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Manual de Exegese

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Manual de ExegeseJlio Zabatierowww.hagnos.com.br 2007 por Jlio ZabatieroCapaGuther Faggion1 edio agosto 2007Todos os direitos desta edio reservados para:Editora HagnosAv. Jacinto Julio, 2704815-160 - So Paulo, SP(11) [email protected] Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Zabatiero, JlioManual de Exegese/ Jlio Zabatiero. So Paulo: Hagnos, 2007.ISBN 978-85-7742-016-21. Bblia Comentrios 2. Bblia Crtica e interpretao 3. Bblia Estudo e ensino 4. Bblia Hermenutica Metodologia 5. Bblia Leitua I. Ttulo07-6682 CDD-220.601ndices para catlogo sistemtico:1. Bblia: Exegese: Metodologia 220.6012. Exegese bblica: Metodologia 220.601SumrioAgradecimentosApresentaoPrefcio do autorComo usar este manualIntroduo1. Anlise do plano de expresso2. Ciclo 1 Dimenso espao-temporal da ao3. Ciclo 2 Dimenso teolgica da ao (parte 1): Interdiscursividade4. Ciclo 2 Dimenso teolgica da ao (parte 2): Estilo e argumentao5. Ciclo 2 Dimenso teolgica da ao (parte 3): Teologia do texto6. Ciclo 3 Dimenso sociocultural da ao (parte 1): Narratividade7. Ciclo 3 Dimenso sociocultural da ao (parte 2): Interdiscursividade8. Ciclo 4 Dimenso psicossocial da ao9. Ciclo 5 Dimenso missional da ao: A releitura do textoAgradecimentosSo tantas as pessoas e instituies que me ajudaram a construir minhas idias e a ousar torn-las pblicas, que seria injusto nomear algumas e esquecer a maioria. Sinto-me na obrigao, porm, de destacar os e as estudantes de teologia que foram cobaias e vtimas de minha paixo pela interpretao da Bblia. As inmeras dvidas, inquietaes, perguntas, discusses e os diversos dilogos que vocs me proporcionaram em quase trinta anos de trabalho em instituies de educao teolgica esto, de alguma forma, presentes e cristalizadas neste livro.ApresentaoApresentaoLi Manual de exegese com muita satisfao. Tendo em vista conversas com o autor, Julio Zabatiero, aguardei este livro com grande expectativa.Esta publicao, por um lado, soma-se s vrias obras do gnero com suas matizes de metodologias exegticas, diferenciadas at certo ponto umas das outras, mas desafiadoras em mltiplos detalhes de contedo e apresentao. Por outro lado, considero-a tambm especial e inovadora na cincia exegtica bblica executada no Brasil. Como afirma o autor, o objetivo do Manual de exegese no substituir os anteriores, mas contribuir para o avano de nossas habilidades interpretativas. No se pretende fechar questo sobre determinados tpicos, mas apresentar novas perguntas e possibilidades.Em que reside, ento, a contribuio especfica deste manual? Parece-nos que, diferentemente das outras obra do gnero, esta se caracteriza por priorizar os seguintes aspectos:1. A busca da exegese e de sua cincia metodolgica definida mais como procura pelo sentido de suas aes que pelo sentido do texto. A ao testemunhada no texto se transforma na razo primordial da exegese. Dessa forma, este manual contribui para desfazer a longa prioridade da teoria sobre a prtica. A prxis crist, fomentada e orientada pela Palavra de Deus, quer ser razo e finalidade da interpretao dos textos: Lemos a Bblia para responder ao de Deus atravs da nossa ao....2. Como toda prtica, a nfase prxis neste manual est embasada numa teoria especfica e, explcita ou implicitamente, se confronta com teorias diferentes ou contrrias. A teoria qual o autor adere e que procura explicitar gradativamente ao longo dos captulos (nas sees Conceitos bsicos e Conceitos operacionais) a metodologia ou perspectiva smio-discursiva de leitura e anlise de textos. Esta, por sua vez, baseia-se em duas teorias de ao do pensamento contemporneo: a semitica e a discursiva. O autor se inspira, sobretudo, na semitica greimasiana (de cunho ps-estruturalista), que lhe fornece as principais ferramentas para entender como se produz e interpreta o sentido dos textos, e na teoria da ao comunicativa de Habermas, a partir da qual se descortina a maneira como funciona a sociedade. O corao ou alma do Manual de exegese, se assim pudermos nos expressar, esto ligados essencialmente a esse aspecto metodolgico.Esta obra pode, pois, ser definida como uma contribuio atualizada da semitica para a exegese: ela tanto depura como a semitica e sua relao com o estruturalismo at agora vm sendo entendidas nos manuais de interpretao bblica, quanto contribui para que o mtodo smio-discursivo tenha identidade prpria e, portanto, no seja simplesmente mesclado ou agregado a outras metodologias em voga.3. Admite-se a relativizao da rigidez de fronteiras entre exegese e hermenutica. Este livro no adere a teorias de progressividade na interpretao do texto bblico, como se a ordem interpretativa tivesse de resguardar sempre o primado do sentido original do texto, conforme a inteno do autor e a compreenso dos primeiros leitores (= exegese), para ento estar em condies de determinar o verdadeiro sentido da poca atual (= hermenutica). De acordo com Zabatiero, a interpretao tanto pode iniciar quanto terminar com a hermenutica e/ou a exegese. A ordem dos fatores no altera mais o resultado da pesquisa. Por essa razo, a autoria dos textos continua importante, mas no mais entendida como determinante. O Manual de exegese procura conciliar e integrar leituras orientadas nas intenes do autor e da autora (passado), da obra (passado) e dos leitores e das leitoras (presente)!Alm desses trs marcos distintivos, ressalto outros aspectos prticos que me chamaram a ateno. Em primeiro lugar, o texto no foi pensado unicamente para academias teolgicas, mesmo que as bibliografias sugeridas no final dos captulos sejam exigentes. Leituras de cunho devocional ou homiltico tambm podem fazer uso do seu instrumental. Em segundo, a obra tem a vantagem de constituir-se numa metodologia de interpretao tanto de textos do Antigo Testamento quanto do Novo. Por ltimo, h um detalhe prtico: a teoria sistematicamente posta em prtica aps a abordagem de cada captulo. H dois textos que servem de paradigma para os exerccios de interpretao bblica: Isaas 42:1-4 e Marcos 1:9-11. Leitores e leitoras so, dessa forma, incentivados a aplicar e concretizar as orientaes em seus textos de estudo e interpretao.Soma-se um ltimo detalhe aos aspectos prticos: o Manual de exegese foi pensado, discutido e redigido em solo brasileiro. Ele respira discusses contextuais, tematiza problemas que nos dizem diretamente respeito e discute Bblia e teologia a partir de uma perspectiva libertadora, social e politicamente engajada. Essa moldura especial e os posicionamentos assumidos e defendidos por Jlio colocam este manual teologicamente relevante alm das fronteiras limitadas por metodologias exegticas e hermenuticas.Assim, espero e desejo que o Manual de exegese lance boa semente para que a Palavra de Deus possa ser cada vez mais bem assimilada e coerentemente vivenciada. Que sua metodologia consiga nos sensibilizar para as aes de Deus e nos inspirar para aes coerentes com o que Deus realizou por primeiro, antes de ns e em nosso favor.UWE WEGNERPrefcio do autorSempre desejei escrever este livro. So muitas as razes. Primeira: considero importantssimo ler a Bblia, e l-la bem, de forma disciplinada, atenta e criativa. Segunda: tenho imenso prazer em l-la disciplinadamente, em procurar entender as vrias possibilidades de sentido que seus textos oferecem e em estabelecer discusso entre as vrias interpretaes que os textos recebem. Terceira: a Bblia apresenta diversas dificuldades a quem deseja l-la e entend-la bem. Os cristos primitivos tambm deparavam com essas complexidades textuais. No Novo Testamento encontramos pelo menos trs referncias a tais dificuldades: 1. A conversa entre Jesus e dois discpulos (Lc 24:12-35). 2. O colquio de Filipe com o eunuco etope (At 8:30-31). 3. A declarao de 2Pedro 3:16 sobre certas coisas difceis de entender nas epstolas paulinas.Seja qual for a dificuldade, nenhuma deveria nos impedir de estudar a Bblia com afinco, disposio, disciplina, prazer e fidelidade ao Senhor das Escrituras.Apesar do desejo de escrever este manual, tambm relutei muito. Primeiramente, porque j havia no mercado editorial bons manuais de exegese e hermenutica bblicas (um a mais, possivelmente, no faria grande diferena). Depois, porque a pluralidade de mtodos e teorias interpretativas to grande que outro manual talvez acrescentasse mais confuso que qualquer outra coisa. Por ltimo, e mais revelante, porque um manual oferece este imenso risco: pode tornar o mtodo proposto mais importante que a atividade que se prope a explicar e a descrever. Compreender as Escrituras e fazer a vontade de Deus em resposta sua Palavra mais meritrio que qualquer mtodo, e essa meta deveria ser o critrio de avaliao de qualquer mtodo exegtico.Venci a relutncia e conclu este manual.Em relao aos dois primeiros motivos da relutncia, acredito que esta proposta de leitura far certa diferena e acabar ajudando algumas pessoas a ler melhor a Bblia em busca da direo de Deus para sua espiritualidade e sua misso. Creio tambm que no trar mais confuso ao campo dos estudos bblicos, mas poder ajudar a evitar alguns dos falsos problemas desenvolvidos ao longo dos sculos o que j seria suficiente para mim. Quanto ao terceiro, a nica coisa que posso fazer alertar para o risco. Porm, o objetivo maior ler melhor a Bblia suficientemente importante para que valha a pena correr riscos.A proposta de leitura bblica est apresentada e colocada ao seu dispor. Agora cabe a voc reagir ao que aqui proposto como um caminho adequado e relevante para a interpretao da Bblia.Evitei discusses tericas sobre exegese e hermenutica. Este livro prtico. Toda prtica, entretanto, est associada a alguma teoria e est em confronto com outras teorias e prticas. H vrias outras teorias e prticas legtimas e relevantes de interpretao da Bblia. A bibliografia exegtica e hermenutica vastssima, de modo que mesmo a tentativa de apresentar uma bibliografia mnima representativa dessa variedade apresentaria lacunas significativas. No meu computador esto os primeiros esboos e textos de um livro terico sobre exegese e hermenutica bblicas, com discusses, comparaes e contrastes com outras teorias e prticas de leitura. Se eu vencer a relutncia em escrever um novo livro sobre interpretao bblica, terei muito prazer em tornar pblica tambm minha paixo pelos fundamentos tericos da prtica interpretativa.Seria quase desnecessrio dizer que quaisquer erros tcnicos, exegticos ou teolgicos so de minha inteira e exclusiva responsabilidade, mas sempre bom eximir amigas e amigos das possveis culpas derivadas de nossas crenas e atos.Como usar o Manual de exegeseComo usar o Manual de exegeseEsta obra visa a descrever e a demonstrar como interpretar a Bblia sob a perspectiva do que se pode chamar smio-discursiva. So textos prticos, do mesmo tipo das receitas culinrias e dos manuais de aparelhos eletrnicos etc. Porm, diferentemente destes, a prtica da leitura da Bblia aqui oferecida no tarefa cuja realizao dependa da obedincia aos passos propostos. A atividade de interpretar a Bblia possui dimenso tcnica. Mais importante ainda: uma prtica que se concretiza como arte, de modo que a criatividade e o envolvimento pessoal so fundamentais na utilizao deste