entendida, a f1cçao

abrange todo artefato mental que produz sentido: A físicaestóica, a tipologia bíblica, a teoria dos quanta de C o p e n h ~ g e ~todas são diferentes, mas todas usam ficções-de-consonanc1a

e todas afirmam complementariedades (ibidem, 62).

Identificada com a urgência humanamente primária de

dar sentido à sua presença no mundo, a ficção por sua vez

necessita de um meio pelo qual se organize. Este meio, for

mulador da ordem indispensável para a fixação do sentido,

é o enredo plot). Kermode toma o tique-taque do relógio

como seu ·exemplo mais simples: Tomo o tique-taque do re

lógio como um modelo do que chamamos enredo, uma orga

nização que humaniza o tempo por lhe dar uma forma; e o

intervalo entre 'taque' e 'tique' representa o tempo puramente

sucessivo, desorganizado do tipo que necessitamos humanizar{ib., 45). No entanto os enredos necessários não podem tera simplicidade deste, pois nosso senso comum faz-nos ver

que sem o paradoxo e a contradição nossas parábolas s ~ r ã odemasiado simples para uma pobreza complexa, demasiado

consoladoras para consolar (ih., 164). Para que as ficçõesrespondam à carência que as motiva é preciso que sejam mais

do que consoladoras; doutro modo logo se esgotariam. Dema

siado simples, as ficções não passariam de divertimentos pas

sageiros. Para que se tornem seminais, as ficções precisamda complexidade. Isso se expressa através do meio que lhe é

adequado, o enredo. Por isso uma narrativa c o e r e ~ t e d i ~mais do que é estritamente necessário para lograr seu intento

(Kermode, F.: 1979, 34). Esta complexidade n e c e s s ~ r i a , por

sua vez, engendra a imprescindibilidade da interpretaçao. Como

dirá epigramaticamente em sua análise dos Evangelhos

73

: '

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Se digo que os p eixes são uma coisa, isso não impede que se diga

serem outra: igualmente p l a u ~ í v e l ; e, com notável liberalidade,podem-me dizer que posso toma-los pelo que queira, conquanto haja

uma semelhança familiar ou institucional entre nossas interpretações(Kermode, F.: 1979, 37)

A interpretação não é um apêndice das ficções seminais

senão que seu indispensável suplemento. O intérprete é0

mediador, ordem do tempo, entre o texto complexo e seu

?rovável l:itor. Porque complexa, uma ficção seminal admite

i ~ t : _ r p r ~ t a ç o e s várias. Esta variedade, por sua vez, é a con

d 1 ç ~ o para que ela logo não se esgote no tempo; com0

desapa

recimento de umas poucas gerações, sua complexidade combi

nada à necessidade da intervenção interpretante, a torn; inexau

rível. pela articulação entre estes dois pontos - complexi

d a d ~ 1 ~ t e r n a e suplemento do intérprete - que as ficções

s e ? 1 ~ n a 1 s podem perdurar além de sua ambiência histórica

original. Mas ~ u e exatamente faz o intérprete? Mais do que

um glosado.r, i .e. alguém, que traduziria formulações compli

cadas em lmguagem acess1vel, o intérprete é antes um inter

polador, o que realiza .o trabalho de midrash, o que intervém

t ~ x t oa fim de verificar suas divergências ou correspondenc1as com o corpus doutros textos, de modo a tomá-lo coe

rente, seja com o novo sentimento do mundo  , seja com

º  ponto de vista do cânone/ da crença a que o próprio in

t ~ r p : e t : pertence. Em ambos os casos, a interpretação é uma

v1?lenc1a semelhan.te à que engendrara a própria ficção se

Desta diz ser uma violência porque consistira em

l" _·por sentido sobre a marcha indiferente do tempo; aquela° ªº · e menos porque consiste em se debruçar sobre0

fic

cional para trazê-lo à ambiência doutros valores ou para fazê.

lo c o n s o n ~ n t e com ª p e r s p e c t i v ~ de certo cânone. Violência,a do ato mterpretat1vo, que nada tem de inocente, mas ta·m- ·

pou':' de necessariamente criminoso. Não é inocente porque

o m i ~ r a s h .sc:_mpre v i ~ a ao ponto de vista fixado/ fixável por

uma m s t i t u 1 ç a ~ s ~ J ~ para com elé concordar, seja para dar

a_:mas a mshtu1ça? contraposta, existente ou apenas poss i v ~ l Mas nao necessanamente criminosa, porque, sem a adaptaçao a outro sentimento do mundo a forma seminal se

00 0•

74

verteria em peça de museu. Em qualquer dos casos, a inter

pretação não poderia ser confundida, como apreciamos fazê-lo,

com o trabalho científico. (Sem pensarmos trair o pensamento

do autor, não cogitamos porém de repetir suas palavras.) Assim,

por exemplo, no estudo da composição dos Evangelhos, nota o

autor que, conforme seu exame heterodoxo, não poderiam eles

ser tidos como a transcrição fiel do que de fato sucedera.

assim que a interpretação funciona na ficção: de certo modo,

ela é tão ficcional quanto seu próprio objeto. Isso no en

tanto não significa que não possamos ou não devamos dis

tinguir entre seus usos correto e nocivo. Sua nocividade re

ponta quando a interpretação converte a ficção em mito; ou

seja, quando a dinamicidade daquela se transforma na estati

cidade deste. Ficções podem degenerar em mitos onde quer

que não sejam conscientemente consideradas fictícias. ( Os

mitos são os agentes da estabilidade, as ficções, os agentes

da mudança (Kermode, F.: 1966, 39)., Podemos de nossa

parte acrescentar que o autor simplifica o estatuto do mito.

Em obra tão difícil quanto aguda, Arbeit am Mythos, H. Blu

menberg demonstra que o fato de o mito resistir aos siste

máticos ataques que lhe dirigem o Iluminismo e a tradiçãopós-iluminista mostra-o capaz de uma força de duração nada

estática; de uma significância Badeutsamgkeit) que a razão

é incapaz de erradicar. Contudo, mesmo que o argumento fosse

desenvolvido, não anularia o sentido da conversão anotada por .

Kermode. Ademais, esta conversão não só é correta, como nos

dá condições de compreender por que o, tema tem um ·inte

resse além do acadêmico. A ficção é uma violência que abre,

i.e., que permite um ajuste diferencial com a diversidade dos

tempos e dos interesses. O mito, ao invés, é uma violência

que fecha, que engendra adeptos e crentes. Ora, como histo

riador da literatura e contemporâneo de uma época convul

siva, é explicável que Kermode desdobrasse sua indagação até

este ponto. A conversão das ficções em mitos lhe importa mes

mo em função do modernismo anglo-saxônico. Kermode não .

cogitaria de negar a · qualidade das obras de Pound ou de

Yeats. Poderia entretanto esconder ou escamotear a adesão

ou a simpatia pelo fascismo de ambos? As ficções da l era-

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tura modernista eram revolucionárias, novas, embora afirmas

sem uma relação de complementariedade com o passado. Estas

ficções ( se relacionaram com outras, que ajudaram a

modelar a história desastrosa de nosso tempo  (Kermode, F.:

1966, 112). Alertar; portanto, para a proximidade existente

entre . icção e mito tem o propósito prático de nos deixar em

guarda contra a fácil mutação. Facilidade altamente recorrente

pois tudo que 'se devota à justiça às expensas da realidade

é, por fim, autodestrutivo (idem, 105).. . A ficção é uma figura ambígua. Sem ela, não há possi

b111dade de descoberta de um sentido para a vida humana.

A ficção engendra uma aposta pela qual nossas vidas podem

alcançar um caminho. Contudo, mesmo porque não se funda

em algo inerente às coisas, facilmente se congela na rigidez

do mito. O risco ainda se torna maior se se considera que

a figura indispensável do intérpre te sempre opera, mesmo que

com seu desconhecimento, em favor ·de uma instituição -

melhor seria dizer com De Certeau, de um lugar - a quai,

não menos necessariamente, separa os midrashim adequados

dos inconvenientes ao cânone. Isso equivale a afirmar que a

conversão em mito não é uma possibilidade aleatória, diretamente controlável pelo intérprete. A menos que ele seja um

completo marginal - caso em que sua própria eficácia se

apaga ou ao menos se adia - o intérprete de algum modo

sempre contribui para mitificar, pois é inerente à sua tarefa

estabilizar a movência do ficcional.

Pelo desenvolvimento anterior, já não autorizado pelas

palavras expressas de Kermode, recuperamos a afirmação de

De Certeau de que do _ugar do intérprete - em De Certeau

se falava do intérprete-historiador - é indescartável uma certaprojeção do ideológico. Mas, não sendo essa a trilha que que

remos explorar, de modo menos problemático apenas ressal

tamos a base histórico-cultural , a partir da qual Kermode ex-

pande sua reflexão. ·Podemo-nos agora nos perguntar que significa chamar de

ficção expressões tão distintas qu.anto a física dos estóicos e

a teoria quântica senão negar . que a verdade tenha um

fundamento absoluto nas coisas? Que é objetiva e sem so-

76

frer a interferência do sujeito ou de sua linguagem? porque

tal absolutidade é fantasiosa que Kermode concede à ficção ta

manha abrangência. Bem sabemos que a demanda captar

a verdade em termos absolutos, independente do su1e1to e de

sua linguagem, constituiu uma aporia do pensa.mento r n o .A teoria do conhecimento de Kant tentara aboh-la e substituí-la

por outro modo de certeza. Conseguira assim genialmente for

mular a teoria do conhecimento justificador da certeza que

podemos auferir pelas ciências f í s i ~ m a t e m á t i c a s . ntretanto

0 próprio desenvolvimento da ciência nos leva hoie a ~ o n s -tatar a datação da teoria kantiana, incapaz de se desvencilhar

da identificação que estabelecia da física newtoniana com o

próprio nome da ciência (cf. P r i g o g i . ~ e 1 e ~ t e . n I : 197_?

97). Cobrindo pois o campo da c1enc1a class1ca, porém n ~ omais 0 da ciência de ponta de agora, sem que outra teoria

já tenha aparecido que desse um novo f n ~ a m e n t o de cer·

teza, não parece ocasional que , ao reconhecimento da. ?ata

ção da epistemologia kantiana, c ? r r e s p o n d ~ :anto o ceticismo

de Kermode quanto a freqüência de postçoes como a . sua.

Insistamos pois: a abrangência das ficções resulta de no

mundo humano, o sentido das coisas, do mundo e da vida ésempre algo a elas im posto. Esta p o s i ~ ã o não se . c o ~ f u n d ecom a pura arbitrariedade, pois a movenc1a das ftcçoes as

torna sempre capazes de estabelecer uma relação dialógica

com a realidade que tornam significativa . n d o r ~ m ? eeste diálogo, a ficção adquire a rigidez do mito, CUJO

é o dogma. Poderemos então chamar .dogma. ?e o

negativo da ficção. Em contraparte, o h m 1 ~ e ~ o s 1 ~ 1 v o ~ a s ficções abrangentes seria representado pela f1cçao hteraria.

nhuma fronteira natural separa as ficções abrangentes das f 1 ~ções literárias. Embora Kermode não se detenha neste ponto,

podemos supor que ele pensa que a distinção seria apenas

tendencial: a ficção literária é apenas aquela que reconhece

sua própria ficcionalidade. Sem insistirmos neste aspecto,.dúvida frágil, apenas acrescentemos:. a s s i ~ o s ~ a a 1dé1a

de ficção tem um âmbito pré-discursivo; i.e., realiza-se ant:s

e independentemente de fronteiras d ~ s c u r s i v a s se é que nao

afirma a artificialidade destas fronteiras.

77 .

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. Se, pois, entendemos a razão do ceticismo epistemológico Kermode e se nossa discordância não significa queacreditemos numa verdade inscrita nas coisas como então nãoden o s s a ~ o s .sua conclusão? De acordo com esta, não é ape-

nas a h1stóna que é um caso de ficção. Mais ainda: se não

é crível que Kermode a tomasse por ficcional no mesmo

s e n t ~ d o ~ u e a t ~ r ~ a q ~ â n t i c a o seria, não é mesmo porquea h1stóna estaria mclu1da entre as ficcões literárias? Para

justificarmos nossa recusa desta posição não nos resta maisdo que entrarmos no exame do que seriam os discursos.

