lukacs e horkheimer - conceito de praxis-libre

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1 As diferentes determinações da reificação para o conceito de práxis em Lukács e Horkheimer FLF0278 Teoria das Ciências Humanas I 2014 - Prof. Luiz Repa Artur M. Scavone nº USP 6567511 - [email protected] Introdução O objetivo deste estudo é argumentar que o conceito de reificação em Lukács e Horkheimer tem determinações radicalmente distintas para cada autor, produzindo dife- rentes consequências para a conceituação de práxis. Para Lukács é possível a consciên- cia do proletariado da sua condição de opressão, porque a reificação é reproduzida pela classe sobre ela mesma, ou seja, trata-se da possibilidade do conhecimento histórico possível porque sujeito e objeto coincidem. A reificação é uma categoria do ser social. Horkheimer, negando a tese dessa potência do proletariado, conceitua a reificação como extensão da enformação apriorística do sujeito transcendental, impeditiva do conheci- mento da coisa-em-si kantiano. Se Lukács fez autocrítica posterior da subestimação da determinação ontológica do trabalho como regulador das relações sociais, Horkheimer eliminou essa determinação e tende a uma interpretação idealista das possibilidades da consciência que conduzam à sociedade racional. Para perseguir esse objetivo pretendo analisar comparativamente os conceitos de reificação, teoria e práxis nos trabalhos de Lukács e Horkheimer, referenciando particularmente os clássicos História e Consciên- cia de Classe (HCC) e Teoria Tradicional e Teoria Crítica (TTTC). Teoria, práxis e reificação em História e Consciência de Classe A publicação de HCC impactou profundamente o campo de tradição marxista porque fez a crítica às concepções mecanicistas e reestabeleceu os vínculos filosóficos do pensamento de Marx, inaugurando um novo caminho para seu desenvolvimento. Tendo em vista o objeto a que este estudo se propõe, destaco aqui dois movimentos que Lukács fez nessa obra: colocou a categoria da totalidade como princípio fundamental do método do materialismo histórico e dialético; e incorporou os conceitos de racionaliza- ção de Weber ao analisar os desdobramentos da reificação na forma mercadoria. A mer- cadoria é a categoria universal do ser social, afirma Lukács (HCC, p. 198), e, como re- guladora das relações entre os homens na objetivação do trabalho, faz com que sua feti- chização atinja todas as dimensões das relações sociais. A racionalização baseada no

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O objetivo deste estudo é argumentar que o conceito de reificação em Lukács eHorkheimer tem determinações radicalmente distintas para cada autor, produzindo diferentesconsequências para a conceituação de práxis. Para Lukács é possível a consciênciado proletariado da sua condição de opressão, porque a reificação é reproduzida pelaclasse sobre ela mesma, ou seja, trata-se da possibilidade do conhecimento históricopossível porque sujeito e objeto coincidem. A reificação é uma categoria do ser social.Horkheimer, negando a tese dessa potência do proletariado, conceitua a reificação comoextensão da enformação apriorística do sujeito transcendental, impeditiva do conhecimentoda coisa-em-si kantiano.

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As diferentes determinações da reificação para o conceito de práxis em Lukács e Horkheimer

FLF0278 Teoria das Ciências Humanas I – 2014 - Prof. Luiz Repa Artur M. Scavone – nº USP 6567511 - [email protected]

Introdução

O objetivo deste estudo é argumentar que o conceito de reificação em Lukács e

Horkheimer tem determinações radicalmente distintas para cada autor, produzindo dife-

rentes consequências para a conceituação de práxis. Para Lukács é possível a consciên-

cia do proletariado da sua condição de opressão, porque a reificação é reproduzida pela

classe sobre ela mesma, ou seja, trata-se da possibilidade do conhecimento histórico

possível porque sujeito e objeto coincidem. A reificação é uma categoria do ser social.

Horkheimer, negando a tese dessa potência do proletariado, conceitua a reificação como

extensão da enformação apriorística do sujeito transcendental, impeditiva do conheci-

mento da coisa-em-si kantiano. Se Lukács fez autocrítica posterior da subestimação da

determinação ontológica do trabalho como regulador das relações sociais, Horkheimer

eliminou essa determinação e tende a uma interpretação idealista das possibilidades da

consciência que conduzam à sociedade racional. Para perseguir esse objetivo pretendo

analisar comparativamente os conceitos de reificação, teoria e práxis nos trabalhos de

Lukács e Horkheimer, referenciando particularmente os clássicos História e Consciên-

cia de Classe (HCC) e Teoria Tradicional e Teoria Crítica (TTTC).