ou de qualquer outro mtodo. A estrutura de cada captulo visa a facilitar o exerccio da criatividade, a partir do uso disciplinado de certos conceitos e regras que permitem interpretar adequadamente textos bblicos.A abertura de cada captulo mostra aspectos do texto que devem ser levados em considerao na interpretao. Em seguida, uma introduo descreve as principais questes envolvidas na observao dos aspectos do texto selecionados para a interpretao sob a perspectiva smio-discursiva. A introduo encerra com perguntas bsicas que nortearo o procedimento de leitura do texto.A seo seguinte, Como fazer, alista os passos rotineiros para aplicar as perguntas ao texto e encontrar nele as respostas. Dois exemplos demonstraro o mtodo proposto. O primeiro em forma descritiva, mostrando os andaimes usados na construo do edifcio. O segundo em carter dissertativo, mostrando os resultados da aplicao do mtodo, ocultando os andaimes. Os exemplos no podem ser entendidos como a verdadeira interpretao dos textos bblicos de base. So apenas modelos. Sugiro que voc aplique aos textos bblicos usados neste manual os procedimentos da leitura, de modo que possa no s aprender a fazer, mas perceber como a contribuio pessoal importante na interpretao bblica. A escolha de duas percopes bblicas para exemplificao tem vantagens e limites. O principal limite que nem sempre os textos interpretados apresentam as caractersticas mais favorveis para cada ciclo do mtodo. A grande vantagem est exatamente nisso. Muitos manuais usam como exemplos textos mais apropriados para cada parte do mtodo proposto. Na prtica, porm, os textos que interpretaremos no oferecem a mesma facilidade.Aos exemplos seguem as seguintes sees: Conceitos bsicos, necessrios para a compreenso e utilizao dos procedimentos metodolgicos descritos e exemplificados, e Conceitos operacionais, que servem como regras de aplicao do mtodo. Essas duas sees procuram destacar, de forma abreviada e simples, os fundamentos tericos da metodologia smio-discursiva, de modo que no s as bases do mtodo sejam entendidas, mas tambm que a comparao e o contraste com outros mtodos e suas teorias possam ser feitas por voc. Um resumo conceitual oferecido ao final dessas sees. Recorra a estas para entender os conceitos usados e apresentados nas sees anteriores, mas no explicados.A seguir, vm os Exerccios, um convite a voc para usar o mtodo com outros textos bblicos e com outros tipos de texto ou de formas de comunicao de idias, j que o aprendizado de um mtodo ocorre quando o usamos com textos e materiais diferentes daqueles usados na descrio do procedimento.O captulo se encerra com Sugestes de leitura, que se restringem abordagem terica na fundamentao do Manual de exegese sugestes de textos didticos sobre a aplicao da teoria e de textos tcnicos explicativos da teoria da produo e interpretao de textos. Voc notar que as sugestes so em nmero restrito e visam apenas a aprofundar os conhecimentos prticos e tericos necessrios para ler a Bblia em perspectiva smio-discursiva, sem pretenso de exaustividade. Se voc considerar essa perspectiva de leitura da Bblia digna de interesse e aplicao, essas sugestes proporcionaro uma biblioteca bsica de teoria e prtica da leitura smio-discursiva.IntroduoPOR QUE MAIS UM MANUAL DE EXEGESE?Porque vivemos num mundo novoA interpretao da Bblia uma prtica que tem diferentes sujeitos, tempos e espaos de realizao. Dominicalmente, pregadoras e pregadores explicam passagens bblicas a pessoas que desejam aprender, servir a Deus e tornar a vida mais feliz. Diariamente, isso feito por meio da televiso, em que telespectadores e telespectadoras so alcanados nos mais distantes cantos da Nao e de outros pases, com as mais variadas expectativas e necessidades. Semanalmente, professoras e professores de exegese e teologia bblica ensinam estudantes a interpretar a Bblia, seguindo padres acadmicos precisos, visando a formar mais pregadoras e pregadores e, quem sabe, mais intelectuais da Teologia. Diariamente, fiis de variadas confisses crists e de religies aparentadas ao cristianismo lem a Bblia em momentos devocionais, nas horas de apuro, nas celebraes familiares, para crescer na f, cumprir obrigaes religiosas ou tantos outros fins. Alm disso, muitas pessoas sem filiao eclesistica lem a Bblia por prazer, devoo, para cumprir trabalhos acadmicos, realizar pesquisas lingsticas, literrias ou culturais. Voc certamente se encaixa em uma dessas categorias.Ler se tornou uma atividade mais rara e diferente do que se fazia h dcadas. Hoje muito comum que se leia em computadores, sites da internet, chats, e-mails at uma nova lngua est se construindo: vc tb j inventou suas palavras, naum eh? :-) Adolescentes, que h poucos anos mal liam gibis, agora lem livros de mais de quinhentas pginas e aguardam ansiosamente o novo ttulo de aventuras mgicas. Uma nova lngua e novos hbitos de leitura vo tornando cada vez mais difcil ler livros grandes e antigos como a Bblia, que exigem esforo e no se submetem facilmente prtica da leitura por entretenimento.Pense na leitura da Bblia em igrejas crists. Voc ver que as interpretaes de pregadoras e pregadores aos mesmos textos so muito diversificadas. Um texto como Isaas 53 pode servir para vrios propsitos: 1. Defender a ausncia de doenas: [Cristo] carregou sobre si nossas enfermidades. 2. Afirmar a necessidade de f em Cristo: ... mas ele foi traspassado pelas nossas transgresses. 3. Defender a prosperidade: ... pois eu lhe darei muitos como a sua parte e com os poderosos repartir ele o despojo. 4. Defender a humildade e a obedincia a Deus: ... ele foi oprimido e humilhado, mas no abriu a boca.Eu poderia continuar a alistar mais e mais exemplos.A situao no to diferente nos meios acadmicos: mais e mais comentrios a cada livro da Bblia so publicados, com novas propostas de leitura, novas solues para antigos problemas exegticos, novas interpretaes para textos familiares. Nas igrejas e nas academias teolgicas, a novidade tambm moeda corrente. Imagine quantos objetivos, quantas expectativas, necessidades e realizaes desse universo de leitoras e leitores! Visualize tambm quantas teorias, quantos mtodos e quantas estratgias de leitura da Bblia existem e so praticadas diariamente!Tanta novidade assim tambm expresso de perplexidade. Sinal de que no se sabe muito bem o que fazer, de que hbitos antigos j no tm tanto valor quanto imaginvamos. Tempos ps-modernos!, diriam algumas pessoas. Tempos de relativismo, pluralismo, contextualismo e de tantos ismos que podemos escolher nosso ismo nas prateleiras dos supermercados culturais. H tambm a busca de certezas, de estabilidades, de verdades em que ainda valha a pena acreditar. Os limites dos hbitos anteriores no devem nos impedir de reconhecer seus valores e de buscar, a partir deles, aperfeioamento, melhora de qualidade, novos hbitos mais eficazes, criativos e realizadores.Por que mais um manual de leitura da Bblia ou de exegese bblica? Porque a multiplicidade de teorias e mtodos no um problema, mas o testemunho da riqueza e importncia das Escrituras. Certamente a Bblia merece ser estudada da forma mais adequada, criativa e rica possvel.O Manual de exegese no foi publicado com o objetivo de substituir os anteriores. A inteno contribuir para o avano de nossas habilidades interpretativas. No se pretende fechar questo sobre determinados tpicos, mas apresentar novas perguntas e possibilidades.Outras razes so igualmente relevantes: a Bblia importante, os tempos em que vivemos so complexos e precisamos fazer melhor algumas das coisas que fazamos antes, como, por exemplo, ler a Bblia (esta uma das prticas que valem a pena ser mantidas). Precisamos continuar lendo a Bblia, mas de modo melhor, mais criativo, fiel e transformador.Porque a Bblia um livro diferenteA Bblia no um livro, mas uma pequena biblioteca de 66 livros (no cnon protestante) ou 73 (no cnon catlico romano). Uma biblioteca de duas religies: judaica e crist; de dois mundos culturais: oriental e ocidental; de livros provenientes de lugares e pocas diferentes; de livros escritos em trs idiomas distintos (hebraico, aramaico e grego) e traduzidos para inmeros outros idiomas. Uma biblioteca sem as primeiras edies no temos nenhum manuscrito original, apenas cpias antigas tambm manuscritas, que serviram de base para as edies impressas dos textos nas lnguas originais e nas tradues.1 Uma biblioteca de livros com os mais variados gneros literrios e temas: narrativas, leis, cartas, interpretaes da histria do povo de Deus, profecias, exortaes, canes litrgicas, canes de amor etc.Outra peculiaridade dos livros bblicos em relao s nossas prticas de escrever livros que boa parte deles no foi escrita pela mesma pessoa, nem num curto perodo. Para ser exato, nem deveramos chamar os livros da Bblia de livros, pois isso j nos faz pensar em um tipo muito especfico de obra. Veja o livro de Salmos no se trata realmente de um livro, mas de uma coletnea de oraes, poemas e hinos litrgicos, escritos por pessoas diferentes, em pocas e lugares distintos, e usados em diversas liturgias e festividades clticas ao longo da histria de Israel. Os doze livros dos profetas menores, por sua vez, eram considerados um nico livro nos tempos bblicos aps sua escrita porque eles ocupavam um rolo de pergaminho (um dos materiais de escrita utilizados ento). A chamada literatura paulina se compe exclusivamente de cartas, assim como as obras de Pedro e Judas, e h um livro do Novo Testamento que no nem livro, nem carta, nem sermo: a epstola (carta) aos Hebreus.Essas caractersticas da biblioteca que chamamos de Palavra de Deus exigem, conseqentemente, um trabalho interpretativo disciplinado. Mesmo se o objetivo da leitura for devocional, no podemos abrir mo de interpretar o texto a partir de suas caractersticas literrias e lingsticas, nem podemos deixar de ler o texto luz do prprio contexto. Uma leitura devocional no ter as mesmas caractersticas de uma leitura acadmica, mas os princpios bsicos, derivados da natureza sociocultural da Bblia, no podem deixar de ser aplicados.A diversidade literria, social, cultural e religiosa da Bblia gerou, em meios acadmicos, amplas e detalhadas pesquisas, e constituiu um campo de estudos composto 111AsediesimpressasdaBbliasomuitorecentes.Durantemuitossculos,oslivrosdaBbliaerammanuscritos,copiadosgeraoapsgerao,circulandoemvrioslugaresesorendope!uenasalteraesnoprocessodecpia.por vrias disciplinas acadmicas: geografia e arqueologia bblicas, introduo aos escritos bblicos, histria dos tempos bblicos, estudo dos idiomas bblicos, teologia bblica, exegese e hermenutica bblica. As riquezas da pesquisa acadmica da Bblia no podem ser desperdiadas, mesmo quando no seguimos seus mtodos, no concordamos com seus resultados ou simplesmente quando nossos interesses na leitura das Escrituras so distintos dos interesses acadmicos.Graas a esse imenso esforo de muitas pessoas ao longo dos ltimos trs sculos, temos hoje disposio uma vasta bibliografia especializada em diversas reas do estudo da Bblia. Gramticas e livros-texto para o aprendizado das lnguas bblicas, lxicos e dicionrios teolgicos de grego, hebraico e aramaico; sries de comentrios exegticos, literrios, sociolgicos, homilticos, feministas etc.; compndios de arqueologia