O propósito deste item é bastante claro: trata-se de buscar

novos elementos que hipoteticamente nos permitam ultrapas

sar os pontos débeis que orientaram a reflexão de Kermode

sobre o estatuto da ficção. Localizando essa busca nas refle

xões desenvolvidas a propósito dos ames e do discurso, es-

c o l h e m ~ s . um material, ao menos aqui, problemático. Isso porq ~ e , utilizando-as como material auxiliar para uma pesquisa

orientada por outra meta - a caracterização do ficcional e

daí, de sua proximidade com a história - estaremos f o r ç a d o ~a um tratamento unilateral, demasiado econômico e, por con

s e g u i n ~ e , potencialmente insatisfatório. Estas são as regras denosso Jogo

Ao conhecedor das obras de E. Goffman e M Foucault

com que estaremos dialogando, parecerá estranho o conjunto .

s c l a ~ e ç a m o ~ pois de início: não se cogita de estabelecer algu

ma vmculaçao entre trabalhos cujas diferenças são palpáveis.

Goffman estava fundamentalmente interessado em compreen

der o teatro espontâneo e inconsciente de seus contemporâ

n e _ o ~ . Ao menos aparentemente, não havia algum propósito

critico quanto ao thos de seus involuntários atores. Muito

menos Goffman alimentava algum propósito de ordem diacrônico-histórica, pelo qual se interessasse em verificar . mu

danças ou permanências nos trames que anotava e descrevia.

Todo o contrário pois do que era o interesse de Foucault. Con

verter o discurso em objeto era, para o filósofo francês, uma

78

qportunidade a mais de vislumbrar trilhas apagadas da histó

ria oficial; de procurá-las não para desencavar t e s o u r o ~ per

didos senão para empreender a crítica do paradigma vigente,

a desmistificação de seus pretensos postulados humanistas.

Apesar dessas conhecidas diferenças, as abordagens de Gof

fman e Foucault se tocam e permitem seu mútuo refinamento.Afirmamos com Goffman: nos intercâmbios individuais,

0 termo primário não é a interação, senão que o trame. Assim

sucede porque, se os interlocutores não se puserem dentrb damesma moldura, a própria interação não se processará de ma

neira satisfatória. O trame ocupa a posição básica por ser eleque determina a canalização de percepções similares, por parte

dos interlocutores possíveis. Podemos pois dizer que o tramese constitui pela seleção de um conjunto de expectativas que

se cristalizam em torno das situações individuais e cotidianas

_ a maneira como nos conduzimos em uma rua cheia, os

cuidados em não tocar e ser tocado em um elevador. a forma

impessoal e polida diante de um cliente ou reverente e res-

peitosa perante um colega mais velho, etc. - expectativas

que hão de ser respondidas de modo também e m o l d u r ~ d o .pelo parceiro. Nosso dia-a-dia é coberto por uma m u l t i ~ h -cidade de trames todos previamente regulados e a u t o m ~ t i z a -dos. Não os dominamos no entanto como quem arruma hvros

numa estante ou fotos em um álbum: pela determinação de

um lugar para cada um. O regime dos frames é muito mais

dinâmico. Distintos entre si, i.e., implicando regras de con

duta diferenciadas - não nos comportamos em um templo

.religioso como nos conduzimos em um comício, que não repe·te a postura adequada em uma conferência, em um concerto

ou enquanto assistimos uma partida ~ ~ t e b o l : .a estc:ca-gem dessas regras ·supõe a intensa . lex1.b1hdade m ~ 1 s p ~ n s a v e lpara que transitemos pela extrema diversidade dos circuitos cotidianos. Isso supõe que a vida diária é atravessada por uma

miríade de anônimas cenas teatrais, em que desempenhamosdezenas de ignorados papéis. O teatro não está apenas lá, no

palco que todos reconheceremos. Antes de se cumprir em certa

data e certo horário, em certos locais e sob as vestes de astros

e estrelas, exerce-se aqui, dentro de nossa própria casa e em

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associação com pessoas, diante das quais ingenuamente pensaríamos que não há o que 'esconder'.

Assim_ como q teatr-0 invade a rua e a privacidade, assimtambém a ficção, sob a forma de minidramas, inflaciona

0

qu e. j u l g a r í ~ ~ o s seriamente pragmático. Teatro, ficção· e pragmat1ca cotidiana, como distingui-las? Como separar então

ludismo, de que supúnhamos a ficção ser uma espécie e a

seriedade em que todos nos cremos comprometidos? o 'blefe

deixa de ser legitimado apenas em jogos como o pôquer; asmúltiplas formas de espionagem, de fofoca, de intriga e de

formação da 'opinião pública' em que passamos a nos reco

nhe,cer m o s t r ~ que somos muito mais personae do que po

d e n ~ o s admitir. Com efeito, o Frame analysis, de Goffman,poderia ser considerado a sucursal contemporânea da Comé-

die balzaquiana. E seu autor, uma reencarnação bizarra de

Nietzsche, que houvesse trocado a filologia pelos comics, sem

perder a virulência; que preferisse a trivial Literatur aos mo

dismos da high cult; e, por isso mesmo, nem sequer se inte

ressasse em explorar seus achados de forma estilísticamente

apropriada. Por exemplo, de posse de tantos teatros e mini

ficções por que ainda dar atenção à ficção dos scholars? Goff ~ n não parece interessado nesse tipo de discussão e se permite formulá-la de maneira vaga e imprecisa

( .. _ A moldura teatral é diferente da ficcional, pois nas peças0

escritor deve funcionar totalmente através de seus personagens esuas virtudes tendem a ser atribuídas a elas. udo isso é também

v ~ r ~ a d e ~ r o talvez em um grau menor, a propósito dos escritores nãof cc ona s (Goffman, E: 1974 295, grifo nosso)

Do ponto de vista da argumentação esperável de umscholar, a frase grifada deverá ser considerada o cúmulo de·

imprecisão .e desperdício. Outro tratamento seria esperável de

autores mais compenetrados de seus deveres acadêmicos. Nãoestamos insinuando que M. L. Pratt e J. Searle tenham lido

Goffman. Mesmo que não o tenham feito, a partir de indícios

menos f o r t e ~ não perderão a oportunidade de afirmar que

Goffman deixou de lado. A primeira dirá que não há ·maréas

80

distintivas da narrativa literária: . ( As narrativas lite

rária e natural são formal e funcionalmente muito semelhantes. ( Todos os problemas de coerência, cronologia, causa

lidade, primeiro plano, plausibilidade, seleção de detalhes, tem·

po verbal, ponto de vista e intensidade emocional existem para

o narrador natural do mesmo modo que para o romancista esão confrontados e resolvidos (com maior ou menor êxito), a

cada dia, pelos falantes da língua. Estes não são problemas

retóricos que os narradores literários tenham tido de s.olucionar

pela invenção de uma linguagem poética; são problemas cuja

solução pode ser prontamente adaptada do discurso falado parao escrito (Pratt, M. L.: 1977, 66-7). Em conseqüência, a noção

de um espaço distinto, autônomo e fechado, que seria próprio da

ficção literária, não passaria de um fantasma desmascarado pelapesquisa lingüística. ( Como tantas das características que

se crê constituir a Iiteraridade, a situação básica 'falante/ audi·

tório', que prevalece em uma obra literária, não é fundamental

ou unicamente literária. Não é o resultado de um uso _da língua

diferente doutros usos. Longe de suspender, transformar ou

se opor às leis do discurso não literário, a literatura, pelo me

nos neste aspecto, as obedece (idem, 115). De sua parte,Searle dirá de maneira ainda mais incisiva: Os atos elocutórios utterance acts) na ·ficção são indistinguíveis dos atos elo

cutórios do discurso sério e é por isso que não há proprie··dade textual que identifique um trecho de discurso como uma

obra de ficção (Searle, J.: 1975, 327). Portanto, embora os

dois autores não se refiram aos trames de Goffman, podemos

aqui introduzi-los porque parecem retirar a conclusão. que,

iminente no antropólogo, não foi por ele enunciada.

Em síntese, quer a análise global de nosso cotidiano, quer

a abordagem lingüística fundada na teoria dos atos da falapareceria demonstrar que a ficção literária não tem uma mol·

dura definitiva, mesmo porque, a falar como os lingüistas, não

tem marcas verbais que lhe fossem exclusivas. Neste sentido,a conclusão de Kermode seria até radicalizada: a diferença

entre ficções abrangentes e ficção literária não passaria de

convencional. Seria então por isso que planejamos tratar neste

item de trames e discursos? Não, pois neste caso o conceito

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de discurso não traria nada de novo. A razão de tratarmosaqui de um e outro é mesmo a oposta.

A fecundidade da operação com os trames está na aten·ção dirigida às micro-situações a que tão bem o conceito se

ajusta. Se quisermos, porém, um instrumento que também

seja eficaz em nível abstrato, i.e., capaz de englobar em possí·

veis famílias o resultado das microanálises, não nos poderemos contentar com a abordagem de Goffman. f: por isso

que necessitamos pensar no conceito de discurso.Pelos motivos acima expostos, aqui não nos envolveremos

na discussão necessária sobre o conceito de discurso. Esta ha-veria de se referir à acepção lingüística que Benveniste · eser

vava ao termo. Não sendo o local apropriado para fazê-lo, ape

nas anotamos que a relegamos em favor da acepção desenvolvida por Foucault. Tal declaração contudo não nos desobriga·

de uma reflexão sobre o uso foucaldiano e dos problemas que

o cercam.

O emprego contemporâneo do conceito de discurso há

de ser visto dentro da tentativa de articular o signo lingüísticocom o dado extraverbal. Ao que saibamos, esta abertura pri

meiro se concretiza em Benveniste. Partindo da universalidade ·dos pronomes, Benveniste mostrava que a natureza do pronome

pessoal não se exaure no jogo de relações e diferenças queestabelece no interior de certa língua: O hábito nos torna

facilmente insensíveis a esta diferença profunda entre a lin

guagem como sistema de signos e a linguagem assumida como

exercício pelo indivíduo. Quando o indivíduo dela se apro

pria, a linguagem se converte em instâncias de discurso, ca-

racterizadas por este sistema de referências internas cujachave é eu e definindo o indivíduo pela construção lingüís

tica particular de que se serve quando se enuncia como locutor(Benveniste, 1L 1966, 254-5). Enquanto elementos do código

da langue os pronomes pessoais são signos vazios, cuja efetiva

função só é captada quando notamos que seu. papel é fornecer o instrumento de uma conversão, que se pode chamar

a conversão da linguagem em discurso (idem, 254). O dis

curso, por conseguinte, indica o ato de apropriação por um

sujeito do código da língua. o meio através do qual empre-

82

gamos os jogos de relação e diferença admitidos em uma lín

gua para o ato de nomeação de algo; i.e., para relacionar osigno verbal a um quadro não-verbal. Por seu apoio no código,

o discurso é repetível; pela oportunidade de seu uso, um acontecimento. : ·pois considerando a ponte que o discurso esta- ·

belece entre o código lingüístico e o real que Benvenistedefine as instâncias do discurso como os atos discretos e

cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em fala por

um locutor (ibidem, 251) .Sem outra relação com Benveniste senão o propósito

idêntico de desidentificar a linguagem com o objeto da lingüística, será com Foucault que a categoria do discurso se

habilitará para o investimento transdisciplinar. Essa habilita

ção era tanto mais significativa considérando-se (a) o reconhecimento progressivo de· que a linguagem não é simplesmeio de fixação ou transmissão do conhecimento; (b) o fato

de filosofias influentes como o positivismo lógico e a corrente

analítica, ao manterem o privilégio da linguagem purificada

para o uso da ciência, ficarem aquém da elaboração exigida;c) o fato de que a insatisfação também acompanhasse a an-

tropologia estrutural, cuja ampliação do emprego do instru·mental lingüístico contudo o mantinha subordinado ao mesmo

prisma da formalização lógica - o binarismo fonológico con

vertido em índice do funcionamento do cérebro humano.

