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Artigo sobre Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense oitocentista.

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  • Maria Firmina dos Reis: mulher e escritora oitocentista

    Melissa Rosa Teixeira Mendes*

    Resumo

    O presente artigo pretende analisar a figura da escritora maranhense oitocentista Maria Firmina dos Reis. Consi-derada por inmeros crticos literrios a primeira brasileira a escrever um romance, foi esquecida durante dcadas.Dada sua considervel importncia para a literatura brasileira, busca-se contribuir para um resgate da escritora,alm de, a partir de sua anlise, compreender a escrita feminina do sculo XIX.Palavras-chave: Maria Firmina dos Reis, Sculo XIX, Brasil, Histria, Literatura.

    Resumen

    Maria Firmina dos Reis: mujer y escritora del siglo XIX - Este artculo analiza la figura de la escritoramaraense del siglo XIX Maria Firmina dos Reis. Considerada por muchos crticos literarios la primera brasileaen escribir una novela, fue olvidada durante dcadas. Debido a su gran importancia para la literatura brasilea, sebusca contribuir a un plan de rescate de la escritora, a partir de su anlisis, la comprensin de la escritura femeninadecimnonica.Palabras clave: Maria Firmina dos Reis, Siglo XIX, Brasil, Historia, Literatura.

    Abstract

    Maria Firmina dos Reis: woman and nineteenth-century writer - This article analyzes the figure ofthe nineteenth-century maranhense writer Maria Firmina dos Reis. Considered by many literary critics the firstbrazilian to woman write a novel, was forgotten for decades. Given its considerable importance for the brazilianliterature, we seek to contribute to a bailout of the writer, and from his analysis, understanding the female writingeight.Keywords: Maria Firmina dos Reis, Nineteenth Century, Brazil, History, Literature.

    *Mestre em Histria pela Universidade Federal do Maranho

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    1. IntroduoMaria Firmina dos Reis, escritora maranhense que pu-

    blicou seu primeiro romance, rsula, em 1859, desco-nhecida por muitos brasileiros fora de sua terra natal eat mesmo no Maranho h ainda grande ignorncia emrelao figura da autora oitocentista.

    Embora tenha contribudo assiduamente com a im-prensa local durante a segunda metade do sculo XIX,sua obra foi praticamente esquecida at por volta de 1962,quando o biblifilo Horcio de Almeida encontrou em umsebo do Rio de Janeiro uma edio fac-smile do romancersula. Essa edio foi doada ao Governo do Maranho e,em seguida reeditada (trs edies vieram posteriormente,respectivamente em 1975, 1988 e 2004).

    J em 1973, Nascimento de Morais Filho, escritor mara-nhense, encontra outros textos de Maria Firmina na bibli-oteca pblica Benedito Leite (So Lus MA) e, em 1975,publica uma biografia da autora, intituladaMaria Firminados Reis: fragmentos de uma vida. tambm de 1975um artigo de autoria de Josu Montello, A primeira ro-mancista do Brasil, publicado no Jornal do Brasil.

    Para diversos crticos, a escritora maranhense con-siderada a primeira romancista brasileira. Seu romance de1859 de autoria prpria, ao contrrio do romance pan-fletrio de Nsia Floresta, Direitos das mulheres e injustiados homens (1832), considerado uma livre traduo dolivro Vindications of the rights of woman (Reivindicaesdos direitos da mulher, 1792) da escritora inglesa MaryWollstonecraft [1].

    J Teresa Margarida da Silva e Orta, que publicouo romance Aventuras de Difanes (1752), tambm nopoderia ser considerada a primeira brasileira a publicarum romance, pois segundo alguns crticos, como Heron deAlencar, a autora apenas nasceu no Brasil, sua formaofoi completamente europeia e seu romance no exerceu in-fluncia na literatura brasileira, no dizendo respeito aoBrasil.

    Apresentamos neste trabalho a autora maranhense Ma-ria Firmina dos Reis, como mulher e escritora que, a partirdo local social que ocupou durante a segunda metade dosculo XIX, interpretou o mundo ao seu redor e, dessaforma, elaborou seus textos. Nosso objetivo tentar con-tribuir para no deixar a autora no esquecimento ao qualfoi colocada durante tantos anos, desejando, assim, que no-vas pesquisas a seu respeito e de outras autoras brasileirasdesconhecidas, sejam motivadas.

    Alm disso, a partir da anlise de Maria Firmina dosReis, pretendemos compreender a escrita feminina e seuacesso aos crculos literrios espao social predominan-temente masculino durante o sculo XIX no Brasil.

    2. A mulherMaria Firmina dos Reis nasceu em 11 de outubro de

    1825, na cidade de So Lus, capital da ento provncia doMaranho. Seus pais chamavam-se Joo Pedro Esteves eLeonor Felipa dos Reis; segundo consta da biografia or-

    ganizada por Nascimento de Morais Filho, era bastarda,seus pais no foram casados.

    Cinco anos depois de seu nascimento, muda-se, comsua famlia, para a Vila de So Jos de Guimares, mu-nicpio de Viamo, ainda na provncia do Maranho. Viveem Guimares at o dia de sua morte, em 11 de novembrode 1917, aos 92 anos.