bblica, histria de Israel, histria do perodo do Novo Testamento; introdues ao Antigo e ao Novo Testamento; manuais sobre formas literrias da Bblia; manuais de crtica textual, de metodologia exegtica e muito mais. Graas a essa bibliografia, nosso trabalho de interpretao fica bastante facilitado, pois muitas questes j foram resolvidas por estudiosos. Ao mesmo tempo, porm, precisamos tomar cuidado com a maneira pela qual usamos essa bibliografia. Ela no pode substituir o trabalho de anlise cuidadosa e interpretao do texto bblico; antes, deve servir de auxlio, e no de guia, nossa interpretao.Para muitas pessoas, a Bblia apenas mais uma coleo de livros. Mas para muitas outras, gente como ns, que lemos manuais de exegese como este, muito mais que uma coleo de livros. Palavra de Deus. Como palavra de Deus, nos encanta (quantos textos da Bblia marcaram nossa vida por sua beleza e riqueza), s vezes nos chateia (experimente ler aqueles vrios captulos de genealogias, de descries de rituais sacrificiais etc.), nos faz trabalhar duro para entend-la (afinal de contas, quem so as bestas do Apocalipse? O que era o tal batismo pelos mortos que os cristos corntios praticavam? Quem eram os filhos de Deus que se casaram com as filhas dos homens? etc.). Como palavra de Deus, nos desafia, nos exorta, nos ensina, nos corrige, nos conforta, nos transforma, alimenta nossa f, nos capacita a fazer a vontade de Deus, a sermos felizes, a praticarmos a misso e seus ministrios.Porque o caminho aqui proposto diferenteResumindo e simplificando quase ao extremo, as prticas de exegese da Bblia mais comuns nos ltimos duzentos anos so: 1. Leituras devocionais dos mais variados tipos, nas quais se busca, de forma intuitiva e sem muito trabalho com o texto, ouvir o que Deus tem a nos dizer hoje. 2. Leituras homilticas dos mais variados tipos, nas quais o texto estudado em funo do que se busca: o melhor sermo para a comunidade. 3. Leituras tcnicas ou acadmicas, principalmente as histricas (exegese histrico-crtica e exegese histrico-gramatical), as mais antigas e ainda mais comumente praticadas no ambiente acadmico, mas tambm as sociolgicas, as antropolgicas, as feministas, as de raa, as diaconais.O que todas essas formas diferentes tm em comum? De uma forma ou de outra, todas buscam o sentido do texto. Nos manuais tcnicos de exegese, quase sempre se define a tarefa da interpretao como entender o sentido original do texto, conforme a inteno do autor, e a compreenso dos seus primeiros leitores esse o primeiro passo, a partir do qual se pergunta pelo sentido do texto para ns hoje. O que varia nos manuais principalmente a ordem dessas tarefas. Tradicionalmente, a ordem a que descrevi: a exegese tem prioridade sobre a hermenutica. Recentemente, essa ordem tem sido invertida a hermenutica tem prioridade sobre a exegese.Em que sentidos este manual oferece um caminho diferente?Em primeiro lugar, o mtodo proposto pode ser usado igualmente para leituras devocionais, homilticas e tcnicas, conforme o interesse de quem estuda da Bblia, que selecionar, ento, partes do mtodo que lhe sejam mais teis.Em segundo lugar, porque no se prende ordem do hbito acadmico de interpretao bblica voc pode comear com a exegese ou com a hermenutica. Tanto faz, pois, de fato, sempre que lemos fazemos as duas coisas simultaneamente. S as distinguimos por razes metodolgicas e didticas. Por isso, neste manual, uso indistintamente os termos exegese, interpretao, leitura, hermenutica. So termos que, na histria, receberam sentidos diferentes e definiram propostas distintas de leitura, mas precisam ser revistos e reconhecidos como sinnimos.Em terceiro lugar, porque a tarefa fundamental da exegese no vista como a compreenso do sentido do texto, mas dos sentidos da ao no texto e a partir do texto. Essa mudana representa uma tentativa de ir alm dos limites da interpretao moderna da Bblia, limites impostos pelas discusses e conflitos entre f e razo, cincia e revelao, objetividade e subjetividade, desmo e tesmo; e, mais importante, pela prioridade do sujeito individual, masculino, branco, racional e norte-atlntico, e pela prioridade da teoria sobre a prtica. A leitura da Bblia tarefa de comunidades crists, eclesiais, missionrias, acadmicas, familiares. A leitura da Bblia parte integrante da espiritualidade crist e da ao ministerial e missionria. Isto exige uma mudana do centro da tarefa: por isso o sentido da ao vem ocupar o lugar do sentido do texto enquanto tal.Em quarto lugar, porque integra as trs grandes tendncias da leitura: a baseada na inteno do autor (ou autora), a baseada na inteno da obra e a fundamentada na inteno da leitora ou do leitor. O eixo central a obra, o texto enquanto expresso de um contedo simultaneamente pessoal e social, pelo que a autoria importante, mas no determinante do sentido.Em quinto lugar, porque a mudana da tarefa exige mudana da teoria e do mtodo interpretativos. Precisamos de uma teoria da ao que seja, tambm, uma teoria do sentido. Precisamos de um mtodo que priorize a ao, mas simultaneamente seja apropriado para o trabalho com textos, pois nos textos que se testemunha da ao de Deus e de sua criao.Em sexto lugar, porque a mudana da tarefa exige mudana de objetivos da interpretao da Bblia. Neste manual, o objetivo fundamental da leitura da Bblia a prxis crist. Lemos a Bblia para responder ao de Deus atravs da nossa ao, como membros do povo de Deus, visando ao crescimento espiritual, edificao da igreja, realizao da misso, transformao das pessoas, grupos sociais e da prpria sociedade. Enfim, visando expanso do reino de Deus que, como Pai, Filho e Esprito Santo, glorificado quando sua vontade realizada na terra e seu propsito se concretiza em nossa vida.A novidade e as diferenas deste mtodo, porm, no significam reinventar a roda. medida que voc l este manual, perceber o seguinte: quase todos os procedimentos metodolgicos exibidos aqui esto presentes, de uma ou de outra maneira, em vrios dos outros mtodos de exegese bblica. O que muda bastante a ordem, a configurao desses procedimentos, de modo que a ao possa estar no centro da leitura e a prxis no resultado da leitura.Os motivos dessas mudanas derivam das teorias adotadas, especialmente da semitica. E aqui necessria breve nota crtica. Vrios manuais recentes de exegese, publicados em portugus, tm includo captulos sobre estruturalismo e semitica. Entretanto, dois aspectos precisam ser notados: primeiro, de modo geral, esses manuais confundem estruturalismo com semitica, ou ento trabalham com conceitos e princpios desatualizados da semitica; quase todos confundem semitica com ler o texto fora do seu contexto (fora da histria), o que no verdade, como voc ver. O segundo aspecto que todos mantm suas perspectivas de exegese e tentam inserir a semitica como um dos passos metodolgicos. Isto mais atrapalha que ajuda. Este manual incorreria no mesmo problema se tentasse inserir os passos da metodologia histrico-crtica, ou a sociolgica, ou a histrico-gramatical nos seus procedimentos. Podemos fazer que os mtodos dialoguem entre si e se complementem, mas no podemos misturar seus procedimentos, sob pena de desfigurar o mtodo antigo e o novo.A LEITURA SMIO-DISCURSIVA CENTRADA NA AOUma teoria semitica e discursivaA fonte terica desta proposta se alimenta de duas vertentes do pensamento contemporneo: a semitica e a discursiva. Ambas so teorias da ao e do sentido, por isso adequadas para o caminho de leitura aqui proposto. Duas escolas de pensamento so a inspirao principal para a teoria da leitura smio-discursiva centrada na ao: a) a semitica greimasiana, que se especializou na compreenso e explicao de como se produz e se interpreta o sentido de textos;" e b) a teoria da ao comunicativa de Habermas,# que se especializou na compreenso e explicao de como funciona a sociedade. Uma caracterstica comum a essas escolas de pensamento a abertura para aprender com outras cincias e escolas de pensamento, incorporando esse aprendizado s suas prprias categorias e formas de anlise.Alm dessas escolas, aprendi muito com outras formas de semitica e de anlise do discurso, e tambm procurei incorporar esse aprendizado a essas vertentes principais de minha proposta de leitura. Procurei, entretanto, subordinar esse uso aos objetivos e s peculiaridades da leitura da Bblia. Alm disso, esforcei-me tambm para incorporar teoria aqui adotada os valores e princpios tericos da histria da interpretao da """Algirdas$ulien%reimasoioundadordateoria!ueseconvencionouc&amardesemiticadaescolade'aris,ou,simplesmente,semiticagreimasiana.(livrode%reimas!ueinauguraasemiticagreimasianaoipublicadoem1)**eataediodeseu+ltimolivro,em1))1,%reimaseseusdiscpulosecolegasdesenvolveramateoriaatc&egaraoormatoatual,umateoriacomvriascorrentes,con&ecidaepraticadaemmaisdecempases.-olivroDaimperfeio.ve/aassugestesbibliogricasdestecaptulo0,autoreslatino1americanosa2emumasntesedaobrade%reimasedoatualestadodateoriasemiticagreimasiana.###$3rgen4abermasrecon&ecidocomoumdosmaioresilsoosesocilogosvivos.Autordeumgranden+merodelivroseartigosacad5micos,tornou1seumareer5ncianosestudosilosicosesociolgicosapartirdapublicaodesuaobramagnaTeoriadaaocomunicativa,emmeadosdosanos1)67.8riostelogost5mdialogadocomopensamentode4abermas,especialmentenaAleman&a,9stados:nidoseBrasil.9mnossopas,acontribuiode4abermastemsidomaisutili2adaportelogosprticos,eestpresentenaobraTeologiaprticanocontextodaAmricaLatina,9d.;inodal,editadaporeolgica;ul1Americana.-olivroDialticae&ermen5utica.sugestesbibliogricasdestecaptulo0,voc5encontrarumasntesedopensamentode4abermassobreainterpretao.Bblia, especialmente a ligada aos ambientes evanglicos e acadmicos de exegese e hermenutica.Os conceitos, procedimentos e estratgias de leitura derivados dessa teoria no sero apresentados neste captulo. A leitura seria por demais enfadonha e desestimulante. Preferi distribuir os conceitos tericos ao longo dos captulos em que descrevo o mtodo da leitura smio-discursiva centrado na ao. Isso torna a leitura mais agradvel. Ademais, o aprendizado da teoria e da prtica da leitura ocorre de forma mais integrada e simultnea.No cabe aqui, igualmente, a defesa da teoria adotada. Teorias, por sua natureza, s podem ser testadas e validadas na prtica. Eu poderia alistar exemplos e tecer argumentos sem-fim para tentar provar a voc que esta teoria melhor que outras, mais adequada, eficaz etc. Mas isso desnecessrio e, em certo sentido, impossvel de se concretizar. Teorias so entidades muito abstratas. H vrias teorias legtimas para explicar textos, sentido, interpretao, ao. No se pode provar qual delas a melhor. O que fazemos escolher uma e trabalhar com ela para, na prtica, conferirmos seu valor e aperfeioarmos seus conceitos e princpios.Para voc que gosta de situar as teorias na histria e no mundo acadmico, utilizo a teoria semitica greimasiana em uma de suas formulaes mais atualizadas, bastante diferente das formulaes iniciais nos anos 1970, por exemplo. A semitica greimasiana aqui adotada de cunho ps-estruturalista; no entende o sentido apenas como produto mental, mas como emocional e corporal; valoriza sobremaneira o carter social e conflitivo da produo do sentido, bem como o elemento tensivo e passional na formulao do sentido. Da teoria da ao comunicativa extraio