Os fatores (a) e (b) já se mostravam na própria viragem

do Wittgenstein do Tractatus onde o refinamento lógico per

manecia determinante da análise, para as páginas das 1 ves-

tigações filosóficas onde a unidade antes concedida ao cristal

da lógica era substituída pela multiplicidade dos jogos de linguagem. A superação do desdém que até então acompanhara

a prática -cotidiana da linguagem era, em Wittgenstein, no en

tanto prejudicada pela dispersão absoluta dos Sprachspiele.Singulares, donde irrepetíveis, os jogos de linguagem tinham .

como elemento unificador apenas a forma de vid que os con·dicionava. Como, ademais, as Investigações não definiam as

~ b e n s f o r m e n se tornava mais embaraçosa a tarefa de rela

cionar o particular ·do jogo de linguagem com um princípio

articulador.

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e neste horizonte de preocupações que aponta a elabo

r.ação foucaldiana do discurso. Limitemo-nos .a seus traços sa-

l i ~ n t e s . Note-se em .primeiro lugar: a questão da produção

d1scurs1va se torna imediata quando a centralidade da · cate

goria do sujeito e seu correlato, a continuidade, deixam de ser

tomadas como inequívocas. Nesse momento, o pensador é for

çado a se interrogar sobre a naturalidade que ainda há pouco

acompanhava as idéias de autor, de livro e de gênero (filo

. s ? f i ~ ciência, literatura, etc.). Estas formas prévias de con

t m m ~ a d e todas estas sínteses que se não problematizam e que

se deixa valer de pleno direito, é então preciso mantê-las em

suspenso. Não, por certo, recusá-las definitivamente mas sa

cudir a quietude com que se lhes aceitava F o u ~ a u l t , M.:1969, 37). .

~ c r e s c e n t e - s e , em segundo lugar: os dispositivos discursi

vos nao atacam menos outra categoria básica a todo o pensa

mento dos tempos modernos - o privilégio concedido à cau

salidade. Sua exportação da física newtoniana para todas as

disciplinas científicas significava a postulação de um mo

tor a que se submeteriam os fenômenos observados. A his

tóri passava então a ser vista como o desfilar dos efeitos deum referente causante, com a conseqüência de esses efeitos

serem considerados tendencialmente uniformes e constantes.

A centralidade P<?is concedida ao sujeito e à causalidade pro

vocava a desnecessidade de se indagar mais detidamente so

bre as p r o d ~ ç õ e s particularizadas. Maciçamente, alguma causa

geral, o me10 físico, as condições ambientes ou a infra-estru

t ~ r a e c o n ? ~ i c a , as .ex?licava. Contra . tal causalidade tranqüi

hzadora, Ja o const1tumte material do discurso, o enunciado,

tem .o caráter de um événement, que nem a língua, nem0

sentido podem esgotar por completo (Foucault, M.: 1969, 40).

Mas de onde o enunciado deriva sua singularidade? la

resulta não ser constituída, como à primeira vista pareceria,

pelo ob1eto sobre o qual incide. Ao invés, são os enunciadossobre algo que terminam por constituí-lo; por constituí-lo não

en9uanto uno mas como disperso e plural. Assim, dirá L Ar-

c h é ~ l o g i e , o o ~ j e t o 'loucura', tal como posto pelos enunciados

médicos dos seculos XVII e XVIII, não é idêntico ao que se

84

formula pelas sentenças jurídicas ou pelas medidas policiais

contemporâneas. (Isso já para não falar das mudanças de tema

ti;ação no interior de ·Um mesmo campo.)

Derivam daí três afirmações básicas: (a) um campo dis

cursiyo se define pelas regras que tornam possível, por um

certo período, a aparição de certos objetos; (b) essas regras

definem as transformações destes diferentes objetos , a des·

continuidade interna que suspende a permanência deles (idem,

46); (c) assim, definir um conjunto de enunciados relativo a

um campo discursivo, será paradoxalmente descrever a disper

são dos objetos a que tal conjunto se refere (cf. ibidem, 46-7).

Como não pretendemos sumarizar o conjunto das opera

ções examinadas em L Archéologie, restrinjamo-nos à síntese

do que foi acima destacado: a unidade discursiva não se en

contra em um princípio de constância lógica e intemporal.

Tal constância, fosse do objeto, fosse do tema, fosse da ma

neira como as proposições eram produzidas, não se confirma.

Ao invés, o que impera é dispersão dos pontos de escolha

para sua análise. Daí a importância a ser reservada à idéia

de espaço - construído por enunciados que terminam por cons

tituir o objeto a que se referem

De modo que se põe o problema de saber se a unidade de umdiscurso não é feita, antes que pela permanência e pela singulari·dade de um objeto, pelo espaço em que diversos objetos se perfilame continuamente se transformam (Foucault, M.: 1969, 46

Se o axioma da constância tornava o espaço indiferente

qualquer espaço p o d e r i ~ ser afetado por um investimento

discursivo-, a ênfase foucaldiana na dispersão, ao invés, leva-o

a se indagar que elementos no espaço (da sociedade) se desta

cam, i.e., são sensibilizados do ponto de vista da constituição

de um objeto discursivo; que critério, podemo-nos perguntar,

deveria ser empregado para precisar a sua localização? Em umaetapa avançada da pesquisa - não em seu início, quando o

pesquisador trabalha com seus instrumentos de bordo (in

tuições, prenoções, primeiras aproximações) - esse espaço se

mostra caracterizado por se constituir de pontos normativos,

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i.e., sensíveis ao desvio ; todos eles, acrescenta, têm uma

margem de tolerância e um núcleo do qual a exclusão é re·

querida (idem, 56). ~ n t e n d e - s e melhor por que os critériosque constituirão um objeto não são homogêneos. Homogêneaé a obsessão com o desvio; contra o desvio; a necessidade

de laminá-lo. A maneira como essa necessidade se atualizará

estará na dependência do limiar de tolerância próprio a cada

ponto do espaço social envolvido.

Limitemo-nos agora a acrescentar: a suspensão da cen

trl,llidade concedida pelo pensamento moderno ao sujeito e àcausalidade provoca (a) o realce da dispersão com que se for

ma o objeto do discurso; (b) este não é determinado por um

motor externo e prévio a seus efeitos. Assim,· por exemplo,

Revolução Francesa não é externa a seus efeitos discursivos;

ao contrário, ela funciona como um conjunto complexo, arti·

culado, descritível de transformações que deixaram intacto um

certo número de positividades, que fixaram para um certo nú·

mero de outras regras que ainda são as nossas, que estabele·

ceram igualmente positividades que ac-abam de se desfazer ouque ainda se desfazem diante de nossos olhos (ibidem, 231); .

(e) as opções tramadas no interior de um campo discursivo,se não são preditas por um centro prévio - uma visão de

mundo, a presença de certos interesses - são em troca pos

sibilitadas pelo jogo dos conceitos já ali operantes. Tais

operadores, portanto, se põem na metade do caminho entre

os interesses pré-discursivos e a própria prática discursiva.

Não se confundem pois com mediadores lógicos, que manteriam

intactos os interesses e os traduziriam em ociosas manifestações

discursivas; são sim aglutinadores sinuosos. Conseqüência: entre

instituições (i.e., aqueles lugares do espaço social sensibilizados quanto a certo objeto discursivo) e prática discursiva, o

movimento não só parte daquelas para esta, mas também desta

para aquelas. ( O campo hospitalar por exemplo não perma

neceu imutável uma vez que pelo discurso clínico foi relacionado com o laboratório: sua disposição, o estatuto que aí re

cebe o médico, a função de seu olhar, o nível de análise que

se pode aí efetuar foram necessariamente modificados , ibidem, 99.)

86

Derradeira anotação: seria arbitrário dizer-se que Fou·

cault intenta desligar 0 campo das produções discursivas do

plano da sociedade e fazer com que a q u ~ l e repouse. .suadesconectada autonomia . Seria ao contrário correto ms1sttr-se

que seu esforço esteve em problematizar determinadas. opera·

ções conceituais que provocavam a simplicidade ~ e c â m c a dos

resultados. o que significa: atacando a centralidade do . sujeito e da causalidade, negando validade ao motor da histó

ria e, daí, 0 privilégio da c o n t i n . u i ~ a . d e , Foucault se contra·punha a uma visão totalista da h 1 ~ t o n a . ~ o r o ela , é .também

recusada a validade de uma categoria de t r i ~ t e f ? r t ~ n ~ . a ca:e·goria do referente. Mas não se trata de recusa-la n limme senao

que de reconceituá-la. O referente não é º que e s t ~ a n t ~ s da

prática discursiva, algo que então submeteria a pratica discu.r

siva a repeti-lo, sob 0 preço de que doutro. m_odo se tornariai ou arbitrária. O referente é sim consutmdo pelas r ~ g r a s

~ : z :Ormação em que se cumpre a prática discursiva. E x p l ~ c a ~ -do melhor: tal prática se realiza de acordo com, regras p n m ~ 1 -ras, que estabelecem as fronteiras do que é p ~ s s 1 v e l ser ditoe

0que se interdita. Embora essas regras nao ~ s t e 1 a ~ ple?a·

mente constituídas antes da prá tica - a prá ticad 1 s c u r s 1 v ~

reage sobre as regras que a p e r m i t i r ~ m a ~ a u m e ~ t a ou mod1-f o certo é que uma prática discursiva só e passível de

s ~ ~ a r e c ~ n h e c i d a ante a prévia existência de regras r : g u l a ~ o r a s .Daí se poder afirmar que as regras para uma pratica d1scur·

siva funcionam como o seu correlato É assim que entendemos

a formulação

Caberá dizer ( . .. ) que um enunciado não se refere a n a ~ a se aproposição, a que dá existência, não tem e r ~ n t e Cabena antes .afirmar

0inverso. E dizer, não que a ausenc1a -de referente traz

consigo a ausência de correlato para o enunciado mas que é ocorrelato do enunciado - aquilo a que ele se refere, o que é postoem jogo por ele, não s6 o que é dito m a ~ s aquilo de que fala, seu

tema - que permite dizer se a proposição tem um referente ou

não (Foucault, 'M.: 1969, 118

Se a cotejamos com passagem posterior -   C o m ~ s t a das

mesmas palavras, carregada exatamente do mesmo sentido, man·

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tida em sua identidade sintática A •

constitui o mesmo enunciado se C s e ~ a n l t i c d a uma frase nãocurso de uma conversa o : e ar teu a a por alguém ao132) d \ 1 impressa em um romance" (ib

é o r e f e ; : t e e ~ ~ : ~ r e ; ; s ~ ~ t a q u e a r ~ "correlat?. do e n u ~ c i a d o ~de seu sentido particularizado. p cada pratica e a investe

Foucault voltaria ao tema do dl L zscurso em sua aula inau-

gura ' .Ordre du discours. Como se trata d . -necessariamente muito menos . . e uma mdagaçaosável sálvo por um detalhe· cóomt plexal serza ela aqui dispen-

d. . a zca pe a qual aí se do 1scurso agora privilegia

0t A   cons1 erau ro angu o _ 0 de

1_

com o poder. Assim desde logo assinala ~ u a re açaocurso está de í · l d . . que ª prática do dis-

n cio ga a ao dJsctpH · àde, por um lado d · nar, t.e., necessidade

' ommar o evento aleatório e d d~ ~ n s ~ i : u ; ã um repertório controlador. Em ~ e g u n d o a ~ ~ ~ ~ ~ ; i z a ~u t se r e f ~ r ; e r uma mera transcrição ou descrição daquilo a

O discurso não é simples tde dominação, mas este ~ ~ ~ q : ~ ~ ~ ~ t r a d u z lutas ou os sistemas

poder de. que se busca apoderar:se F o ~ ~ : u ~ e ~ . ~ e l ~ t ~ ~ ~ / u t a o

Usando a conhecida termino · d ·simplesmente constatativo - og1a e Austm, em vez deem palavras o que . , d caso em que apenas traduziria

Jª se era antes e fora dele d.e performativo. Para exercer esta função d - o - zscursotrole e exercício do poder d e nomeaçao, con-

próprios. São eles (a) a e ~ c ~ u s ã ~ c ~ s o n : p e ~ á a dc?m mecanism?sconte,d 1 . . o tscurso de CUJO

u o eg1ttmavel algo não seja interdi tado (cfo exame do que se admite e d . . ., p. ex., paratuição da história como d . r o que se interdita pela consti-

1982); (b) a partilha q u e 1 s ~ 1 ~ ma: no século XIX; White, H.:

a cada discurso. Tom'ando s e ~ ~ a oslconteúdos legitimáveis

lembrará Foucault que até o R s.et es choses corno apoio,

ou não era ouvida ou era e s c u ~ ~ ~ c ~ m e n t o a1palavra do loucoao passo que a segui'r se t , orno pa avra da verdade,

' • ornara uma pai ·o diagnóstico do médico A . . avra-smtoma para

sendCJ submetida a u m ~ d r ~ ~ t ~ h ~ , P?rtanto, se mantém,is r1 u1çao diversa; (e) a recusa

88

rejet), que se refere ao ato do que é/ não aceito conforme a

vontade de verdade i.e., que afirma qoe algo confere/não com

o que, historicamente, se considera pertencente à verdade.