Teoria, práxis e reificação em História e Consciência de Classe

A publicação de HCC impactou profundamente o campo de tradição marxista

porque fez a crítica às concepções mecanicistas e reestabeleceu os vínculos filosóficos

do pensamento de Marx, inaugurando um novo caminho para seu desenvolvimento.

Tendo em vista o objeto a que este estudo se propõe, destaco aqui dois movimentos que

Lukács fez nessa obra: colocou a categoria da totalidade como princípio fundamental do

método do materialismo histórico e dialético; e incorporou os conceitos de racionaliza-

ção de Weber ao analisar os desdobramentos da reificação na forma mercadoria. A mer-

cadoria é a categoria universal do ser social, afirma Lukács (HCC, p. 198), e, como re-

guladora das relações entre os homens na objetivação do trabalho, faz com que sua feti-

chização atinja todas as dimensões das relações sociais. A racionalização baseada no

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cálculo se impõe e rompe com a unidade orgânica de produtos acabados, tornando o

processo uma reunião objetiva de sistemas parciais racionalizados, Por outro lado, a

fragmentação do objeto da produção impõe a fragmentação do seu sujeito (Ibid., p.

203). Instaura-se a contradição entre os sistemas parciais racionalizados e a irracionali-

dade nas relações entre os diferentes setores da sociedade. Lukács destaca, no entanto,

uma condição que a categoria da totalidade permite identificar entre as mediações das

relações sociais e de produção do sistema: o proletariado é sujeito e objeto de si mesmo,

porque é o proletariado que se constrói como objetividade social alienada de si. E, por-

tanto, está dada a condição para o conhecimento desvelador da relação de exploração e

dominação. É a possibilidade histórica do sujeito-objeto idêntico na figura do proletari-

ado. Ao incorporar a categoria da totalidade e postular essa potência histórica do prole-

tariado de se auto conhecer como objeto de sí mesmo, rompendo os limites da reificação

que toma a sociedade por inteiro, Lukács identifica as condições para a destruição da

sociedade capitalista fundada em relações de exploração e dominação. Resolve por este

caminho a contradição verificada nos desdobramentos históricos posteriores ao advento

de O Capital de Marx, em que se questionava a impossibilidade de o proletariado pro-

mover uma revolução contra um sistema em que a alienação do trabalho impedia a

consciência de classe autêntica e transformadora. A construção filosófica de Lukács

põe as condições para uma teoria em que um fenômeno deixa de ser uma objetividade

cujo ser-em-si é estranho ao sujeito, porque a imediatidade reificada dos fenômenos

sociais é rompida pela mediação do próprio sujeito.

Nos interessa destacar, a partir destas considerações preliminares, os conceitos

que fundamentam os argumentos de Lukács a respeito da possibilidade do conhecimen-

to e sua relação com a práxis. Conforme observa Marcos Nobre analisando HCC, o ra-

cionalismo moderno é criticado por Lukács precisamente pela sua relação com a irra-

cionalidade, já que pretendeu um método universal para o conhecimento fundado nas

ciências da natureza, incorporando os seus particularismos e engendrando uma “segun-

da natureza”, trazendo a irracionalidade para o centro da própria racionalidade moderna.

Ao fundar-se em sistemas racionais parciais, “a totalidade torna-se inapreensível” (NO-

BRE, p. 33). Ou seja, para Lukács o racionalismo moderno incorporou com Kant a con-

tradição da relação sujeito objeto, recusando-se a apreensão da totalidade. A conclusão

dessa crítica é que a atitude do sujeito torna-se contemplativa, “uma aparência de prá-

xis”. Em oposição a essa concepção de práxis, Lukács mostra que a construção da teoria

deve estar suportada pela categoria da mediação como método para transpor “o imedia-

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tismo da empiria e dos seus reflexos racionalistas” que devem ser apreendidos como

aspectos da totalidade da sociedade em processo de transformação histórica permanente

(HCC, p. 330). E a relação entre teoria e prática deve ser compreendida como uma im-

bricação dialética de mútua transformação entre consciência e objetividade. Lukács cita