principalmente a definio da sociedade e seu enfoque que prioriza a comunicao entre as pessoas como a base da construo social da realidade. Tambm utilizo uma verso atualizada dessa teoria, que leva em considerao as crticas que ela recebeu desde sua formulao (em meados de 1970), bem como os recentes debates de Habermas com a filosofia analtica contempornea, com a nova filosofia continental e com o neopragmatismo americano.No defenderei essas teorias neste manual, nem me preocupei em descrever seus principais conceitos e desenhar suas estruturas. O objetivo deste livro no terico, mas prtico pretende ensinar a fazer, dedica-se a mostrar como podemos interpretar textos bblicos de forma que a prxis crist seja o seu resultado final. Se voc se interessa pelas teorias, neste livro voc encontrar sugestes bibliogrficas para saciar seu interesse.Um mtodo centrado na ao e composto por ciclosProcurando ser coerente com a teoria escolhida e, principalmente, buscando um mtodo adequado ao texto bblico e aos objetivos da leitura da Bblia, experimentei vrias seqncias e estratgias de leitura. Testei-as em minhas classes de exegese, em grupos de estudo bblico, em discusses com colegas no ensino da exegese, com lingistas e filsofos. Cheguei, assim, formulao que apresento neste manual: um mtodo cujo centro a compreenso do sentido da ao e que se realiza atravs de cinco ciclos que giram ao redor do centro e se complementam mutuamente. A escolha e a ordem dos ciclos no aleatria. Seguem trs princpios: comeamos com os procedimentos mais simples e fceis, e caminhamos progressivamente aos mais complexos e difceis. O segundo princpio deriva das teorias que fundamentam o mtodo; os ciclos e as perguntas que os compem sintetizam todo o amplo espectro de questes que a teoria semitica do texto desenvolveu, contando com o apoio da teoria da ao e da sociedade de Habermas. O terceiro princpio tambm de ordem prtica: permite a quem utiliza o mtodo adapt-lo aos seus interesses e habilidades, bem como, se quiser, fazer o mtodo crescer em complexidade, luz das suas teorias de base.Penso que consegui chegar a uma estrutura metodolgica que d conta da complexidade da tarefa exegtica sem ser reducionista ou academicista; que possa ser usada igualmente por pessoas sem formao teolgica e por especialistas em teologia ou outras cincias da interpretao. Dependendo dos seus interesses, voc pode comear em qualquer um dos ciclos, pode passar por todos eles, selecionar um ou mais deles, dar mais nfase a um ou a aspectos de um desses ciclos. claro que muito depender de seus conhecimentos gerais sobre a prpria Bblia e sobre as sociedades e pocas em que ela foi escrita, alm do seu comprometimento com a disciplina de estudo e com a prxis crist no presente. Depois de algum tempo de prtica, os cinco ciclos vo como que se transformando em um s, e a leitura se torna um processo simples, habitual, unificado. Com a prtica, enfim, voc mesmo ir reconstruindo o mtodo, adaptando-o s suas habilidades, aos seus interesses e conhecimentos. Um mtodo : 1. Uma ferramenta. Seu valor depende da adequao ao propsito para que usada (tente desparafusar com um martelo) e da habilidade de quem a usa depende muito mais dessa habilidade (que digam as pontas dos dedos de quem martela sem muita habilidade). 2. Um mapa. Seu valor est na ajuda que oferece pessoa para chegar ao destino desejado. Por isso, no pode ser muito complicado, seno a gente se perde antes mesmo de comear a viagem. 3. Um andaime. Enquanto construmos nosso edifcio interpretativo, precisamos dos andaimes para fixar os tijolos, reboc-los, pintar as paredes etc. Depois do edifcio pronto, os andaimes so desfeitos e usados para outras finalidades. 4. Uma tcnica a servio da arte. Ler a Bblia uma arte e, como toda arte, precisa de tcnicas que facilitem a prtica do talento e da criatividade. Tcnicas devem servir arte, e no domin-la.A eficcia do mtodo depende da pessoa que o utiliza. No caso da interpretao da Bblia, mais importantes que o mtodo que usamos so: os conhecimentos que temos da prpria Bblia e do mundo no qual foi escrita; os conhecimentos que temos da histria da interpretao da Bblia e seu uso nas igrejas e academias; os conhecimentos que temos de nosso mundo e de ns mesmos nesse mundo; os hbitos que j desenvolvemos e as certezas que j temos.Alm desses conhecimentos, os sentimentos e as aes interferem na leitura da Bblia. A disposio tica, a espiritualidade e os relacionamentos tambm afetam a maneira como usamos os mtodos. Isso sem mencionar a imaginao e a criatividade, pois ler criar um novo texto a partir do antigo, imaginar uma nova realidade a partir das palavras que nos desafiam. Tudo isso influencia muito mais a leitura do que o prprio mtodo.O mtodo, ento, dever nos ajudar a realmente ler e ouvir o texto bblico, mais do que ler e ouvir nossas tradies e certezas sobre o que o texto diz. Neste sentido, pode-se dizer que o mtodo deve nos ajudar a ler a Bblia contra nossas verdades mais acalentadas e hbitos mais empedernidos. S assim poderemos ler a Bblia a favor do reino de Deus, e subordinar nossas verdades e nossos hbitos quele que o Caminho, a Verdade e a Vida.H pessoas que valorizam tanto a leitura e o mtodo em si, que acabam se distanciando dos objetivos da exegese bblica. H pessoas que valorizam tanto os mtodos e as teorias que formam grupos to fechados e criam fronteiras to rgidas que, se algum usar outro mtodo, a leitura ser considerada ruim, inadequada e sem valor. Nas palavras do musicista Oswaldo Montenegro, so pessoas que, como certos pescadores, se encantam mais com a rede do que com o mar. No custa repetir e enfatizar: a exegese est a servio da prxis crist, est a servio da prpria finalidade das Escrituras, conforme a encontramos em 2Timteo 3:16-17: Toda Escritura inspirada por Deus e til para o ensino, para a repreenso, para a correo, para a educao na justia, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente preparado para toda boa obra.Afinal de contas, como esse mtodo? Apenas um conjunto de atividades e de perguntas escolhidas a partir da teoria smio-discursiva e da prtica da leitura da Bblia. A simplicidade do mtodo est a servio da criatividade, da habilidade e do empenho da pessoa que interpreta o texto. Voc quem far do mtodo a melhor ferramenta, o melhor mapa, o melhor andaime ou a melhor tcnica possvel. Nesta introduo apenas alisto os diferentes passos da leitura. A descrio e explicao de cada passo do mtodo sero feitas nos captulos a seguir.Sem mais suspense, eis o mtodo!FASE PRELIMINARFamiliarizar-se com o texto em seu contexto literrio 1. Ler o texto bblico at ficar amplamente familiarizado com ele. 2. Anotar suas primeiras impresses e dvidas sobre o texto (revis-las a cada ciclo da leitura). 3. Ler o livro, ou seo do livro, ao qual o texto pertence, notando as principais inter-relaes (vocabulrio, pessoas, lugares, assuntos). 4. Definir, provisoriamente, a poca em que o texto foi escrito e conhecer o mximo que puder sobre ela.FASE PREPARATRIAAnalisar o texto enquanto plano de expresso 1. Qual o texto a ser interpretado (do ponto de vista da crtica textual e gentica)? 2. Como o texto est delimitado, segmentado e estruturado? 3. Que elementos do plano de expresso contribuem mais intensamente para a produo do sentido?FASE FINALAnalisar o texto enquanto plano de contedoCICLO 1: DIMENSO ESPAO-TEMPORAL DA AO 1. Quem age, onde, quando, fazendo o que, a quem? 2. Como so caracterizados agentes, pacientes, tempo e espao? 3. Como o texto organiza essas aes e relaes no tempo e no espao?CICLO 2: DIMENSO TEOLGICA DA AOQuais so as possibilidades de sentido teolgico da ao e como elas esto organizadas 1) intertextual e interdiscursivamente, 2) estilstica e argumentativamente e 3) sinttica e tematicamente?CICLO 3: DIMENSO SOCIOCULTURAL DA AOComo o texto, em interao com seu mundo-da-vida, d sentido ao sob os pontos de vista da 1) sociedade; 2) cultura; e 3) religio?CICLO 4: DIMENSO PSICOSSOCIAL DA AOComo o texto, em interao com seu mundo-da-vida: 1. Descreve as relaes passionais no texto? 2. Constitui a identidade dos agentes a partir de seus objetivos, motivos, de suas competncias e relaes passionais?CICLO 5: DIMENSO MISSIONAL DA AOQue possibilidades de ao e do sentido da ao o texto constitui no dilogo conosco?Como podemos pratic-las e/ou reescrev-las em nossa realidade?AO TRABALHO!Este manual mais um passo na instigante jornada em busca de ler melhor a Bblia. Voc no encontrar a ltima palavra sobre a leitura das Escrituras, nem o manual definitivo de exegese bblica, mas uma proposta desafiadora, exigente e renovadora, que nasceu da minha prtica de leitura da Bblia, de ensino da Bblia na igreja, de ensino de exegese bblica em faculdades de teologia, de ensino e estudo das Escrituras em comunidades populares, em grupos de estudantes e em movimentos sociais. Um projeto oriundo das minhas leituras de manuais de exegese, comentrios bblicos, dicionrios de teologia bblica, compndios de hermenutica, obras de filosofia da linguagem, lingstica, semitica, histria da leitura. Um sistema proveniente da minha busca por uma forma mais eficaz de leitura da Bblia, adequada aos estudos acadmicos, aos momentos devocionais e capacitao do povo de Deus para a misso.Esta proposta que tem vrios pais e mes. Embora eu seja o responsvel pela redao, com certeza no sou o inventor do contedo, das preocupaes e dos motivos. Considero-me um organizador. Tantas leituras, tantas experincias, tantos grupos de estudo me fizeram aprender muito e me desafiaram a colocar em ordem esses aprendizados para, Deus queira, ajudar pessoas que, como eu, tambm querem ler mais e melhor a Bblia.Depois de alguns anos de trabalho, finalmente terminei este manual. Espero que seja a primeira de vrias edies, pois ele precisa de aperfeioamento que acontecer a partir da sua prtica crtica, leitora ou leitor; do uso desta proposta por vrios grupos, que iro test-la, encontrar seus limites, perceber seus valores, oferecer alternativas e propostas de enriquecimento, ou, simplesmente, vo deixar de lado esta proposta e continuar com seus hbitos de leitura, ou inventar novos. Aperfeioar incessantemente! Este o lema de toda pesquisa e de toda disciplina de estudo.SUGESTES DE LEITURATextos didticosDISCINI, Norma. A comunicao nos textos. So Paulo: Contexto, 2005.SAVIOLI, Francisco Plato & FIORIN, Jos Luiz. Lies de texto: leitura e redao. So Paulo: tica, 1996._____. Para entender o texto: leitura e redao. So Paulo: tica, 1991.Textos tcnicosBARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semiticos. So Paulo: Atual Editora, 1988.BERTRAND, Denis. Caminhos da semitica literria. Bauru: EDUSC, 2003.FIORIN, Jos Luiz. Elementos de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2005. (13 ed. revista e ampliada).Textos tericosGREIMAS, Algirdas J. Da imperfeio. So Paulo: Hacker Editores, 2002._____ & COURTS, J. Dicionrio de semitica. So Paulo: Cultrix, 1989._____. Semitica: Diccionrio Razonado de la Teora del Lenguaje. Tomo II. Madri: Editorial Gredos,1991._____ & FONTANILLE, J. Semitica das paixes: dos estados de coisas aos estados de alma. So Paulo: tica, 1993.HABERMAS, Jrgen. Teora de la Accin Comunicativa. I Racionalidad de la accin y racionalizacin social. Madri: Taurus, 1987._____. Teora de la Accin Comunicativa. II - Crtica de la razn funcionalista. Madri: Taurus, 1987._____. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. (2 volumes)_____. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.1Anlise do plano de expresso9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazar da Galilia, e por Joo foi batizado no rio Jordo. 10 Logo ao sair da gua, viu os cus rasgarem-se e o Esprito descendo COMO POMBA sobre ele. 11 Ento foi ouvida uma voz dos cus: Tu s o meu FILHO AMADO, em ti me comprazo.12 Imediatamente o Esprito impeliu Jesus para o deserto. 13 Durante quarenta dias, no deserto, ele foi tentado por SATANS. Vivia com as feras, e os anjos o serviam.14 Depois que Joo fora entregue, Jesus veio para a Galilia. Ele proclamava o Evangelho de Deus, e dizia: 15 Cumpriu-se o tempo, e o Reinado de Deus aproximou-se: convertei-VOS e crede no Evangelho.Marcos 1Um dos hbitos de leitura da Bblia, compartilhado pelas leituras devocionais e acadmicas, o de selecionar pequenos trechos para a interpretao. Na linguagem no-tcnica, chamamos esses trechos de passagens, que usamos para meditar, preparar estudos bblicos, sermes, homilias etc. Na linguagem tcnica, esses pequenos trechos so chamados percopes (literalmente, cortado ao redor), usadas para a organizao dos comentrios exegticos, preparao de sermes, dissertaes, teses etc. Uma percope , assim, um pequeno trecho bblico usado para o estudo e a comunicao da Bblia. Em alguns casos, como em Salmos, vrios deles so uma percope. Em muitos casos, difcil chegar a um acordo quanto diviso de um livro da Bblia em percopes. Isso porque os livros foram escritos em outras culturas, com critrios diferentes dos nossos para organizar e estruturar textos.Onde comea e termina uma percope? Uma forma bem clara de saber simplesmente seguir a diviso da Bblia em percopes que encontramos nas tradues contemporneas. Outra, seguir a diviso em percopes de algum comentrio bblico. Podemos, porm, tentar descobrir por ns mesmos quais so as percopes. Temos ento de prestar ateno nas marcas lingsticas que nos orientam na delimitao das percopes (delimitar estabelecer limites, definir comeo e fim). Observe em Marcos as palavras em itlico, negrito, VERSALETE e sublinhadas. Elas funcionam como marcas lingsticas que podemos usar para delimitar as percopes desse trecho da Bblia. Por exemplo, os versculos 9, 12 e 14 comeam com um advrbio de tempo (mudanas no tempo dos acontecimentos um dos sinais de delimitao); as palavras sublinhadas mostram que h, alm das mudanas no tempo, mudanas no espao: Jordo (v. 9), deserto (v. 12) e Galilia (v. 14). Nos versculos 9, 13 e 15, os termos em versalete indicam mudana de personagens (Joo, Satans e os galileus [vos]). Por fim, nos versculos 9, 13 e 14 temos verbos em negrito, que nos mostram que h mudanas de assunto: batismo, tentao e proclamao.INTRODUOEstamos iniciando o processo de interpretao. O ponto de partida a Fase preliminar: a familiarizao com o texto a ser interpretado. Marcos 1:9-11 e Isaas 42:1-4 sero nossa base. Familiarize-se com ambos. Lembra-se como? Leia e releia as percopes, pelo menos o captulo onde se encontram (no caso de Marcos, sugiro at o captulo 3, e no de Isaas, pelo menos os captulos 4044). Defina provisoriamente a poca da escrita. Para esta primeira definio, use a bibliografia acadmica.A datao de livros bblicos no um processo exato. As datas sugeridas pelos estudiosos, na maior parte, so aproximaes. No caso do evangelho de Marcos, discute-se se foi escrito antes ou depois da destruio do templo de Jerusalm, em 70 d.C., pelos romanos, que sufocaram a revolta judaica contra o Imprio. Do ponto de vista do mtodo exegtico aqui exposto, essa definio secundria voc escolhe a datao que considerar mais adequada luz da bibliografia que consultar. Como hiptese de trabalho, optei por ler o evangelho no contexto dos anos 70 d.C., pois isso determina que outros textos e discursos devero ser levados em considerao no processo de leitura do livro. Se optar por uma data diferente, o mtodo no afetado. Voc apenas ter de ampliar ou reduzir o nmero de textos e discursos com os quais trabalhar para interpretar o evangelho de Marcos.No caso de Isaas, duas correntes bastante distintas de interpretao permanecem debatendo sobre a data do livro. A conservadora entende que o livro inteiro de Isaas foi escrito no sculo VIII a.C. A crtica advoga que os captulos 139 foram escritos no VIII sculo a.C. e os captulos 4066 no sculo VI a.C. Para efeitos do mtodo, essa escolha secundria. Ela s afeta o volume e o tipo de textos e discursos com os quais se ocupar a anlise das relaes intertextuais e interdiscursivas. Para efeitos didticos, leio Isaas 42 no contexto do sculo VI a.C., independentemente de ser essa a data de sua escrita ou no.1 Essa definio poder ser alterada medida que avanamos no estudo, mas necessria para que possamos comear a analisar as relaes intertextuais e interdiscursivas no segundo ciclo da anlise do plano do contedo.Passemos fase preparatria. O trabalho com o texto comea com a anlise do plano da expresso.Por que distinguir plano de expresso e plano de contedo? Por estas razes: 1. Um mesmo contedo pode ser transmitido por diferentes formas de expresso (ou por diferentes textos: conversa, fotos, filmes, quadrinhos, esculturas etc.). 2. Os contedos esto distribudos de forma desigual e conflitiva entre os diferentes grupos de uma sociedade, que os usam para explicar a realidade e agir nela. 3. As regras de funcionamento do plano de contedo so diferentes das regras de funcionamento do plano de expresso (textos, fotos, conversas, esttuas, filmes etc.).Em nosso caso, que trabalhamos com textos bblicos, ocorre um fenmeno interessante: o plano de expresso quase se confunde com o plano de contedo, isto porque usamos a linguagem para produzir sentido e comunicar, e a matria-prima dos 1114muitadiscusso!uanto?dataodevrioslivrosdaBblia.'araamaioriadelesnotemoscondiesdeestabelecerdataoprecisa@podemosapenassitu1losnoespaodealgumasdcadas.Auitoslivros,sobretudoosdoAntigo>estamento,oramescritosemdierentespocasepordierentespessoas,sendouniicadoseorgani2adosposteriormenteemBlivrosC.:macomplicaoadicional,nocasodadatao,surge!uandoconceitosteolgicossousadosparadat1los.DatarumlivrodaBbliaumprocedimentotcnicoDliterrioe&istricoD,enodeveriasercomplicadoporconceitosteolgicos.Ainspiraodas9scriturasnodependedaautoria&umananemdadatao.conservadora,tradicionaloucrtica0dolivro.-opossveldiscutiramplamenteessa!uestonummanualdeeEegese.'orisso,sugiro!uevoc5consulteobrasdeintroduo?Bbliaparaseamiliari2arcomosproblemaseaspossibilidadesenvolvidosnadataodoslivrosdaBblia.textos a linguagem. Para entender os sentidos de um texto, portanto, preciso lidar tanto com sua textualidade (termo tcnico para designar as regras do texto enquanto plano de expresso), quanto com sua discursividade (termo tcnico que designa as regras do texto enquanto plano de contedo, ou, simplesmente, discurso).So trs os tipos de perguntas elaboradas a um texto bblico a fim de analis-lo na condio de plano de expresso: 1. As que se referem ao processo gentico de elaborao (desde a origem oral, quando for o caso, at a redao final, na forma como se encontra na Bblia) e de transmisso do texto atravs das cpias dos manuscritos. 2. As que se referem delimitao, segmentao e estrutura da percope (que inclui a questo do gnero textual). 3. As que se referem aos elementos textuais que mais contribuem para a produo dos sentidos do texto (tais como a coeso textual, o ritmo, a mtrica, a disposio das palavras).A teoria smio-discursiva no fornece respostas ao primeiro tipo, pois jamais se ocupou com essas indagaes. Nesse caso, se voc optar por fazer esse tipo de perguntas, dever se utilizar dos procedimentos desenvolvidos pela crtica textual (o estudo da transmisso dos manuscritos e da definio dos critrios com o objetivo de determinar o melhor texto disponvel) e pela crtica gentica, uma das especialidades da exegese histrico-crtica, que desenvolveu vrios mtodos para fazer tal exame (crtica das fontes, histria das formas, histria da tradio, histria da transmisso, crtica da redao). Responder a esse tipo de perguntas s necessrio se estivermos realizando um trabalho de cunho mais acadmico e tcnico. Na maior parte dos casos, quando estudamos textos bblicos, podemos nos basear nas verses da Bblia e na bibliografia especializada. Em virtude dos objetivos exegticos na base deste manual, optei por no apresentar nem descrever ou explicar esse tipo de procedimento. Se voc tiver interesse em realiz-los, dever consultar manuais apropriados.Nosso trabalho, efetivamente, comea com o segundo conjunto de perguntas, as que tm a ver com a delimitao, segmentao e estruturao da percope. Para delimitar uma percope necessrio identificar as marcas lingsticas que indicam os limites de um texto e o dividem em percopes: as mudanas relevantes nas pessoas, tempo, espao e vocabulrio, conforme vimos anteriormente. Na prtica, no basta apenas um tipo de mudana para definir o incio de uma nova percope. Quanto maior for o nmero das marcas lingsticas, mais certeza teremos no tocante delimitao realizada.A segmentao um procedimento idntico ao da delimitao, mas restrito aos limites da prpria percope. Com base nas mesmas marcas lingsticas, verificamos em quantas partes se subdivide uma percope. A nica diferena que no necessrio que ocorram tantas marcas como no caso da delimitao. A estruturao o procedimento de identificao dos tipos de arranjo, de ordem das partes em que se divide a percope. Aps realizarmos a segmentao, procuramos descobrir as formas de encadeamento das partes da percope.Nas Escrituras, vrios tipos de estruturao so usados, desde o mais simples, que o encadeamento linear das partes do texto (como encontramos em Mc 1:9-15), at arranjos mais complexos, baseados nas diferentes formas de paralelismo usadas na escrita dos textos bblicos. Neste ponto, de acordo com nossos conhecimentos sobre os aspectos literrios dos tempos bblicos, ou de acordo com a bibliografia que utilizamos, podemos notar, tambm, o gnero textual da percope (chamado na exegese histrica de forma literria ou gnero literrio). Basta, por ora, notar qual o gnero (ou quais so as suas caractersticas), pois a anlise do gnero textual ser realizada como um dos procedimentos do segundo ciclo.Por fim, notaremos os principais elementos do plano de expresso que contribuem para a produo dos sentidos do plano de contedo (notamos apenas, pois sua anlise ser realizada no Ciclo 2. Alguns desses elementos so: a ordem das palavras, seja dentro dos diferentes segmentos da percope, seja nas oraes que compem cada segmento. Por exemplo: A ordem normal das palavras em uma orao, na lngua portuguesa : sujeito verbo complementos do verbo. Se essa ordem mudada, alguma razo ligada ao contedo est na origem dessa mudana, e preciso analis-la. Outro exemplo: Se a ordem temporal normal dos segmentos de uma narrativa (move-se do passado para o presente e para o futuro) alterada, isto deve nos chamar a ateno para o que possa vir a significar.Em textos poticos, principalmente (mas no de modo exclusivo), elementos como a mtrica das sentenas, o ritmo da entonao do texto so determinantes e afetam o sentido do texto. Quando trabalhamos com tradues, quase impossvel perceber essas caractersticas, prprias dos idiomas originais dos textos (bblicos ou no), a no ser que a traduo seja feita de forma especfica com o propsito de ressaltar esses aspectos.ANLISE DO PLANO DE EXPRESSO 1. Qual o texto a ser interpretado (do ponto de vista da crtica textual e gentica)? 