· São estes os mecanismos que operam de fora, ou seja, que

funcionam como meios de exclusão e habilitam o discurso . a

ser ocupado pelo desejo e se converter em exercício do poder.

A seu lado, Foucault distinguia os mecanismos internos, vota

dos a dominar o evento e o aleatório. Eles compreendem ocomentário e a autoria, que não se aplicam às "instâncias dodiscurso" insignificante, i.e., tendente a se dissipar tão logo

é formulado17• Contra o anonimato dos atos de fàla insignifi

cantes, o comentário e a autoria visam a manter a estabilidade

dos epunciados que se consideram preciosos. Como o caráter

da eleição disciplinante é historicamente variável, não esfranha que o entesouramento não enobreça simultaneamente todos

os discursos por nós reconhecidos. Assim os textos religiosos

e jurídicos .foram resgatados da insignificância muito antes que

o mesmo apreço resguardasse os científicos e literários. Aolado dos dois mecanismos observados, o autor enumera um

terceiro: (c) o de rarefação dos falantes que se julga que estão

habilitados a usar certo discurso. Na continuação da passagem,

Foucault parece estabelecer ainda outra distinção: o critério

de rarefação assume um caráter ou mais inflexível ou mais permissivo de acordo com zonas distingüíveis dentro da mesma

ordem discursiva

Nenhum (falante) entrará na ordem do discurso se não satisfizer

certas exigências ou se não for, desde o início, qualificado parafazê-lo. Mais precisamente, todas as regiões do discurso não sãoigualmente abertas e penetráveis; algumas ·são altamente defendi-

  Utilizamos a expressão de Benveniste, "instância do discurso", pararessaltar que o discurso, para Foucault, não cobre todos os atos defala senão apenas aqueles que, em certo tempo, as instituições sociaisconsideraram "dignas"·de serem disciplinadas. Já por aí se vê que nãose poderia conceber a conc.epção foucaldiana de discurso como super·

ponível aos frames muito mais "inocentes" e imprevisíveis, do ponto devista da vontade de disciplinarização.

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das (diferenciadas e diferenciantes)quase abertas a· todos os ' enquanto .que outras parecemdisposição de cada falant" v(eFntos el postas .sem restrição prévia à

" oucau t, M.: idem, 39)

Em suma, a ordem do d éa institucionalizar certas fo s c u r ~ o um fato social que visa

mesmo de expressão·0

u : m ~ s ~ i n d ~ g a ç ã o de reflexão e

mesmo interditar out;as Eq i m p h c ~ diretamente expulsar e

como uma forma de te;. . .

1

~ e ; ~ e s:ntrdo que podemos tomá-la

homem . l oria izaçao estabelecida pelo próprio

Conscientes dos limites ue .os comentários ao mín. J nos impusemos, restrinjamos

tue-se que o interesse d : m ; ~ u c a e n t r o d ~ s t a ótica_ restrita, acen

classificatório. Sua reflexão e ult o ~ v 1 a m e n t e nao é de caráter

nômico, é movida pela v o ~ t m vedz de q ~ a l ~ u e r propósito taxi-

1. ª e e enuncia do q · lapenas iberador no projeto ilumi . t ue se JU gadizer pouco po' . nis a; isso talvez ainda seJ·a

, is seu pro1eto não é co d"dtarmos para sua contra . - mpreen I o se não aten-

sentimentaimente tida : o ~ s 1 ~ ; : ~ t r da "vontade de verdade",

"profunda 1ogofobia" que im ço. un amental do homem, e a

sociedade (cf. Foucault, M.: 1 ~ ~ ~ ª Í i ~ s n t não só er:i _nossa

tanto mais necessária porque f · d ~ s ~ a contrapos1çao eracom a razão Iiberadora r e c a i ~ con un m o-se o Iluminismo

medida que o projeto i l ~ m i n i s t a a - ~ o reverso da medalha: àem geral - considera - e o pensamento modernouniversal,, com a r e a l i ~ : d : re lexao individual uma "mediação

trolador do discurso e d e s t e n ~ dtva co?ta do caráter con

plinante do próprio projeto ( f o 4o avorec1a o aspecto disci

o' propósito do filósofo era0

~ a d : - S ~ . Ao t ~ ~ a r esse rumo,

elementares que têm guiado o O c i ; : ~ ~ : a r a critica dos padrões

Requestionar nossa vontade de verdad . .caráter de acontecimento· revo . e; rest1tu1r ao discurso seu(Foucault, M.: lbidem, S3) gar enfun a soberania do significante

Optando por outra trilha ( . .beira do n T ) F menos pess1m1sta do que à

Horkheimer1 ~ : ° ~ I ~ s õ e ~ u c ; : J t A : i J c ~ ~ ~ a ª a c u s a ç ~ o de Adorno e

maior proximidade d arung, combtnando-a a umao pensamento de Nietzsche e à crítica à

90

psicanálise lacaniana. Deixemos porém ô desenvolvimento desse

argumento e nos concentremos no significado do segundo pro

pósito enunciado.

Lutar por devolver ao discurso seu caráter de aconteci

mento não seria, em termos absolutos, promover a negação da

legitimidade das instituições disciplinadoras do discurso e,

daí, da sociedade que as engendra? Poder-se-ia contudo repli

car que, acentuando o papel da subjetividade individual liberadora, estaríamos maldosamente empregando contra o próprio

Foucault o reparo crítico que ele já fizera à solução romântica

que adotara na Histoire de la folie. Afastamos a acusação assi

nalando com Deleuze que a idéia fundamental de Foucault

é a de uma dime11são da subjetividade que deriva do poder e

do saber, mas que deles não depende" (Deleuze, G.: 1986,

108-9). Ou seja, para Foucault, a trama transistórica estabe

lecida entre saber e poder prende o agente humano em suas

malhas, espacializa os discursos, reprime e impede sua singu

laridade. Mas a leitura da força do binómio saber-poder não

poderia se encerrar aí sem grave perda. Para o filósofo francês,

o binômio saber-poder se exerce de um lado sobre os enun

ciados (os discursos), de outro sobre as instituições . O discur

sivo e o não-discursivo, o falável e o visível fonnam uma linha

descontínua, impossível de ser fundida, o que impede que

uma possa ser tomada como efeito da outra (o discurso da

prisão não é engendrado pela instituição carcerária ou vice

versa; ambos são as formas pelas quáis se concretiza o poder

informe e disperso). O saber-poder forja uma unidade entre

o falar e o ver, cujos membros entretanto se mantêm autôno- ·

mos. A oportunidade do pensar está na exploração dessa fis-

sura. Pensar é chegar ao não-estratificado. Ver é pensar, falar

é pensar, mas pensar se faz no interstício, na disjunção de ver

e falar " (Deleuze, G.: 1986, 93). Por essa brecha, o pensamento

tem a chance de escapar do círculo de ·um saber-poder estrati·ficado. Ora , corno tal saber-poder instituído engendra a ver

dade - o que implica a verdade ser sempre histórica e não

dependente de uma congruência entre o que se diz e a coisa

d.e que se diz - , a exploração da fissura pelo pensar o permite

contatar o de for dehors), i.e., o ainda não estratificado. Para

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l'.9ucauÍt, portanto, o realce concedido à subjetividade pessoalizada não impede que ela se invista ,de uma força de resistência e de mudança; . i.e., que sua positividade paradoxalmente fosse alcançável apenas em uma situação de absolutaanowia. Mas qual o destino desse pensar que não ~ t r emcontato com o de fora do instituído senão, e no melhor doscasos (i.e., de êxito), para propiciar um novo saber-poder, en

gendradordoutra.

verdade, marcada pela mesma logofobia?Em Foucault, o discurso é algo forçosamente restritivo; algoavesso à semiose infinita que resulta de as palavras não seremmeros espelhos (certos ou falsos) de seus referentes. De certomodo não se manteve Foucault prisioneiro da concepção mallarmaica do poético? Para se liberar da mercantilização daspalavras, para Mallarmé nãp havia outro recurso senão a teleo·logia negativa emprestada ao poético. Em Foucault, uma ênfase semelhante não acompanha as considerações sobre o dis·curso. também ele marcado·por um propósito negador?

Para aqueles que considerem estas últimas consideraçõesum especulativismo desvairado haveria a alternativa de extrairdas palavras do pensador uma conseqüência bem mais simples:

Foucault quer mostrar que um agrupamento de enunciados éa precondicão tanto para o pensamento quanto para a subietividade. Não mais perguntemos, recomenda Foucault. Quai

era 9 sentido ou a intenção atrás do que se escreve ou diz ali?'.A questão é antes simplesmente: Por que estes agrupamentosparticulares de enunciados, naquele tempo, 'e : não outros?'(D'Amico, R.: 1982, 204).

Concedemo-nos o direito àquela incursão com uma certafinalidade: considerar do discurso sobretudo seu aspecto dis·ciplinar conduz a uma indagação semelhante à que se acusade especulativa. Por certo todo discurso pressupõe uma ordem

impõe formas de selecã? e de exclusão. Rsse aspecto disciplmador assume conseqüências de alta nocividade quando aele se associa a idéia de uma verdade una , que combata aferro e fogo suas concorrentes. Ora, ainda que hipoteticamenteadmitamos a possibilidade de uma idéia de verdade cujaconduta fosse menos opressiva, o certo é que todo princípio de verdade una engendrará uma hierarquia dos dis-

92

cursos. Assim o discurso teológico medieval, ao menos em suacaracterização aristotélico-tomista, hierarquizava, controlava ereprimia a investigação científica que não se lhe coadunasse;assim, contemporaneamente, quando a ciência passa a ser sen·tida como a religião de nossa época (Wild, R.: 1982, 3)e se enrijece no mito básico do homem medianamente educ a-

do não menos coíbe, prejudica e deslegitima as formas de d1s·

curso que não se ajustam a seu modo de proceder. A indaga·

ção de Foucault nos ajuda a compreender que as mudançashistóricas alteram o quadro das hierarquias discursivas, sempor isso eliminarem o advento doutras hierarquias

1ª. Mas é·preciso entendermos que as formações d i s c u r s i ~ a ~ ~ ê m um

outro e contraposto aspecto: elas são tanto d1sc1phnadorasquanto a própria condição do processo de produção d i ~ e r e n -ciada do conhecimento. Procuramos dar conta destes dois aspectos ao declarar que, sincronicamente considerados; os dis·cursos delimitam territorialidades.

Isso posto, podemos resumir a relação do conceito dediscurso com o de frame: (a) como já notamos, os dois nem

são superponíveis, nem têm a mesma extensão - inúmeros

trames concernem a situações insignifica?tes do ponto de.vistada ordem do discurso a eles contemporanea; (b) se os discur·sos assim estabelecem uma rarefação dos frames velando apenas por aqueles que se cumprem dentro das malhas de um

discurso legitimado (o que vale dizer, disciplinado), sua .van·tagem, do ponto de vista teórico-operacional, está em_nos p e ~ -mitir ultrapassar o apenas descritivo, dando-nos entao cond1·ções de um tratamento também crítico.

A exigência que nos estabelecemos de brevidade será ainda mais drasticamente seguida no tratamento que agora reser-

  s Assim, no final de nossa análise sobre as formas de controle ª que oimaginário tem sido submetido, procuramos mostrar corno h ~ J e há. apossibilidade de o ficcional controlado se converter, em áreas mstituc10-nalmente circunscritas, em controlador.