Marx: “... ‘o mundo sonha com uma coisa da qual basta que ele possua a consciência

para possuí-la realmente’. Apenas tal relação da consciência com a realidade torna pos-

sível a unidade entre a teoria e a práxis”. É a categoria da totalidade que está sendo a-

bordada, quando novamente Lukács cita Marx: “a teoria torna-se força material desde

que se apodere das massas” (HCC, p. 65). A práxis é a teoria concebida em estreita re-

lação com a ação transformadora, fruto e causa dessa transformação. As categorias ex-

primem, lembra Lukács, formas e condições de existência (Ibid., p. 69). Portanto, so-

mente essa interação dialética viva e transformadora da teoria transmutada em ação e a

ação transmutada em teoria, operando sobre as potências do momento histórico, cujos

fundamentos são extraídos da apreensão da totalidade da realidade posta, é que pode

tornar a teoria força material, tornar a consciência causa de um movimento transforma-

dor e, portanto, libertador, porque será uma consciência livre da reificação da forma

mercadoria.

Penso que é na análise das questões de organização, em HCC, que Lukács de-

senvolve melhor o tema em pauta, quando expõe em profundidade seus conceitos sobre

a categoria da totalidade aplicada à relação dialética entre teoria e práxis, revelando o

grau de importância que dá à categoria da organização como mediação que possibilita a

verificação do acerto teórico. Fiel ao método marxiano, Lukács discorre sobre as expe-

riências da II Internacional para mostrar que um objetivo pode ser pensado muito antes

da sua realização efetiva, mas o grau de acerto dessa formulação só poderá ser avaliado

quando a “totalidade concreta é reconhecível” e os caminhos para sua concretização

podem ser determinados (Ibid., p. 525). A análise crítica que busca os erros das formu-

lações teóricas, continua Lukács, precisa estar orientada para as questões de organiza-

ção, porque, quando a teoria é aplicada imediatamente à ação sem a mediação da orga-

nização, a única crítica possível é às suas contradições teóricas imanentes (Ibid., p. 532).

Recorre a Weber para distinguir a organização revolucionária do proletariado das orga-

nizações políticas tradicionais, em que o indivíduo cumpre o papel contemplativo por-

que a estrutura da consciência reificada se impõe e “a massa dos associados desempe-

nha apenas um papel de objeto” (Ibid, p. 560).

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A formulação chave de Lukács, no meu entendimento, se dá quando afirma que

“a organização é a forma de mediação entre teoria e práxis”, depois de expor a crítica à

repercussão fora da Rússia da divisão entre mencheviques e bolcheviques a respeito da

coalizão com a burguesia ou a luta ao lado da revolução camponesa, porque o conheci-

mento da situação concreta “permaneceu latente, apenas na teoria, e sua ligação com o

movimento concreto ainda conservou um caráter utópico” (Ibid., p. 529).

Para Lukács, portanto, a reificação é uma categoria cujas determinações são pró-

prias do ser social do homem, necessária à própria existência da sociedade regulada pelo

trabalho abstrato. Mas a consciência dessa realidade só pode ser conquistada pelo sujei-

to que se faz – ele próprio – objeto, o proletariado, e o caminho para essa conquista pas-

sa pela mediação da organização, porque só ela pode construir o conhecimento da ver-

dade. Não é uma ação de um sujeito transcendental, mas de uma articulação de indiví-

duos de uma classe – portanto de um intersubjetividade transcendental. Lukács não só

não especula sobre a possibilidade do conhecimento individual, como remete esse co-

nhecimento à imersão em uma organização onde um coletivo de indivíduos pode colo-

car em ação uma teoria mediada pelo filtro desse coletivo. Penso que, para Lukács, os

pólos contrários da relação dialética entre consciência e objetividade só podem alcançar

uma nova totalidade quando, na ação concreta, a consciência coletiva se revela na obje-

tividade e a objetividade se revela na consciência coletiva do proletariado. É a organiza-

ção quem permite romper o imediatismo das relações reificadas para projetar a teleolo-

gia proletária de supressão do capital ao possibilitar a busca das “determinações essen-

ciais que unem a teoria e a práxis” (Ibid., p. 531).