    Antes de iniciar suas atividades como escritora, MariaFirmina disputa com duas concorrentes a vaga da cadeirade primeiras letras da cidade de Guimares, e a nicaaprovada (MORAES FILHO, 1975, s.p.). Torna-se, en-to, professora de primeiras letras no ensino pblico ofi-cial na cidade onde viveu at o fim de seus dias. J em1880, funda, na mesma cidade, uma aula mista e gratuita,ou seja, uma escola para alunos dos dois sexos, segundoTelles (2010, p. 412):

    Um ano antes de se aposentar, com trinta equatro anos de magistrio pblico oficial, MariaFirmina dos Reis fundou, a poucos quilmetrosde Guimares, em Maaric, uma aula mistae gratuita para alunos que no pudessem pa-gar. Estava ento com 54 anos. Toda manh,subia em um carro de bois, para dirigir-se aum barraco de propriedade de um senhor deengenho, onde lecionava para as filhas do pro-prietrio. Levava consigo alguns alunos, outrosse juntavam. Um experimento ousado para apoca.

    No era comum poca que meninos e meninas estu-dassem juntos. Segundo Raimundo de Meneses (1978, p.570), essa escola mista escandalizou os crculos locais, emMaari [...] e por isso mesmo foi a professora obrigadaa suspend-la depois de dois anos e meio. A escola man-tm suas atividades por dois anos, porm, mesmo aps seufechamento, Maria Firmina continua ministrando aulas,eventualmente, para crianas da regio. Muito emboraRaimundo de Meneses afirme em seu Dicionrio LiterrioBrasileiro que a escola mista de Maria Firmina foi fechadapor haver sido motivo de escndalo na poca, no temoscomo afirmar qual o real motivo do encerramento de suasatividades, uma vez que, para Sacramento Blake (1900, p.483), em seu Dicionrio Bibliogrfico Brasileiro, fora pelofato de que o ensino era gratuito para quase todos osalunos, e por isso foi a professora obrigada a suspend-ladepois de dous anos e meio.

    Outro fato que nos chama a ateno que a escolacriada por Firmina oferecia ensino gratuito, o que diferiadas demais escolas brasileiras, em que o ensino era pago.Isso demonstra, por um lado a elitizao da educao noBrasil e, por outro, a preocupao de Maria Firmina emoferecer educao s camadas populares.

    Segundo Moraes Filho (1975, s.p.), a escola criada porMaria Firmina foi uma revoluo social pela educao euma revoluo educacional pelo ensino, o seu pioneirismosubversivo de 1880. Para Muzart (2000, p. 265) o fatode ter fundado a primeira escola mista do pas mostraas ideias avanadas de Maria Firmina para a poca, pois

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    subvertia a ordem educacional vigente, ao quebrar o cno-ne moral oficializado, que segregava os sexos em aulas sep-aradas (MORAES FILHO, 1975, s.p.).

    Subversiva ou avanada cabe compreender aqui MariaFirmina como uma mulher que viveu seu tempo, interpre-tou-o, percebendo as necessidades que havia em seu uni-verso social. Pensava, talvez, pois, em buscar para os de-mais seus alunos e alunas uma realidade melhor do queaquela em que viveu. Realidade essa em que no haveriauma diferena ou um motivo para a separao de meni-nos e meninas nas escolas de primeiras letras, instnciainicial do aprendizado social, ensinando-os a conviver, nasigualdades e diferenas, desde cedo.

    Muito antes de fundar a escola mista, publicado, em1859, o romance rsula, que, logo aps, recebe comen-trios positivos em diversos jornais locais.

    Jornal do comrcio Noticirio OBRA NOVA Com o ttulo dersula publicou a Sra. MariaFirmina dos Reis um romance nitidamente im-presso que se acha venda na tipografia doProgresso. Convidamos aos nossos leitores aapreciarem essa obra original maranhense, que,conquanto no seja perfeita, revela muito tal-ento na autora, e mostra que se no lhe faltaranimao poder produzir trabalhos de maiormrito. O estilo fcil e agradvel, a susten-tao do enredo e o desfecho natural e impres-sionador pem patentes neste belo ensaio dotesque devem ser cuidadosamente cultivados. pena que o acanhamento mui desculpvel danovela escrita no desse todo o desenvolvimentoa algumas cenas tocantes, como as da escravi-do, que tanto pecam pelo modo abreviadocom que so escritas. A no desanimar a au-tora na carreira que to brilhantemente en-saiou, poder para o futuro, dar-nos belos vol-umes 4 de agosto de 1860. (apud MORAESFILHO, 1975, s.p.).

    Jornal A moderao Crnica Semanria R-SULA Acha-se venda na Tipografia do Pro-gresso, este romance original brasileiro, pro-duo da exma. sra. D. Maria Firmina dosReis, professora pblica em Guimares. Sauda-mos a nossa comprovinciana pelo seu ensaio,que revela de sua parte bastante ilustrao: e,com mais vagar emitiremos a nossa opiniodesde j afianamos no ser desfavorvel nossa distinta comprovinciana. 11 de agostode 1860 (apud MORAES FILHO, 1975, s.p.).

    Aps a publicao do romance, Maria Firmina passou acontribuir assiduamente com a imprensa local. Publicoupoesias em prosa e verso, charadas/enigmas, alm de umconto A escrava e outro romance, Gupeva. Esse ltimono foi enfeixado em livro, mas teve 3 (trs) edies emfolhetim num muito curto espao de tempo o que atestaeloquentemente o grande xito popular desta original cri-ao literria (MORAES FILHO, 1975, s.p.). Escreveu

    tambm alguns hinos e cantos. Segundo Mendes (2006, p.19), Maria Firmina foi autodidata, sua instruo fez-seatravs de muitas leituras lia e escrevia francs fluente-mente.