93

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vamos às vantagens ou desvantagens de trabalharmos comconceito de discurso ou com a idéia de texto.

A volta do prestígio analítico do texto está associada aoreconhecimento dos simplismos resultantes da utilização de interpretações apenas históricas ou, na maioria dos casos socicrlógicas. Tendo os textos por documentos, sintomas ou ilustra-

ções do que se realizaria fora e antes deles, tais análises terminam por red4zir e igualar a complexidade de construção do

que seria seu objeto e se tornam alvo da crítica certeira que

LaCapra endereça ao contextualismo contemporâneo: O 'cont e x t u a l ~ s m o ( ) é em si mesmo uma ortodoxia poderosa nashumanidades, que, por outra via, chega ao mesmo resultadoque o 'platonismo': uma noção idealizada do significado plenoe essencial (LaCapra, D.: 1983, 114-5). Sob o pressuposto,correto, de que as obras hão de ser encaradas na ambiênciaem que são produzidas e/ ou recebidas, o contextualismo contemporâneo, presente nas freqüentes histórias sociais e intelectuais, ou, mais modestamente, nas análises destinadas a mos

t ~ a ~ como certa obra refle te o seu tempo, menospreza asd1f1culdades i.nternas ao texto sob estudo, no afã de cercá-lo

pela sociedade que o condicionava, pelas instituições que o est i m u ~ v a m coibiam, pelas motivações sociopsicológicas que

o teriam motivado. Toda essa crítica é justa e estimulante. Alémdo mais, u ~ a análise textualista não está obrigada a ser apenas

por mais cbmplexo que seja este apenas - uma análiseinterna de certa obra ou conjunto de obras. Ela contudo parecemarc.ada. pelo limite do singular. Este singular pode não seconfundir C?m as fronteiras materiais do texto e mesmo partir

do pressuposto de que não há um dentro e um fora do textopreviamente demarcáveis. Mas este ultrapasse das f r o n t e i r a ~visíveis do texto parece obrigar o analista ·a não se contentarc ~ m a i ~ é i a de texto, a articulá-Ia a um conector da produçãosingularizada com a série social a que pertença, a que visa ou

a que vem se integrar. Porque essa articulação não é dada apriori ou porque é extremamente embaraçosa, um defensor do

textualismo da qualidade de LaCapra é levado a reconhecerque quando a noção é em si mesma absolutizada, confrontamo-nos com a espécie de vínculo interpretativo interpretative

94

bind paralisante e verdadeiramente abstrato, que a recorrência à noção de textualidade pretendia evitar ou pelo menosadiar (LaCapra, D.: idem, 19).

Àdmitamos que o conceito de discurso, desde que não seconfunda com a prática difusa do contextualismo.. tendo por

limites, de um lado, o que interdita, de outro, o que propicia,torna possível um princípio te6riCo-operacional menos sujeitoàs unilateralidades das categorias concorrentes.

Entendido como territorialidade, o discurso é uma formasimbólica de ocupação do tempo-espaço; ocupação que se realiza pela produção de sentido, ela mesma governada pelas regras que regulam tal discurso. Além do mais, por maior que

seja seu potencial disciplinador, discurso algum aparece desacompanhado 0.u m esmo não acotov.elado ~ o r espécies d ~ s c u r s i v a . sadversas, i.e., produtoras de sentidos diferentes . ~ s s m i;:ons1

derando, podemos perceber que é a própria p l u r a h d ~ d e d1sc.ursiva ·que nos possibilita resistir à concepção hierárquica e piramidal dos discursos articul ada ao princípi o da verdade una

e exclusiva. Talvez 'Foucault tenha razão em associar o caráter histórico da verdade com a disciplinarização efetuada pela

ordem do discurso. Talvez portanto a repressão seja inevitável à sociedade humana._Mesmo por isso, entretanto, se nostorna mais decisivo pensar em formas de resistência, ainda que

já não acreditemos em utopias redentoras. Deste modo a indagação de categoria na aparência tão 'acadêmica' quanto a da

narrativa mostra sua vocação política.

A reflexão precedente nos dá condições de enfrentar com

outros meios o problema da ficção. Com Kermode, víamosque, sob sua forma abrangente, as ficções seria? ' ~ e v ~ t ~ v e i s ,necessariamente inevitáveis. Notamos que essa mevitabiltdadeestava associada à manutenção, no ·autor inglês, de uma idéia

de verdade como inerente às coisas, a qual, por não se confirmar, obrigaria aquela conclusão. (Se pensamos que x é. uma

proposição que diz da verdade de um referente y e depois ve:rificamos que x em vez de conter a estrutura de y, apenas ?ªsentido a y e se não aceitamos uma concepção não-substancia-

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lista de verdade, seremos obrigados a dizer que essa doação· de

sentido é uma ficção, não importa que indispensável.) Por

~ r t o com isso Kermode não afirmava, como o farão Pratt

e Searle, que · a ficção literária não tem marcas além das con

vencionais. Esta marca ·distintiva, porém, dependia de um qua

lificativo pouco convincente: ao invés da rigidez do mito, á

ficção literária é d.inâmica e provocadora de múltiplas respos·

tas. e e s t ~ pois o ponto que devemos agora desenvolver.

. Tomaremos como meio de orientação as reflexões promo

vidas por W. Iser. Para o teórico alemão, a ficção literária tem

como primeiro traço o realizar-se por um ato de fingir. Tal

ato, de sua parte, tem como constituinte . formador o não se

desligar da estrutura do como se. : sob a sua ·ótica que o ato

de fingir se refere ao mundo e se conecta ao imaginário, a que

atualiza. Referência e conexão que lêm uma peculiaridade pre

cisa: por uma e outra se transgridem os limites tanto do mundo

quanto do imaginário. O mundo é transgredido porque o ato

de fingir não repete a realidade senão para convertê-la em

signo. Ou seja, o mundo presente no texto a que preside a

estrutura do como s é um mundo representado. Ora, dirá Iser,

a noção de representação traz consigo uma ambivalênciainexorável, já que sua função pode ser designativa e-

zcichnen) ou remissiva (Verweisen) (Iser, W.: 1983, 402).

Contudo, mesmo porque o mundo é ali representado, ele

se desveste da função usual que .as coisas do mundo têm

enquanto coisas do mundo. Por exemplo, ao desempenhar

um papel (o de médico, de professor, de agente da boi

etc.), alguém tem designado e designa o que legitima

mente dele se pode esperar. O ·contrário do que sucede no

tipo de . texto em questão: ( . ) O m1 1ndo representado no

texto não designa um mundo existente e, por conseguinte, não

pode representá-lo por sua representação (idem, 403). A fun-

ção designativa é por isso posta entre parênteses para que so-

bressaia a função remissiva. A representação remete ao mundo, não o designa. Logo veremos como esse transtorno implica

uma relação diversa com o mundo. No momento, apenas acen·

tuemos: a dominância da designação do mundo não torna o

texto fechado em si mesmo; não, ele se mantém relacionado

96

com o mundo, apenas essa relação já não é semelhante àquela

que se cumpre fora da representação (mais correto será dizer:

não será semelhante à que mantemos através das representa

ções naturalizadas pela automatização dos frames). Passemos

à transgressão do imaginário. Ela pode ser mais rapidamente

elucidada. O próprio do imaginário é seu caráter fluido, difuso

e caprichoso. Nele, as coisas perdem seu vínculo com a esta

bilidade e, à semelhança de nuvens que configuram ora gamos,

ora ramos, tudo é passível de se resolver em seu oposto. O

ato de fingir próprio ao ficcional o transgride porque a cone

xão com o imaginário se faz em favor de uma configuração

determinada'', a exposta pelo próprio texto. Sem dúvida, esse

texto não nos apresenta situações ou personagens completos em

si mesmos; eles necessitam da colaboração do leitor para que

se concretizem. Situações e personagens, diria o mesmo Iser,

são esquemas que só o leitor concretizará. Mas é nestes pró

prios esquemas que está a transgressão operada sobre o ima

ginário: as concretizações, conquanto variáveis, não podem

recuperar a fluidez das puras produções do imaginário.

A partir daquele primeiro traço entram em cena dois ou

tros mais: a combinação e a seleção. Não são necessários maiores detalhes: é claro que ambos trabalham sobre a matéria

prima captada do mundo, que será combinada em signos, cujos

aspectos são selecionados de acordo com as necessidades da

própria obra. Ora, duas objeções são aqui imediatamente pos

síveis: 1. seleção e combinação não são operações exclusivas

do ficcional. Pode-se- p.ex . a ~ g u m e n t a r gue uma concepção do-

cumental da história não se sustenta porque o documento, em

vez de ser um dado primeiro, já é o produto de uma seleção

motivada pela pergunta que o historiador endereça ao passado.

A possível descoberta de um historiador depende menos dos

documentos de que dispõe do que da pregnância da pergunta

com que os escolhe; 2. a objeção anterior se torna· tanto mais

grave porque a estrutura do como s do fictício não se traduz

em marcas próprias, que fossem visíveis a olho nu . Indicar

pois a não-especificidade da seleção e da combinação não

teria por conseqüência afirmar-se a mera convencionalidade

do ficcional, que equivaleria a dissolvê-lo em categoria muito

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mais genérica, que envolveria tipos como o ficcional-no-coti

diano e o ficcional literário?

As duas objeções podem ser simultaneamente respondidas.

Para isso, sem sairmos de lser, precisamos recorrer a texto

seu anterior.

Na discussão que empreende com as teses de Austin e

Searle a propósito da ficção literária, Iser se opõe à afirmação

de que a linguagem desta seja, do ponto de vista pragmático,vazia . Sinteticamente, ,seu raciocínio é o .seguinte: um ato

de fala tipicamente pragmático, ·i.e., que não se relaciona com

o mundo como representação, opera de acordo com dois eixos:

o horizontal, que concerne às regras de agenciamento apro

priadas ao código lingüístico em que o enunciado se realiza, e

o vertical, que relaciona o enunciado produzido com o efeito

convencionalmente a ele associado. Pelo eixo horizontal, os

enunciados precisam ser gramaticalmente corretos. Pelo eixo

vertical, a essa gramaticalidade se liga um efeito social. (O

efeito vertical do ato de fala mais corriqueiro como .um cum

primento banal é o de obrigar seu destinatário a r e s p o n d ~ l omesmo que não creia um mínimo no 'bom-dia' que lhe é au

gurado e que sua resposta reitera. O efeito vertical das palavras de um ritual, desde que pronunciadas em sua forma ins·

tituída e sejam proferidas por quem de direito, é obrigar o

destinatário a certa conduta. Poderíamos mesmo dizer: pelo

efeito vertical, os enunciados entram em uma segunda gramá

tica, agora não de ordem lingüística mas social.) Ora, os atos

de fala realizados sob o trame do fingir ficcional cancelam

seus efeitos verticais. Austin diria que são atos de fala para

sitários . Iser, Je sua parte, oferece uma solução oposta: liberto

da- pressão vertical comum, o enunciado, na ficção, assume

função diversa: o efeito que ele teria no frame de uma si.

tuação cotidiana é nomeado, não para ser cumprido se

não para ser visto à distância (distância permitida pela

·própria representação), o que possibilita sua p o t e n ~ i l i -de questionadora. A linguagem ficcional despragmahza as

convenções que selecionou  . Daí resulta seu efeito prag

mático: Tal despragmatização é sua dimensão pragmática.

( Invocamos uma convenção verticalmente organizada

98

quando queremos agir; ama combinação horizontalmente or

ganizada de convenções diversas permite-nos ver o que nos

guia quando agimos (Iser, W.: 1976, 100). A pragmática nor

 lllal nos assegtira o respaldo da estabilidade das convenções.

A pragmática específica do ficcional literário nos permite ver

os valores qi te se atualizam em nossas. condutas. Chamar o fic

cional literário de parasitário, vazio ou sem marcas próprias

é prender-se a uma posição unilateral - ou e x c l u s i v a m e n t ~lingüística ou conforme à pragmática estabilizadora; é impli

citamente manter a noção do senso comum que confunde o

ficcional literário com uma forma de pura curtição.