O próprio autor, no entanto, em sua autocrítica, afirma que sua posição teve um

viés idealista: a consciência do ser social é produto da interação homem-natureza e o

trabalho abstrato, ressalta Lukács, é a categoria social que regula a objetivação de obje-

tos e sujeitos da sociedade. Em sua autocrítica posterior, o autor ressalta a relevância

excessiva que deu à categoria da totalidade - “era vista como a portadora categorial do

princípio revolucionário da ciência” (Ibid., p.21) - ao conceituar o princípio ontológico

do “trabalho como mediador do metabolismo da sociedade com a natureza” como uma

categoria social (Ibid., p. 15). A subestimação da determinação ontológica do trabalho

como regulador das relações sociais foi um desvio, segundo sua autocrítica, que condu-

ziu a um enfraquecimento do método marxista de análise, porque a ênfase da crítica ao

capitalismo deixa de ser sobre a contradição entre o desenvolvimento das forças produ-

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tivas e as relações de produção, e recai sobre a dilaceração do proletariado. Para o nosso

objeto de estudo importa, no entanto, considerar os fundamentos da concepção de teoria

e práxis de Lukács em HCC, mesmo que, à época, a predominância de uma concepção

idealista concedesse à práxis uma “intenção subjetiva”. O autor critica seu idealismo e

aponta para a correção das idéias de Lênin, em que a consciência de classe socialista -

fruto de uma teoria e de uma práxis - é “o resultado da autêntica análise marxista de um

movimento prático dentro da totalidade da sociedade” (Ibid., p. 18). Lukács dava à sub-

jetividade um papel excessivo, de viés idealista, mas ainda assim, operando sempre com

a ideia da organização – portanto pensando no papel de uma classe e seus aliados – co-

mo mediação que torna a ação resultado e causa de uma teoria, a práxis. A reificação só

pode ser quebrada e a realidade desvelada, à medida que a classe proletária possa agir

criticamente a partir de uma organização que discipline e pratique suas políticas. Meu

interesse, neste ponto, é destacar que Lukács, quando faz a crítica ao irracionalismo

positivista e contrapõe o sujeito-objeto-idêntico à inacessibilidade do sujeito transcen-

dental à coisa-em-si kantiano, o faz contrapondo a ação orgânica histórica de uma classe

social, capaz de conhecer a verdade da história da qual ela mesma é sujeito. Não se tra-

ta, portanto, de uma contraposição à possibilidade do conhecimento do sujeito transcen-

dental considerado em sua individualidade, mas da possibilidade de que uma intersubje-

tividade transcendental possa apreender a totalidade e conhecer a sua própria realidade a

partir de uma ação orgânica – e por isso sempre coletiva – sobre sua própria história.

Reificação em Teoria Tradicional e Teoria Crítica

Em TTTC Horkheimer inicia conceituando teoria: é uma sinopse de proposições

de uma área especializada das quais se pode deduzir outras teorias. A validade de uma

teoria corresponde à concordância de suas proposições com os fatos efetivamente cons-

tatados, daí que a teoria é sempre hipotética. A construção das teorias tornou-se uma

construção matemática (TTTC, p. 119). O autor destaca que as “ciências do espírito”

têm sido tensionadas a corresponder às expectativas que as ciências naturais produzi-

ram, porque têm uma aplicação concreta, mas que, de qualquer forma, há uma identida-

de entre as diferentes escolas sociológicas e estas últimas: são os métodos matemáticos.

Marcos Nobre considera que Horkheimer segue a formulação de Lukács, ao caracterizar

a ciência do seu tempo, porque opera com a crítica da matematização e com o modelo

das antinomias do pensamento burguês para expor o “racionalismo moderno”, assumin-

do a posição de que a práxis resultante do racionalismo moderno “não é senão uma apa-

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rência de práxis” (NOBRE, 2001, p. 111). Nobre continua sua análise recuperando a

categoria da totalidade em Lukács para mostrar que ela se torna “princípio metodológi-

co” para Horkheimer e para a escola de Frankfurt. Observa que há uma apropriação

particularizada do modelo lukácsiano, porque haveria uma vertente intencional para a

totalidade da sociedade e também uma vertente no sentido de uma “práxis social geral”,

que ele qualifica de “imprecisa e vaga” (Ibid., p. 112). Na sequência desse raciocínio,

Nobre mostra então a dificuldade decorrente da posição de Horkheimer quando ele nega

a possibilidade de o proletariado poder conquistar a consciência que rompe com a reifi-

cação, até mesmo se for considerado o caminho trilhado por Lukács em direção à teoria

leninista da “consciência atribuída”. Haveria então, segundo o comentador, uma distin-

ção entre o Lukács da “ciência da história” e a fundação da Teoria Crítica em afinidade

com o pensamento tradicional, ou, nas palavras de Nobre, “o que está em causa aqui é a

retomada da ciência como força produtiva” (Ibid., p. 115). Lukács, ao contrário, conti-

nua Nobre, rejeita não só a ciência reificada, como não reconhece a legitimidade da es-

pecialização no âmbito das “ciências históricas”.