    Em seu lbum[2], segundo a prpria Maria Firmina,um livro da alma; nele que estampamos os nossos maisntimos sentimentos, os nossos mais extremosos afetos; as-sim como as mais pungentes dores de nossos coraes(REIS apud MORAES FILHO, 1975, s.p.), um dirio emque demonstrava muito de seus sentimentos mais ntimos,revelando tristeza, solido e poucas alegrias, percebemosalgumas caractersticas de sua personalidade, que muitoinfluenciaram em sua escrita. Em janeiro de 1853, anosantes da publicao dersula, Maria Firmina escreve nesselbum:

    9 de janeiro de 1853. Dia este que h de sereternamente gravado em minha mente.

    Uma lgrima sobre um tmulo.

    Era a hora do silncio e do repouso, hora mgi-ca misteriosa grande sublime majestosacomo Deus! Triste, melanclica como a ima-gem do tmulo... porm que .... para a minhaalma, por isso que minha alma ama a melanco-lia!!... E eu te saudava hora mgica e subli-me!!!. E eu subia no cume do rochedo... Etu eras grande e misteriosa como o mesmoDeus!!!...

    [...] E eu chorava porque a meus ps estava umtmulo [...].

    E ningum partilhava minha dor!... [...] Mas alua passava e o sepulcro j era tudo sombras: -e minha dor prosseguia, sempre ainda, semprecrescente!!

    [...] Deus! Ajoelhei-me sobre a terra ainda re-volta do sepulcro, e meu esprito sentiu amargaconsolao. Por que? Por que Deus amerciou-se de mim. Eu chorei sobre a sepultura masera um pranto j mais resignado...

    [...] (REIS apud MORARES FILHO, 1975,s.p.).

    Nestes fragmentos que, parece-nos, Maria Firmina escreveaps a morte de uma pessoa querida, a autora nos mostraa forma como reage diante da dor da perda. Seus textos,nesse lbum, so um amontoado de confisses sobre dor,tristeza, escurido, sepulturas, velas, anjos, melancolia,desesperana e mesmo suicdio... Oh! Te sado novoano; mas, tu no trouxeste a esperana minha alma!(REIS apud MORAES FILHO, 1975, s.p.).

    Tentar contra os meus dias, seria um crimecontra Deus, e contra a sociedade; mas almejoa morte. Perdoai-me Deus de misericrdia!Mas a vida -me assaz penosa, e eu mal possosuport-la. O mundo spero e duro; mas nome queixo do mundo nem de pessoa alguma.

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    Minha compleio dbil, minha alma sen-svel, meus desgostos so filhos de meus capri-chos (REIS apud MORAES FILHO, 1975, s.p.).

    A morte uma companheira que Maria Firmina desejouconstantemente, como neste trecho datado de fevereirode 1861: o descanso de uma vida consumida, encontra-se na sepultura. O esquecimento das dores humanas, sela oferece. Eu quero um dia de repouso, um dia de es-quecimento. Campa!... campa, eu te sado (REIS apudMORAES FILHO, 1975, s.p.).

    Em 1863, escreve um pequeno texto, em seu lbum,intitulado Resumo da minha vida, no qual apresenta-nosa forma como v a si prpria:

    De uma compleio dbil, e acanhada, eu nopodia deixar de ser uma criatura frgil, tmidae por consequncia melanclica: uma espciede educao freirtica, veio dar remate a es-tas disposies naturais. Encerrada na casamaterna, eu s conhecia o cu, as estrelas, eas flores, que minha av cultivava com esmerotalvez, por isso eu tanto ame as flores; foramelas o meu primeiro amor. Minha irm... minhaterna irm, e uma prima querida, foram asminhas nicas amigas de infncia; e nos seusseios eu derramava meus melanclicos, e infan-tis queixumes; por-ventura sem causa, mas jbem profundos (REIS apud MORAES FILHO,1975, s.p.).

    Cresceu cercada pelas mulheres que a criaram a me, aav, a irm e a prima e de quem fala no fragmento acima;essas, por sua vez, ajudaram a moldar muito de sua per-sonalidade. A casa no a do pai, no paterna: a casamaterna, dirigida por sua me, a chefe de sua famlia. Elano fala de um homem, de uma figura masculina. Suaeducao freirtica, ou seja, a educao voltada para osafazeres da casa, a organizao do lar e influenciada pelosdogmas catlicos, e essa educao que ajuda a escritoraa justificar sua maneira de ser e ver o mundo, uma edu-cao que a limitou. Maria Firmina afirma ainda sobresua juventude que a mulher como a flor, esta sonhameiguices ao despertar do sol, porque o sol que surge hde afaga-la (REIS apud MORAES FILHO, 1975, s.p.), oque demonstra o quanto da representao social do sculoXIX sobre as mulheres incorporou. A mulher no bruta,essa a caracterstica do homem. Ao contrrio, a mulher como uma flor, frgil, dcil, est ligada ao mundo dosentimento.

    Alm disso, em outras anotaes desse mesmo lbum,Maria Firmina escreveu sobre duas amigas, comparando-as a anjos, afirmando que eu as vi... eram duas vir-gens, duas virgens, meigas, belas, sedutoras, oh! Aindaas vejo!... Teresa... Alexandrina (REIS apud MORAESFILHO, 1975, s.p.). Percebe-se aqui como a escritora des-creve de forma idealizada pessoas prximas, tambm ca-racterstica marcante de seu romance:

    rsula, a mimosa filha de Luisa B..., a flordaquelas solides [...] Esse anjo de sublime

    doura [...]. Bela como o primeiro raio de es-perana [...]. Era ela to caridosa... to bela...e tanta compaixo lhe inspirava o sofrimentoalheio, que lgrimas de tristeza e de sinceropesar se lhe escaparam dos olhos, negros, for-mosos, e melanclicos (REIS, 2004, p. 32-33).