Voltemos ao texto de Iser de 1983 e nele destaquemos o

quarto traço da estrutura do fingir ficcional. Por desnuda-

mento (Entb Ossung) da ficcionalidade , lser entende o fato de

a obra dar-se a conhecer como ficcional. O exemplo mais elo

qüente hoje em dia seria he urple rose of Cairo, de Woody

Allen; entre suas muitas seqüências, lembre-se aquela em que

a espectadora e o ator rompem a estabilidade dos trames que

os separavam - intransponíveis segundo a pragmática usual

- e por este impossível encontro desnudam .a ficção que rea·

lizam. Na impossibilidade de discussão mais longa19, restrin

jamo-nos a assinalar que, à diferença das marcas anteriores,

esta é de tipo variável, podendo/ não se reconhecer em obras

particularizadas.

Resta por fim assinalar o traço cuja importância só éigualada pela estrutura do como se a ausência de estabili

dade semântica por parte do fictício ficcional. Quanto maior

19 Ao contrário do que Iser afirma, o desnudamento (ou autodesnudamento) se toma uma constante do ficcional apenas na literatura pósflaubertiana. Praticá-la antes deixaria o autor à mercê dos mecanismosde controle a que a razão moderna tem submetido o ficcional. Daí quea prática constante tenha sido ao invés a de esconder os sinais da ficcionalidade. O exemplo que Iscr oferece de Spencer é excepcional. O exa

me ademais da recepção de outro exemplo de excepcionalidade, o Quiiote,nos ·mostraria a extrema dificuldade de seus analistas reconhecerem os

casos de desnudamento, pelos quais Cervantes distinguia sua prática dado fictício renascentista (cf. CL, L.: 1986, cap. I).

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for a complexidade de um texto não-ficcional, tanto maior será

o o m p r o m i s ~ o do receptor, de fato empenhado em seu enten

dimento, em querer atinar com o que o texto quer dizer; i.e.,

em captar seu ~ e r d a d e i r o sentido. Ora, à medida mesmo que

o texto ficcional é investido de uma pragmática sui generis,assentada no estabelecimento da abolição do efeito vertical,

de que deriva a mudança de orientação do receptor, neste

é provocada uma tensão específica. Se o receptor não se contenta com uma gratificação passiva, onde seu esforço maior é

o de seguir o enredo, virá a se perguntar que significa este mun

  o que se representa sem se reduplicar; que se representa sem

que se designe; que se representa mesmo· para que se indague

que significa a remissão a ele. Dizer-se que tal tipo de· obra

não tem uma semântica estável significa que a ela não cabe

uma interpretação última, que se julgasse conter seu sentido.

Com isso, lser não quer dizer que as interpretações dos textos

ficcionais sejam inúteis. Ao contrário, elas são necessárias, pois

só por elas se acalma a tensão específica despertada pela prag

mática sui generis do ficcional: ( As tensões só se dissi

pam por um processo de semantização (Iser, W.: 1983, 407).O sentido que emprestamos a um texto ficcional é tanto um

ato indispensável quanto uma tentativa de normalização que

contraria sua movência própria

Se a semantização e os atos de doação de sentido resultantes deri·vam da tensão que se apossa do receptor do texto ficcional, em

virtude do caráter de acontecimento do imaginário, então o sentidodo texto é apenas a pragmatização do imaginário e não algo inscrito

no próprio texto ou que lhe pertencesse como sua razão final. Se

assim comiderarmos, o sentido do texto não seria nem sua últimapalavra sein Letztes), nem seu termo originário, mas sim uma opera

ção inevitável de tradução, provocada e tornada necessária pela ·força de acontecimento da experiência do imaginário (lser, W.:

1983, 408)

Se o exame anterior nos der uma ponta de razão, teremos

ultrapassado tanto a imprecisão dos termos com que Kermode

se contentara quanto a certeza grossa dos que negam a exis-

100

tência de marcas distintivas do texto ficcional. Este trabalho

foi necessário para que, sem se refutar a proximidade que a

narrativa provoca entre a escrita da história e a ficção literá

ria, se demonstrasse que essa vizinhança não se desdobra em

identidade. Supondo-se que suas especificidades tenham sido

estabelecidas, podemos agora pensá-las a partir de suas dife

renças.

A tendência à confusão entre as formas discursivas da

história e da ficção literária não é apenas um efeito do ·que

têm em comum - a organização narrativa - ou uma resul

tante da reação ao estatuto inadequado que se conferiu a esta

e aquela. Se assim o fosse, essa tendência só se manifestariaem data recente. Ora, J Lotman nos faz notar que essa ten

dência é muitíssimo mais remota. Mostra-nos ele que, sob a

forma comum de narrativa, desde tempos imemoriais, surgiam

dois tipos de relato. De um lado, aqueles que tinham por fina

lidade apresentar um mundo estável, absolutamente regulado

por leis. Fixados sob a forma de mitos, não lidavam com fenô

menos que sucediam apenas uma vez e sem referência às leisnaturais, mas com eventos intemporais, sem cessar reprodu

zidos .e, neste sentido, sem movimento (Lotman, J : 1979,

162-3). Doutro lado, surgiam as narrativas voltadas para o

excesso, o anômalo e o singular, que, pelo próprio tipo de

cena privilegiado, não permitiam a representação do ciclo cós

mico, nas quais encontra o cerne dos relatos dotados de enre

do. Desde tempos sem conta, a humanidade recorreu a estas

duas formas antagônicas de narrar. Se a primeira privilegiava

a visão de ciclos estáveis, dotados de leis constantes, a segunda

ressaltava o acidental irrepetível e singular. O texto de en

redo plot-text) moderno é o fruto da interação e da influên

cia recJproca destas duas espécies de texto, tipologicamente re

motas (Lotman, J : idem, 163).A passagem de Lotman realça por outro caminho um ve

lho conhecimento:. o mito é o corpo unânime de cuja fragmen

tação surgiram, na Grécia, a história e a tragédia. O interesse

deste conhecimento assim recuperado está em nos permitir, ao

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mesmo tempo, o melhor entendimento tanto da proximidade

quanto da diferença entre história e ficção. O fato de .que

ambas se realizem narrativamente, não impede que cada uma

provoque um relacionamento diverso com o mundo. O intento

do historiador é designar o mundo que estuda. Designá-lo não

no sentido de apontar o que ali já estivesse, pronto e apenas

à espera da palavra que o propagasse. Designá-lo no caso sig

nifica: organizar os restos do passado, tal como presentes ou

inferidos de documentos, em um todo cujo sentido central

mente não é da ordem do imaginário. A interpretação do his

toriador, sua forçosa interpretação, será arbitrária se, por conta

de seus valores, fundá-lo à imagem doutro tempo e fundi-lo

às expectativas e categorias deste. O intento do ficcionista écriar uma representação desestabilizadora do mundo. Como

este já é demarcado pelas múltiplas representações dos ames

cotidianos, o correto será dizer que ele cria uma representação

desestabiliz.ante das representações. Representação segunda, a

do ficcionista, que não tem o propósito de re-duplicar a pri

meira, o que a tornaria ociosa, senão que de mostrá-la à dis-

tância assim possibilitando ao receptor uma orientação diversa

da que se lhe impõe quando é mero ator . Porque próximas,as práticas do historiador e do ficcionista podem ser compa

radas e não só contrapostas. Porque enraizadas no uso da lin

guagem, de cuja capacidade organizativa depende a eficácia

de ambas, é de se esperar que o questionamento da cientifi

.cidade da história conduza ao estudo mais acurado dos pro-

cedimentos verbais escolhidos pelo historiador. A partir daí,

contudo, supor que se conduza como um ficcionista será tão

desastroso quanto tem sido para este tomar-se o seu produto

como um documento histórico. Próximos mas distintos, os dis

cursos do historiador e do ficcionista se diferenciam tanto pela

maneira como suas narrativas se relacionam com o mundo quan

to pelo modo como neles atua o narrador.

A concepção, até há poucas décadas considerada inquestioná

vel, da história como disciplina científica, tem tido conseqüên-

102

cias no mínimo embaraçosas. Por força de uma idéia positi

vista sobre o fato e o documento, o historiador, quando se

interessa pela arte em geral, tende a reduzi-la à condição de

ilustração de sua época ou doutra grande categoria historio

gráfica. (O exemplo talvez mais trágico seja The Social. historyof art de A. Hauser.) Ademais, o descrédito da retórica tem

conduzido o historiador a praticar o que ironicamente LaCapra

designa retórica cega da anti-retórica (LaCapra, D.: 1985,

42). Mas a expansão do debate sobre a natureza narrativa da ·

história não deve fazer com que o historiador corra o risco

de pensar-se 'concorrente' do ficcionista. O ficcionista não se

diferencia do historiador porque tenha a obrigação de ser 'cria

dor'. Isso é uma tolice, quando não seja uma defesa corporati

vista dos que vivem em torno da literatura. A suspeita dos

pais da filosofia moderna com a linguagem, preocupados com

seus enganos e mistificações, que os levava a querer que ela

não passasse de uma transparênc ia útil, junto com o descré

dito em que a retórica caiu no século passado, teve como con

seqüência prática que a preocupação com a linguagem passou

a estar reservada aos gramáticos e aos escritores. Contra isso,

deve-se chegar a um dia em que se ressalte que a exigênciada capacidade de criação e de uso do imaginário é prévia ao

estabelecimento das fronteiras discursivas. O oposto da indis

pensável poiesis não é a ciência, mas a rotina; a seriedade ob

tusa dos autores do que Augusto de Campos chama as teses

sem tesão . Enquanto categoria abrangente, a poiesis é dife

rentemente refratada de acordo com o campo discursivo onde

se realiza. No caso específico da história e da ficção, isso se

mostra na diferença da caracterização ·do narrador. A própria

definição que dele oferece W. Krysinski -   ( . ) figura de

transmissão entre o autor e o texto (Krysinski, W.: 1982, 115)

- não se aplica à narrativa histórica. O historiador não tem

à sua disposição o elenco de possibilidades do ficcionista. Os

romances, com freqüência, .têm narradores em primeira pessoa,mas sua presença em um relato histórico lhe dá um sentimento

genérico diverso - torna-se uma memória. A vantagem da

narração em terceira pessoa está em s.er o modo que melhor

produz a ilusão da pura referênc ia (Kermode, F.: 1979, 117).

1 3

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Mesmo que as fontes de a ilusão da pura referência" sejam

localizadas, reconhecidas e a sua prática ultrapassada, o his

toriador não teria que se ver como concorrente do romancista

ou do poeta narrativo. O fato de o documento ser uma "ficção

heurística" não o . orna menos a base para o trabalho do his

toriador. Este reconhecimento deve ter sim como conseqüên

cia para o histodador tornar-se ele atento ao caráter de cons

trução do que produz; ao caráter de sua linguagem; e como

não há construção sem teoria, da teoria que o sustenta. Isso equi

vale a dizer que sua pesquisa não se justifica pelo encontro

final do depósito invisível da verdade. Ainda pensar neste en

contro equivale a tornar o historiador um ficcionista que se

desconhece. Reconhecer na idéia de verdade-fonte a base da

ilusão do fato puro, não significa que a tarefa do historiador

não se defina pela procura de verdade - da verdade verossí

mil, da verdade afirmada por entimemas, sempre pois permea

da de elementos ideológicos (por ideologia entendendo-se a de

formação necessária de um conhecimen.to possível) . Em vez

de ser urna substância, a verdade não se afirma senão quanto

ao protocolo de verdade i.e., em relação a um conjunto de pro

cedimentos a que uma certa prática discursiva se submetecomo condição para o seu produto ser comunitariamente legi

timado. O discurso da história, como o da própria ciência exata,

é sujeito ao protocolo da verdade. O conhecimento que produz

é por certo lacunoso, fundado em restos e detritos do passado.

Nem por isso é menos conhecimento que se justifica enquanto

comprovável; qualidade a que não aspira se as suas fontes não

passarem no tríplice teste que Droysen exigia do material de

trabalho do historiador: ser um material autêntico, não incor

porar camadas introduzidas em um tempo posterior, ser corre

to, i.e., comprovar-se que houve ou pode ter havido aquilo

de que se lhe toma como prova (cf. Droysen, J. G.: 1857, §§ ·

35, 36, 144ss).