A recuperação desta análise crítica de Nobre nos ajuda a compreender as dife-

renças fundamentais nas concepções que envolvem teoria e práxis nos dois autores. O

autor destaca a recusa, por Horkheimer, do proletariado e do partido como sujeitos da

transformação possível e o reconhecimento da evolução do sistema econômico para um

capitalismo monopolista que passou a gerenciar as crises, análise que se fundamentou

nos trabalhos de Friederich Pollock. Uma conclusão de Nobre é que TTTC revela, na

realidade, “os limites de um quadro teórico”, porque nele a categoria da totalidade tor-

na-se “uma profunda confusão no conceito marxista de ideologia” (Ibid., p. 120).

Mas voltemos ao texto do próprio Horkheimer. Suas ponderações sobre o ser so-

cial destacam as diferenças entre o ser do indivíduo e o ser da sociedade, porque os sen-

tidos são pré-formados tanto pelo caráter histórico dos objetos percebidos quanto dos

próprios órgãos da percepção. O dualismo entre sensibilidade e entendimento que carac-

teriza o ser do indivíduo, no entanto, não é a mesma para o ser da sociedade, porque esta

é um sujeito ativo, embora inconsciente. É interessante notar aqui a abordagem que

Horkheimer faz separando a “existência do homem e da sociedade” como sujeitos dis-

tintos que agem no processo histórico. A sociedade no capitalismo é “um sujeito ativo”

inconsciente, composta de indivíduos, e sua atividade é cega e concreta, enquanto que a

do indivíduo é “abstrata e consciente” (TTTC, p. 125). Diferentemente de Lukács, Hor-

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kheimer tenciona sua formulação para distinguir a consciência de um indivíduo da não-

consciência do ser social, embora reconhecendo formalmente que a ação humana é um

complexo dialético de oposição entre o indivíduo e seu modo de ser, em sociedade.

Kant teria compreendido que existe uma unidade profunda entre a “subjetividade geral

de que depende a cognição individual” (Ibid., p.127). Seu objetivo é afirmar que a tese

kantiana de que as aparências sensíveis do sujeito transcedental já são enformadas –

através da atividade racional quando percebidas e julgadas, como uma “arte oculta nas

profundidades da alma”, que não nos é possível revelar – revela uma obscuridade in-

consciente que é a expressão correta da “forma contraditória da atividade humana nos

últimos tempos” (Ibid., p128). Ou seja, Horkheimer identifica na intersubjetividade

transcendental – ele não usa essa categoria, mas sim “subjetividade geral” – esse a prio-

ri obscuro que condiciona a apreensão dos objetos sensíveis, porque a “ação conjunta

dos homens na sociedade é o modo de existência de sua razão”, mas o resultado lhes é

estranho.

É interessante notar, no entanto, que Horkheimer usa “nos últimos tempos”, o

que nos obriga a entender que a enformação prévia à apreensão sensível não é uma con-

dição necessária do ser do sujeito transcendental, mas uma contingência histórica que

ele irá associar à reificação. Discorre longamente sobre as diferentes consequências da

prática social das classes sociais nas construções teóricas, tendo por objetivo mostrar

que diferentes classes têm diferentes enformações históricas na apreensão do real. Mas

o objetivo central de suas ponderações é afirmar que existe “um comportamento huma-

no que tem a própria sociedade como seu objeto” – a teoria crítica – que recusa a sepa-

ração entre indivíduo o sociedade. O pensamento crítico “é motivado pela tentativa de

superar realmente a tensão, de eliminar a oposição entre a consciência dos objetivos,

espontaneidade e racionalidade” (Ibid., p.132). Em oposição à possibilidade do proleta-

riado como sujeito-objeto-idêntico de Lukács, capaz de vislumbrar a sociedade real e

lutar contra a opressão a que é submetido, Horkheimer afirma a possibilidade da consci-

ência emancipatória derivada de uma teleologia posta pela consciência daqueles que

aderem à teoria crítica. O que foi a clareza do método cartesiano torna-se um “processo

histórico concreto”, em que se modifica tanto o processo como um todo, assim como a

relação entre o teórico e a classe: modifica-se o sujeito e o papel desempenhado pelo

pensamento (Ibid., p.133).