    Maria Firmina no se casou, foimoa solteira durante todasua vida. No h registro de que tenha se enamorado poralgum. Sobre o amor, conta que:

    A sucesso dos anos apagou-me o fogo do cora-o, resfriou-me o ardor da mente, quebrou nahaste a flor de minhas esperanas. [...] Ameieu j acaso? No sei. Amor acrescentareieu, uma paixo funesta o amor quemespreme no mundo tanto fel, tanta amargura, quem torna a vida peso insofrvel, por de-mais incmodo. [...] Entretanto o amor tonecessrio ao corao do homem, quanto o ar necessrio vida. Amor, amor, deixemos aospoetas esse dom celeste e infernal, doce e amar-gurado, inocente e criminoso; no amemos. Asiluses fugiram, fugiram as esperanas (REISapud MORAES FILHO, 1975, s.p.).

    Essa passagem parece relatar que a autora sofreu por amor,sua vida sempre apresentada como solitria e rdua. Seutexto tem tom romntico e melanclico. Fala de dissa-bores e desiluses que apenas a prpria Maria Firminatinha conhecimento. Seus escritos ntimos expressam cons-tantemente a tristeza da separao. A autora est semprevivenciando a perda de algo ou de algum, o que d umanuance de lamentao em seus escritos, constantemente.

    Amo a noite, o silncio, a harmonia do mar,amo a hora do meio-dia, o crepsculo mgicoda tarde, a brisa aromatizada da manh; amoas flores, seu perfume me deleita; amo a docemelodia dos bosques, o terno afeto de umame querida, as amigas de minha infncia, ede minha juventude, e sobre todas as coisaseu amo a Deus; e ainda assim no sou feliz;porque insondvel me segue, me acompanhaesse querer indefinvel que s poder encontrarsatisfao na sepultura (REIS apud MORAESFILHO, 1975, s.p.).

    Por mais belos os cenrios que possam haver diante denossa escritora e embora ela os ame, a morte seu amormaior, seu amor mais desejado. Firmina cultua e admira amorte, chama-a constantemente, ela namora e se enamorada morte. Porm, essa uma amante que s se apresen-tar a Maria Firmina quando ela se encontrar nonagenria.Amante mais amada e que se fez por demais ser esperada.

    Sim, eu sou a lua: - e se Deus negou-me delaa beleza, o ntido albor, e o magnfico esplen-dor de formosura deu-me uma melancolia, suapalidez; e como ela a divagar no cu, deu-meque divagasse na terra; cismando como ela,

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    noite, meditando saudades, e tristezas comoela medita (REIS apud MORAES FILHO, 1975,s.p.).

    Maria Firmina no se v bela, se v como a Lua, eternanamorada da noite, luz que ilumina os sepulcros, chamaque contempla a escurido onde a morte se esconde. ALua bela, e Firmina a Lua, porque a Lua que traza melancolia dos amantes separados... Lua que osapaixonados fazem confisses... A Lua, to solitria nofirmamento quanto Firmina na sociedade, pois o que elasente e pensa no os compreende ningum; porque tam-bm a ningum os revelo (REIS apud MORAES FILHO,1975, s.p.).

    Firmina ainda escreve em seu lbum um texto intitu-lado O que a vida? Respondendo pergunta do ttulo,ela nos diz que ser acaso a vida o respirar, o sorrir notrocar de cumprimentos banais e quantas vezes frvolos....A resposta : no. A vida, para Maria Firmina no se re-sume ao cotidiano, aos atos sociais dirios. Para ela, avida est nas lgrimas (REIS apud MORAES FILHO,1975, s.p.).

    Amo as que verto na amargura pungente deminhas ternas desventuras; com elas alimenta-se minha alma, elas acalmam o rigor do meudestino. [...] Eu amo as lgrimas... Elas tmsido as companheiras da minha rdua e penosaexistncia; nelas que me conforto, nelas queme hei estribado para chegar ao breve termoda minha longa peregrinao... Amei-as na in-fncia, porque elas embalavam-me docementeem ilusrio sentir; eu as invocava por simpatia.Depois o amor e o amor no pode vigorarsem lgrima (REIS apud MORAES FILHO,1975, s.p.).

    Nota-se que a autora possua um individualismo romn-tico profundo, com caractersticas do Ultrarromantismoou estilo Gtico, estilo que remetia Idade Mdia e recor-ria a imagens criadas a partir de uma viso sombria, comcenrios sobrenaturais, como runas e cemitrios, os tocultuados sepulcros presentes na escrita firminiana, outracaracterstica presente em seu primeiro romance:

    Silencioso e ermo estava ento o cemitrio deSanta Cruz, e s o vento, que sibilava entre oarvoredo ao longe, e que mais brando gemiatristemente nessa cidade da morte, e que que-brava a solido montona e impotente desselugar do esquecimento eterno! (REIS, 2004, p.154).

    Alm de revelar pensamentos ntimos, neste lbum Firmi-na informa, em uma breve e nica passagem, sobre a exis-tncia de um filho adotivo que ela mesma batizou com onome de Renato. Ao que consta em seu relato, a me dacriana morreu cinco dias aps dar luz. Pouco depois damorte da me biolgica, algum, que Firmina no nomeiano relato, confiou o pequeno aos cuidados dela:

    Renato creio que assim se chamar o pequenorfo que recebi para no mais aleitar. Ino-centinho, coitado! Nasceu a 6 de dezembrode 1862. No dia 11 do mesmo ms Deus foiservido para seus insondveis mistrios chamar-lhe a me. [...] Criana que me foi confiadapor pessoa que por ela se interessava em Al-cntara, a 30 de janeiro de 1863. Talvez umdia a reclamem seus pais: foi essa condiocom que ma confiaram (REIS apud MORAESFILHO, 1975, s.p.).