Por estar submetido ao protocolo de verdade, em princípio, o narrador na história não pode abandonar sua posição

de terceira pessoa. Ao contrário, o narrador ficcional pode

assumir posições mais variadas: ser um narrador em primeira,

em terceira pessoa ou ser um narrador-refletor, que surge nos

104

textos em que o relato não depende de um narrador distinto

das personagens, senão que a reflexão dos eventos ficcionais"

se dá a través da consciência de um personagem" (Stanzel,

F. K.: 1979, 48) A terceira modalidade aumenta a distância

entre as narrativas histórica e ficcional. O narrador-refletor

é, com freqüência , a voz pela qual se manifesta o que Wayne

Booth chamou de o na rrador não confiável". Ora, se este

se define por não atuar com normas que pudessem ser tidaspor adequadas aos valores do autor (Booth, W. : 1961, 158-9),

a inconfiabilidade do narrador - de que o nosso D. Casmurro

é uma das mais preciosas realizações - concede ao ficcionista

uma liberdade de composição muito maior que a assegurada

àquele cujo discurso. está submetido ao protocolo de verdade.

Isso então nos leva a observar que a própria prática do veros

símil. comum à história e à ficção, se especializa em duas

acepções distintas. No caso do historiador, o verossímil , a prá

tica entimêmica visam a construir uma . verdade. á ao caso

do ficcionista se aplica o que genialmente F Schlegel formu

lava no fragmento 74 dos Atheniium Fragmente:

Na prática corrompida da lin,l uagem, verossímil significa quaseverdadeiro ou um pouco verdadeiro ou o qu talvez possa um d:atornar-se verdadeiro. Por sua formação, a palavra não pode signifi

car isso tudo. O que parece verdadeiro não precisa, no menorgrau que seja, ser verdadeiro; mas deve positivamente parecê.lo

(Schlegel, F : 1798 , 1 198)

Aceitar esta segunda acepção do verossímil significa que,

ao contrário do propugnado pela filosofia pós -socrática, a ver·

dade. mesmo a não concebida como mera cantura da substân-cia do objeto, não deve ser considerada o eixo único de todos

os discursos. o discurso ficcional. ao mudar a forma de rela

ção .com o mundo, também muda sua relação com a verdade.

Ele u · fantasmagoriza, faz o verossímil perder seu caráter su

balterno e assumir o direito de constituir um eixo próprio.

profunda logofobia'', que Foucault via presente em todas

as sociedades, está diretamente presente em nossa dificuldade

l'e admitir que os vários discursos não se orientam por um

mesmo centro. O valor social do discurso ficcional não parece

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estar tanto no questionamento que ofereça dos discursos da ver

dade mas em não ter condições internas, pelo próprio tipo de

verossímil que atualiza, de se tornar verdade. Isso equivale a

dizer: acreditar que a ficção devesse se tornar a marca central

dos discursos será automaticamente convertê-la em não-ficção,

com a perda para a sociedade de não mais dispor de um dis

curso que pensa a verdade, sem pretender a postulação de

outra. O reconhecimento dos limites do discurso ficcional s -nifica a crítica da idéia de um centro único e não a postulação

doutro centro.

Em síntese, a proximidade que a narrativa estabelece entre

a escrita da história e o discurso ficcional não determina que

a história seja um gênero do segundo. Próximos, os materiais

histórico e ficcional são facilmente permutáveis, sem que cada

um, ao penetrar na territorialidade do outro mantenha a sua

identidade anterior. historia, a ficção torna um meio

auxiliar, válido enquanto suscita questões a serem testadas;

na ficção, o material histórico entra para que permita a revisão

de seu significado, que adquire a possibilidade de se desdo

brar em seu próprio questionamento. Essa é a lição que nos

passava La Chartreuse de Parme e que Claude Simon volta apraticar em La Route de Flandres e Les Georgiques.

ON LUSÕES

1. A narrativa tornou-se uma categoria exclusiva ao texto fic

cional a partir de fins do século XVIII, quando a história se

assumiu como uma forma de escrita não literária e, ao mesmo

tempo, a literatura abandonou a caracterização retórica - as

belas-letras - que a respaldara desde o Renascimento. A his

tória se afastara do solo literário para .ingressar na busca da

cientificidade. curioso entretanto notar que a formulação de

qual deveria ser a posição do historiador quanto a seu objeto

foi expressa antes daquele desgarre e obedecia aos padrões da

estética neoclássica. Em 1770, no prefácio de sua reedição da

106

Histoire de France de P.-F. Velly, Jean-Jacques Garnier escre

via que historiad or u deve encontrar um luminoso ponto de

vista a partir do qual o leitor possa facilmente conceder a seuolhar que abarque toda a seqüência dos fatos, um princípio

fecundante do qual cada fato particular seria apenas um desen

volvimento ou conseqüência (apud Gossman, L.: 1978, 16).

.Essa posição privilegiada, enquanto capaz de dar a perceber

a totalidade de seu objeto, logo receberá uma justificação cien

tífica. sob seu pressuposto que a escrita da história do sé

culo XIX assumirá um caráter narrativo. O narrador do

século XIX aparece como um repórter privilegiado que recons

trói o que sucedeu. O texto histórico não é assim apresentado

como um modelo a ser discutido, criticado, aceito ou repu

diado pelo intelecto livre e ·indagador senão que como a forma

mais íntima do real, do obrigatório e inescapável (Gossman,

L.: 1978, 24). A visão totalista da história se queria pois fun

dada no princípio da causalidade científica. Era ela que dava

atualidade à imagem criada por um Garnier, embora ele mes

mo já estiwsse então esquecido. Se essa visão totalista se so

corria do instrumental narrativo não era senão porque necessitava das palavras comuns para declarar o que seria delas in

dependente. Neutras, as palavras se punham a serviço de um

propósito científico . Daí , porém, muito tempo depois, as

críticas que Kracauer dirigirá à encarnação mesma desse tota

lismo: à história geral. Nela, as metáforas e os simples conec

t ivos - os a rran jos estilísticos, como dirá Kra ca ue r - in

troduzem um indeseJado efeito fictício: Em conjunção com

as pressões estabelecidas sobre o conteúdo da trama, esses ar

ranjos são maquinados para estabelecer padrões que conectem

o desconectado, para estabelecer contextos ilusórios e, no todo,

para solidificar a unidade .da seqüência temporal (Kracauer,

S.: 1968, 120).

Como se nota pela citação de Kracauer, a menção à narrativa histórica não tinha outra conotação salvo a negativa .

Não estranha pois que esse sinal só viesse a mudar e que o

próprio investimento na questão da narrativa histórica só fosse

acentuado com o questionamento fosse do privilégio reservado

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ao discurso científico, fosse da identificação do trabalho do

historiador com o da produção científica.

Não se trata porém de apenas reunir o que estivera sepa

rado - história e narrativa . Trata-se de desenvolver a pró

pria compreeQsão do que é a narrativa. Cumpre pois acentuar:

(a) a narrativa não se confunde com a ordenação sintagmática,

que, a partir de um enunciado consistente minimamente de um

sujeito deítico mais um verbo, anexaria infinitamente aciden

tes e conectivos; ordenação que, ademais, se oporia e restariaem segundo plano quanto a uma ordenação paradigmática,

onde um arsenal pré·constituído de leis e axiomas determinaria

o que haveria de ser dito. Essa confusão da narrativa com

uma linha conectara de acidentes se impôs à medida que se

confundia a ciência com a produção de ordenações paradig

máticas. Dentro da revisão hoje necessária, deve-se acentuar

que a narrativa é tanto linha como volume, que suas dimen

sões são tanto sintagmáticas como paradigmáticas; mas que

nunca seu paradigma tem o caráter (e a força) de modelo (re

gras ou leis imprescritíveis). Por isso mesmo a narrativa, en-quanto constitutiva, cessa ali onde há uma lei. Neste caso, a

narrativa é apenas ornamental. (Se não entendo a formulação

matemática de uma lei ou teoria física e alguém a traduz em

linguagem ordinária, a explicação será no máximo uma ·nar

rativa ornamental.) No capítulo VI, veremos que esse não é

o único limite da narrativa; que o seu limite o p o ~ t o é repre

sentado pelo poema lírico.

(b) Por narrativa constitutiva entendemos aquela que or

dena o tempo, não o embeleza .ou ilustra, através de conexões

particulares - i.e., que não valem automaticamente para qual

quer outra situação, por mais semelhante ·que possa parecer

- que se p r e s e n t m como indispensáveis, do ponto de vista do

campo discursivo em que se inclui.

(c) Afirmar que há narrativas constitutivas, peculiariza

das pela conversão do caos em ordem temporal, não significaque reduzimos o real à linguagem ou que o real é redutível ao

que dele se diz. Vale a propósito lembrar com J.-P. Faye que

o relato é a função da linguagem que relaciona o objeto e

a ç ~ o e que remete sem cessar o discurso para a . ação e para

108

o objeto (Faye, J.-P.: 1973, 37). O objeto da narrativa pre

existe a ela e não se confunde com a linguagem. A linguagem

é o seu dado formal e mediatizador. A relação pois da narra

tiva com o objeto é semelhante à que se dá , na visão de Marx,

no fenômeno da troca. Citando O Capital, comenta Faye: In

teressar-se no processo da troca é portanto ter 'de considerar

·o processo inteiro do lado da forma, ou seja, somente da mu

dança de forma ( que mediatiza a mudança material na

scciedade'. E, se é evidente que a mudança material 'determina ' bestinÍmt) a mudança de forma, esta torna possível ou

'mediatiza' aquela (Faye, J.-P.: 1973, 33). A materialidade

do objeto converte-se em forma pelo relato. E neste sentido

mesmo que falamos da narrativa constitutiva. Acrescentemos

ainda: entre os fatores material e formal, não bá relação de

dependência ou subordinação. O objeto - seja, p. ex., um

fato que se crê memorável - não determina a forma - i.e.,

sua entrada em uma narrativa histórica - senão na medida

em que é também por ela determinado. O que vale dizer: ne

nhum fato é histórico ou ficcional; ele assim se toma quando

é selecionado por um historiador ou por ficcionista.

(d) Relacionante do objeto de que fala com a ação capaz

de se produzir a partir dela, a narrativa não é apenas uma in

terpretação, se por essa entendermos um ato apenas descritivo

ou 'contemplativo'; mas é necessariamente uma interpretação,

se por ela tomarmos uma das maneiras possíveis de entendi

mento das coisas do mundo sub unar.

2. Se o interesse abrangente pela questão da narrativa

é paralelo ao questionamento da visão totalista e científica da

história, isso não equivale a postular a identidade dos campos

histórico e ficcional. Tal identidade parece efeito de um outro

debate: o relativo à natureza da verdade. Se é certo que a

visão agora contestada se apoiava ou era congruente com uma

concepção substancialista da ·verdade - a verdade como ade

quação entre enunciados e estados de coisa - seu quest iona·mento tende a ressaltar uma concepção contratualista da ver

dade -' - .   Correto e falso é o que os homens dizem e é na

linguagem que os homens concordam (Wittgenstein, L.: 1953,

§ 241). Ora, se a verdade não é o que senão o que se diz

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ser, pareceria lógico afirmar-se que o mundo humano é go

vernado por uma.· ficção generalizada. Tudo que se diz e/ou

se crê não passa de ficção. Ao afirmá-lo contudo não mante

mos, mesmo que seja sob seu avesso, a concepção substan

cialista? Não haveria problema em fazê-lo se assim. não

contribuíssemos para assegurar a não-problematização das pro

duções particularizadas, -que víamos denunciada em L Archéo-logie du savoir. B mais fecundo portanto compreender que a

não-existência da verdade como substância não · significa que

o mundo humano se mova a partir de ficções . Isso é incor

reto porque o próprio de qualquer forma e vida é congelaras convenções em que se baseia, tomando-as por verdade.