2. Como o texto est delimitado, segmentado e estruturado? 3. Que elementos do plano de expresso contribuem mais intensamente para a produo do sentido?COMO FAZER 1. Familiarizar-se com o texto, mediante repetidas leituras e do contexto literrio ao qual ele pertence, e a anotao de suas caractersticas mais marcantes, as dvidas e as primeiras impresses que o texto nos evoca.Alternativa complementar: estabelecer o texto, mediante a aplicao dos princpios da crtica textual e da crtica gentica (somente se voc considerar necessrio), e traduzi-lo provisoriamente (apenas no caso de voc usar o texto bblico no idioma original). 2. Situar o texto, provisoriamente, em seu contexto histrico, mediante o uso de bibliografia apropriada. 3. Identificar as marcas lingsticas que permitem a delimitao e a segmentao do texto. 4. Notar os elementos da textualidade que podero contribuir para a anlise do plano de contedo. 5. Elaborar uma sntese.EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA)Marcos 1"9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazar da Galilia, e por Joo foi batizado no rio Jordo. 10 Logo ao sair da gua, viu os cus rasgarem-se e o Esprito descendo COMO POMBA sobre ele. 11 Ento foi ouvida uma voz dos cus: Tu s o meu FILHO AMADO, em ti me comprazo.Interpretarei essa passagem no contexto da redao final do livro (meados dos anos 70 d.C.), e no nos possveis contextos recuperados pela crtica gentica (seria possvel, tambm, interpret-la no contexto da vida terrena de Jesus [meados dos anos 20 d.C.)], ou em algum dos momentos da histria da tradio desse texto, anterior redao por Marcos)."2"AtraduodosteEtosdestemanualdemin&aautoria,amenos!ue&a/aindicaoaocontrrio.'rocureidestacaraspectosgramaticaisesemFnticosimportantesparaoaprendi2adodomtodo.A delimitao dessa percope foi quase toda feita no incio deste captulo. Faltou verificar se, de fato, no versculo 9 temos o incio de uma nova. Em relao percope anterior (Mc 1:2-8), as marcas lingsticas indicam mudanas de tempo, espao, vocabulrio e gnero textual suficientes para considerar o versculo 9 o incio de uma nova percope.A segmentao do texto marcada pelos seguintes elementos: mudanas de tempo (palavras em itlico), nos versculos 9, 10 e 11; de local (palavras sublinhadas), nos versculos 9 e 10; e de pessoa verbal no versculo 11, em relao aos versculos 9 e 10 (palavras em negrito) o que sugere trs segmentos na percope, estruturados de forma linear, tpica das narrativas: versculo 9 (a viagem de Jesus para ser batizado), versculo 10 (a viso que Jesus teve do Esprito), e versculo 11 (a audio pblica da voz celestial). O gnero da percope hbrido: mistura o relato de acontecimento com a palavra de investidura em cargo oficial.Os elementos da textualidade que me parecem mais relevantes para posterior anlise so: a mudana da ordem das palavras na sentena veio Jesus; o uso da voz passiva para falar do batismo de Jesus (que coloca o peso do texto sobre o prprio Cristo), conjugado com a colocao de por Joo antes do verbo, que modifica a ordem normal de sentenas com a voz passiva; e a voz passiva no versculo 11, que indica sujeito indeterminado, diferenciando os sujeitos da viso (Jesus, no v. 10) e da audio (todas as pessoas que estavam no local, v. 11). A coeso do texto tpica de narrativas, com destaque para as conjunes logo e ento.Em sntese, temos uma percope bastante despojada, simples, fcil de ler e que comunica seus sentidos de forma quase que telegrfica. Sugere uma forte dinamicidade, eventos ocorrendo em cadeia, um imediatamente aps o outro, mudanas rpidas de lugar, com o peso recaindo sobre Jesus, que parece ser o personagem principal da percope.EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA)Isaas 421 Eis o meu servo, a quem eu sustento,o meu eleito, em quem tenho prazer.Coloquei meu esprito sobre ele,justia para as naes far brotar.2 No gritar, e no levantar,e no deixar ser ouvida na rua a sua voz.3 A cana rachada no esmagar,e a torcida bruxuleante no apagar;fielmente far brotar a justia.4 No desanimar e no ser quebrado,at que estabelea na terra a justiae em sua lei as ilhas tenham esperana.As seguintes marcas lingsticas, no versculo 1, indicam o incio da percope: 1. Presena de um novo personagem em relao aos de 41:21-29. 2. Uso de frmula introdutria de apresentao de oficial [eis].Quanto ao trmino da percope, o versculo 4 parece ser um candidato natural, em virtude de: 1. A presena da frmula do mensageiro no versculo 5, que nos livros profticos costumeiramente inicia percopes. 2. A mudana de assunto, da vocao para a criao divina no versculo 5. Faz parte da tradio exegtica delimitar assim essa percope.# Uma alternativa melhor, a meu ver, considerar todo o trecho de 1-9 como uma nica percope, segmentada em 1-4, 5-7, 8-9, tendo em vista que: a. O cntico de louvor iniciado em 42:10 muda significativamente a temtica e parece ser ou a concluso de uma longa seo (41:2142:12) ou o incio de uma nova seo. Se for assim, Isaas 42:1-9 funcionaria como contraponto a 41:1-7, uma afirmao a respeito daquele que destri as naes em nome de Jav. b. Os versculos 6-7 formam um complemento temtico natural descrio da tarefa do servo em 1-4, tanto pela ampliao dela, quanto pela manuteno da temtica do reiservo. c. As afirmaes exaltadas a respeito de Jav do sustentao vocao e atuao do servo no contexto de seu chamado. Enquanto os versculos 1-4 se dirigem assemblia divina reunida na corte celestial e os versculos 5-7 se dirigem ao prprio servo, os versculos 8-9 retomam o anncio assemblia divina. d. O estilo e a estruturao de Isaas 4055 no seguem as formas tradicionais da literatura proftica, a presena de gneros hbridos predominante nesta seo de Isaas, e a presena da frmula do mensageiro no seria um sinal to forte de incio de percope.Para efeitos de nosso estudo, vou me restringir a Isaas 42:1-4, embora eu considere que Isaas 42:1-9 forme uma unidade significativa. Na prtica, fao isto tambm para mostrar que podemos usar parte de uma percope para a realizao da exegese, por causa de nossos interesses. Ou seja, a percope no uma unidade rgida, fechada, que deve ser seguida a qualquer preo.Isaas 42:1-4 est assim segmentado e estruturado em um padro concntrico, no qual os versculos 2-3 ocupam o lugar central e os versculos 1 e 4 correspondem formalmente entre si:a. investidura e tarefa do servo (v. 1).b. modo da realizao da tarefa pelo servo (v. 2-3).a. perseverana do servo e alcance da sua tarefa (v. 4).As caractersticas do plano de expresso que sero mais teis na anlise do plano de contedo so, em primeiro lugar, a forma potica do texto, com seus vrios e tpicos paralelismos: 1. Eis o meu servo, a quem eu sustento; o meu eleito, em quem tenho prazer (paralelismo sinonmico, na primeira parte do versculo). Coloquei meu esprito sobre ele, justia para as naes far brotar (paralelismo climtico, quando olhamos o v. 1 e seu todo).###Desdeaspes!uisasdeBern&ardDu&m,nasprimeirasdcadasdosculoGG,atradioacad5micaconvencionouidentiicar!uatropercopesdeHsaasI7DJJcomoBcFnticosdoservode$avC.I",11I@I),11*@J7,I111eJ",1#DJ#,1"0.Auitast5msidoasdiscussesarespeitodessaidentiicao,arespeitodadataodessestrec&os,eprincipalmente,arespeitodaidentidadedoservoedesuatarea.-ocabenestemanualumaresen&adessapes!uisa.;ugiroaosinteressados!ueconsultembibliograiaespeciali2ada.9upreironomearessaspercopescomoBpoemasdoescravode$avCeasdelimitodeormadierentedapropostaporDu&m.I",11),poreEemplo,emcontrastecomI",11I0..orgs.0,+a/ermas*)ociologia,p.177.Diante de relaes estratgicas de poder, as pessoas subjugadas podem se submeter resignadamente, ou coercitivamente; podem tambm resistir, conseguindo espao maior de liberdade e justia dentro dessas relaes de poder; ou, ainda, subverter essas relaes, libertando-se. O mesmo vale para as situaes de dominao, nas quais a intensidade do uso estratgico do poder muito maior e demanda respostas igualmente mais intensas.Se focamos o poder enquanto uma ordem social ou estatal: ... o poder manifesta-se em: a) ordenamentos que garantem a liberdade poltica; b) na resistncia contra as foras que ameaam a liberdade poltica, tanto exterior como interiormente; c) naqueles atos revolucionrios que fundam as novas instituies da liberdade: o que investe de poder as instituies e as leis de um pas, o apoio do povo, que por sua vez a continuao daquele consenso original que produziu as instituies e as leis [...] Todas as instituies polticas so manifestaes e materializaes do poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a fora viva do povo deixa de apoi-las.*Segundo a terminologia smio-discursiva, as relaes, os conflitos, as prticas sociais recebem a sua significao mediante a narratividade, uma dimenso do processo de produo do sentido, que tem como elemento bsico a transformao de pessoas e situaes provocada pela ao dos sujeitos. A narratividade pode ser analisada a partir do percurso narrativo cannico, que engloba os percursos do sujeito, do destinador-manipulador e do destinador-julgador, bem como sintetiza as buscas sociais pelos objetos-valor.EXERCCIOS 1. Escolha um filme e analise como ele constri o sentido das dimenses sociedade, cultura e religio de seu mundo-da-vida. 2. Escolha tipos diferentes de percopes da Bblia (epstolas, poesia, sabedoria, leis) e analise como ele constri o sentido das dimenses sociedade, cultura e religio de seu mundo-da-vida.SUGESTES DE LEITURATextos didticosDISCINI, Norma. A comunicao nos textos. So Paulo: Contexto, 2005. Lio 7, p. 243-267.SAVIOLI, Francisco Plato & FIORIN, Jos Luiz. Lies de texto: leitura e redao. So Paulo: tica, 1996. Lio 15, p. 225-236._____. Para entender o texto: leitura e redao. So Paulo: tica, 1991. Lies 6 e 7, p. 55-69.Textos tcnicosBARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semiticos. So Paulo: Atual Editora, 1988, p. 7-71.BERTRAND, Denis. Caminhos da semitica literria. Bauru: EDUSC, 2003, p. 265-353.FIORIN, Jos Luiz. Elementos de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2005. (13a. Edio revista e ampliada)HABERMAS, Jrgen. O conceito de poder de Hannah Arendt. Em FREITAG, Brbara & ROUANET, Srgio Paulo (orgs.). Habermas: Sociologia. So Paulo: tica, 1980, p. 100-118.ZABATIERO, Jlio P. T. As estruturas da ao. Construindo o referencial terico da Teologia Prtica. Em BARRO, Jorge H. & ZABATIERO, Jlio P. T. (eds.). Prxis Evanglica. ***Hdem,p.17#.Revista de Teologia Prtica latino-americana. Londrina: Editora Descoberta & Faculdade Teolgica Sul-Americana, n 3, agosto 2003, p. 81-103.7Ciclo 3Dimenso sociocultural da ao (parte 2): Interdiscursividade9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazar da Galilia, e por Joo foi batizado no rio Jordo. 