    Ainda escrevendo sobre seu filho adotivo, Renato, MariaFirmina desabafa seus sentimentos com a morte da crianaem fragmento do lbum datado de junho de 1863:

    Renato! Renato, meu filho adotivo, meu pobreanjinho, j no existes!... Que fatalidade, meuDeus!... duro ver-se morrer aquela a quemse dedica afeio quase materna. Dez dias desofrimento... dez dias. Renato, pobre florzinhaaoitada pelo furaco quebrou na haste aindato dbil e to mimosa... [...] Que loucura!Perdoai-me Senhor, mas, me criaste to fraca,to sensvel dor!!! (REIS apud MORAESFILHO, 1975, s.p.).

    Outra vez percebe-se o sentimentalismo e a forma comoMaria Firmina compreende a si mesma: como um ser frgile uma mulher religiosa. Em seu dirio, Firmina invoca onome de Deus, do Senhor, inmeras vezes como tambm ofaz no romance rsula. Essa religiosidade ser caracters-tica marcante de sua vida e de seus escritos, a tal pontoque um dia... resolve libertar-se, de vez, da sociedade e desi mesma!... e pensa no suicdio!... Mas a religio detm-na no momento de saltar no abismo! E ento, tomandoconscincia de si, recua apavorada (MORAES FILHO,1975, s.p.).

    Porm, apesar de, na maioria de seus escritos a que seteve acesso atravs dos fragmentos do lbum, serem car-regados de tristeza e apelo morte, algumas vezes Firminaexpressava uma alegria contida com a felicidade de fami-liares, parentes e amigos prximos.

    a simpatia que de h muito votei a RaimundoM. L. que me deu foras para segui-lo de pertoem todas as fases de sua vida: que me levouao dulcssimo prazer que ontem experimentei,e que h de deixar sempre em meu corao.Eu vi-o unir-se ontem, pelos sacrossantos laosdo matrimnio, a uma virgem cndida, e puracomo um anjo de Deus (REIS apud MORAESFILHO, 1975, s.p).

    Sua alegria no reside em si mesma, mas na felicidadedas pessoas que ama. Firmina consegue ver a beleza e aalegria da vida no nela prpria e em seu caminhar, masnas pessoas com quem convive e por quem nutre afeto.

    Os fragmentos do lbum firminiano contidos na bio-grafia feita por Nascimento de Moraes Filho so poucos.

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    Alm desses fragmentos, o escritor maranhense conseguiuentrevistar algumas pessoas da famlia de Maria Firminae alguns de seus ex-alunos, que, poca da entrevista, jcontavam com idade um pouco avanada. Segundo en-trevista feita por Moraes Filho ao Sr. Leude Guimares,parente de Firmina:

    Quando vim para So Lus, depois de sua morte[de Maria Firmina] trouxe muitos manuscritosseus. Eram cadernos com romances e poe-sias e um lbum onde havia muita coisa desua vida e de nossa famlia. Mas os ladres,um dia, entraram no quarto do hotel onde es-tava hospedado, arrombaram o ba, e levaramtudo o que nele havia. S me deixaram, derecordao, os restos desse lbum, que encon-trei pelo cho (MORAES FILHO, 1975, s.p.).

    Dessa forma, muito do que se poderia conhecer e com-preender a respeito de Maria Firmina dos Reis foi perdido.Muito de sua obra, de sua vida, de seus pensamentos, nochegar ao pblico.

    3. A escritoraDesconhece-se a forma como Maria Firmina dos Reis

    conseguiu publicar seu romance em uma poca em queas mulheres possuam praticamente nenhum acesso s le-tras. Talvez pela influncia de seu primo, Francisco Soterodos Reis[3], figura ilustre, intelectual respeitado no Mara-nho oitocentista. Talvez por outros conhecimentos, ou-tros meios. O tempo no deixou um nico vestgio, umindcio, mesmo que pequeno e simples, sobre essa questo.Mas tenta-se compreender se havia ou no, partindo doque j foi exposto, possibilidade de que as mulheres tives-sem acesso ao campo literrio naquele perodo no Maran-ho. Maria Firmina dos Reis publicou o romance assi-nando como por uma maranhense. Na chamada sobre apublicao do romance, pela Tipografia do Progresso con-sta:

    RSULA

    ROMANCE BRASILEIRO

    POR

    UMA MARANHENSE

    UM VOLUME EM PREO DE 2$000

    Esta obra, digna de ser lida no s pelasingeleza e elegncia com que escrita, como

    por ser a estreia de uma talentosamaranhense, merece toda a proteo pblicapara animar a sua modesta autora a fim de

    continuar a dar-nos provas do seu belotalento.

    Assina-se nesta tipografia.

    Tip. do Progresso Imp. por B. de Mattos 1860

    A IMPRENSA

    So Lus, 18 de fevereiro de 1860

    n 11

    Muitas mulheres acabaram por optar publicar seus escritosde duas formas: a primeira, como no caso de Firmina,intitulando-se uma maranhense[4] (uma senhora, uma brasileira,entre outros) que no especificava exatamente quem eraessa maranhense, mas deixava claro que era uma mul-her; ou, uma segunda forma era a adoo de pseudnimosmasculinos. Em ambos os casos, havia uma tentativa deadentrar-se, com um pouco mais de liberdade, no universoletrado, dominado, quase que exclusivamente por homens,alm de tentar burlar o preconceito da poca. Segundo ojornal A Verdadeira Marmota, sobre a publicao do ro-mance rsula:

    A autora de rsula

    Raro ver o belo sexo entregar-se a trabalhosdo esprito, e deixando os prazeres fceis dosalo propor-se aos afs das lides literrias.