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Se, em Lukács, a potência revolucionária estava na possibilidade da consciência

das massas proletárias da violenta exploração a que são submetidas, evidência possível

por que o sujeito é o próprio objeto e pode libertar-se da reificação, em Horkheimer –

sob o argumento de que a diferenciação da estrutura social do proletariado e a oposição

entre os interesses pessoais e os de classe impedem a consciência da própria exploração

– a potência revolucionária desloca-se para a consciência dos intelectuais que aderem à

teoria crítica, cuja “exposição consiste na construção do presente histórico” (Ibid.). Para

explicar como se dá, então, a práxis na teoria crítica, Horkheimer argumenta que há uma

teleologia imanente à sociedade que tensiona a humanidade para uma evolução: “no

fundo sempre existiu o anseio de estender o desfrute à maioria (...) este anseio modelou

configurações culturais”. A essa tensão teleológia soma-se a consciência advinda da

experiência, porque os homens renovam uma realidade de escravidão e miséria e “a

consciência dessa oposição não provém da fantasia, mas da experiência” (Ibid., p. 134).

A função da teoria crítica é constituir a unidade dinâmica entre o teórico e a classe do-

minada de maneira a expor as contradições sociais estimulando a transformação em

direção a um estado racional.

Horkheimer argumenta que essas idéias são diferentes de uma utopia porque há

uma possibilidade real fundada nas forças produtivas, mas “esse pensamento tem algo

em comum com a fantasia”, porque é próprio desse pensamento a “tenacidade da fanta-

sia”. A teoria crítica deve introduzir essa determinação nos “grupos mais avançados das

camadas dominadas” (Ibid., p. 139). A possibilidade do projeto da Teoria Crítica está

assentada também na constituição de uma intelligentsia cujo caráter essencial é o “pai-

rar sobre as classes” e na condição do teórico, porque “não é a fonte de renda nem o

conteúdo dos fatos da teoria que determinam a situação social do teórico, mas o elemen-

to formal da educação” (Ibid., p. 140). A teoria crítica propõe uma divisão de trabalho

entre o político e o “diagnosticador sociológico que lhes aponta onde devem atuar”. Ao

terminar o texto, Horkheimer procura circunscrever o que é a teoria crítica, afirmando

que não existe uma classe social na qual ela possa se basear, pois a consciência de qual-

quer camada social é fluida: seu único critério de verdade é o interesse em suprimir a

dominação de classe, e essa “formulação negativa, expressa abstratamente, é o conteúdo

materialista do conceito idealista da razão” (Ibid., p. 154).

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Algumas considerações

Este conjunto de assertivas aponta para um sentido de práxis cujas determina-

ções estão postas na vontade do sujeito que abraça a teoria crítica e, apesar da referência

às forças produtivas, o determinante aqui é a consciência adquirida pelo esclarecimento

e pela ação determinada do teórico. À organização, como mediação que possibilita con-

quistar o conhecimento da totalidade e agir sobre o todo social, Horkheimer opõe o teó-

rico que expõe a verdade conquistada por sua persistência em perseguir a emancipação

social. Penso que Horkheimer constrói sua argumentação recorrendo a dois importantes

argumentos que o distanciam de Lukács. Para o Lukács de HCC, o motor da emancipa-

ção social é a consciência da degradação a que o proletariado é submetido e se submete,

por força da reificação da forma mercadoria, porque libertar-se dessa condição implica

romper com as relações de produção do capital. Em Horkheimer esse mesmo motor é a

imanência moral do ser social do homem – o homem tende a uma evolução que busca o

bem de todos – causa da ação teleológica não utópica dos indivíduos que aderem à teo-

ria crítica, porque essa tensão é originária, parte constitutiva do seu ser. À medida que a

força impulsionadora da consciência está nos indivíduos, a teoria crítica livra-se da de-

terminação ontológica do trabalho como regulador das relações sociais. Esta é a segun-

da grande diferença.