10 Logo ao sair da gua, viu os cus rasgarem-se e o Esprito descendo como pomba sobre ele. 11 Ento, foi ouvida uma voz dos cus: Tu s o meu filho amado, em ti me comprazo.Marcos 1Por que Marcos citou trs textos do Antigo Testamento para apresentar o contedo da voz dos cus? Ter sido uma deciso exclusivamente individual, ou esse j seria um hbito de seu tempo? Voc se lembra do texto paralelo em Mateus 1:13-17? Mateus incluiu uma discusso entre Joo e Jesus a respeito da propriedade de Jesus ser batizado por Joo. Por que Mateus tem esse trecho adicional e Marcos decidiu no incluir essa discusso em seu evangelho? Que efeitos de sentido essas escolhas provocavam nas pessoas que, participando da mesma sociedade, ouviam e liam estas passagens? Que idias e lembranas de outros textos estas passagens lhes traziam mente? Por que a maioria dos judeus no concordou com os primeiros judeus cristos em sua crena de que Jesus era o Messias esperado?Vimos, na anlise da dimenso sociocultural da ao, pelo caminho da narratividade, que o objeto-valor do texto a misso messinica de Jesus, que foi originada e sancionada pelo Pai, e cuja investidura ocorreu fora dos espaos-tempos oficiais da poca. Cabe, agora, perguntar pelos efeitos dessa escolha do texto em seu mundo-da-vida, ou, em outras palavras, preciso fazer tambm a crtica social do texto e a partir do texto.Estas e outras perguntas podero ser respondidas a partir da anlise do lugar que o texto de Marcos ocupava em seu mundo-da-vida. a esta tarefa que nos dedicaremos neste captulo, para concluir a nossa anlise da dimenso sociocultural da ao.INTRODUOIdias viajam freqentemente pelos caminhos do mundo-da-vida. Pense, por exemplo, em como certas grias se tornam moda, ou em como alguns bordes humorsticos pegam e so repetidos por milhares de pessoas no seu cotidiano. E pense em como idias antigas ainda subsistem e so consideradas valiosas por muita gente. At hoje, a mensagem da cruz ressoa em todos os rinces do planeta e continua produzindo efeitos na vida de muitas pessoas. Ficamos at com a impresso de que as idias voam livremente pelo espao, soltas, sem amarras, totalmente livres.Bem, as coisas no funcionam exatamente dessa maneira. A circulao das idias tambm tem as suas regras, as suas estruturas, os seus limites e possibilidades. A messianidade, por exemplo. Nas suas origens mais antigas, a idia de messias deve ter comeado a circular entre pessoas nas reunies familiares, nos encontros religiosos, nas conversas das praas, nos papos informais durante os negcios etc. A idia pega. Algum se dispe a escrever sobre ela, e ela se transforma em um texto, no qual passa a ficar junta com outras representaes sobre Deus, sobre a vida, sobre a felicidade etc. O texto comea a ser lido publicamente, comea tambm a circular, e outras pessoas escrevem sobre ele, algumas at reescrevem o texto, aproveitando as conversas e as discusses sobre o primeiro texto. Discusses iro acontecer: ser que o novo texto melhor do que o antigo? Para que tantos textos sobre essa noo de um messias?Os vrios textos, as vrias conversas, as muitas discusses sobre messias vo se juntando, circulando entre mais e mais pessoas muita gente concorda que um messias necessrio , talvez nem saibam mais de onde veio essa idia, quem a comeou, mas gostam dela. E a ela vo juntando outras representaes, outros textos, outras discusses, e juntas se transformam em um discurso messinico. E o processo continua, vrios discursos messinicos se formam e se juntam para explicar como deve ser o Messias, de onde vem, o que faz etc. Temos, ento, uma formao discursiva. Mas nem todos os discursos concordam entre si. Para alguns discursos, o Messias tem um perfil monrquico, para outros, sacerdotal, para outros, proftico etc. A formao discursiva messinica compe-se de muitos discursos que tm em comum entre si a noo geral do Messias, embora haja diferenas significativas entre os vrios discursos messinicos que a compem.Esse processo praticamente no tem fim, pois h muita coisa de que se pode e deve falar na vida em sociedade. Novas representaes, novos textos, novos discursos, novas formaes discursivas. O tempo vai passando, e uma sociedade fica repleta dessas representaes, textos, discursos, formaes discursivas a tudo isso junto damos o nome de mundo-da-vida. Para entendermos bem como um texto funciona em sua sociedade, precisamos ser capazes de situar esse texto na estrutura das idias dessa sociedade. Precisamos perseguir os caminhos que ele trilhou, as prticas que ele sustentou, as instituies em que ele se fez etc. Na anlise das relaes intertextuais e interdiscursivas, vimos como esses discursos outros ajudaram a formar o sentido do texto que interpretamos. Precisamos agora realizar uma anlise crtica do lugar do texto em sua sociedade.Tudo isso nos faz lembrar do conhecimento enciclopdico. Quanto maior for o nosso conhecimento enciclopdico sobre os mundos-da-vida dos tempos bblicos, mais fcil e mais abrangente ser nossa interpretao do texto. Para adquirir esse conhecimento no h atalhos: estudo, estudo, pesquisa... Todo o conjunto de conhecimentos acumulados na pesquisa acadmica ser de grande valia para ns. O que a perspectiva smio-discursiva nos oferece um caminho para orientar nosso estudo dos contextos histricos do mundo bblico, caminho moldado por estes conceitos: discurso, formao discursiva, sistema e mundo-da-vida.Do ponto de vista metodolgico, um ltimo aspecto precisa ser ressaltado: uma percope no oferece material suficiente para uma anlise abrangente da vida em sociedade em seu tempo. A leitura da percope nos oferece um bom ponto de partida, ao situ-la no mbito das formaes discursivas de seu tempo, mas a crtica social s pode ser sugerida, medida que sua base deve ser, primeiramente, o conjunto dos discursos do livro de que a percope faz parte e, depois, o conjunto das relaes que esses discursos do livro mantm em sua formao discursiva e, por fim, as relaes que essa formao discursiva mantm com as demais de seu mundo-da-vida.CICLO 3: DIMENSO SOCIOCULTURAL DA AOComo o texto, em interao com seu mundo-da-vida, d sentido ao sob os pontos de vista 1) da sociedade, 2) da cultura e 3) da religio?COMO FAZER 1. Situar o texto nas formaes discursivas de seu mundo-da-vida (analisando as suas relaes contratuais e polmicas). 2. Formular a crtica social a partir do texto, e do texto. 3. Elaborar uma sntese.EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA)Marcos 19 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazar da Galilia, e por Joo foi batizado no rio Jordo. 10 Logo ao sair da gua, viu os cus rasgarem-se e o Esprito descendo como pomba sobre ele. 11 Ento, foi ouvida uma voz dos cus: Tu s o meu filho amado, em ti me comprazo.1. Situar o texto nas formaes discursivas de seu mundo-da-vidaJ vimos que as relaes interdiscursivas da percope nos ligam a discursos messinicos bem diversificados do Antigo Testamento: o discurso do messias davdico (Sl 2:7), o discurso do Messias solidrio (Is 42:1s), e o discurso do Messias abramico (Gn 22:2). Vimos, tambm, que o objeto-valor na dimenso narrativa desta percope a misso/identidade messinica de Jesus, marcada pelas caractersticas da filialdade filial ao Pai, pela solidariedade com pessoas impuras e pecadoras e pela crtica identidade (ou religio) oficial do judasmo. Tudo isto nos situa na formao discursiva messinica, em uma perspectiva no oficial, crtica. A partir desta maneira de identificar a messianidade de Jesus, a comunidade marcana se distancia do discurso messinico judeu oficial, embora permanea nos limites da formao discursiva messinica. Ao permanecer na formao messinica, o discurso marcano se contrape aos outros tipos de discurso de salvao de seu tempo tais como os discursos das religies salvficas helnicas, os discursos filosficos da vida boa e o discurso oficial do Imprio Romano, de que os deuses do panteo romano salvam e que Csar seu representante na terra, o kyrios (Senhor). Estamos presenciando, assim, os primrdios da formao discursiva messinica propriamente crist.2. Formular a crtica socialA partir deste texto, podemos perceber que a comunidade marcana se posiciona criticamente contra o discurso messinico oficial do judasmo (que priorizava a salvao exclusiva de judeus conforme o seu grau de pureza, o carter nacionalista da ao do Messias, ou seja, a concentrao da ao messinica na libertao poltica da nao Israel do Imprio). Seu discurso messinico ainda tipicamente judeu, mas aberto para pessoas impuras e pecadoras, inclusive gentios; no nacionalista, mas concentra a ao messinica na formao de novas comunidades includentes, cuja identidade se constri em seguimento da identidade messinica de Jesus.Ao identificar a ao poltica do Messias com a solidariedade, o discurso messinico da comunidade marcana mantm relaes polmicas com o discurso oficial do Imprio. No um discurso nacionalista, nem revolucionrio, mas tambm no um discurso politicamente neutro. Aparentemente, sua proposta poltica de cunho comunitarista, criar comunidades includentes, semelhantes ao movimento de Jesus, as quais, crescendo em nmero, ofereceriam um espao alternativo de organizao social em contraposio ao modelo imperial. Note dois pontos: a) no possvel ficarmos restritos a uma percope apenas para este tipo de anlise; e b) o carter hipottico da crtica deve ser reconhecido.A crtica social do texto (tambm delimitada pelos dois pontos acima lembrados, e que o espao no nos permite fazer) poderia ser direcionada aos seguintes aspectos: a) At que ponto esse tipo de proposta ofereceria condies para uma alternativa poltica concreta? b) Como o discurso messinico da comunidade marcana teria afetado a noo e as relaes de gnero na comunidade? c) Que atitude perante as outras religies no Imprio Romano teria sido promovida pelo discurso messinico da comunidade? d) Como este tipo de discurso poderia dialogar e confrontar as opes filosficas de outorga de sentido vida? At que ponto, porm, o carter minoritrio e a expectativa apocalptica da comunidade afetaram sua interpretao da vida em coletividade? Tais questes, porm, no podem ser respondidas exclusivamente mediante a anlise da percope. Do ponto de vista metodolgico, isto nos lembra que a crtica social do texto apenas aponta para a crtica social de seu discurso no mbito de sua formao discursiva algo que no possvel fazer dentro dos limites de um manual de metodologia exegtica. Sua condio de grupo minoritrio, tanto no mbito do judasmo, quanto no mbito da sociedade em geral, deve ser levada em considerao ao analisarmos criticamente sua autocompreenso e sua proposta poltico-social.3. Elaborar uma snteseA proposta messinica de Marcos 1:9-11 de cunho crtico, tanto em relao ao nacionalismo e carter excludente do judasmo oficial, quanto em relao ao carter dominador do Imprio Romano. Embora no parea oferecer uma proposta de estratgia de tomada de poder poltico, no tem carter neutro em relao ordenao poltico-econmica da sociedade de seu tempo. Ao apresentar Jesus como um messias no oficial, sugere que a comunidade marcana entendia sua identidade como a de uma comunidade alternativa, cujo estilo de vida deveria ser semelhante ao de Jesus, seu Messias (Cristo). O texto favorece uma compreenso comunicativa das relaes de poder e o carter includente da nova f no Messias Jesus, bem como a esperana de uma nova realidade, j que a fala da voz do cu evoca o incio de uma nova poca.EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA)Isaas 421 Eis o meu servo, a quem eu sustento,o meu eleito, em quem tenho prazer.Coloquei meu esprito sobre