    [...]

    Se , pois, cousa peregrina ver na Europa, ouna Amrica do Norte, uma mulher, que, rom-pendo o crculo de ferro traado pela educaoacanhada que lhe damos, ns os homens, eindo por diante de preconceitos, apresentar-seno mundo, servindo-se da pena e tomar as-sento nos lugares mais proeminentes do ban-quete da inteligncia, mais grato e singular ainda ter de apreciar talento formoso, e dotadode muitas imaginaes [...].

    Oferecemos hoje aos nossos leitores algumasde suas produes, que vm dar todo o brilhoe realce nossa Marmota, que ufana-se depoder contar doravante com to distinta co-laboradora, que servir por certo de incentivos nossas belas, que talvez com o exemplo, co-brem nimo, e se atrevam a cultivar tanto ta-lento, que anda acaso por a oculto.

    O belo sexo no deve viver segregado de tosublime arte [...] tome a senda que lhe abrecom to bons auspcios, rodeada de aplausosmerecidos, D. Maria Firmina dos Reis [...] (AVERDADEIRA MARMOTA 13 maio 1861).

    Nota-se que a partir de agosto de 1860, os anncios nosperidicos j informam o nome da autora do romance r-sula; acredita-se que esse fato ocorreu devido sua boa re-cepo. O anncio acima, alm de ter a inteno de levar

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    as senhoras e senhoritas a se interessarem pela leitura doromance, tambm procurou incentivar as mulheres a pu-blicarem seus escritos e mesmo as que j publicavam emjornais, com pseudnimos masculinos, a assumirem suaautoria.

    Deve-se recordar que se nessa poca houve pouca ouquase nenhuma contribuio das mulheres com a escrita,isso se deve ao fato de que, durante todo o sculo XIX,o Maranho vivia sob a gide do patriarcalismo. Susten-tando a viso patriarcal estavam os dogmas religiosos daIgreja Catlica. Esses dois pontos convergiam para repre-sentar a mulher como uma figura subalterna e dependentedo homem. Motivos esses que faziam que as mulheresdesse perodo tivessem quase nenhum acesso educaoe, consequentemente, ao campo literrio.

    Destaca-se que embora uma mulher, mesmo como Ma-ria Firmina dos Reis, para os padres conceituais do sculoXIX brasileiro, no poderia ser entendida em seu tempocomo uma intelectual, uma vez que esse conceito ou o deletrado, termo que faz referncia, durante o sculo XIX, noo de intelectual , detentor de um saber-poder, ligava-se figura masculina. Apesar dessa viso que inferiori-zava intelectualmente as mulheres, acredita-se que MariaFirmina possa ser vista como uma letrada em seu tempo,tendo em vista suas contribuies, sua participao ativanos jornais e na educao local, alm do fato de ter criadouma escola mista e gratuita, fugindo aos padres conven-cionais de sua poca.

    Segundo Chartier (1997, p. 120), o homem de letras,seria uma espcie de enciclopedista, um homem que pos-sui conhecimentos em todas as reas do saber, um beloesprito dotado de imaginao brilhante nos prazeres daconversa, sustentados pelas leituras correntes. Por essadefinio, um intelectual no sculo XIX seria, portanto,aquele homem que estuda e l constantemente sobre di-versos assuntos e que convive socialmente, demonstrandonessa sociabilidade com seus pares os saberes adquiridos.

    Analisando essa definio, percebe-se que as mulheresda primeira metade do sculo XIX estavam excludas daideia de intelectualidade. Destacam-se dois pontos no con-ceito de letrado proposto por Chartier, o primeiro dizrespeito questo do acesso leitura, educao; o se-gundo est relacionado mobilidade e ao convvio social,dessa forma:

    Considerando o pressuposto de que o homemde letras aquele que detm o saber, a mulherencontrou a um persistente empecilho paraseu reconhecimento enquanto intelectual, umavez que a ela foi negado durante muito tempoo direito educao. As discusses datamdo sculo XIX, alguns defendiam a educaocomo forma de libertao da mulher, outrosacreditavam que era necessria uma educaovoltada formao moral, uma educao con-trolada, pois, para ser me e esposa virtuosa, aformao do carter seria mais importante queos conhecimentos instrutivos. Assim, justifi-cava-se uma formao voltada, sobretudo s

    prendas domsticas, ao cuidado do lar e dos fil-hos, uma educao da agulha que no ameaassea estrutura familiar e que no deixasse vago opapel social atribudo figura feminina: o deme e esposa (DUARTE, 2009, p. 12).

    Como a mulher do sculo XIX estava destinada ao apren-dizado dos afazeres domsticos, destinou-se a ela o espaoprivado do lar, estabelecendo assim um convvio social queno primava pelo aprendizado de um ofcio externo ao m-bito domstico. Assim, o convvio social feminino resumia-se, em muitos casos, aos sales, aos bailes, ou s visitas casa de outras mulheres, to desprovidas de instruoquanto s outras.

    Retomando o caso de Firmina, por exemplo, uma mu-lher que possuiu um ofcio externo ao lar (era professora)e que adentrou em um espao considerado exclusivo aoshomens, os elogios que recebeu na imprensa estavam sem-pre ligados a uma viso que definia a mulher como umser delicado (a ideia de sexo frgil). Por esse motivo, seusescritos sempre eram vistos como simples, quando com-parados com os de escritores masculinos, como nesta pas-sagem de um jornal local: convidamos aos nossos leitoresa apreciarem essa obra original maranhense, que, con-quanto no seja perfeita, revela muito talento da autora(JORNAL DO COMRCIO, 4 ago.1860); e ainda afirmaque pena que o acanhamento mui desculpvel da novelaescrita no desse todo o desenvolvimento a algumas ce-nas tocantes (JORNAL DO COMRCIO, 4 ago.1860).Outro jornal local afirmava que a poesia dom do cu,e a ningum dotou mais largamente a divindade do queao ente delicado, caprichoso e sentimental a mulher (AVERDADEIRA MARMOTA, 13 maio 1861).