Noutras palavras, mesmo que se admita que cada forma de

se relacionar com o mundo se funda em um omo se este

ais ob não é vivenciado como tal; ao contrário, se lhe em

presta um caráter coercitivo; se 'esquece' ou congela seu ca

ráter hipotético e condicional. B importante pois compreen

dermos que, independente do debate sobre a natureza da ver

dade, há uma classe discursiva do ficcional. O discurso ficcio

nal se caracteriza por sua posição particular quanto ao hori

zonte da verdade, quer seja ela definida de f orma substancialistaou contratualista. O ficcional não afirma ou nega a verdade

de algo senão que se põe à distância do que se tem por

verdade. Assim perspectivizando a verdade, o ficcional dá con

dições de o receptor indagar-se criticamente sobre o · conteúdo

de regras que podem ser seguidas por ele próprio. O ficcional

assume o als ob subjacente a cada enunciado cotidiano; sub

jacente mas negado por seus usuários. Como diria W. Iser,

o ficcional desnuda o como se e permite que ele circule como

tal. Supor uma ficcionalidade generalizada será impedir-se

do serviço crítico capaz de ser desempenhado pelo discurso

ficcional. No sentido próprio do termo, cada discurso supõe

regras a que sua prática se ajusta. No caso da história, pelo

menos · três regras a diferenciamf do discurso ficcional. Comodizia Collingwood, o quadro traçado pelo historiador deve

ser localizado no espaço e no tempo. O do artista não neces

sita sê-lo; essencialmente, as coisas que ele imagina são ima

ginadas como sucedendo em lugar e tempo algum ; em se-

11

gundo lugar, toda história deve ser consistente com ela mesma.

Os mundos puramente imaginários não podem colidir e não

necessitam concordar; cada um é um mundo em si. Mas ·há

apenas um mundo histórico ( ; por último, o quadro

do historiador · está em uma relação peculiar com algo cha

mado evidência. ( E evidência tudo que o historiador

pode usar como evidência (Collingwood, R. G.: 1946, 246-7).

Em troca, acrescentemos, é ficção tudo aquilo a que se im

ponha o desnudamento de seu como se.3. A fecundidade da indagação do caráter r la narrativa ten

de a ser comprometida se não articularmos a força consti

tutiva que a narrativa pode ter com o entendimento da diver

sidade de regras que acompanha sua possibilidade de inserção

em formas discursiv'as distintas. Isso por certo não significa

que um enunciado, enquanto histórico, não possa se tornar

ficcional ou vice-versa.·Mas essa passagem não se dá sem uma

transformação interna, que não concerne à sua configuração

verbal mas sim à sua proposta de conhecimento. Acentue-se

· por fim :· a própria diferença entre as narrativas histórica (ou

antropológica) e ficcional não é senão histórica. Nada nos

assegura que amanhã todo nosso trabalho de distinção já não

pertença à arqueologia.

P ~ N D I C ECiência e narrativa

Desde Newton, ou, se preferirmos, desde Kant, a ciência, tendo

por base a ·física, tem sido considerada um modo uno de inte

ligibilidade; uno e superior. Unidade e superioridade resul

tantes do uso do instrumental matemático, capaz de respaldara formulação de leis

No seu sentido mais amplo, o descobrimento da matemática odescobrimento das condições abstratas gerais, que são concorrente-

111

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mente aplicáveis às relações entre as entidades de qualquer aconte

cimento concreto e que se relacionam entre si (Whitehead, A. N.:1925, 4o .

Como implicitamente já ~ p r e c e na caracterização acima,

base matemática e precipitado de lei(s) é o binômio em que

se apóia o paradigma dássico da ciência. Para o ponto de vista

que desenvolveremos será importante notar que esse b i n ô m i o ~se bem que sócio-psicologicamente destinado a oferecer uma

base tranqüilizadora a um mundo cada vez mais dessacrali

zado, não fora menos favorecido por uma certa concepção reli

giosa da natureza: ( O modo por que a Igreja medieval

havia imprimido na Europa a idéia da providência minuciosa ·

de um Deus racional e pessoal foi um dos fatores. que forta

leceram a fé na ordem da natureza (Whitehead, A. N.: idem,

75). Tal fé na ordem do mundo constituíra o horizonte dentro

do qual a ciência moderna fermentará. Não sem choques, por

certo, mas tampouco, conforme propaga a hagiografia cientí

fica, como o saudável antípoda do irracional e do supersticioso.

Ao contrário, como ainda Whitehead assinalava, em sua ori

gem, a ciência moderna se caracterizava por sua rebeldia à 

razão, tal como construída pelo pensamento medieval. Por seuapego aos fatos, às causas motoras, em detrimento das causas

finais, a ciência moderna antes se identificaria com um movi

mento anti-racional. Daí o empenho de Newton em opor às

metaphysical & precarious hypotheses a sua experimental

Philosophy (apud Cohen, I B.: 1980, 62); oposição que orien

tará seu famoso dito: Hypotheses non fingo Não fingiria hi

póteses, que se associariam à prática metafísica de seus opo·

nentes, pois seu trabalho seria o de captar os fenômenos. Mas

os fenômenos assim submetidos se confundiriam com uma

parcela da natureza? Seu comentador, Isaac B. Cohen, tem o

cuidado de acentuar os limites da descoberta newtoniana

112

Começando com um constructo simples, Newton escapa das complexidades de estudar a própria natureza. Principia com uma versãoidealizada da natureza, em que certas leis descritivas das posições .observadas e das velocidades - as leis planetárias de Kepler - semantêm exatamente. Então, cem base nas leis e princípios que

subjazem a essas leis descritivas, Newton passa a novos constructos

· e a leis e princípios subjacentes mais gerais e chega por fim à leida gravidade universal, em um novo sistema em que as três leisplanetárias originais, tal como expressas por Kepler, são, estritamente

falando, falsas (Cohen, 1 1980, 65-6)

Mas o defensor da concepção clássica de c1encia poderia

contestar que a versão idealizada da natureza era ultrapassada

pelo alcance final da lei que revela a determinação causaldo fenômeno da gravidade. Tal resposta teria um tom peremp

tório que falta no comentador que citamos. Para ele, ao invés,

entre a realidade empírica e a proposição matemática há um

hiato que não se pode descurar: .  A que conclusões somos

levados? Que a matemática é exata e que a natureza não o é.

A bela estrutura matemática mostrada pela análise de Newton

conduzia a complexidades e a dificuldades que mesmo New

ton não podia resolver plenamente, sendo assim forçado a

fazer aproximações. Ou, dito doutro modo, ao lidar com o

sistema físico do mundo, era possível ignorar certos aspectos ·

do sistema que eram mostrados pela análise matemática mas

que eram (Newton ·esperava) de tão pequena magnitude que

podiam ser ignorados dentro dos limites da observação, mesmocom os melhores telescópios do tempo. Creio que é impor

tante guardar essa distinção pois doutro modo se é levado a

·supor que houvesse para Newton uma correspondência exata

entre os constructos matemáticos o.u os sistemas imaginados

e a realidade física( (Cohen, I. B.: idem, 92).

Quaisquer que fossem os escrúpulos de Newton, por mais

fundado que pareça Cohen em defendê·lo da pecha de positi

vista avant la lettre o fato é que o prestígio das 'ciências exa

tas se associa intimamente à suposição de que elas e só elas

nos dariam acesso ao conhecimento real do muii.do. E isso

porque, através de leis abrangentes, alcançam os mecanismos

causais e deterministas.Seria essa visão ainda tranqüilamente aceitável e despre

zíveis as discordâncias? A leitura de físicos como Mário No

vello e de filósofos da ciência como Isabeile Stengers nos

indica que não. Em seu exame da teoria da origem do cosmo

113

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cerno derívado da explosão do Momo primordial , Novello mos

tra que ela pressupõe que, a partir de um momento preciso,

se bem que hipotético, o todo cósmico começaria a funcionar,

inaugurando-se com ele as categorias de tempo e espaço. Em

que a observação nos importa, se não estamos interessados

na própria hipótese? Em nos permitir acentuar que, mesmo na

ciência dura da cosmologia, uma explicação não se desen

volve sem p r ~ s s u p o s t o s que não estão tanto ao lado de masfazem parte da própria formulação científica (cf., p. ex., No

vello, M.: 1987, 47). Poder-se-ia contudo argumentar que tais

hipóteses só mantêm .esse papel enquanto uma ciência não

atinge a sua maturidade, i.e., sua plena face causal-determi

nista. Mas, conforme a exposição em que nos apoiamos. é a

próoria física contemporânea que põe. fim à lua-de-mel de

terminista da gravitação clássica e é a configuração maté

ria-vazio-matéria (que) i n f l í ~ e ( ) um sério revés à base

causal da ciência tradicional  (op. cit., 95). Ora , que signi

fica a necessidade, cientificamente imposta, de abandonar uma

descrição causal e de ceder o papel à <lescrição acidental do

mundo (ibidem. 87). senão a urgência de pensar a narrativadentro das próprias ciências duras ?

Dizíamos na introdução a este capítulo que sumariamente

a narrativa consiste no estabelecimento de uma organizacão

temporal que afeta e ordena o diverso, acidental e singnlar.

Parece longe de ocasional que, em data recente, Eric Alliez

tenha demonstrado que a articulação da ciência newtoniana

com a .filosofia de Kant tenha implicado a submissão do tem

po; domesticação que o torna abstrato e assim acessível ao

tempa descarnado e sempre r e ~ u l r do capital (cf. Alliez, E.:

1987, II, 553 ss). Se a categoria do tempo é pois fundamental

na narrativa. se ela, ademais, implica uma ordem sobre o

que se mantém acidental e não incorporável à formulação ge-nérica de uma lei, que então pode significar .a quebra da lua

de-mel da ciência com o determinismo senão· que, em algum

momento, o cientista contemporâneo terá de repensar a relação

de seu campo com a narrativa? Essa suspeita já começa a se

114

concretizar em texto inédito de 1 Stengers. Dele destaco a

passagem que mais nos importa

Einstein dissera que é miraculoso que o mundo se revele compreensível. Esta noção de milagre tem ( . ) uma dimensão de verdade( . Mas esse milagre não deve ser exagerado ( . A descoberta de uma possibilidade de abstração é um acontecimento, não

a tradução de um estado de direito e o reconhecimento dos limitesde pertinência dos conceitos cujo poder é assim descoberto pode

reconduzir o milagre às suas dimensões verdadeiras, permitircompreender em que era singular o que se achava definido comoo :>ieto de um saber abstrato. Correlatamente, ali onde o milagre

n ã ~ se p r ~ d u z ali onde não se deixa . dividir nem átomo, nemmolécula, nem planeta, nem bactéria, resta que, mesmo na física

e na química, se aprenda por índices e conjecturas que históriassingulares se deixam decifrar ( (Stengers, 1.: 1987, 24)

O estabelecimento de leis gerais, que até há pouco apa

i:ecia como o estado de direito da ciência, vem a caracterizar

apenas uma de suas regiões; outra consistindo em se apren

der a decifrar quelles histoires singulieres aí se passam. Como

essa decifração se faria sem uma produção de sentido que,

por se manter atenta e presa ao particular e acidental, não

poderá ser senão uma forma de narrativa?

Que vantagens e/ u desvantagens essa extensão da ·cate

goria da narrativa .apresenta? São claras as desvantagens: à

medida que a narrativa já não se confunde com um único

campo discursivo - o da literatura, na visão corriqueira -

ou não se restringe a campos contíguos mas distintos - os

da historiografia e da ficção - , torna-se maior o risco de não

se distinguirem suas incidências legítimas. (Isso para não falar

do problema então iminente de não se saber distinguir entre

legítimo e normativo.) Quanto às vantagens, restringimo-nos a

duas: (a) a extensão dos limites da narrativa, a sua incidência,

como produção de sentido onde leis não se firmem, no campo

da própria ciência dura , potencialmente ajuda ao ultrapasseda visão piramidal acerca dos diferentes discursos. Essa visão

piramidal, tendo as ciências exatas em seu ápice, prejudica

uma visão crítica, desde logo dos l i i ~ i t e s da própria ciência.

Seus efeitos não são desprezíveis no território da própria polí-

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tica; (b) ao passo que a ratio moderna, pelo casamento daciência clássica com . a filosofia· kantiana, concebe o tempo

como mensurável e abstrato, o reconhecimento da extensão

da narrativa pode funcionar como estímulo para a valorização do. que se enraíza no particular, do que se dá no interiorde um tempo concreto, como é a própria vida.

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