ele,justia para as naes far brotar.2 No gritar, e no levantar,e no deixar ser ouvida na rua a sua voz.3 A cana rachada no esmagar,e a torcida bruxuleante no apagar;fielmente far brotar a justia.4 No desanimar e no ser quebrado,at que estabelea na terra a justiae em sua lei as ilhas tenham esperana.Tudo o que vimos at agora sobre este texto nos orienta a interpret-lo como um texto crtico ao imprio babilnico e ao davidismo judata. A crtica ao imprio babilnico dirige-se 1) sua dimenso sistmica, na medida em que reconhece o carter dominador de seu exerccio do poder e, 2) sua dimenso do mundo-da-vida, na medida em que mantm relaes polmicas com suas formas de legitimao tanto suas noes de justia e lei, quanto as suas crenas religiosas todas igualmente quirirquicas. Em relao ao davidismo judata, Isaas 4055 tambm se posiciona de forma crtica, ao negar a validade dos seus principais discursos: 1) a posio da dinastia davdica como representante privilegiada do reino de Jav; 2) a conseqente posio que o culto a Jav assumia sob o governo davdico, subordinado manuteno da dinastia e legitimao de suas formas estratgicas de conduo das relaes polticas e econmicas; e 3) o nacionalismo excludente de sua noo do reino de Jav, que lhe permitia reproduzir o discurso imperialista comum no Antigo Oriente, e legitim-lo teologicamente. Esta crtica ao davidismo deve ser ressaltada, na medida em que a audincia primria destes textos era composta dos grupos outrora dirigentes de Jud, cuja injustia e infidelidade a Jav foram, segundo o profeta, a causa do castigo divino do exlio.Acrescentando-se o contedo propositivo do aviso de Isaas 4055, podemos identific-la com um discurso pertencente formao discursiva deuteronmica, com esta percope destacando as noes discursivas de: 1) a atuao libertadora de Jav significada na tradio no davdica do xodo, que priorizava o carter pessoal de Jav e a sua ligao direta com as famlias/casas do seu povo, independente da mediao da estrutura monrquica; 2) a noo de aliana como discurso explicativo das relaes com Jav, das relaes sociais internas e das relaes com outros povos. Aliana caracterizada pela justia social e pela fidelidade vontade de Jav, expressa na sua lei, em contraste com a forma de aliana tpica dos imprios vtero-orientais, centradas na soberania assimtrica do povo mais forte sobre o mais fraco militarmente; e 3) a fidelidade exclusiva a Jav, acima de todas as fidelidades, chegando ao ponto de afirmar claramente um avano em relao ao discurso tipicamente deuteronmico que somente Jav Deus, todos os demais deuses no passam de dolos, de construo da imaginao humana para legitimar formas injustas e ilegtimas de relaes sociais.Uma srie de questes crticas, porm, ainda carecem de melhor e mais aprofundado exame do conjunto das percopes de Isaas 4055. As principais so: 1) Qual o alcance mais exato das noes de justia e lei, e quem seriam os sujeitos legtimos de formulao da lei e execuo do governo justo? 2) Intimamente ligada primeira questo, temos a segunda: At que ponto o protagonismo desta libertao seria empoderador no s dos exilados mas tambm dos que ficaram em Jud? Claramente o discurso de Isaas 4055 afirma que os exilados, voltando a Jud, sero protagonistas da libertao e, a partir de Jerusalm, o reinado de Jav se expandir por toda a Jud. Como se dariam as relaes entre estes que voltam e os que ficaram em Jud? Haveria um retorno antiga estruturao hierrquica de poder? Como as terras seriam distribudas, quem seriam seus legtimos proprietrios? 3) Qual o alcance e o sentido da incluso das naes e ilhas na libertao anunciada pelo servo? Estaria o discurso de Isaas 4055 na mesma linha de Ams 9:7-10 e Isaas 19:16-25 que no restringiam a ao libertadora de Jav ao povo judeu e colocavam outros povos no mesmo nvel de relaes com Deus? Ou estaria na linha de Isaas 2:1-5 e Miquias 4:1-5, colocando Jerusalm no centro do mundo, com as naes peregrinando at ela, em uma forma sutil de imperialismo javista? Por fim, 4) como o discurso de Isaas 4055 efetivamente interpretava o papel de Ciro e as relaes de Jud e das naes em geral com o Imprio Persa? Claramente Ciro no era regente de um imprio libertador em sentido amplo. certo que sua atitude para com os povos subjugados era muito mais aceitvel do que a dos babilnios, mas at que ponto seria possvel aceitar os persas, que ainda constituam um imprio em sentido pleno?Em uma perspectiva de gnero, as perguntas poderiam comear por esta: ter a base deuteronmica da viso de culto de Isaas 4055 permitido um olhar diferenciado para o lugar da mulher na vida religiosa e socioeconmica de Jud? O uso da metfora materna para se referir a Jav (48:9ss) e a Jerusalm (Is 54) permitiria uma melhor compreenso das relaes de gnero, ou a afirmao intransigente da exclusividade divina de Jav poderia ser usada para negar toda e qualquer validade s prticas religiosas de mulheres (que, em vrios casos, incluam a crena em deusas, consortes ou no de Jav)?A anlise da dimenso sociocultural da ao torna evidente a necessidade de se ir alm dos limites da percope como unidade a ser interpretada. preciso levar em conta o discurso com a base interpretativa, a fim de se poder reconstruir as formaes discursivas da sua poca e, a partir delas, compreender as dimenses sistmica e do mundo-da-vida para, ento, proceder crtica social.CONCEITOS BSICOSSistema. Na teoria habermasiana, a sociedade explicada por meio de dois modelos: mundo-da-vida e sistema. O mundo-da-vida equivale ao componente abstrato da sociedade (idias, valores etc.), enquanto o sistema corresponde ao componente concreto da sociedade (instituies, grupos sociais, movimentos sociais, estruturas econmicas, estruturas polticas etc.). Os componentes do sistema so as estruturas derivadas dos meios sistmicos poder e dinheiro, a saber, estruturas polticas e as estruturas econmicas da sociedade. Assim como, na histria da humanidade, cada sociedade desenvolveu diferentes contedos e formas do mundo-da-vida, tambm se produziram diferentes estruturaes das relaes polticas e econmicas. Na maior parte da histria das sociedades humanas, mundo-da-vida e sistema no estavam diferenciados entre si de forma autnoma e concorrente. Nas sociedades modernas, porm, as relaes polticas e econmicas foram se tornando cada vez mais estratgicas e geraram estruturas polticas e econmicas que aos poucos assumiram para si a funo de coordenar a ao coletiva de modo estratgico. Isso significa que as interaes sociais passam a ser comandadas pela eficcia dos meios sistmicos (poder e dinheiro).Mundo-da-vida. (Vale a pena repetir a definio, para facilitar seu uso. Na anlise da narratividade, tem funo explicativa, no operacional.) Mundo-da-vida um termo tcnico da filosofia e das cincias sociais que se refere ao conjunto de discursos (idias, ou temas, ou conceitos, ou noes), que se constitui ao longo da histria e existe em dada sociedade, servindo para explicar a realidade na qual tal sociedade vive, e ordenar as aes e relaes humanas nessa mesma sociedade. Pode-se classificar os tipos de discurso presentes no mundo-da-vida como discursos sobre: a cultura (valores, smbolos, noes explicativas etc.), a sociedade (normas, formas de parentesco etc.), a identidade (paixes, formas de identidade, papis sociais etc.) e a religio. A realidade qual o mundo-da-vida se refere pode, por sua vez, ser classificada como: natural (tudo aquilo que no feito por seres humanos), social (o que feito por seres humanos em sua vida em sociedade), pessoal (o mundo interior das pessoas) e transcendental (tudo o que se refere s explicaes religiosas da realidade).Ideologia. O conceito de ideologia, desde Marx pelo menos, usado de forma ambgua. Por um lado, tem um sentido neutro e significa qualquer explicao do arranjo sistmico de uma sociedade, sem emitir juzos de valor sobre a mesma. Por outro, tem um sentido crtico, e se aplica apenas s explicaes do arranjo sistmico de uma sociedade que sirvam para criar ou manter situaes ou estados de dominao. Neste Manual, uso predominantemente o sentido neutro, na medida em que uma formao ideolgica que, em dado perodo, serve para manter a dominao, em outros pode perder essa funo e no mais se vincular a estratgias dominadoras do uso do poder.Campo. Um conceito desenvolvido amplamente na sociologia por Pierre Bourdieu, que adapto para complementar a concepo habermasiana da sociedade. Assim como o conceito de mundo-da-vida se refere a uma dimenso altamente abstrata, tambm o conceito de sistema explica os nveis mais elevados das relaes polticas e econmicas. Um campo, conseqentemente, pode ser definido como uma das vrias dimenses do sistema tais como campo econmico, campo jurdico, campo poltico, campo religioso, campo acadmico etc. Os campos so constitudos basicamente por instituies sociais, ou seja, arranjos slidos de relaes entre pessoas, especializados de acordo com suas funes na sociedade, e.g.: igrejas, terreiros, sinagogas, instituies do campo religioso; bancos, financeiras, bolsa de valores so instituies do campo econmico etc.Gnero. Durante muito tempo se definiu gnero como realidade exclusivamente natural, determinada apenas pela diferena sexual corprea (o que determinava que formas no heterossexuais de identidade no fossem consideradas seno como aberraes). Especialmente no sculo XX, porm, constatou-se claramente que gnero primariamente uma realidade sociocultural, pois a vivncia da masculinidade ou da feminilidade construda na sociedade e recebe diferentes explicaes no mundo-da-vida e diferentes configuraes de poder no mbito sistmico. O movimento feminista, nas suas mais variadas formas, nos ajudou a enxergar o uso estratgico da noo de gnero que permitiu, durante muitos sculos, na maior parte das sociedades humanas, a dominao da mulher pelo homem, e o desenvolvimento de formas estereotipadas de masculinidade e feminilidade (do tipo homem no chora, mulher frgil etc.).Raa. De forma semelhante ao conceito de gnero, no sculo passado se rompeu com a noo exclusivamente biolgica de raa, a ponto de se questionar a prpria validade do termo. Uso raa, aqui, como um conceito sociocultural, uma forma de definir um aspecto da identidade de grupos sociais, especialmente a partir de caractersticas corpreas, tais como cor da pele, formato do corpo, altura etc. Aplicada ao estudo bblico, a noo de raa nos ajuda a interpretar a maneira como, nos textos, se constri a concepo de raa. Por exemplo, uma definio crucial do judasmo oficial dos tempos de Jesus era a distino racial (ou racista?) entre judeus e gentios; na cultura helnica, distinguia-se entre gregos e brbaros etc. Para a construo de critrios valorativos de raa e gnero, textos bblicos como Glatas 3:28 desempenham papel fundamental: Dessarte, no pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vs sois um em Cristo Jesus.CONCEITOS OPERACIONAISFormao discursiva. O conceito de mundo-da-vida explica a dimenso de contedo das relaes sociais em sua forma mais abstrata. Para concretizar a anlise, adotamos um conceito primeiramente desenvolvido por Michel Foucault e adotado por diferentes correntes de anlise do discurso, inclusive a semitica. Se o discurso uma explicao de um segmento qualquer da realidade (e composto por textos), uma formao discursiva um conjunto de discur