    Embora nesse perodo o nico gnero autorizado a falar,nomear, dominar e exercer seu poder e viso de mundofosse o masculino, mesmo assim, foi a partir dessa pocaque um grande nmero [em comparao com os pero-dos anteriores] de mulheres comeou a escrever e publicar,tanto na Europa quanto nas Amricas (TELLES, 2010,p. 403).

    Esse maior nmero de escritoras que comeou a surgirno sculo XIX, deve-se a fatores como a mudana de men-talidade em torno da educao feminina, principalmenteaps a divulgao do pensamento Positivista que enten-dia a mulher como primeira educadora dos futuros homensde uma nao. Dessa forma, seria necessrio educ-la,para que ela pudesse formar corretamente os prprios fi-lhos e, no caso do Brasil, com a maior quantidade delivros europeus que passaram a circular na colnia com achegada da Famlia Real. Vale lembrar que a conquistado territrio da escrita, da carreira de letras, foi longae difcil para as mulheres no Brasil (TELLES, 2010, p.409). At mesmo adentrar no magistrio foi complicadopara as mulheres da primeira metade do sculo XIX:

    A identificao da mulher com a atividade do-cente, que hoje parece a muitos to natural,era alvo de discusses, disputas e polmicas.Para alguns parecia uma completa insensatez

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    entregar s mulheres usualmente despreparadas,portadoras de crebros pouco desenvolvidospelo seu desuso a educao das crianas. [...]Outras vozes surgiam para argumentar na di-reo oposta, afirmavam que as mulheres ti-nham, por natureza, uma inclinao para otrato com as crianas, que elas eram as primeirase naturais educadoras, portanto nada maisadequado do que lhes confiar a educao esco-lar dos pequeninos (LOURO, 2010, p. 450).

    As conquistas foram lentas e graduais e foram travadaspor mulheres que no colocaram em primeiro lugar o queos outros vo dizer e que tentaram livrar-se da tirania doalfabeto, tendo primeiro de aprend-lo para depois deslin-dar os mecanismos de dominao nele contidos (TELLES,2010, p. 410). E mesmo indo de encontro s estruturassociais estabelecidas, muitas dessas mulheres foram criti-cadas e seus textos vistos como esteticamente ruins, almdisso, seus contedos eram constantemente comparados ade escritores homens, a partir de um ponto de vista queas inferiorizava.

    Porm, se os textos femininos do sculo XIX foram con-siderados frgeis, sem contedo profundo, fora dos padrese cnones literrios da poca, essa situao devia-se ao tipode educao que se destinou a essas mulheres. Como apro-fundar e escrever textos de qualidade quando no tinhamacesso a uma educao que as fizesse refletir profunda-mente sobre a sociedade na qual estavam inseridas? Se-gundo Telles (2010, p. 406), a situao de ignorncia emque se pretende manter a mulher responsvel pelas di-ficuldades que encontra na vida e cria um crculo vicioso:como no tem instruo no est apta a participar da vidapblica, e no recebe instruo porque no participa dela.

    Longe de serem textos frgeis os escritos femininos dosculo XIX (e mesmo do incio do sculo XX), revelam asituao na qual se desejava manter a mulher: uma situ-ao de ignorncia plena, na qual elas, ao prepararem-separa serem as rainhas do lar, no poderiam criticar ourebelar-se contra o sistema patriarcal que as dominava.

    O sculo XIX no via com bons olhos mu-lheres envolvidas em aes polticas, revoltas eguerras, em geral. As interpretaes literriasdas aes das mulheres armadas, em geral, de-nunciam a incapacidade feminina para a luta,fsica ou mental, donde concluem que as mu-lheres so incapazes para a poltica, ou que essetipo de ideia apenas diverso passageira demeninas teimosas que querem sobressair (TEL-LES, 2010, p. 407).

    Ainda assim, mesmo excludas de participao na vidaintelectual, pblica e, consequentemente, poltica, algu-mas mulheres conseguiram escrever textos que chegam adomnio pblico ainda hoje e a partir dos quais se podeentrever a forma como interpretavam o mundo no qualestavam inseridas. No caso de Maria Firmina dos Reis,muito embora tenha escrito um romance, contribudo com

    a imprensa maranhense, no foi vista como uma intelec-tual, pois esse lugar social era exclusivo dos homens deletras, dessa forma:

    Excludas de uma efetiva participao na so-ciedade, da possibilidade de ocuparem cargospblicos, de assegurarem dignamente sua pr-pria sobrevivncia e at mesmo impedidas doacesso educao superior, as mulheres no sculoXIX ficavam trancadas, fechadas dentro de casasou sobrados, mocambos e senzalas, constru-dos por pais, maridos e senhores. Alm disso,estavam enredadas e constritas pelos enredosda arte e da fico masculina. Tanto na vidaquanto na arte, a mulher no sculo passadoaprendia a ser tola, a se adequar a um re-trato do qual no era a autora. As represen-taes literrias no so neutras, so encar-naes textuais da cultura que as gera (TEL-LES, 2010, p. 408).