As consequências dessa viragem conceitual conduzem a uma formulação filosó-

fica que vê o teórico crítico como um indivíduo livre das peias das relações concretas da

sociedade capitalista, um cientista que é capaz de olhar a realidade com uma isenção

revolucionária, porque não se deixa dominar pela consciência reificada. Por isso ele

consegue conhecer a verdade da realidade em exame. Sua práxis, então, é dada pela

determinação de buscar sempre a emancipação do homem: sua vontade determina seu

ser. E essa formulação se sustenta porque Horkheimer entende ser possível romper a

barreira kantina do conhecimento do ser-em-si não como Lukács – é uma potência do

ser social conhecer sua própria ação –, mas porque a reificação é compreendida como

uma extensão da enformação apriorística do sujeito transcendental considerado enquan-

to individualidade: nós só conhecemos porque há um enformação a priori do sujeito

transcendental construída historicamente pela sociedade. Esta enformação, afirma Hor-

kheimer, muda com o processo histórico e é diferente para diferentes classes de indiví-

duos. Horkheimer precisa deduzir essa consequência para caracterizar o indivíduo que

adere à teoria crítica na condição de uma categoria social capaz de livrar-se da reifica-

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ção porque a enformação apriorística a que está submetido passa pelo filtro da consci-

ência dos processos racionais parciais, da consciência do fetiche da mercadoria, enfim,

da consciência da reificação.

Eu penso que pode haver um equívoco nesta abordagem. Horkheimer reputa às

Investigações Lógicas de Husserl como “a lógica mais avançada da atualidade” (TTTC,

p.118), e utiliza conceitos husserlianos, tais como “intuição eidética” (Ibid., p. 120)

quando argumenta sobre a reificação das ciências. Em Investigações Lógicas, na Sexta

Investigação, Husserl discute a possibilidade do conhecimento dando à evidência o pa-

pel chave desse processo. O conceito de ser, o momento em que a subjetividade trans-

cendental reconhece que algo é – etapa fundamental do conhecimento – para Husserl é o

momento da significação no preenchimento pela intuição, na tomada de consciência:

percebo o ouro, percebo o amarelo no ouro, reconheço o amarelo e concluo que o ouro é

amarelo. “O juízo e a intuição do juízo se unem para constituir a unidade do juízo evi-

dente. (...) O ser só pode ser apreendido no julgar” (HUSSERL, 1985, §44). Husserl

mostra que a percepção de um mesmo estado de coisas tem diferentes repercussões para

diferentes pessoas, assim como alterações casuais da posição relativa provocam altera-

ções na percepção de um mesmo estado de coisas de quem percebe. A significação do

percebido, no entanto, tem algo comum nos diferentes e múltiplos atos de percepção, até

mesmo se o percebido deixa de existir. Entre o ato de exprimir uma percepção e a per-

cepção há um ato doador de sentido que identifica unicamente a percepção, para além

das variantes contextuais da percepção, são os atos de significação. Na percepção de-

terminada, quando se intenciona um objeto, a percepção se constrói no ato de visar, mas

entre o perceber e o enunciar há um juízo de intuição que dá a significação do percebido

(Ibid., §7). Ou seja, para Husserl os pressupostos subjetivos do conhecimento estão nas

condições noéticas, conceito que podemos associar à ideia de enformação apriorística de

Horkheimer.

Mas estas condições noéticas constituem o próprio ser da subjetividade trans-

cendental, é a enformação apriorística que sustenta o conhecimento do sensível, que está

em um patamar primário, prévio à evidência, prévio ao conhecimento. E, se há nuances

dessa enformação para diferentes classes de indivíduos, por outro lado é necessário que

ela seja única na sua essência para toda individualidade, porque ela é a condição neces-

sária que cimenta a intersubjetividade transcendental, que fundamenta o ser social. Por-

tanto, não é a enformação, ela mesma, a reificação. A reificação é parte do conhecimen-

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to humano, um conhecimento reificado próprio do ser social do homem sob o capitalis-

mo.

Se estas considerações forem corretas, ao reduzir a reificação à condição de en-

formação apriorística, Horkheimer despe essa categoria das suas determinações econô-

micas, reduzindo-a a uma condição epistemológica, tornando possível pensar que a

consciência do cientista pode superar a reificação por determinação da sua vontade. A

sua práxis – é importante destacar que falamos da individualidade do cientista – deve

voltar-se à orientar a classe e a própria intelligentsia para uma ação emancipatória. É

uma radical distinção em relação às concepções propostas por Lukács em HCC, para

quem a práxis é determinada pela organização – portanto pela ação de uma classe – que

é a mediação necessária para a conquista do conhecimento histórico e, daí, da consciên-

cia que supera a reificação.

Bibliografia

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