    Essas comparaes feitas entre os textos de escritores e es-critoras mostram que havia um duplo padro da crtica,isto , critrios diferenciados para julgar ou comentar obrasde homens e obras de mulheres (TELLES, 2010, p. 422).Para a maioria dos crticos no sculo XIX, as escritorasdeveriam permanecer no seu lugar; aquele lugar que lhesera atribudo e se situava bem longe da esfera pblica(TELLES, 2010, p. 422). Dessa forma, tal como o homemno deveria interferir em assuntos de mulheres, quelesrelacionados organizao e administrao do lar; assimtambm as mulheres no deveriam intrometer-se nos as-suntos dos homens, queles relacionados s tarefas pbli-cas.

    Alm do fato de que o homem no pode, semderrogao, rebaixar-se a realizar certas tare-fas socialmente designadas como inferiores (en-tre outras razes porque est excluda a ideiade que ele possa realiza-las), as mesmas tare-fas podem ser nobres e difceis quando so re-alizadas por homens, ou insignificantes e im-perceptveis, fceis ou fteis, quando so re-alizadas por mulheres, como nos faz lembrara diferena entre um cozinheiro e uma cozi-nheira, entre o costureiro e a costureira; bastaque os homens assumam tarefas reputadas fe-mininas e as realizem fora da esfera privadapara que elas se vejam com isso enobrecidas etransfiguradas (BOURDIEU, 2010, p. 75).

    Pode-se considerar a diferena que havia, nesse perodo,entre as crticas relacionadas aos escritores e s escritoras.A poesia, por exemplo, um texto literrio que envolveo sentimentalismo, e o sentimento, a emoo eram carac-tersticas ligadas s imagens que se faziam das mulheresnesse perodo e ainda hoje. Porm, quando um homemescrevia poesias de cunho sentimental, profundo, falandode amor, dor, entre outros, notava-se crticas extrema-mente positivas a esse respeito, enaltecendo o valor de suas

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    obras. Ao contrrio da mulher que, ao exercer o mesmotipo de texto, no mximo recebia elogios carinhosos, comose sua escrita fosse um ornamento, uma distrao, nouma profisso.

    A prpria Maria Firmina, no Prlogo dersula, demons-tra o quanto incorporou da viso do dominador:

    Sei que pouco vale este romance, porque es-crito por uma mulher, e mulher brasileira, deeducao acanhada e sem o trato e conversaodos homens ilustrados, que aconselham, quediscutem e que corrigem, com uma instruomisrrima, apenas conhecendo a lngua de seuspais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual quase nulo (REIS, 2004, p. 13).

    Firmina tinha conscincia de que seu texto, para os letra-dos, para a crtica da poca, seria inferior quando com-parado s obras masculinas, pois, primeiro fora escritopor uma mulher brasileira e segundo por uma mul-her que no teve uma instruo adequada, como a de seuscontemporneos escritores, Gonalves Dias (1823-1864),o grande poeta romntico nascido no Maranho, estudouem Coimbra, enquanto sua conterrnea estudou sozinha(TELLES, 2010, p. 410).

    4. ConclusoDe acordo com o que foi apresentado at aqui, nota-se

    que mulher do sculo XIX no era de fcil permisso oacesso ao campo literrio, local exclusivo de disputas dopoder masculino. No h, por exemplo, nenhuma refern-cia ao nome de Maria Firmina dos Reis ao conjunto de es-critores/intelectuais que compunham a chamada AthenasBrasileira [5]. Tambm no h referncias de que MariaFirmina tenha frequentado sales ou clubes literrios, es-paos de sociabilidade dos chamados homens de letras du-rante o sculo XIX.

    Durante o perodo imperial, no Brasil, houve quaseque uma total ausncia da mulher nas esferas poltica eartstica, ou seja, os papis sociais de homens e mulheresestavam deveras bem definidos. A mulher no podia ou no deveria ocupar-se de atividades entendidas comoessencialmente masculinas.

    Porm, mesmo com essas restries, algumas mulheresconseguiram escrever em jornais e publicar alguns livros como foi o caso de Maria Firmina dos Reis. Mas, essasmulheres escritoras no eram vistas com a mesma profun-didade intelectual com a qual eram observados os homensque desempenhavam o mesmo ofcio. A mulher, mesmoquando conseguia algum destaque no campo literrio, eravista como inferior ao homem, sendo seus textos conside-rados frgeis.

    Notas[1] Segundo Constncia Lima Duarte, principal estudiosade Nsia Floresta, o que a autora teria feito foi uma livre

    adaptao do texto de Mary Wollstonecraft para a reali-dade brasileira.[2] Espcie de dirio que a prpria Maria Firmina intitulalbum e que foi compilado por Nascimento de MoraesFilho na biografia que escreveu sobre a escritora.[3] Era prima de Francisco Sotero dos Reis por parte deme, segundo Muzart (2000, p. 264).[4] No s no Brasil, mas em outros pases da Europa,como na Inglaterra, quando da publicao de seus ro-mances Orgulho e Preconceito e Razo e Sensibilidade,por exemplo, Jane Austen assinou By a lady (Por umadama).[5] A meno Athenas Brasileira surgida na dcada dequarenta do sculo XIX, em virtude dos arroubos romn-ticos (BORRALHO, 2010, p. 47) expressava o conjuntode intelectuais maranhenses que se destacou no cenrioliterrio brasileiro, com nomes como os de Viriato Corra,Humberto de Campos, Arthur Azevedo, Aluzio Azevedo,Coelho Neto, Sotero dos Reis, Odorico Mendes, entre ou-tros. Segundo Lacroix (2008, p. 77) entre 1830 e 1870,uma pliade de intelectuais se destacou no cenrio na-cional, chegando a dar Provncia, o cognome de AtenasBrasileira, ttulo conservado por bastante tempo no Brasilrepublicano.

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